The Boys from Macau 2.0

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á duas semanas atrás aprendi que não devo abordar publicamente temas relativos à tutela onde outrora trabalhei, pois corro o sério risco de ser mal interpretado, conforme aconteceu com uma entrevista recente que dei. Tal foi a coisa que o Macau Concealers (*) até se deu ao trabalho de traduzir para chinês afirmações minhas tiradas fora do contexto e que, deste modo, se tornaram bombásticas e incoerentes com a minha pessoa. Conclusão: tive direito a uma valente sova no Facebook.

É pena, pois até gostava de abordar de uma forma construtiva a 3ª fase de auscultação pública do Plano Director dos Novos Aterros e dizer o que penso da proposta que é ora colocada para discussão.

Fica para outro dia. Mudemos de assunto.

Quando era miúdo, uma coisa que me dava particular prazer era acompanhar as histórias antigas de Macau contadas pelos amigos dos meus pais e avós. Uma que me despoletou particular interesse foi contada pelo tio Joca (**) no Solmar.

O tio Joca, tal como muitos macaenses nascidos na primeira metade do século XX, viveu e trabalhou uma temporada em Hong Kong.

[quote_box_left]A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional[/quote_box_left]

Se o caríssimo leitor desconhecia esse fenómeno, fique então a saber que, nos tempos coloniais, chegou a existir uma forte presença portuguesa na vizinha cidade de Hong Kong. Sobre esse tema existe, inclusivamente, um livro muito interessante, da autoria de Luís Andrade de Sá, intitulado “The Boys from Macau” (***). Conforme se lê na contra-capa dessa publicação:

“ (…) Foi a Macau e aos seus portugueses que os britânicos recorreram para criar a administração pública e para montar as companhias comerciais quando foi fundada a nova colónia, em 1841. (…) Havia portugueses em todos os sectores – na justiça e na banca, na função pública, de armas na mão em defesa da colónia, no desporto, nos jornais e nas igrejas. (…) ”

O tio Joca trabalhou na banca em Hong Kong. No Solmar, enquanto tomava café com os meus pais e o meu avô Lourenço, contou-nos como na entrevista de trabalho foi posta à prova o seu domínio da língua inglesa; os calafrios que sentiu no primeiro dia de trabalho, quando engolido pelo grandioso lobby de entrada do banco; e, ainda, o bom relacionamento que conseguiu logo estabelecer com os executivos do banco, todos eles britânicos, de quem mereceu rapidamente a confiança, traduzindo-se em promoções sucessivas que inevitavelmente criaram inveja interna.

Assim termina a história do tio Joca? Não. As boas histórias têm sempre um final potente e essa não foge à regra. Mas já lá vamos.

Conforme é já sabido, recentemente desvinculei-me da função pública para aceitar um novo desafio numa das operadoras da indústria do jogo.

Tendo iniciado as novas funções há cerca de dois meses, algo que me surpreendeu desde logo foi o número de portugueses e de macaenses que trabalham na empresa. Foi para mim uma verdadeira e agradável surpresa.

Todos os dias falo português com alguns colegas meus e ouço falar português quando me cruzo nos corredores da empresa com funcionários portugueses e macaenses, sendo que alguns até conheço dos tempos do Liceu. Trata-se de um ambiente muito diferente do da função pública onde trabalhei nos últimos 12 anos.

Não pretende esta ser uma crítica ao Governo face ao reduzido número de portugueses que se tem vindo a contratar ou à falta de uso da língua portuguesa na administração pública. Nesse aspecto fui sempre muito frio e realista. Há coisas que temos de aceitar e essa é uma delas.

Com a excepção das áreas da justiça e do Direito, onde a presença da língua portuguesa é forte pelas razões óbvias que nem vou aqui mencionar, temos de aceitar que, com a transferência de poderes e a localização dos cargos de chefia, o chinês passou necessariamente a ser a língua veicular de trabalho. E com isso, naturalmente, a estratégia de contratação de pessoal tomou outro rumo e, acrescente-se, a cultura de trabalho passou também a ser outra. Para o bem e para o mal.

Precisamente por essa razão, pese embora tenha sido funcionário público ao longo de tantos anos, aos meus conterrâneos acabados de regressar do estrangeiro com um canudo na mão, sempre os aconselhei a procurarem alternativas na privada.

Sobretudo se não forem bilingues em pleno, com perfeito domínio oral e escrito da língua chinesa, pois actualmente o nível de exigência é outro. O chinês de rua, do tai má ti, chu tak ng chu tak, que antigamente servia para desembaraçar as chefias portuguesas, já hoje não serve.

Não tenho nada contra o Governo – que, aliás, foi para mim uma grande escola. Apenas me parece que está na altura de nós, portugueses em geral e macaenses em particular, abandonarmos a ideia de que na procura de emprego em Macau devemo-nos virar única e exclusivamente para o Governo.

E que o Governo tem a obrigação de nos contratar.

As coisas mudaram e temos de nos adaptar. A transferência de poderes e a abertura da indústria do jogo criaram um novo cenário. E se a função pública, antigamente, absorvia em grande quantidade a malta portuguesa e macaense, atrevo-me a dizer que, de certa forma, esse papel tem vindo a ser progressivamente desempenhado pela indústria do jogo, ainda que numa escala diferente.

Posso estar enganado pois ainda sou muito novo nessa área. No entanto, quer me parecer que poderão estar aqui novamente reunidas condições para demonstrarmos a nossa utilidade, embora num ambiente culturalmente mais diversificado e profissionalmente mais sofisticado e competitivo, onde o inglês é a língua principal de trabalho. Uma espécie de The Boys from Macau, versão 2.0.

Aparentemente, a nossa presença já se faz sentir. Ainda no outro dia fui apresentado da seguinte forma a um executivo da empresa: “This is Andre. He’s one of those locals who speaks all languages.”. Um reconhecimento dessa nossa particular qualidade e, simultaneamente, uma descrição simples e rápida do ser Macaense.

Voltando então à história do tio Joca. Num belo dia de trabalho, o tio Joca vê-se repentinamente confrontado pelos executivos do banco por terem recebido a seguinte queixa: alegadamente, terá ido jantar com alguns chineses a uma tasca onde se servia carne de cão.

Sentindo-se provocado e ofendido com a situação, por se ter apercebido do verdadeiro problema em questão, o tio Joca confirmou categoricamente essa ocorrência aos executivos, assumindo orgulhosamente a sua (outra) identidade cultural.

