João Luz Manchete PolíticaGrades na AL | DSSCU trata obrigação de consulta a arquitecto como cortesia O caso das grades colocadas nas saídas de emergência na Assembleia Legislativa conheceu mais um inusitado episódio. Depois de a DSSOPT ter pedido um parecer, que deveria por lei ser prévio, ao arquitecto que desenhou o edifício para modificação do projecto, o Governo refere que o fez por “respeito”. Mário Duarte Duque vê vestígios da cultura herdada de Jaime Carion e Li Canfeng na actuação da nova DSSCU A obrigação legal de consultar o autor de um projecto antes de o alterar, sob pena de indemnização, tem estado no centro de um diferendo entre o arquitecto responsável pelo projecto da Assembleia Legislativa e a Administração. Depois de terem solicitado o parecer ao autor, já depois de concluídas as obras, a Administração vem agora indicar que não estaria a cumprir a obrigação legal de solicitar o parecer o autor, mas meramente a informá-lo por uma questão de respeito. No final de 2021, o HM dava conta de que a Direcção dos Serviços de Solos Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) anunciava a conclusão da instalação de grades nas janelas do rés-do-chão da Assembleia Legislativa (AL), bloqueando duas saídas de emergência do edifício. A obra vinha designada no website da DSSOPT como “Obras de Melhoramento AGO 2021”, com a intervenção a arrancar em Setembro de 2021. Cerca de dois meses depois do início das obras, a mesma direcção de serviços enviou um pedido de parecer prévio ao arquitecto responsável pelo projecto, Mário Duarte Duque. A lei do direito de autor e direitos conexos estabelece que o “dono de obra construída ou executada segundo projecto da autoria de outrem é livre de, quer durante a construção ou execução, quer após a sua conclusão, introduzir nela as alterações que desejar, mas deve consultar previamente o autor do projecto, sob pena de indemnização por perdas e danos”. Situação que não se verificou. Sensibilidade e bom-senso No final de Julho deste ano, o caso conheceu um novo desenvolvimento, com a Direcção dos Serviços de Solos e Construção Urbana (DSSCU) afirmou que “as referidas obras destinam-se apenas a melhorar a utilização do edifício e não são obras de modificação, pelo que não houve necessidade de consulta prévia”, afirmam os serviços numa missiva enviada a Mário Duarte Duque. A DSSCU acrescenta que o pedido de parecer, que a DSSOPT justificou ao abrigo da exigência legal de ouvir previamente o autor do projecto, foi emitido “como forma de respeito pelo projectista”. Além disso, a DSSCU indicou que as grades “não bloqueiam qualquer saída de emergência”. Conclusão negada pelo autor do projecto, que afirma que as saídas de emergência estão bem identificadas tanto no projecto de arquitectura do edifício da AL, como no projecto de instalação eléctrica. Aliás, as saídas de emergências são definidas depois de avaliadas pelo Corpo de Bombeiros, antes de serem definidos os controlos das fechaduras e as sinalizações de emergência para encaminhar as pessoas para o exterior. Todos estes passos, consultas e pareceres são aprovados definitivamente pelas próprias Obras Públicas. Ora, segundo o arquitecto, os serviços têm nos seus arquivos desenhos do projecto onde as janelas em questão estão claramente identificadas como saídas de emergência. Confrontado com o volte-face, Mário Duarte Duque encontra nos serviços actuais traços de direcções anteriores. “O Sr. Eng. Lai Weng Leong [director da DSSCU que assina a missiva dirigida ao arquitecto] não representa que a forma de respeito pelos projectistas acreditados naquela DSSCU passa por revestir de seriedade, rigor e boa-fé os procedimentos em que envolve esses projectistas, que é exactamente o contrário do que aqui se retrata”. Além disso, “ocorre que o Sr. Eng.º Lai Weng Leong tenha herdado a cultura funcional da DSSOPT sob as direcções do Srs. Eng.º Jaime Carion, Li Canfeng e Chan Pou Ha, ou esteja motivado a dar-lhes continuidade”, conclui Mário Duarte Duque.
Andreia Sofia Silva Grande Plano MancheteFábrica de Panchões | Recuperação “medíocre” e um parque nunca feito Aberto ao público há apenas cinco meses, o espaço da antiga fábrica de panchões Iec Long já recebeu críticas do deputado José Pereira Coutinho pelo estado “degradante” em que se encontra. Bruno Simões, empresário ligado ao sector de convenções e eventos, fala de um projecto “medíocre”, sem espaço para eventos, muito aquém do seu verdadeiro potencial. O arquitecto Mário Duque revela o projecto do “Parque Urbano Iec Long” que nunca avançou devido ao caso Ao Man Long Tem uma área praticamente igual à totalidade da dimensão da vila da Taipa, mas para já é só um emaranhado de plantas selvagens e edifícios que outrora acolheram uma fábrica de panchões, onde existem apenas dois edifícios recuperados para acolher exposições e um passadiço para visitantes com algumas placas informativas. O Instituto Cultural (IC) inaugurou o espaço da antiga fábrica de panchões Iec Long há cinco meses, mas já há quem lamente não se ter explorado o verdadeiro potencial deste espaço. Esta semana, o deputado José Pereira Coutinho alertou para um espaço “degradante”, cheio de lixo, com edifícios ao abandono e cobras num solo cheio de vegetação. A esta voz crítica, junta-se a de Bruno Simões, empresário na área de organização de eventos e presidente da associação Macau Meetings, Incentives and Special Events (MISE). “Ficou realmente uma obra medíocre”, afirmou ao HM. “Quando vi o resultado final do projecto fiquei muito desapontado, porque a área é grande, a localização é excelente, pois fica na zona da Taipa Velha com muitos turistas e está ao lado do Cotai. É ainda um projecto associado a dois grandes objectivos do Governo, que é o de tornar cada vez mais Macau uma cidade internacional de turismo e lazer e apostar na estratégia de diversificação da economia. Com os recursos que tinham ali não fizeram nada nesse sentido.” Bruno Simões destaca o facto de “cerca de 80 a 90 por cento da área não estar aproveitada nem recuperada”. “Deixaram grande parte dos edifícios como estavam, fizeram o passadiço, com uma sinalização com informações. É uma obra que não serve praticamente para nada, tendo apenas duas pequenas áreas de exposições. Não há uma sinalização na rua a anunciar que ali há uma antiga fábrica de panchões, por exemplo.” O empresário lamenta que não tenha havido um diálogo entre os diversos departamentos governamentais para que aquela zona pudesse ser aproveitada para acolher cafés, restaurantes ou eventos ligados ao sector MICE [exposições, convenções, feiras e eventos]. “Há uma falta de integração de diferentes áreas e entidades do Governo, porque