Fábrica de Panchões | Recuperação “medíocre” e um parque nunca feito

Aberto ao público há apenas cinco meses, o espaço da antiga fábrica de panchões Iec Long já recebeu críticas do deputado José Pereira Coutinho pelo estado “degradante” em que se encontra. Bruno Simões, empresário ligado ao sector de convenções e eventos, fala de um projecto “medíocre”, sem espaço para eventos, muito aquém do seu verdadeiro potencial. O arquitecto Mário Duque revela o projecto do “Parque Urbano Iec Long” que nunca avançou devido ao caso Ao Man Long

Tem uma área praticamente igual à totalidade da dimensão da vila da Taipa, mas para já é só um emaranhado de plantas selvagens e edifícios que outrora acolheram uma fábrica de panchões, onde existem apenas dois edifícios recuperados para acolher exposições e um passadiço para visitantes com algumas placas informativas. O Instituto Cultural (IC) inaugurou o espaço da antiga fábrica de panchões Iec Long há cinco meses, mas já há quem lamente não se ter explorado o verdadeiro potencial deste espaço.

Esta semana, o deputado José Pereira Coutinho alertou para um espaço “degradante”, cheio de lixo, com edifícios ao abandono e cobras num solo cheio de vegetação. A esta voz crítica, junta-se a de Bruno Simões, empresário na área de organização de eventos e presidente da associação Macau Meetings, Incentives and Special Events (MISE).

“Ficou realmente uma obra medíocre”, afirmou ao HM. “Quando vi o resultado final do projecto fiquei muito desapontado, porque a área é grande, a localização é excelente, pois fica na zona da Taipa Velha com muitos turistas e está ao lado do Cotai. É ainda um projecto associado a dois grandes objectivos do Governo, que é o de tornar cada vez mais Macau uma cidade internacional de turismo e lazer e apostar na estratégia de diversificação da economia. Com os recursos que tinham ali não fizeram nada nesse sentido.”

Bruno Simões destaca o facto de “cerca de 80 a 90 por cento da área não estar aproveitada nem recuperada”. “Deixaram grande parte dos edifícios como estavam, fizeram o passadiço, com uma sinalização com informações. É uma obra que não serve praticamente para nada, tendo apenas duas pequenas áreas de exposições. Não há uma sinalização na rua a anunciar que ali há uma antiga fábrica de panchões, por exemplo.”

O empresário lamenta que não tenha havido um diálogo entre os diversos departamentos governamentais para que aquela zona pudesse ser aproveitada para acolher cafés, restaurantes ou eventos ligados ao sector MICE [exposições, convenções, feiras e eventos].

“Há uma falta de integração de diferentes áreas e entidades do Governo, porque para se atingir o estatuto de cidade internacional de turismo e lazer não basta fazer um só trabalho pelo turismo ou cultura, tem de haver uma integração e trabalho conjunto. Teria de envolver também o IPIM [Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau], responsável pela área do MICE e o IAM [Instituto para os Assuntos Municipais], responsável pela gestão dos espaços verdes. Só assim se conseguem resultados que dão resposta às necessidades de turismo, lazer e economia, e ali está um exemplo em que o IC tentou recuperar um espaço ligado à história e cultura de Macau cujo resultado final é muito fraco.”

Bruno Simões adianta ainda que, se olharmos para exemplos de renovação de espaços antigos noutras cidades limítrofes, o projecto da fábrica de panchões Iec Long fica bastante aquém.

“Temos concorrência, os turistas vêm da China, Hong Kong ou Singapura, e aquele projecto está muito abaixo da média face ao que se apresenta noutras cidades, de cujas infra-estruturas podemos usufruir. Temos o exemplo da antiga prisão em Hong Kong, onde se fizeram espaços de restauração, para eventos privados e públicos, e onde de facto se fez um sítio vivo e não apenas um local para fazer pequenas exposições culturais. Isso é muito limitado, ficando muito abaixo do verdadeiro potencial que um espaço destes apresenta.”

O empresário pensa que o Governo deveria “ter recuperado todos os edifícios da antiga fábrica de panchões e não apenas um ou dois”, além de que “deviam ter sido feitos restaurantes, esplanadas, lojas, mantendo o traço e a história do local”. “Simplesmente não se passa nada ali”, referiu.