Eram tempos diferentes e os executivos, naturalmente, não ficaram bem impressionados com essa atitude. Calculo até que se tenham sentido de alguma forma traídos. O que é certo é que a partir desse dia as relações azedaram e não houve mais promoções.

Moral da história? A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional.

Não me canso de afirmar que nós, Macaenses, somos uma grande contradição. Controlar a percepção que os outros têm de nós não é tarefa fácil. Contudo, é estrategicamente fundamental. Não existe uma fórmula universal para isso, pois trata-se de uma questão muito pessoal. Mas, antes de mais, somos nós próprios que temos de perceber quem somos e como queremos ser vistos pelos outros.

O problema é que tudo depende de que lado da cama acordamos.

Sorrindo Sempre

Tive duas semanas monocromáticas, nada de especial que mereça registo aqui neste espaço quinzenal. Assim, na ausência de uma história colorida para aqui contar, desta feita o Sorrindo Sempre assume um formato diferente, com rapidinhas curtas e boas:

Portanto, sorrindo sempre quando:

• Resisto à tentação de atropelar turistas que atravessam a rua de qualquer maneira;
• Mal as portas do elevador se abrem, pessoas cheias de pressa entram na cabine antes de me deixar sair;
• Sou tratado por “Sr. Engenheiro”, esclareço que sou arquitecto e respondem-me na tentativa absurda de remediar o embaraço: “mas engenheiro é melhor!”;
• Conterrâneos meus tentam convencer-me a tirar o wui heong cheng (****) afirmando com firmeza que ao portador desse documento não é atribuída a nacionalidade chinesa, pese embora na imigração fazerem fila para o guichet “chinese nationals”, e isto apenas para não mencionar o que vem contemplado nos diplomas legais aplicáveis que tive o cuidado de estudar;
• Deparo-me com ilustres que falam em termos absolutos e fazem acusações graves, quando na verdade não têm conhecimento de facto sobre o assunto em discussão;
• Estou carregado de compras e as chaves estão no bolso que dá menos jeito;
• …

Sorrindo sempre.

(*) 愛瞞日報 , espaço no Facebook onde são abordados temas locais de forma conspiradora e sensacionalista.
(**) Nome fictício.
(***) Edição da Fundação Oriente / Instituto Cultural de Macau. ISBN 972-9440-93-X.
(****) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.

10 Jul 2015

Uma Macaense Uyghur

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xiste um ditado chinês que, em tradução livre, diz: “não se receie uma vida mal destinada; receie-se antes um nome mal escolhido”. (*)

Pretende este ditado sublinhar a importância que a escolha do nome tem para os chineses, tratando-se de um processo meticuloso e profundo em que são analisados os significados de cada caracter, bem como o sentido, a sonoridade e o número de traços do conjunto todo. É uma operação que reflecte perfeitamente a riqueza da cultura milenar chinesa.

Todavia, é comum por estas bandas a adopção de um nome em inglês para facilitar a interacção diária, já que no nosso ambiente multicultural essa é frequentemente a língua veicular utilizada. Neste contexto, o que até hoje ainda não consegui perceber é por que razão o mesmo cuidado não é tido na escolha desses nomes adoptivos em inglês.

Por cá existem indivíduos com nomes ingleses fantasticamente surreais. Se o caríssimo leitor desconhece esse fenómeno, tenho então a seguinte proposta a fazer: vá ao McDonald’s mais próximo de si e veja os nomes que os funcionários ao balcão trazem no peito. Já vi Zombie, Milk e até Wasabi.
Falo, naturalmente, de forma generalizada. Há também casos interessantes em que o nome em inglês é coerentemente escolhido em função da sonoridade do nome em chinês. Por exemplo, conheço uma rapariga chamada Mak Hoi Lan (para quem não sabe: Mak é apelido e Hoi Lan é nome) que se chama Helen Mak em inglês. O resultado parece-me bastante feliz.

Delicio-me com essas coisas que são para mim de grande interesse pois evidenciam a cultura híbrida a que estamos expostos aqui nesta parte do mundo.

Feita essa introdução, vou agora falar das caricatas situações que enfrento por causa do meu nome. Não o faço por egocentrismo, quando muito para expor o que nós, macaenses, temos de aturar dada a nossa natureza mestiça.

O meu nome – André – foi sempre uma dificuldade para os chineses. Fui criado por várias empregadas chinesas e nenhuma foi capaz de pronunciar o meu nome correctamente. O melhor que se conseguiu foi An-Te-Lé.

Sendo André um nome difícil para os chineses, toda a gente me trata por Ritchie, muito mais fácil por ser inglês (**). Como tal, sempre que qualquer chinês me pergunta pelo nome, digo “Ritchie”. E aqui começa a confusão, pois assumem que Ritchie é um nome de adopção, semelhante a Zombie ou Wasabi.

Para complicar as coisas, na comunicação social em língua chinesa fiquei conhecido pelo nome Lei On Tak, concebido em 2003 quando regressei a Macau. Assim, tudo somado, frequentemente sou identificado como o Mr. Ritchie Lei.

O problema é o trabalho que dá fazer as rectificações quando necessárias, pois tipicamente ficam a olhar para mim com um ar incrédulo. Até já fui contrariado: uma rapariga que, apontando para a face em chinês do meu cartão de visita, insistiu que o meu nome não era como eu dizia que era. Haja paciência.

Entretanto, sou diariamente confrontado com um outro problema que já todos conhecem: a famosa vírgula do BIR. De um momento para o outro, em Macau passei a chamar-me “Xavier Sales Ritchie, André Duarte”.

Aborrece-me o facto de, mesmo depois de séculos de presença portuguesa em Macau, a malta ser incapaz de perceber que nos nossos nomes o apelido principal é o último nome, e não o primeiro.

Passei a ser Mr. Xavier. E o facto de Xavier ser um nome muito difícil para os chineses também não ajuda em nada. “Zeivier”, “Sáfiar”, “Ex-Eivier”, já me chamaram esses nomes todos.

No outro dia recebi a chamada de um desconhecido que iniciou a conversa da pior forma, em inglês: “Hello! Is it Mr. Zei… Errr… Saf… Ahm…”. Tive de o acudir, mas fi-lo em cantonense e com um tom propositadamente seco: “Ouça, eu sou o Mr. Ritchie. Falo chinês. Vamos falar em chinês?”

Pobre coitado… Ora, como poderia ele adivinhar que, com um nome tão complicado, do outro lado da linha encontrava-se afinal um sujeito fisicamente oriental e perfeito falante de cantonense?