para se atingir o estatuto de cidade internacional de turismo e lazer não basta fazer um só trabalho pelo turismo ou cultura, tem de haver uma integração e trabalho conjunto. Teria de envolver também o IPIM [Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau], responsável pela área do MICE e o IAM [Instituto para os Assuntos Municipais], responsável pela gestão dos espaços verdes. Só assim se conseguem resultados que dão resposta às necessidades de turismo, lazer e economia, e ali está um exemplo em que o IC tentou recuperar um espaço ligado à história e cultura de Macau cujo resultado final é muito fraco.” Bruno Simões adianta ainda que, se olharmos para exemplos de renovação de espaços antigos noutras cidades limítrofes, o projecto da fábrica de panchões Iec Long fica bastante aquém. “Temos concorrência, os turistas vêm da China, Hong Kong ou Singapura, e aquele projecto está muito abaixo da média face ao que se apresenta noutras cidades, de cujas infra-estruturas podemos usufruir. Temos o exemplo da antiga prisão em Hong Kong, onde se fizeram espaços de restauração, para eventos privados e públicos, e onde de facto se fez um sítio vivo e não apenas um local para fazer pequenas exposições culturais. Isso é muito limitado, ficando muito abaixo do verdadeiro potencial que um espaço destes apresenta.” O empresário pensa que o Governo deveria “ter recuperado todos os edifícios da antiga fábrica de panchões e não apenas um ou dois”, além de que “deviam ter sido feitos restaurantes, esplanadas, lojas, mantendo o traço e a história do local”. “Simplesmente não se passa nada ali”, referiu. Na gaveta Para o espaço em questão, já foi projecto o “Parque Urbano Iec Long” que nunca chegou a ver a luz do dia. Estávamos em 1995, quando a então Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, hoje Direcção dos Serviços de Obras Públicas, lançou um concurso público para aproveitamento do lugar. O arquitecto Mário Duque trabalhou com Helena Valente Pinto e os arquitectos paisagistas João Gomes da Silva e Inês Norton de Matos de Lisboa. Nessa altura, a Taipa não estava ainda urbanizada como está hoje, mas, segundo recorda ao HM Mário Duque, “começou a ser edificada intensamente”, sendo necessárias infra-estruturas de equipamento público”. O facto de ali ter existido uma fábrica de panchões dava ao local “um atributo paisagístico notável, marcado pelas características das edificações e pela arborização invasiva em redor, que distinguiria este parque de outros”. O projecto arquitectónico incluía uma casa de chá, casas de fresco, salas de leitura e de exposições, um ginásio de artes marciais, ateliers, lojas de artesanato, artigos de culto e coleccionismo. Poderiam ainda ser realizadas “atracções expectáveis num jardim ou num parque”, pois foi desenhado um palco um anfiteatro sobre o grande reservatório onde se pudessem fazer, entre outros, espectáculos de pirotecnia que tirassem partido de um reflexo de água, entre outras infra-estruturas que permitiam um melhor conhecimento e visualização daquele espaço antigo. Ao projecto, estava associado o conceito de “arqueologia industrial”, já conhecido em todo o mundo, mas que em Macau “não figurava, e ainda não figura, como uma categoria patrimonial cultural”. A história da fábrica conta-se através de cada parcela de terreno, que inclui em si um período diferente, com edificações feitas com diferentes características. Por exemplo, “a primeira geração de construções da fábrica Iec Long adoptou características muito semelhantes a modelos que existiram na província de Hunan, mas introduzindo adaptações que tiveram em vista a utilização de menos solo, com dispositivos de protecção em muros em vez de taludes, passando a ser essa a principal característica local dessas fábricas”. Terminado em 1997, o projecto não avançou pelo facto de o recinto ser constituído por diferentes parcelas de terreno, sujeitas a regimes diferentes e que “não estavam igualmente disponíveis”. O então secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, condenado anos mais tarde por corrupção, “procurou solucionar essa questão, que acabou por ser travada porque as permutas a efectuar foram achadas desproporcionais”. O processo com o antigo governante e a investigação dos terrenos envolvidos no caso fez com que este projecto tenha caído por terra. Reverter é possível Quando falamos de uma antiga fábrica devemos ter em conta os resíduos e materiais tóxicos que ali podem ter sido produzidos. Mário Duque acredita que o IC recolheu essa informação tendo em conta “a interpretação hoje disponível na visita ao local”, não existindo, por isso, perigos. O arquitecto entende que o projecto inaugurado há cinco meses não é mais do que uma solução preliminar, “podendo ser prévio a outras intervenções sobre as quais possam ainda não existir certezas”, não colidindo “com nenhuma recomendação arqueológica ou ambiental”. “Essa intervenção afigura-se reversível, no caso de rectificações deverem ser feitas, conforme recomendações de órgãos internacionais de especialidade”, adiantou. A circulação dos visitantes, através do passadiço, é “elevada e canalizada”, garantindo “que os pavimentos existentes, construídos ou os naturais, onde proliferam grandes raízes de frondosos Ficus Microcarpa, não sejam pisados, nem que os visitantes se introduzam nos interstícios recônditos do recinto ainda por tratar”. Mário Duque desvaloriza as críticas feitas pelo deputado Coutinho. “A fauna que aí possa existir não é diferente da que existe nos trilhos da ilha. Os caminhos de circulação são sobre-elevados e vedados lateralmente por rede, e é bom que os trabalhadores da manutenção usem botas de borracha adequadas quando pisam o solo natural, como eu também uso calçado adequado quando visito uma obra e em consequências de normas trabalho, não vá eu pisar uma tábua com um prego espetado.” Para Mário Duque, “do que possa ter sido alvo de críticas são possivelmente questões que não foram explicadas e que ainda o podem ser em moldes que são de razão”. “A população não apreciou o valor cénico do local, sendo isso mero facto circunstancial”, e “a remoção de toda aquela vegetação e a reconstituição das instalações a novo não é um procedimento reversível”. “O valor cénico dos lugares só é prioridade quando nele se fixa objectivamente valor, que não deve existir apenas em registos fotográficos, e quando as demais necessidades fundamentais já se encontram asseguradas”, rematou.