Na gaveta

Para o espaço em questão, já foi projecto o “Parque Urbano Iec Long” que nunca chegou a ver a luz do dia. Estávamos em 1995, quando a então Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, hoje Direcção dos Serviços de Obras Públicas, lançou um concurso público para aproveitamento do lugar. O arquitecto Mário Duque trabalhou com Helena Valente Pinto e os arquitectos paisagistas João Gomes da Silva e Inês Norton de Matos de Lisboa.

Nessa altura, a Taipa não estava ainda urbanizada como está hoje, mas, segundo recorda ao HM Mário Duque, “começou a ser edificada intensamente”, sendo necessárias infra-estruturas de equipamento público”.

O facto de ali ter existido uma fábrica de panchões dava ao local “um atributo paisagístico notável, marcado pelas características das edificações e pela arborização invasiva em redor, que distinguiria este parque de outros”.

O projecto arquitectónico incluía uma casa de chá, casas de fresco, salas de leitura e de exposições, um ginásio de artes marciais, ateliers, lojas de artesanato, artigos de culto e coleccionismo. Poderiam ainda ser realizadas “atracções expectáveis num jardim ou num parque”, pois foi desenhado um palco um anfiteatro sobre o grande reservatório onde se pudessem fazer, entre outros, espectáculos de pirotecnia que tirassem partido de um reflexo de água, entre outras infra-estruturas que permitiam um melhor conhecimento e visualização daquele espaço antigo.

Ao projecto, estava associado o conceito de “arqueologia industrial”, já conhecido em todo o mundo, mas que em Macau “não figurava, e ainda não figura, como uma categoria patrimonial cultural”. A história da fábrica conta-se através de cada parcela de terreno, que inclui em si um período diferente, com edificações feitas com diferentes características. Por exemplo, “a primeira geração de construções da fábrica Iec Long adoptou características muito semelhantes a modelos que existiram na província de Hunan, mas introduzindo adaptações que tiveram em vista a utilização de menos solo, com dispositivos de protecção em muros em vez de taludes, passando a ser essa a principal característica local dessas fábricas”.

Terminado em 1997, o projecto não avançou pelo facto de o recinto ser constituído por diferentes parcelas de terreno, sujeitas a regimes diferentes e que “não estavam igualmente disponíveis”. O então secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, condenado anos mais tarde por corrupção, “procurou solucionar essa questão, que acabou por ser travada porque as permutas a efectuar foram achadas desproporcionais”. O processo com o antigo governante e a investigação dos terrenos envolvidos no caso fez com que este projecto tenha caído por terra.

Reverter é possível

Quando falamos de uma antiga fábrica devemos ter em conta os resíduos e materiais tóxicos que ali podem ter sido produzidos. Mário Duque acredita que o IC recolheu essa informação tendo em conta “a interpretação hoje disponível na visita ao local”, não existindo, por isso, perigos.

O arquitecto entende que o projecto inaugurado há cinco meses não é mais do que uma solução preliminar, “podendo ser prévio a outras intervenções sobre as quais possam ainda não existir certezas”, não colidindo “com nenhuma recomendação arqueológica ou ambiental”. “Essa intervenção afigura-se reversível, no caso de rectificações deverem ser feitas, conforme recomendações de órgãos internacionais de especialidade”, adiantou.

A circulação dos visitantes, através do passadiço, é “elevada e canalizada”, garantindo “que os pavimentos existentes, construídos ou os naturais, onde proliferam grandes raízes de frondosos Ficus Microcarpa, não sejam pisados, nem que os visitantes se introduzam nos interstícios recônditos do recinto ainda por tratar”.

Mário Duque desvaloriza as críticas feitas pelo deputado Coutinho. “A fauna que aí possa existir não é diferente da que existe nos trilhos da ilha. Os caminhos de circulação são sobre-elevados e vedados lateralmente por rede, e é bom que os trabalhadores da manutenção usem botas de borracha adequadas quando pisam o solo natural, como eu também uso calçado adequado quando visito uma obra e em consequências de normas trabalho, não vá eu pisar uma tábua com um prego espetado.”

Para Mário Duque, “do que possa ter sido alvo de críticas são possivelmente questões que não foram explicadas e que ainda o podem ser em moldes que são de razão”. “A população não apreciou o valor cénico do local, sendo isso mero facto circunstancial”, e “a remoção de toda aquela vegetação e a reconstituição das instalações a novo não é um procedimento reversível”.

“O valor cénico dos lugares só é prioridade quando nele se fixa objectivamente valor, que não deve existir apenas em registos fotográficos, e quando as demais necessidades fundamentais já se encontram asseguradas”, rematou.

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