Contudo, os meus dramas não se limitam a Macau. Também sofro em Portugal: quantas vezes não me fizeram elogios despropositados, do género “Oh, mas o senhor fala tão bem português, fala português como um português!”

Normalmente ignoro. Mas às vezes não me controlo e respondo torto: “Muito obrigado. O senhor também fala muito bem português. Onde aprendeu a falar tão bem?”. É antipático, eu sei. E as pessoas não têm culpa. Só que a paciência tem limites.

Entretanto, como Ritchie não é um apelido português, em Portugal nem sempre é pronunciado correctamente: já me chamaram de Ricky, Rí-xe ou Rís-ti. Aliás, quantas vezes não tive de soletrar o meu apelido em serviços públicos, bancos ou simples reservas de mesa?

Um dia armei-me em esperto e, ao telefone com um funcionário da Telepizza, identifiquei-me como “André Sales”, sendo este o meu apelido que vem antes do Ritchie. Reacção do outro: “Sales é com um L ou com dois L’s?”. Apeteceu-me dizer um palavrão.

Felizmente, nem tudo no meu nome está mal: pelo menos não tenho nenhuma preposição. A minha mulher, por exemplo, tem o apelido “de Jesus” e é vítima de uma situação espectacularmente pitoresca: por causa da tal vírgula do BIR, em Macau passou a ser Ms. De! E como De (leia-se “dí”) soa a compatriota do interior da China, com as feições que tem devem pensar que é Uyghur!

Isto tudo tem muita piada, mas também não tem: um conterrâneo meu esteve perto de perder um voo porque nos altifalantes fartavam-se de chamar pelo Mr. De e ele, naturalmente, não se apercebeu que era o destinatário da mensagem. Portanto, se o caríssimo leitor tem como apelido “dos Santos” ou “da Silva”, esteja atento e não diga que não avisei: passou a ser Mr. Dos ou Mr. Da.

Enfim… Conheço inúmeras histórias semelhantes, mas fico por aqui e vou fechar o artigo regressando àquele ditado chinês para dizer o seguinte: (1) a minha vida está bem destinada, muito obrigado; e (2) não, apesar de tudo, não acho que o meu nome tenha sido mal escolhido.

Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida.

Em qualquer parte do mundo, até mesmo em Macau, ninguém consegue compreender que laia de gente somos nós.

De resto, acho que nem nós próprios nos compreendemos.

[quote_box_right]Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida[/quote_box_right]

Sorrindo Sempre

No ginásio que frequento há um tirano que tem a mania que tudo o que lá está foi feito para o uso exclusivo dele. No seu universo os outros utentes não existem.

Entra na sauna e, sem o consentimento dos presentes, deita água em grande quantidade para cima das pedras. Mas depois não se aguenta nem um minuto: abandona o recinto, deixando os outros lá dentro a ferver com as altas temperaturas. Eu fervo a dobrar: de calor e de raiva.

Sorrindo sempre, é verdade. Mas no outro dia coloquei um travão: enquanto corria na minha máquina preferida, que tem uma televisão à frente, o dito chega, instala-se na máquina ao lado e decide mudar de canal sem me dizer nada.

Quer dizer, estava eu muito bem a assistir a passagens de modelos do Fashion TV com umas mulheres bestiais e, de repente, tenho pela frente um crocodilo do National Geographic a comer um animal vivo, com sangue a jorrar por todo o lado?

Com muita calma, paro a máquina de corrida, saco o comando da televisão e mudo novamente para o Fashion TV. Mais: tiro as pilhas do comando e meto-as no bolso. Isso tudo sem dirigir um único olhar ou palavra ao tirano. Chupâ ovo.

Retomo tranquilamente o meu exercício. Quando acabo, recoloco as pilhas no comando e, como o tirano ainda corria, mudo para o National Geographic. O crocodilo estava morto e todo aberto, a ser analisado em laboratório. Ele acenou e sorriu para mim (o tirano, não o crocodilo).

Às vezes, viver em Macau é também assim. O conceito da multi-secular amizade abarca essas situações. Não se trata apenas de nos entendermos bem com o próximo. Acima de tudo, temos é de nos desentender bem. E foi assim durante séculos.

Sorrindo sempre.

(*) 唔怕生壞命,最怕改壞名 (ng pa sáng wai meng, choi pa koi wai méng).
(**) Na verdade, não é inglês porque Ritchie deriva de Ricci: o meu antepassado era italiano e veio de Palermo no séc. XIX

26 Jun 2015

Entrevista | André Ritchie, arquitecto e ex-coordenador do GIT

A sua saída do cargo político que ocupava, o metro e o património são alguns dos assuntos em cima da mesa com o ex-coordenador do GIT. Com algumas reticências, André Ritchie fala de alguns assuntos mais polémicos, mas defende que não é altura para tudo ser revelado

[dropcap type=”circle”]E[/dropcap]steve à frente do gabinete que coordena o metro ligeiro. É realmente necessária esta construção em Macau? Não existem alternativas mais económicas?
Acho que Macau precisa acima de tudo de ser uma cidade mais “user friendly”. Neste território, a distância não pode ser medida pela distância em si, mas pelo tempo que demoramos nas nossas deslocações. Macau está a tornar-se uma cidade muito desconfortável. Há distâncias curtas, que a pé são pouco confortáveis devido aos passeios e ao número de pessoas. É preciso, por isso, um sistema integrado de transportes e isso implica o metro, autocarros, táxis e circulação pedonal. Em Hong Kong, por exemplo, o sistema pedonal funciona bem. Em Macau, devido à sua marca portuguesa de zona alta e baixa da cidade, é preciso compreender o que é possível neste espaço e este sistema pode funcionar muito bem aqui. É inaceitável demorar-se tanto tempo nas deslocações e, por isso, acho que o metro faz sentido.

Mas a construção do metro vai resolver este problema?
Não. O metro em si não vai resolver este problema das deslocações. Mas claro, tem que ser visto como uma das soluções do puzzle. O Governo tem que apostar mais na circulação pedonal, porque em Macau as pessoas habituaram-se muito ao carro, a um meio de transporte para deslocações curtas, o que não acontece em Hong Kong. Em Macau as pessoas são preguiçosas, é verdade. Mas a pessoa de Macau quando vai à região vizinha anda muito. Porquê? Porque tem conforto, seja no sistema pedonal ou no metro. Quando há conforto as deslocações tornam-se mais fáceis e rápidas.

Quando é que acha que esta obra estará concluída?
Prefiro não responder a essa pergunta.