Hoje Macau VozesV – Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau V – Do reaproveitamento de infra-estruturas de transporte (continuação de dia 22 de Agosto) A palavra infra-estrutura significa algo que é materializado pela sua construção ou organização (uma estrutura), mas que possibilita ou integra funcionalidades essenciais em que uma população se suporta. O reaproveitamento de infra-estruturas poderá ter em vista o prolongamento da sua vida económica no sentido da efectiva utilidade, que poderá ser tanto a original, como outra emergente, todavia diferente, que possa tirar partido da estrutura entretanto tornada obsoleta. As situações mais recorrentes associadas a reaproveitamento de infra-estruturas de transportes são as ferroviárias com exemplos que cobrem todo um leque situações, possibilidades e soluções. No caso de Berlim várias estações desactivadas reentraram em funcionamento com a unificação da cidade. No caso de Viena, a linha de cintura, a parte que não fora reconstruída no pós-Segunda Guerra Mundial, e cujas estações foram desenhadas por Otto Wagner no período da Arte Nova Vienense, tiveram a sua reactivação em 1989, já integradas no actual sistema de metro urbano. Já no caso de Roterdão, os viadutos urbanos que serviam linhas entretanto desactivadas, construídos na mesma tradição industrial de abóbadas de tijolo, passaram a ter esses vãos ocupados por serviços, principalmente de restauração, e os tabuleiros equipados com esplanadas e arranjos paisagísticos, já numa óbvia estratégia de embelezamento, complementados com outras ligações aéreas e dotando a cidade de uma circulação pedonal alternativa e elevada. Ou Roterdão não fosse uma cidade dos Países Baixos, mesmo estando dotada de uma forma urbana resiliente, e equipada com grandes bacias subterrâneas de retenção. Por sua vez uma infra-estrutura integra outras estruturas, a que já chamamos equipamentos. No caso de uma infra-estrutura ferroviária, os mais notórios são sem dúvida as estações a que, desde a génese da construção de estações ferroviárias, sempre se dedicou grande cuidado arquitectónico. Muitos desses edifícios encontram-se classificados, muitos serviram linhas entretanto extintas, e muitos passaram a ser insuficientes para servir exigências actuais de funcionamento. Foram por isso ampliados ou complementados com outras estruturas, ou passaram a albergar outras utilizações quando deixaram de servir para as finalidades iniciais. Sempre se dirá que distanciar ou desarticular um edifício da sua finalidade original, será lançar mão de um recurso necessário, mas constituirá sempre prejuízo para a sua integridade, mesmo tendo em vista a sua preservação, e presentes sólidos elementos de interpretação. Existe ainda uma nova tipologia de reaproveitamento de infra-estruturas associadas a operações imobiliárias de que possivelmente o caso mais exemplificativo seja Cheonggyecheon em Seoul. Trata-se de um arroio ou riacho urbano que atravessava a cidade e que na década de 1940 começou a ficar obstruído por grandes quantidades de lixo e efluentes de esgoto que aí eram despejados. As margens do arroio eram ocupadas por comércio de baixo escalão e as soluções para o local foram primeiro o encanamento do arroio e mais tarde a construção de uma viaduto rodoviário expresso. Nenhuma dessas medidas trouxe qualidade urbana e a mesma zona da cidade manteve-se até ao início do Século XXI expectante de melhor qualificação. A solução surgiu sob a égide do modelo do neoliberalismo económico em que o potencial económico dos terrenos em causa dependia da requalificação de uma infra-estrutura, ou seja, de um bem público, e que o mesmo potencial justificava o encargo dessa qualificação, ao ponto de a mesma poder ser custeada pela iniciativa privada. A iniciativa passou pela remoção do viaduto rodoviário e o arroio voltou a ser descoberto para ser ambientalmente qualificado. O curso do arroio passou a existir num canal, complementado por margens para trajectos pedonais, com grande detalhe paisagístico e numa óbvia estratégia de embelezamento. Da medida resultou um novo bairro próspero e elegante, marcado por um forte efeito de gentrificação. São estes elementos de escrutínio que caracterizam situações diversas de reaproveitamento de infra-estruturas urbanas, nomeadamente de transportes, que no cenário local servem o destino da Ponte Governador Nobre de Carvalho ou Ponte Macau-Taipa (em chinês: 澳氹大橋), para a qual não é descabido uma classificação de património cultural. Qualquer classificação nessa categoria pressupõe uma base de justificação onde se invoque a relevância do objecto de qualificação. Neste caso a Ponte Governador Nobre de Carvalho é atribuída ao Eng.º Edgar Cardoso, conhecido por estruturas notáveis que se pautaram por modelos de cálculo que não eram nem correntes, nem consentâneos. Foi planeada como uma ponte rodoviária que liga a Península de Macau à Ilha da Taipa, e função que ainda exerce, entretanto complementada pela Ponte da Amizade e a mais recente Ponte de Sai Van. O comprimento total da ponte é de cerca de 2 570 metros, teve o início da construção em Junho de 1970 e aberta à circulação em Outubro de 1974, sendo à época considerada a ponte contínua mais longa do mundo. O ponto mais elevado do tabuleiro atinge 35 m acima do nível do mar, permitindo a passagem de navios, mas não da Sagres que sempre acostou no Porto Exterior. Tem uma particularidade na sua utilização. Os passageiros num carro que se desloque a uma velocidade aproximada de 50Km/h consegue ver a paisagem através das guardas laterais que ficam transparentes, onde as barras verticais desaparecem por efeito estroboscópico. A interpretação do partido plástico da ponte está também associada à evocação de um dragão com a cabeça no Hotel Lisboa Macau, que já existia à data em que a ponte foi construída, e com a cauda na Ilha de Taipa Pequena onde mais tarde, em 1981, teve uma intervenção escultórica atribuída a Dorita de Castel-Branco, figurando pela encosta essa interpretação. A concepção de uma ponte pauta-se por elementos essenciais e precisos e assim deve permanecer depois de construída. Nisso, uma ponte é muito diferente dos edifícios que habitamos, onde nem tudo é absolutamente essencial, quer para a sua construção, quer após a sua construção, nem muitos dos elementos se obrigam a uma posição e fixação precisas. Na concepção de uma ponte importa a finalidade a que se destina, onde outras não previstas foram necessariamente excluídas do modelo de cálculo e do seu apetrechamento. Assim, sobre a ponte Governador Nobre de Carvalho, dúvidas não se colocam sobre o potencial para a sua classificação. Apenas não se vislumbra onde recai a necessidade do seu reaproveitamento. A ponte é uma ponte rodoviária, foi assim concebida, é assim que é utilizada, e que poderá continuar a ser utilizada do mesmo modo, enquanto existirem veículos motorizados com