Há muitas perguntas sem resposta. Porquê esta decisão de nunca comentar, nunca falar em assuntos considerados sensíveis?
Nunca falo porque é uma atitude que decidi ter e colocar em prática. Não quero dar a ideia de que bati com a porta e saí aborrecido e agora disparo contra [o Governo]. Olho para trás e acho que tive muita sorte, vim [para Macau] com a economia de rastos, mas depois assistiu-se ao crescimento. Aprendi muito, tivemos imensos projectos, foi estimulante para um novato como eu estar ali na linha da frente. E por isso mesmo não falo por respeito à casa. Naturalmente o Governo também comete erros, eu também cometi erros. Agora não quero aprofundar esses assuntos porque não quero meter o dedo na ferida.

Mas a verdade tem que ser dita, é direito da sociedade ter conhecimento dos erros…
Sim, acho que sim. Mas não é por mim, mas posso adiantar um aprendizado meu. O meu chefe de Portugal tinha muitas histórias para contar, muitos erros, devido às obras em que estava envolvido e sempre me passou o testemunho que não podia contar e mandar para a sociedade aquelas verdades. Disse-me um dia que iria escrever um livro com o título “As Memórias de um Burro” com essas verdades.

O André vai seguir o exemplo?
Um dia. As memórias de um burro escrito por mim com essas histórias.

Porque é que saiu do Governo?
Bem, foram 12 anos no Governo. Nunca foi intenção minha estar eternamente no Governo, há essa tendência geral das pessoas verem os cargos públicos como âncoras para o futuro, mas nunca aconteceu comigo. Há uma postura errada do acomodar-se ao cargo. Há um ditado chinês que diz que fazer ou não fazer é a mesma coisa e isto é errado. Profissionalmente, é super desmotivador e castrante. Ao longo dos anos que trabalhei fui sempre recebendo algumas propostas mas recusei, até que, chega-se a um ponto da nossa motivação em que temos que mudar. Não escondo que comecei a ficar desmotivado.

Porquê?
Enfim, porque o Governo tem o seu ambiente e modo de trabalho, do ponto de vista legal, jurídico, a nível de procedimentos que eu já conhecia bem. Estava a precisar de algo novo. Foram 12 anos a trabalhar com os mesmos mecanismos, mesmos procedimentos, mesmo método. Tinha que mudar.

Disse que aprendeu muito, boas e más experiências. Podemos ter como exemplo a condenação de Ao Man Long?
Sim, essa foi uma das situações que foi uma grande lição para mim. Fui testemunha e todo o processo foi intenso. Aprendi muito, porque aprendemos sempre com os bons e os maus momentos.

Ao Man Long foi o bode expiatório para uma situação que envolvia muita gente?
As pessoas têm essa tendência de generalizar. Por exemplo, agora no caso recente da FIFA alguns deles são suspeitos, o que faz com que as pessoas acusem o presidente [Joseph] Battler imediatamente. Neste caso, não sei, não estou dentro do assunto. Mas acredito que há de facto tendência para culpabilizarmos o outro.

Raimundo do Rosário, Secretário para os Transportes e Obras Públicas, afirmou que ia mexer em alguns serviços e gabinetes organizando-os, fundindo-os ou até eliminando-os. Concorda com esta espécie de arrumar da casa?
Vejo esta decisão mais como algo global do que só desta pasta específica. Acho que isto está acontecer transversalmente, não é só na pasta dirigida pelo Secretário Raimundo. Parece-me bem, porque defendo que a reforma administrativa é sempre necessária e contínua. A cidade vai-se transformando, portanto o Governo tem sempre necessidade de criar serviços para dar resposta a algumas lacunas ou desafios e isso acontece com várias tutelas. Ao longo dos últimos anos foram criados vários serviços na pasta das Obras Públicas, para dar resposta. Mas claro, é sempre oportuno perceber se esses serviços são necessários ou se é possível fundir alguns deles para se conseguir um melhor desempenho. Não sei se a casa está desarrumada, pelo menos não quero assumir isso, vejo a reforma administrativa como algo necessário. Quando se faz este [trabalho] de extinção ou união é preciso perceber porque é que esses serviços foram criados, perceber a sua natureza, cultura e orgânica. É preciso perceber se são úteis ou não.

FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro
FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro

O Gabinete para o Desenvolvimento das Infra-Estruturas (GDI) é útil? Foi renovada por mais dois anos a sua existência.
O GDI foi muito útil desde a criação da RAEM devido a três grandes construções: a fronteiras das Portas do Cerco, a ponte Sai Van, que é essencial para o acesso ao Cotai, e depois o próprio Cotai. Quando vim em 2003 e comecei a trabalhar no GDI o Cotai não existia, foi o gabinete que o construiu e isso foi muito importante para que os investidores pudessem investir. O GDI foi muito útil nessa altura e agora no último Governo foi responsável pela habitação pública. Quer se goste ou não, existe e está construída e foi este gabinete que a executou, assim como a nova Universidade de Macau, que é uma grande obra. Este serviço é um gabinete de intervenção rápida, tem uma agilidade que muitos serviços não têm e acho que qualquer Governo deve ter este tipo de serviço, sem departamentos, de respostas rápidas.

Em Portugal trabalhou na obra do metro do Porto, projecto de grande dimensão. Porque decidiu voltar para Macau?
Acabei o curso de Arquitectura no Porto em 2001 e mal acabei o curso comecei a trabalhar lá. Foi sorte, tinha acabado de defender a minha tese sobre o plano inicial sobre os NAPE e cruzei-me com um professor meu, no próprio bar da universidade, que logo ali me fez o convite para a obra do metro do Porto. Nunca pensei em regressar a Macau, confesso, pensei sempre que o meu futuro era na Europa, mas a verdade é que o salário, com os impostos, assustaram-me um bocado. Com o primeiro salário pensei: então é só isto? Quando o António Guterres abandona o cargo e entrou o Durão Barroso com o discurso do ‘país de tanga’ pensei que Portugal não estava a entrar num bom caminho. Precisava de alternativas, a experiência de trabalho estava a deixar-me infeliz e mexi-me aqui em Macau. Pronto, voltei.

O Regime de Acreditação de Arquitectos e Engenheiros em Macau entra em vigor agora no início de Julho. Concorda com este regime?
Não conheço muito bem a lei, mas acho que é um bom princípio. É importante porque tem que existir um controlo de qualidade. Faz sentido ter este regime. Portugal recentemente também passou por isso, até se criou a ordem dos arquitectos, portanto acho que sim. Caso contrário qualquer pessoa que tenha um curso inscreve-se nas Obras Públicas e está apto a assinar projectos, não pode ser assim. Este regime é importantíssimo do ponto de vista técnico e profissional.

Mas Macau tem capacidade para formar arquitectos?
De facto existe um curso de Arquitectura em Macau, na Universidade de São José, mas tenho algumas dúvidas. Conheço as pessoas que estão à frente do curso e posso dizer que são pessoas competentes, são bons, não há dúvidas. Mas o plano de curso em si deixa-me com muitas dúvidas. É preciso começar em algum lado, é uma universidade nova e ninguém lhe tira o mérito, mas não sei que referências tem. Por outro lado, pode ser chato dizer isto, mas não compreendo porque é que este curso não é dirigido pela “prata da casa”. Temos aqui em Macau excelentes profissionais, tais como o Carlos Couto, Carlos Marreiros, Luís Sá Machado, Isabel Bragança… Macau tem bons arquitectos e aparentemente estes profissionais não estão directamente ligados a este curso. O Rui Leão, um bom profissional, já esteve, mas já não está. Não percebo. Acho que é preciso este apadrinhamento.

FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro
FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro

Mas apenas o curso não é suficiente.
Não, de facto. Até pode não fazer sentido para alguns, mas para mim uma pessoa que nasça aqui, viva aqui e estude Arquitectura aqui não sei que cultura arquitectónica assumiu. A vivência no exterior, essa experiência como ser humano e profissional, seja em que área for, é muito importante. A bagagem cultural é muito importante, ganhar motivações de desenho, ver como se vive nas outras culturas, perceber o verdadeiro significado da área, não é só desenhar umas coisas bonitas. Neste lado do mundo há muito esta ideia do design, do moderno ou clássico. Não é nada disto, é muito mais profundo que isso. Digo sempre às pessoas que da necessidade, a motivação de desenho, nasce uma moda e não o contrário.

Sobre o Património de Macau, como vê o que foi até ao momento classificado pela UNESCO e o que poderá ser?
O que já foi classificado devia ter mais alma. Não pode ser só fachada. Olhamos para o Largo do Senado, é um sítio bonito e rico, mas o que se passa com os edifícios? Temos fachadas bem cuidadas mas completamente desrespeitadas a nível de rés-do-chão pelo comércio, não há o mínimo de disciplina a nível de desenho de lojas, cada um faz o que quer. É vergonhoso, vivemos de fachada. Acho que é preciso disciplina e dar vida. Por exemplo o Largo do Lilau tinha mais vida antigamente do que agora, que é considerado património. Na altura tinha um café, uma tasca chinesa, moravam pessoas nas casas em volta, tinha muita vida e nem sequer era considerado património.

E o novo?
Bem, espero que da lista não saiam só edifícios antigos com arcos. Espero sinceramente que haja arquitectura moderna porque em Macau fez-se muita interessante, como é o caso da Escola Portuguesa. Há muitas obras de arquitectura moderna que deviam ser preservados. Estamos a entrar numa fase triste para arquitectura porque maioritariamente o que se constrói na cidade é habitação. Antigamente, os arquitectos desenhavam edifícios para habitação muito interessantes, agora perdeu-se isto, por força do mercado e das imobiliárias. Só se constrói edifícios de catálogo.

E o Hotel Estoril?
É um edifício muito interessante, mas é preciso que a sociedade perceba que é necessário manter-lhe a alma. Entenderem que o património não são só arcos e o antigo, o que é novo é também património. O que se faz hoje é património. Não é só o Clube Militar, o Senado, não é só isso.

Existe planeamento urbanístico em Macau?
Sempre existiu. O que as pessoas têm que compreender é que o planeamento urbanístico é gestão de interesses, económicos e públicos. É preciso haver este equilíbrio. Sempre existiu, mas fala-se muito em planeamento urbanístico porque as pessoas confundem o planeamento com o zonamento, que é organização por zonas. O planeamento não é isto e a população tem que perceber isto. O planeamento pretende equilibrar e criar ferramentas legais e jurídicas para o ordenamento do território.

Como vê Macau daqui a 20 anos?
Quando era miúdo, o meu pai, como não havia pontes de ligação a Coloane, combinava excursões com os amigos ao fim-de-semana. No meu tempo, com a ponte, ir à Taipa era uma aventura, pagávamos a portagem e íamos fazer os trabalhos da escola, voltar para casa era outra aventura. Era tudo diferente. Agora em dez minutos estamos em Coloane. Macau expandiu. Para a minha avó ainda existe a ideia dos piratas de Coloane. A expansão vai continuar, vamos crescer e crescer. As fronteira vão estar muito mais premiáveis, vai abarcar Zhuhai e a zona de Cantão, a circulação de bens e pessoas será cada vez maior. Inevitavelmente o nosso estilo de vida vai mudar. Para mim agora ir a Zhuhai é cansativo, tenho que passar a fronteira e aquilo tudo, para o meu filho possivelmente vai ser como ir à Taipa. Ir a Cantão vai ser já ali.

[button color=”” size=”” type=”3d” target=”blank” link=”https://hojemacau.com.mo/category/opiniao/sorrindo-sempre/”]LEIA TAMBÉM AS CRÓNICAS DE ANDRÉ RITCHIE NO HOJE MACAU[/button]

23 Jun 2015

Encontro | Jovens macaenses a contribuir para “desenvolvimento” da RAEM

Começou ontem o terceiro encontro de jovens macaenses, que tem como objectivo mais do que criar laços. Duarte Alves, da organização, diz que também estes jovens querem contribuir para um melhor desenvolvimento do território

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]uarte Alves, presidente da Associação dos Jovens Macaenses, acredita que a comunidade mais nova poderá ajudar ao desenvolvimento de Macau. Este é, pelo menos, um dos objectivos do terceiro encontro da comunidade juvenil macaense, que ontem começou.

O presidente da Associação, que organiza o evento, explica ao HM que o encontro passa por permitir aos jovens de segunda e terceira gerações de macaenses, ou até os que nasceram lá fora, mas têm raízes aqui, que conheçam o território e criem laços, mas não só.

“É mais uma oportunidade que temos para trabalhar par o bem da comunidade, em conjunto. Conhecermo-nos melhor uns aos outros, termos oportunidades também para discutir vários assuntos sobre a sociedade em Macau e como podemos conseguir dar o nossa contributo para o desenvolvimento da RAEM, na qual a comunidade jovem está também inserida”, aponta Duarte Alves.