rodas de borracha. Teve a sua pressão aliviada com a construção das outras pontes, com que presentemente partilha o tráfego entre Macau e a Taipa, e sobreviveu à agressão do período que mediou a entrada em operação do Porto de Ka-Ho e a construção da ponte da Amizade, quando não existia alternativa para o transporte de cargas pesadas para Macau. Não ocorre outras necessidades prementes que a ponte possa melhor servir, prescindindo do seu contributo para a circulação rodoviária que está longe de ser obsoleto . Sendo certo que, se sobre o mesmo objecto deve recair uma classificação de património cultural, não será certamente em conjugação da modificação da sua utilização. Sequer o reaproveitamento pedonal de um trajecto obrigatório ao longo de 2 570 metros, sem possibilidade de dele desistir a meio, se afigura uma finalidade premente. Ou mesmo uma estratégia integrada, com utilização de lazer ou de embelezamento paisagístico se afigura pacífico numa ponte cuja concepção se pautou por elementos essenciais e precisos, onde abastecimentos e saneamentos não foram previstos, as rajadas de vento registam-se aí as mais fortes, e outras fixações que aí se fizessem gerariam impulsos não previstos na estrutura. Também não ocorre que outros aproveitamentos venham aí gerar contrapartidas que motivem a iniciativa privada e a gentrificação urbana. Em verdade, a ponte é a única ponte inclusiva da RAEM, algo de que cada vez temos mais falta em ordenamento urbano. Admite que os afoitos a façam a pé, pois 2 570 metros com um troço de subida íngreme não é pêra doce. Serve também alguns desses afoitos do segredo que têm guardado, de que é no cima da ponte o melhor local publicamente acessível para ver fogo de artifício sobre o estuário. Segredo agora partilhado, para que não se lembrem de o proibir, e para que nesses dias, e nessas horas, apenas se fixe um contingente de acesso e se limite a circulação a uma faixa de emergência. Se algum sentido nostálgico advém da utilização actual da Ponte Governador Nobre de Carvalho, isso é fruto exactamente da experiência que resulta das condicionantes actuais de tráfego, que repuseram fluxos que estão aquém de limites de exaustão, muitos semelhantes aos registos cinematográficos que existem de época. (com continuação)
Hoje Macau VozesHerança deserta Por Mário Duarte Duque, arquitecto Em 31 de Março de 2022 extinguiu-se o órgão funcional que tinha a incumbência de manter actualizados os processos individuais dos técnicos inscritos para a elaboração de projectos de edificações urbanas. Desses processos individuais deveriam constar todas as ocorrências relativas aos projectos elaborados por esses técnicos. Todavia, à data da extinção do órgão funcional, esses processos encontravam-se desertos de qualquer ocorrência respeitante a projectos elaborados. A obrigação resultou do Decreto-Lei n.º 79/85/M, publicado pelo então Território de Macau sob administração portuguesa, que veio dotar o Regulamento Geral da Construção Urbana de normas actualizadas de natureza administrativa. Teve em vista enquadrar juridicamente a dinâmica da realidade urbanística da cidade que já se sentia à data, nomeadamente pondo fim a disposições que vinham sendo interpretadas por meios considerados formalmente inadequados, como se explicou em preâmbulo. Mas é antes ao longo do seu texto que emerge em artigo próprio a actualização mais fundamental. “Os projectos de arquitectura serão elaborados por arquitectos.” A expressão “serão elaborados” releva porque, efectivamente, até à data, os projectos de arquitectura podiam ser elaborados na generalidade por outros técnicos que não necessariamente arquitectos. Apenas para os projectos considerados de grande importância sob o ponto de vista arquitectónico, poderia o então Governo exigir a intervenção de arquitecto. Deste significativo marco temporal é também possível extrair anacronicamente duas curiosidades: A obrigação efectivou-se no Território de Macau sob administração portuguesa vários anos antes de a mesma disposição ter sido implementada na República Portuguesa. Até hoje, ainda nenhum edifício construído ao abrigo deste regime integrou a lista do património arquitectónico presentemente classificado na RAEM. Voltando à situação dos processos individuais desses técnicos que ficaram desertos, a questão era efectivamente conhecida, mas nunca foi cuidada pelos sucessivos dirigentes daquela DSSOPT. A questão colocou-se necessariamente com a publicação da nova Lei n.º 14/2021 de 16 de Agosto, com entrada em vigor prevista para um ano depois, que veio substituir o regime vigente, e que determinou a manutenção desses processos individuais para a relação de construtores civis e empresários comerciais de construção civil, mas que é omissa a respeito do tratamento ou do destino dos processos individuais dos técnicos inscritos para elaboração de projectos ao abrigo do regime anterior. A matéria foi levada à consideração da última Directora daqueles Serviços, a Sr.a Eng. Chan Pou Ha, em sentido de à data da extinção do regime actual esses processos constassem completos das indicações relativas a projectos elaborados por esses técnicos, que efectivamente correram naquela DSSOPT, para que pudessem ser integrados no novo regime, e onde essa integração se encontra por definir. A ex-dirigente incumbiu o seu departamento jurídico de estudar a questão e de propor medidas a respeito de tais atribuições funcionais, mas o aviso foi em sentido de nada fazer. Isso porque o parecer entendeu que, por via do que se encontra entretanto previsto na Regulamentação do Regime de Qualificações nos Domínios da Construção Urbana e do Urbanismo, “os técnicos, os empresários comerciais, pessoas singulares e as sociedades comerciais devem entregar o requerimento e os documentos necessários para cada inscrição/renovação da inscrição. E, nessa ocasião, “o requerente pode imprimir as listas de projectos de obras pelos quais foram responsáveis e que ficaram concluídos. Esta Direcção de Serviços procede à apreciação do requerimento de acordo com os documentos apresentados pelo requerente e as respectivas informações são depois arquivadas no processo de registo do requerente. Notoriamente, o aviso que a ex-dirigente obteve laborou na confusão de que a actualização dos processos desses técnicos inscritos era efectivamente uma obrigação funcional que competia à D.S.S.O.P.T. assegurar, e não era uma faculdade desses técnicos inscritos. Essa é informação que se extrai oficiosamente, com carácter conservatório, de actos e de apresentações já escrutinadas, constantes dos processos residentes naquela DSSOPT, nomeadamente a partir da informação constante das fichas técnicas apensas a cada projecto, conforme modelo próprio em vigor naquela DSSOPT. O mesmo Decreto-Lei 79/85/M não diz que a actualização desses processos individuais compete ao técnico inscrito, como também não diz que essa actualização é discricionária do que o técnico inscrito apresentar para constar do seu processo individual. Notoriamente o aviso confundiu a ex-dirigente da DSSOPT entre o que é o registo oficioso dos actos já praticados naquele órgão funcional por técnicos inscritos, que devem constar dos respectivos processos individuais, com o Curriculum vitae que passou a instruir os pedidos de inscrição/renovação da inscrição, com a entrada em vigor do Regulamentação do Regime de Qualificações nos Domínios da Construção Urbana e do Urbanismo, que antes se pauta por referências livres, amplas e genéricas, apresentadas discricionariamente pelo técnico requerente, possivelmente até oriundas de outras jurisdições, na maior parte impossíveis de confirmar por aquela DSSOPT, que sequer as pede em certidão, que não servem para conservação de actos e que não valem como registos oficiais. É o mesmo que confundir a informação que consta numa conservatória de registo predial, com a informação sobre o património imobiliário que um cliente de um banco lista, para que conste do seu portfólio no banco. Para melhor retratar essa confusão, acontece ainda que, dos processos individuais dos técnicos inscritos, devem constar também as infracções praticadas por esses técnicos. Não ocorre que os técnicos dêem nota desses conteúdos no seu Curriculum vitae. Essa é antes informação que se obtém por certidão se necessária, e que interessa que seja negativa. Como não ocorre que aquela DSSOPT passasse certidão, ou a nova Direcção de Serviços de Solos e Construção Urbana venha passar certidão, do conteúdo do curriculum vitae que um técnico apresente. Efectivamente a questão trata-se de omissão funcional, para a qual a ex-dirigente recebeu o aviso de poder ser facultativamente sanada pelos próprios particulares, ao inscreverem-se, ou ao renovarem a sua inscrição no futuro, ao abrigo de outro diploma, que sequer é o que regula a obrigação em si. Sequer serve os técnicos inscritos que não mais renovaram a sua inscrição junto daquela DSSOPT. A Lei Básica efectivamente protege os resultados alcançados pelos autores nas suas criações, bem como os seus legítimos direitos e interesses. Logo, um direito reconhecido como fundamental na RAEM, mas que aquela DSSOPT não cuidou da sua conservação. O aviso de nada fazer a respeito dos processos individuais dos técnicos inscritos na DSSOPT, que se mantiveram desertos de qualquer ocorrência respeitante a projectos por eles elaborados, afigura-se ao arrepio de direito fundamental, e a solução encontrada afigura-se absurda, nomeadamente em cumprimento de um diploma cujo alcance foi exactamente dar fim a disposições que vinham sendo interpretadas por meios considerados formalmente inadequados. Não serve para afirmação de uma cultura urbanística, solidariamente formada por quem a define, administra e frui.
João Luz Grande Plano MancheteDSSOPT | Maquetas de AL e Tribunais Superiores perdidas sem restituição ao autor As maquetas dos edifícios da Assembleia Legislativa e dos Tribunais Superiores, declaradas à guarda das Obras Públicas desde 2001, desapareceram do armazém de depósito na Areia Preta. O caso, que se estende há mais de duas décadas, motivou uma denúncia ao Comissariado contra a Corrupção contra Li Canfeng e Chan Pou Ha Em 2001, depois de construídos os edifícios da Assembleia Legislativa e dos Tribunais Superiores, o arquitecto responsável pelos projectos pediu à Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT), à altura liderada por Jaime Roberto Carion, a devolução das maquetas dos edifícios. Um pedido legitimado pela lei de direito de autor que estabelece que “logo que se mostrem desnecessários, devem ser restituídos ao autor os objectos que serviram de modelo e qualquer outro elemento que tenha servido de base à reprodução”. Porém, Jaime Carion respondeu negativamente à pretensão do arquitecto Mário Duarte Duque argumentando que “por interesse da Administração as maquetas permanecerão à guarda da entidade Adjudicante”, ou seja, a DSSOPT. As maquetas em questão estiveram inclusive expostas no Pavilhão de Macau na Expo 98 em Lisboa, mas voltaram ao território no fim do evento. Volvidos vários anos, em 2017, sem verificar que as maquetas eram usadas para uma finalidade concreta ou útil como, por exemplo, integradas num acervo documental organizado, o arquitecto voltou a solicitar a devolução ao novo director das Obras Públicas Li Canfeng, que actualmente está detido por suspeitas dos crimes de abuso de poder, corrupção passiva, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. A resposta foi dada pelo chefe do departamento de edificações públicas. “Do nosso arquivo, não se encontra as referidas maquetas dos dois projectos.” Importa referir que a execução custou, à altura, 35 mil patacas, por cada maqueta. Ao preço de hoje, ambas têm um valor estimado que se aproxima das 300 mil patacas. Ainda assim, o autor não pede para ser ressarcido, mas antes que os serviços repliquem as maquetas e as restituam “devido ao inegável valor que possuem”. “A DSSOPT não está autorizada a delas se descartar, muito menos quando as declara à sua guarda. Antes as deve conservar, e não as guardar a monte, como efectivamente faz, mesmo depois de avisada de que deve guardar todo o seu arquivo com carácter de permanência, tendo em vista a gestão administrativa, a salvaguarda de situações jurídicas, bem como contribuir para o progresso dos conhecimentos científicos, históricos e culturais”, afirmou Mário Duarte Duque ao HM. Kafka e os processos Após nova recusa a um pedido para busca ao armazém da Areia Preta, inclusive com o arquitecto a disponibilizar-se para ajudar no processo, o passo seguinte foi levar o caso para a justiça. Assim sendo, em Julho de 2017, Mário Duarte Duque apresentou queixa ao Ministério Público (MP) pelos crimes de “furto qualificado, crime de abuso de confiança e crime de destruição de objectos colocados sob o poder público”. O MP reconheceu que, de facto, as maquetas se perderam enquanto se encontravam sob a guarda da DSSOPT. “No entanto, tendo em conta que os factos ocorreram há muito tempo e que a Direcção apenas iniciou o registo dos objectos depositados nos armazéns, a partir do ano 2015, não é possível apurar quando é que desapareceram as referidas duas miniaturas e a sua causa, bem como se existem ou não elementos criminais nos factos.” Estes foram os fundamentos invocados pelo MP para justificar o despacho de arquivamento. O caso