Governo apoia

Na preparação do programa, a Associação de Jovens Macaenses teve encontros oficiais com o Governo: Alexis Tam, Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alex Vong, presidente do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, e Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo, foram alguns dos representantes que se sentaram à mesa com Duarte Alves.

“Sempre tivemos constante apoio do Governo na organização do encontro e de outras actividades.”

Com 41 participantes de 12 casas espalhadas pela diáspora, o encontro quer abrir portas à “criação de laços que possam durar largos e largos anos”, de forma a que os jovens macaenses que acabam por regressar aos seus países de origem mostrem mais de Macau além do que é conhecido lá fora.

“Quando voltarem aos países onde moram, vão ser os embaixadores de Macau e vão mostrar o que Macau é, o que Macau tem”, explica Duarte Alves, que acrescenta ainda que também poderá haver um contributo económico. “São jovens empresários de diversas áreas e vêm para cá também para verem o que podem fazer para manter a ligação, não só na amizade mas também na área económica.”

O presidente da Associação explica ainda que os encontros e trabalhos a ele subjacentes são para continuar, até porque “a contribuição para o desenvolvimento da RAEM não implica que estes jovens estejam sempre em Macau”.

18 Jun 2015

Oito e 80

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]Mesmo não querendo que na minha coluna deste jornal se fale unicamente da hibridez e multiculturalidade de Macau, a verdade é que, no seguimento da minha última intervenção, acabei por dar continuidade a esse tema.

Não que não tenha tentado fugir dele: ocorreu-me escrever sobre a professora Ana Maria Amaro, recentemente falecida, ainda que numa perspectiva diferente, explorando o facto de se tratar de uma investigadora que se debruçou intensamente sobre Macau, mas que, surpreendentemente, nunca mais aqui voltou desde 1972.

Em 1972 Macau tinha menos de 250 mil habitantes. Não existia ainda nenhuma ligação terrestre entre Macau e a Taipa. Havia hortas no Porto exterior, búfalos na Taipa e kwai chi lous (*) em Coloane. os números de telefone tinham apenas quatro algarismos.

Foi esse o Macau que Ana Maria Amaro vivenciou no momento em que se foi embora há 43 anos atrás para nunca mais voltar. Isso não a impediu, no entanto, de continuar a publicar obras sobre os costumes e as tradições da comunidade macaense.

Não escondo que fiquei algo afectado com essa questão, obrigando-me a reflectir um pouco sobre o assunto. E aparentemente não fui o único: bastará ler com atenção os comentários, ainda que subtis, que algumas personalidades deixaram nos jornais na sequência da sua morte.

Não será necessariamente um problema. o importante é estarmos cientes desse facto, para que na apreciação da sua obra a mesma seja adequadamente enquadrada no tempo. Pois uma coisa é certa: as cidades e as suas gentes são organismos vivos em constante mutação.

Posto isso, fico por aqui e vou mudar de assunto para evitar que me atirem pedras.

[quote_box_right]“Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema?”[/quote_box_right]

Disse no início que iria dar continuidade ao tema da hibridez de Macau. Vamos a isso. Como o caríssimo leitor decerto saberá, durante alguns anos vesti a camisola do Governo e dei a cara para um projecto infra-estrutural bastante controverso. E comi muitas balas pelo caminho, diga-se de passagem. Balas à parte, hoje vamos recordar coisas boas: uma das tarefas que tive de cumprir no exercício das minhas funções foi a de apresentar o projecto junto dos mais novos nas escolas de Macau.

Essas apresentações foram sempre feitas na companhia da Keily, a minha amável assistente da área das relações públicas. Portanto, uma dupla formada por um português-macaense e uma chinesa.

Vou começar por partilhar a minha experiência de uma apresentação numa escola chinesa.

Mal chegamos à porta da escola, está à nossa espera uma funcionária que nos cumprimenta de forma calorosa, exibindo um enorme sorriso.

Somos levados ao gabinete do Director da escola, que nos recebe com a mesma simpatia, embora já de forma mais reservada. Sentamo-nos e tomamos um chá, trocamos os cartões e conversamos protocolarmente.

O Director leva-nos ao anfiteatro, onde está já tudo pronto para a apresentação: computador com o ficheiro Power Point que a Keily fez chegar com antecedência; projector já ligado; mesa no palco com flores e etiquetas onde se lêem os nossos nomes, indicando os respectivos lugares; e alunos, muitos alunos, centenas de alunos. e também professores. Todos já sentadinhos à nossa espera. Batem palmas quando entramos no anfiteatro.

O Director faz um breve discurso. Mais palmas. Passa-me a palavra e faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se alguém tem dúvidas. Levantam-se logo vários braços. Uma a uma, vou respondendo às perguntas, todas elas interessantes. No fim, o Director toma a palavra, agradece a todos e fecha a sessão. Acompanha-nos até à porta da escola. Despedimo-nos cordialmente.

“Keily, correu mesmo bem, não foi? Nunca pensei que os alunos pudessem demonstrar tanto interesse pelo nosso projecto!” disse eu, satisfeito, à minha colega.

“Ritchie, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: mal informámos que vínhamos fazer uma apresentação, os professores agendaram para trabalho de casa que cada aluno preparasse pelo menos três perguntas. Os professores depois analisaram as perguntas, filtraram e escolheram as mais interessantes e menos embaraçosas para nós, as menos kám kái. Antes de cá chegarmos, já estava combinado quem perguntava o quê. Não percebes mesmo nada disso pá…” respondeu-me a Keily, em jeito de troça.

Agora a apresentação numa escola portuguesa.

Chegamos à porta da escola e não está lá ninguém para nos receber. Dirigimo-nos então à secretaria. “Apresentação? Que apresentação? Não sei de nada…”.

Aparece um professor, simpático, que se oferece para tratar do assunto. Leva-nos ao anfiteatro, que está vazio. Não está lá nenhum equipamento montado. Dou uma ajuda na instalação do projector e do computador, que entretanto alguém trouxe.

“Olhe, falta um cabo de ligação ao projector, este aqui não dá.” “Bolas, precisamos de uma extensão, o cabo não chega lá.” Não há stress. Foi tudo resolvido, agora só falta a assistência.

O professor, despachado, vai ao recreio da escola. “Ó vocês aí, vá! e vocês também, esse grupinho, venham cá! Vamos assistir a uma apresentação.” Pronto, já temos assistência. entretanto vieram mais uns professores.

“Posso?”, pergunto ao professor. “sim, força!”. Faço então a minha apresentação. Chego ao fim e pergunto se há questões a levantar.

Silêncio absoluto. Zero. O professor olha para trás, para a esquerda, para a direita, para todos os lados, e o silêncio persiste. Sentiu-se kám kái e, face à situação, é ele que levanta o braço, é ele que faz a pergunta. Respondo à pergunta e voltamos ao silêncio.

Finalmente, um rapaz de óculos, com cara de malandro, faz uma pergunta pertinente, questionando se as receitas das tarifas serão suficientes para cobrir os custos de operação do empreendimento.

Essa deu-me trabalho. Mal acabo de responder, umas meninas da fila de trás desatam a bater palmas, desalmadamente. Não pela excelente resposta que tenho a certeza que dei, fruto de tantos anos de experiência no campo do discurso insípido.As meninas pretendiam, com as palmas, terminar a sessão. E assim foi. Os professores agradeceram, conversámos um pouco, rimo-nos e despedimo-nos. Foram-se todos embora.

A Keily e eu ficámos sozinhos no anfiteatro.

“Ritchie, mas o que foi isso, correu tão mal! Cheguei a pensar que tínhamos de cancelar tudo e marcar uma nova sessão, mas que grande confusão!”, disse-me a Keily, chocada.

“Keily, tu de facto não nos conheces… Isto aqui é assim: somos portugueses, somos campeões na arte do desenrascanço. Qual é o problema? Tivemos computador, projector, assistência, correu tudo lindamente. e mais: aquele miúdo fez-me uma grande pergunta! Sabes, como achas que os portugueses chegaram aqui há 500 anos atrás? Não percebes mesmo nada disso pá…” respondi à Keily, em jeito de troça.

Macau tem dessas coisas.

Sorrindo Sempre

Com a minha saída da função pública, tive de ir tratar da liquidação da minha conta do Regime de Previdência junto do Fundo de Pensões (FP) a fim de receber o meu pé-de-meia depois de 12 anos de contribuição.

Segundo me explicou ao telefone uma competente funcionária do FP, tinha apenas de preencher um impresso, anexar uma fotocópia do BIR e entregar tudo na sede do FP.

O que ela não me explicou, no entanto, é que no FP iria ser atendido por um funcionário ignóbil. Coitada, como poderia ela adivinhar?

Depois de ter apresentado os tais papéis, e tendo o ilustre funcionário garantido que estava tudo em ordem, ia eu no carro a atravessar a Ponte de Sai Van, a caminho de casa, quando o dito me telefona e pede para eu voltar atrás pois, afinal, encontrou irregularidades no preenchimento do impresso.

Então quais eram as irregularidades? (1) o endereço, segundo aquele especialista, continha um erro ortográfico, pois escrevi “Poplar Court”, quando obviamente deveria ser “Popular Court”; e (2) o acento no meu nome “André” estava torto. Sim, o acento estava torto. Por isso, disse ele, eu tinha de voltar atrás para preencher novamente o impresso.

First things first, vamos apurar os factos: (1) o prédio onde moro chama-se mesmo “Poplar” e não “Popular” como aquele ilustre sugeriu; e (2) o acento… Desculpem, mas nunca tive dificuldades em escrever o meu próprio nome, portanto o acento estava bem. Ponto final.

Senti que o devia arrasar. E assim foi.

Não, não houve palavrões e não levantei a voz. Mas fui agressivo e acutilante no uso das palavras. encarnei novamente o detestável Simon Chan do sketch Maquista Idol do patuá. exemplo: “Não volte a pensar com o traseiro, está bem?” (**)

Enfim, sorrindo sempre…

P.S. – Senhor Presidente do FP, não leve a mal ter contado essa história. Por favor, não encrave o meu processo. Sorria um pouco também.
(*) Malfeitor que rapta crianças.
(**) “Iong kor si fat lam yeah”, expressão que faz sentido em cantonense.

29 Mai 2015

A casinha no Bombarral

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente esteve em macau um grupo de académicos vindos de Portugal no âmbito de um simpósio da área das indústrias criativas. Da comitiva fazia parte a Alexandra, uma amiga minha de longa data, do tempo da faculdade lá no Porto. tive a oportunidade de passear com ela pelas ruas de Macau e, em simultâneo, pôr a nossa conversa em dia.

Descíamos as escadas de granito da estreita calçada do embaixador, perto das Ruínas de São Paulo, quando a Alexandra me pergunta, no meio de tantas outras perguntas que foi fazendo ao longo do nosso passeio: estás bem aqui em Macau, não estás?

Foi um instante da minha vida que inicialmente pareceu banal, sem grande significado, mas que acabou por ficar gravado na minha memória como algo muito especial.

Aquela pergunta supostamente trivial, de amiga para amigo, despoletou em mim uma reflexão profunda. E não podia ter sido feita em momento ou local mais apropriado: o cenário à nossa volta parecia tirado do In the mood for Love, de Wong Kar-wai. e a Alexandra, diga-se, é fotogénica.

Engana-se o caríssimo leitor se entendeu que me apaixonei pela Alexandra naquele preciso momento. Não. Há de facto aqui paixão da minha parte, mas não é por ela.

Sim, estou bem aqui em Macau. A minha resposta foi curta e seca. Mas, tal como a própria pergunta, trazia muito mais significado que as meras palavras pronunciadas.

Cresci em Macau nos anos 80-90. À semelhança de muitos portugueses dessa geração que aqui viveram, a minha educação foi definida tendo em mente a transferência de soberania e um futuro fora de Macau. O leitor português que viveu em Macau nesses tempos recorda-se concerteza do ambiente de contagem decrescente e da mentalidade de contentor.

Resultado da (má) experiência portuguesa nas ex-colónias ou simplesmente daquele típico prazer masoquista que guardamos pelas emoções do triste fado, ou mesmo até apenas por teimosia, a verdade é que nós, na nossa estreiteza mental, espiritualmente determinámos desde o início que a nossa presença no Macau do pós-99 não era viável.

Até eu, maquista chapado originário de família tradicional aqui radicada desde o século XIX, adoptei essa atitude. Futuro em Macau? Quantas vezes não respondi aos meus colegas da faculdade, com um sorriso arrogante: nãããão…

E assim, decisão tomada, o português em Macau na fase de transição passou o resto do tempo ocupado e preocupado com os afazeres relacionados com a sua casinha no Bombarral e com a mobília chinesa e as bugigangas ainda por comprar para encher o contentor. Quero levar lembranças de Macau.