levou ainda à denúncia ao Comissariado contra a Corrupção (CCAC) contra dois ex-dirigentes da DSSOPT, Li Canfeng e Chan Pou Ha, por “negligência no exercício das funções, que os responsáveis dos serviços do Governo deveriam assumir”, assim como a dois quadros do departamento jurídico por “reporte falso do que efectivamente se encontra plasmado na doutrina jurídica, que serviu de suporte às decisões daqueles dirigentes. Nesta queixa, Mário Duarte Duque pretende que seja “averiguada a responsabilidade pelo extravio de elementos de arquivo que se encontravam à guarda da DSSOPT, bem como o zelo e interesse por parte dos funcionários no que se prende com o acervo documental que a DSSOPT reúne”. Zelo que descende do exemplo que vem de cima, infere o arquitecto. “Efectivamente, a DSSOPT não tem tido dirigentes capazes de assegurar e reforçar a cultura administrativa que importa à especialidade funcional daquele órgão”, afirmou ao HM Mário Duarte Duque. A doutrina diverge A denúncia ao CCAC inclui um volte-face argumentativo da Administração, através do departamento jurídico da DSSOPT, que, face à embrulhada, argumentou que as maquetas eram propriedade da RAEM e que, como tal, os serviços teriam todo o direito a desfazerem-se delas. Argumento que o queixoso considera violar o regime legal dos direitos autorais. Além disso, Mário Duarte Duque imputa má-fé à DSSOPT por entender que o departamento jurídico se suportou em “reporte falseado” de doutrina “que se encontra disseminada em acórdãos judiciais da República Portuguesa”. O argumento é que as maquetas não estão abrangidas pelos direitos de autor por serem meros objectos de suporte da “coisa incorpórea”, que no fundo constitui o projecto. “É fundamental a distinção, que neste artigo se estabelece, entre a obra em si e o respectivo suporte ou corpus mechanicum. A propriedade deste não confere quaisquer direitos sobre aquela, nem a autoria da obra os confere sobre as coisas materiais – maquetas – que lhe servem de suporte e veículo de comunicação”, justificou o departamento jurídico da DSSOPT, citando o livro “Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”, do jurista Luiz Francisco Rebello. Porém, o arquitecto consultou o mesmo livro e verificou que onde a DSSOPT escreveu “maquetas”, Luiz Francisco Rebello escrevera “o livro, o disco, o filme”. Acto que Mário Duque Duarte considera não apenas de imperícia, como entende consubstanciar um comportamento de manifesta má-fé. “Nessa cultura administrativa, se o recurso à disciplina jurídica em actos administrativos serve menos para mitigar actos de governação e mais para resguardo dos agentes, as questões hão-de sempre laborar em territórios de fácil ignição”, comentou. A respeito do valor ou do interesse documental da maquetas em causa que determinasse a sua reconstrução nenhuma consideração foi emanada pela DSSOPT.
Pedro Arede Manchete SociedadeAL | Grades nas saídas de emergência instaladas sem aval do autor À data do pedido de parecer enviado ao autor do projecto da Assembleia Legislativa, a DSSOPT avançou e concluiu a instalação das grades nas janelas do rés-do-chão do edifício, bloqueando duas saídas de emergência. Para Mário Duque, a consulta que lhe foi dirigida não se pautou por “boa-fé” e à DSSOPT apenas interessou a “aparência do cumprimento da disposição legal” A instalação de grades nas janelas do rés-do-chão da Assembleia Legislativa (AL) está concluída, bloqueando duas saídas de emergência do edifício. A confirmação foi obtida com uma visita ao local e através do website da Direcção dos Serviços de Solos Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) que dá por “concluída”, a obra “73/2021”, que designa a intervenção por “Obras de Melhoramento AGO 2021” e onde não constam descrições nos campos “Objectivo” e “Características”, como noutras empreitadas. Isto, ao contrário do que dava a entender o pedido de parecer, a que o HM teve acesso, enviado a 25 de Novembro pela DSSOPT ao arquitecto responsável pelo desenho da AL, Mário Duarte Duque. Recorde-se que, segundo a lei, no caso de haver intenção de proceder a alterações ou modificações numa determinada obra, a DSSOPT “deve consultar previamente o autor do projecto, sob pena de indemnização por perdas e danos”, através do envio de um pedido de parecer. “Como a Assembleia Legislativa requer a instalação de grades nas janelas no Rés-do-chão, (…), [a DSSOPT] envia em anexo um desenho de arquitectura da obra referida em epígrafe, para parecer de V. Exa”, podia ler-se no documento. No entanto, segundo os dados publicados no website do organismo, a instalação das grades no edifício teve início em Setembro, dois meses antes do envio do pedido de parecer, tendo ficado concluída em Novembro, não dando oportunidade ao autor para alertar, atempadamente, para o facto de a obra ter como consequência, o bloqueio de duas saídas de emergência. “Com o conhecimento de que as modificações já se encontram executadas, ao invés da confiança suscitada na consulta efectuada pela DSSOPT, constata-se que se trata efectivamente do bloqueio com grades de saídas de emergência”, começou por dizer Mário Duque ao HM. “Como também se constata, o vício da consulta efectuada pela DSSOPT não reside na mera formalidade de procura de aviso, que à DSSOPT nunca interessa, mas antes, na aparência do cumprimento da disposição legal, de consultar previamente o autor da obra, quando o que está em causa já prosseguiu, e já se encontra concluído”, acrescentou. Questão de boa-fé Para Mário Duque, é difícil compreender a “utilidade” do envio de um pedido de parecer com desenhos de arquitectura e um prazo de resposta de 10 dias “a respeito daquilo que já se encontra concluído”. O arquitecto lembra, contudo, que excepcionalmente são admitidas modificações à obra sem o consentimento do autor, mas que tal apenas pode acontecer caso se considere haver conflitos de interesses desproporcionais. Por isso mesmo, apontou Mário Duque, a consulta de opinião não se pautou por “boa-fé”. “Não houve lugar a um conflito de interesses, apenas se efectuaram modificações mal-avisadas, e uma consulta ao autor da obra, em moldes que não se pautaram por aptidão, dever funcional e boa-fé, colocando em crise pessoas, bens e procedimentos institucionais”, vincou. Recorde-se que, na passada segunda-feira, o arquitecto afirmou ao HM “não dar autorização” para implementar a modificação proposta, porque o bloqueio das saídas de emergência “colocaria em crise a segurança do edifício”. O HM procurou obter reacção da DSSOPT, no sentido de apurar as razões da concretização da obra no contexto referido, mas até ao fecho da edição não obteve resposta.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeDireitos de autor | DSSOPT dá razão a arquitecto sobre alterações a projectos A Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes deu razão ao arquitecto Mário Duque quanto à violação de direitos de autor em obras que realizou nos últimos anos. Contudo, não só o arquitecto não terá direito a nenhuma indemnização, como o regime de direitos de autor e direitos conexos “não estabelece qualquer penalização” a quem cometeu essas infracções. A decisão é quase inédita num território onde há poucas queixas nesta matéria O caso envolve estruturas tão emblemáticas como a torre do Grande Prémio de Macau ou o edifício da Assembleia Legislativa, só para enumerar alguns casos. O arquitecto português Mário Duque tem vindo a queixar-se, nos últimos anos, de alterações significativas aos projectos de sua autoria, retirada de legendas de esboços ou a não colocação do nome do autor nos projectos que, posteriormente, são alvo de modificações. A Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) veio agora dar razão ao arquitecto, tendo emitido um parecer, ao qual o HM teve acesso. No documento é considerado que, de acordo com o regime de direitos de autor e direitos conexos, datado de 1999, “para a obra de arquitectura a identificação do autor” deve ser identificada de “forma bem legível, não só em cada cópia dos estudos e projectos, como ainda junto do estaleiro da construção e na própria construção depois de concluída”. Por isso, “verifica-se razão no requerente quando [este] refere que ‘não conhece prática no que respeita à obrigatoriedade de identificação do autor, por forma legível, na própria construção, depois de concluída (…)”. Esse diploma volta a ser citado para explicar que deve ser tido em conta o nome do autor, e a sua referência no projecto, quando são feitas alterações aos edifícios por outros arquitectos. “É obrigatória a identificação do autor em cada exemplar da obra reproduzida, donde, aquando das intervenções de outro, que não o autor, nos desenhos da obra de arquitectura, não poderão ser removidas legendas que se encontravam nos desenhos originais, nem ser afastada a indicação do autor da obra de arquitectura plasmada nessas legendas.” Apesar de referir este ponto, o parecer aponta para o facto da DSSOPT “não remover a indicação de autores das obras, como afirma o requerente”. Além disso, o parecer da DSSOPT conclui que “assiste razão ao requerente na segunda questão que levanta, relativa à indicação das ocorrências relativas aos projectos elaborados e nos processos individuais dos técnicos inscritos na DSSOPT”. Isto porque, de acordo com o Regulamento Geral da Construção Urbana, “do processo individual de cada inscrito deverá constar a indicação das ocorrências relativas a projectos elaborados ou dirigidos ou a indicação das ocorrências relativas a obras executadas”. Sem efeitos práticos Apesar deste parecer favorável às reivindicações do arquitecto, a verdade é que nenhum efeito prático se resulta desta decisão. O documento refere mesmo que o regime de direito de autor e direitos conexos “não estabelece qualquer penalização para o incumprimento”. Contactado pelo HM, o arquitecto Mário Duque referiu apenas que esta decisão incide sobre todos os seus projectos na RAEM. “Não vão existir nenhumas consequências. É o mesmo que reconhecer a escolaridade obrigatória, mas ninguém cuida em saber se as crianças vão mesmo à escola.” Quanto ao possível pagamento de uma indemnização, o arquitecto português não se mostra confiante. “Venho recebendo todos os anos um cheque do Plano de Comparticipação Pecuniária. Aquele cheque que serve para compensar danos que resultam de um complexo de situações que não é possível inventariar”, ironizou. De frisar que, no caso do edifício da AL, foram feitas, desde o ano em que foi inaugurado, quase 40 obras de alteração sem que Mário Duque tenha sido consultado sobre tal facto. O arquitecto sempre alegou que as modificações foram várias e profundas, sendo que não apresentam nenhuma consonância com aquilo que foi projectado. O tribunal chegou a considerar a DSSOPT culpada quanto à primeira alteração que foi feita, sendo que o arquitecto que a fez nem estava inscrito. “Entendemos que a DSSOPT não tomou a devida precaução na aprovação do projecto de alteração, permitindo a alteração ou reproduções ilícitas do projecto inicial, violando assim o direito de autor”, lia-se no acórdão. Pouca consideração O parecer da DSSOPT constitui uma das poucas decisões sobre esta matéria, uma vez que poucos arquitectos se queixam das mudanças profundas que os seus projectos sofrem. Ao HM, o arquitecto Adalberto Tenreiro confessou que nunca fez qualquer queixa, mas que tem projectos “que já foram continuados por outros arquitectos”. “Já estou muito fora da arquitectura, não tem problema. É um assunto que não me interessa”, disse apenas. O arquitecto Miguel Campina faz referência a uma cultura que existe em Macau, tal como em Hong Kong e na China, onde o trabalho do arquitecto nem sempre é valorizado da melhor maneira. Alterar e apagar o que se fez é algo comum, sem que haja penalizações nesse sentido. “Há um nível de respeito e consideração que deveria ser dado a quem de direito, mas, na prática, é algo sistematicamente ignorado. É lamentável que seja assim, mas há muitas coisas que são lamentáveis e que não são resolvidas”, adiantou. Campina afirma que tudo depende dos termos dos contratos que são assinados, pois muitas vezes os arquitectos abdicam de questões autoriais. “Muitas vezes é exigido que os autores dos projectos prescindam dos seus direitos de autor para dar oportunidade ao dono da obra de fazer duas coisas: poder continuar a fazer alterações ao projecto original, com base nas exigências do modelo de negócio ou conjuntura, e também a oportunidade de poder usar o processo de aprendizagem que ocorreu durante a realização do projecto e poder transportá-lo para outra jurisdição, sem que isso signifique que tenha de voltar a pagar.” Também Maria José de Freitas, arquitecta, lamenta que ocorram mudanças profundas nos edifícios de autor que são erguidos no território, sem que haja um aviso prévio. “Nunca fiz nenhuma queixa, mas acho que, no geral, acho que há pouca consideração pelo trabalho dos arquitectos. Muitas vezes fazemos trabalhos e passado uns anos eles são alterados sem o mínimo de preocupação, e sem quererem saber quem foi o autor. Uma obra de arquitectura é uma obra de autor, sobretudo se estivermos a falar de revitalizações e recuperações. Não falo aqui de um prédio comum, que está sempre à vontade dos proprietários.” Uma questão de mentalidade A culpa pelo não respeito dos direitos de autor não se pode imputar à DSSOPT ou a outros promotores privados. Na visão de Maria José de Freitas, a própria cultura não protege essa questão. “Está em causa uma questão de mentalidade face à questão dos direitos de autor. Não sei porque é que a classe não faz mais queixas. Provavelmente a classe e a própria associação de arquitectos estão mais preocupados com outro tipo de problemas e não atende muito a este tipo de questões. Nós, arquitectos particulares, somos muitas vezes confrontados com isso.” “Podemos chamar a atenção à entidade envolvida, mas, na maior parte dos casos, esses aspectos não são considerados. Vamos fazendo o possível e sobrevivendo, fazendo com que haja alguma integridade e respeito pela obra original.” Miguel Campina acredita que, na prática, “existe pouca oportunidade [para a apresentação de queixas], porque o primeiro a não respeitar o autor do projecto é o dono da obra, o promotor. Este, por norma, não tem qualquer tipo de consideração ou respeito pelo arquitecto. É uma questão de cultura.” O arquitecto defende que é difícil mudar, de um dia para o outro, este panorama. “Se, na grande maioria das vezes, é o promotor não tem consideração pelo arquitecto, que é mais outro elemento na cadeia de produção, [é difícil mudar as coisas]. Mesmo durante a elaboração do projecto, o que exigem ao arquitecto são soluções que vão contra o que começa por ser a própria encomenda. Primeiro pedem uma coisa, depois pedem outra.”
Hoje Macau VozesHotel Estoril – Carta aberta ao Secretário Alexis Tam Carta Aberta ao Ex.mo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura do Governo da Região Administrativa Especial de Macau [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]x.mo Secretário Executivo para os Assuntos Sociais e Cultura, Remonto à notícia publicada nos jornais da RAEM em 6 de Junho de 2016, onde se divulgou que, “por uma questão política, o projecto do Hotel Estoril deixaria de ser entregue por ajuste directo a Siza Vieira, já que muitos arquitectos locais manifestaram interesse em participar no processo de requalificação da zona do Tap Seac, o que só seria possível com um concurso público”, e venho muito respeitosamente levar ao conhecimento de V. Ex.cia o seguinte: 1. O interesse manifestado por arquitectos locais no projecto para o local do antigo Hotel Estoril, que determinou a retirada do convite de V. Ex.cia feito ao arquitecto Siza Vieira, imbui-se em sentido de suplante de outro arquitecto numa tarefa profissional, que os membros da comunidade profissional não estão autorizados a intentar. 2. Foi esse o sentido do voto da comunidade de arquitectos de Macau, representada pela Associação de Arquitectos de Macau (AAM), em Assembleia Geral da União Internacional dos Arquitectos (UIA) de 1996, Barcelona, reiterado em Pequim, em 1999, em matéria de standards profissionais, entre outros, que: “Os arquitectos não devem tentar tomar o lugar de outro arquitecto numa tarefa profissional”, 3. A modalidade de concurso público de arquitectura reserva-se às obras onde o interesse do Dono de Obra não reside na sua afinidade com um determinado arquitecto, mas antes na melhor solução que possa ser acolhida de entre várias propostas. 4. Todavia, para a iniciativa que envolve o antigo Hotel Estoril, a RAEM já expressara afinidade com um arquitecto, nomeadamente consultando e usando o bom nome do arquitecto Siza Vieira, fazendo disso contrapartida pública. 5. A possibilidade anunciada de um novo convite extensível ao mesmo arquitecto, mas já no âmbito de um concurso público, também não harmoniza a retirada do convite inicial, antes coloca o mesmo arquitecto no embaraço de recusar tal convite, caso os novos termos não sejam aceitáveis ou não sejam do seu interesse. 6. Como também, as regras típicas de ingresso nos concursos públicos de arquitectura não permitem a participação de concorrentes que tenham tido intervenção ou contacto com o mesmo programa ou objecto de estudo, e naturalmente pressupõem que a realização do concurso não vá suplantar outros arquitectos em tarefas profissionais. 7. Situações que competem às associações profissionais supervisionar e que, verificando-se, regulam-se pelo standard 5.6 do diploma mencionado na mesma nota1 acima, i.e.: “Os arquitectos não devem participar em quaisquer concursos de arquitectura declarados inaceitáveis pela UIA ou pelas suas secções nacionais”, 8. Por outro lado, desde o estabelecimento da RAEM, lamentavelmente, não existe obra de arquitectura construída na RAEM que tenha resultado de concurso público de arquitectura. 9. Isso sequer se deveu à falta de concursos, mas antes ao facto de que todos os concursos públicos de arquitectura lançados na RAEM foram abortados na sequência de vícios, ou não tiveram prosseguimento ao abrigo da disposição de não adjudicar que as entidades organizadoras reservaram. 10. E correram mediante declaração exigida aos participantes, em como os mesmos autorizam que as suas ideias possam ser incorporadas gratuitamente em outros projectos, i.e. que outros se apropriem de acervo intelectual, e que esse uso sequer seja oneroso. 11. Por isso, a expectativa de o concurso público de arquitectura ser “mais transparente” para a adjudicação de obra pública de arquitectura, é cenário que nunca teve resultado na RAEM e é confiança que não assiste. 12. O interesse de participação expressado a V. Ex.cia por arquitectos pauta-se antes pela legítima expectativa em realizar obra de aquitectura, mas tal expectativa não se concretiza retirando convites já feitos, envolvendo profissionais em concursos que não têm resultado, em moldes que se revelam hostis à própria comunidade profissional. 13. A polémica anterior em torno do Hotel Estoril emergiu em sentido de opinião sobre os conteúdos programáticos da iniciativa, mas a polémica que suscita a retirada do ajuste directo com um arquitecto, a pedido de outros arquitectos, já se revela em sentido estrutural. Testa a sociedade de matriz humanista e os seus dirigentes, e aflige a profissão de arquitecto que teve origem nessa matriz de sociedade e que dela depende. Assim, suscita-se o empenho de V. Ex.cia em harmonizar o convite já efectuado ao arquitecto Siza Vieira e o interesse expresso por arquitectos da RAEM, i.e. de participar no processo de requalificação da zona do Tap Seac, que não se limita ao lote do antigo Hotel Estoril, porque o que se decidiu derradeiramente não contribui para o bom nome da RAEM e dos arquitectos da RAEM, não serve de orientação para a comunidade profissional, sequer se antevê quais os benefícios que uma comunidade profissional ou a RAEM possam daí retirar. Cumprimenta respeitosamente, Delft, 4 de Julho de 2016 Mário Duarte Duque