Mas afinal regressámos. Entretanto a RAEM fez 15 anos e foi preciso esse tempo todo e aquela pergunta da Alexandra para que a minha cabeça fizesse, finalmente, o click. A transferência de soberania, afinal, fez-me bem. Fez-nos bem, a nós, portugueses. Passo a explicar. mas para já, da resposta aparentemente inconsequente que dei à Alexandra, quero acrescentar o seguinte:

Alexandra, nasci e cresci nesta terra. Sou macaense de gema, e com muito orgulho. Sou híbrido por natureza, está no meu DNA. com o estabelecimento da RAEM, e ultrapassada a subsequente fase do fervor nacionalista chinês e sentimento ferido do orgulho português, finalmente descartei todos os complexos e preconceitos absurdos referentes a formas de ser e de estar nesta cidade que eram desnecessariamente etiquetados como comportamentos chineses, portugueses ou macaenses e, como tal, bem vistos ou mal vistos por esta ou aquela comunidade, num período muito particular da história de Macau. Por conseguinte, hoje vivo e celebro a hibridez e a diversidade cultural desta cidade em toda a sua plenitude. Aqui em Macau eu sou mesmo eu, posso ser eu, sem inquirições de terceiros. Nunca gostei tanto de viver em Macau, nunca me senti tão bem em Macau.

É um sentimento profundo e pessoal que o caríssimo leitor poderá não compreender à primeira. Verborreia? Filosofia barata? Não. Deixo aqui uma pista: nos anos 80, uma professora do Liceu decidiu não dar nota máxima ao meu irmão na disciplina de Português porque ele falava com pronúncia de macaense, não obstante o facto de, tecnicamente, ter demonstrado dominar a língua e a matéria da cadeira na perfeição.

Este não é o discurso do nativo coitadinho maltratado pelo poder colonial. O que estou a querer dizer é que nós, portugueses (e não apenas nós, portugueses) andávamos todos afectados da cabeça. A sério. A transferência de poderes teve, por isso, um efeito positivo: passámos todos a ser estrangeiros a viver na China.

Pese embora a contínua existência de atitudes bacocas daqueles que, no fundo, bem lá no fundo, e infelizmente, ainda hoje não conseguiram compreender ou aceitar a transferência de soberania. Quanto a esses, nada a fazer, e não vou agora dissecar a irrazoabilidade que demonstram na análise dos problemas desta cidade. Fica para outro dia.

O que é certo é que a contagem decrescente foi abandonada de vez. O contentor foi desalfandegado, a mobília chinesa e as bugigangas de Macau ficaram na casa de Bombarral a apanhar pó. Vamos vendê-la? Ai as despesas…

Hoje assisto com regularidade a conversas entre pais portugueses sobre opções para a educação dos filhos, tendo em mente um futuro em macau. Preocupam-se com a língua chinesa e não querem que os filhos vivam num ghetto português. E isso é muito bom.

[quote_box_right]Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau.
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Porque… Vamos lá, sejamos francos: faz algum sentido, depois das oito da noite, ouvir no 98.00 FM o boletim de trânsito das estradas em Portugal? Dava um bom sketch à la Gato Fedorento: o português em desespero num engarrafamento na Ponte de Sai Van enquanto ouve pela rádio as informações de trânsito da Avenida AEP, no sentido Porto-Matosinhos. Bolas! E eu?? O que é que eu faço agora???

Entretanto, descobri que me fartei de pão, ovos estrelados e bacon ao pequeno almoço. Eu gosto é de canja e sopa de fitas logo de manhã, acompanhado de um tong café. Não é atitude ou achinesação. É o que o meu corpo me pede, logo de manhã, quando acordo. Sabe-me bem. E não tenho complexos.

Igualmente, sabe-me bem um café espresso depois de um almoço yam chá. Qual é o problema? Nunca me recusaram um café num restaurante chinês, nunca ninguém me veio dizer Desculpe, mas o senhor está num restaurante chinês, não servimos café.

Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau.

A essência de Macau é mesmo esta: seja o residente português, chinês, macaense, filipino ou mesmo o polaco que decide vender cannabis no Facebook. O residente de Macau vive macau conforme lhe apetece, conforme lhe dá mais jeito, conforme gosta, e há-de encontrar a sua zona de conforto, mou man tai, porque em macau tudo é válido, tudo pódi, nada faz sentido, mas tudo faz sentido.

Macau está com muitas falhas, eu sei. Mas estou apaixonado e, quando estamos apaixonados, tendemos a não ver os defeitos, apenas as qualidades. E estou nessa onda. Esta cidade preenche-me o coração na ín- tegra. Dedico, por isso, esta peça escrita à minha macau, que tanto amo.

Sorrindo Sempre

Sorrindo Sempre é uma atitude de vida que nos permite superar de forma pacífica situa- ções aberrantes que vão ao atropelo do bom senso e com as quais somos confrontados no nosso dia-a-dia. Implica tolerância, com- paixão e, acima de tudo, sentido de humor. Demonstramos, sem arrogância, que somos muito mais que a questão em causa, pelo que não nos deixamos afectar nem um pouco, por mais absurda e irritante que ela seja. No me ne fregga niente. Era o que faltava.

Um exemplo de Sorrindo Sempre: o meu pedido para um cartão de crédito que foi rejeitado por uma prestigiada instituição bancária local. Porquê?

Porque cessei as minhas funções oficiais em Março e decidi que merecia take a long break e descansar durante o mês de Abril, para voltar a trabalhar apenas no mês de Maio. O banco detectou a descontinuidade do meu rendimento e, provavelmente, o risco de eu ser incapaz de liquidar as contas do cartão de crédito. Então deu-me nega.

A minha reacção para a funcionária do banco: está a falar a sério?

Encolhi os ombros e soltei uma gargalhada. Sorrindo sempre…

15 Mai 2015

Viagem a partir de uma fotografia

Uma imagem antiga é o pretexto para recordar figuras importantes da história de Macau e o seu mundo antigo. Figuras que fizeram a ponte entre os dois lados da terra. Que se interessaram pelo outro e cruzaram culturas distantes. Vamos à vela, pela memória da descendência da História

[dropcap]P[/dropcap]arte-se de uma fotografia. Um tempo a sépia. O pai no liceu, aos 16 anos, os seus colegas, os professores, um passado vivido apenas por uma memória visual. Mas o sentido de pertença por uma imagem e por um impulso antigo, muito presentes, no dobrar da esquina de uma memória. “Eu cresci com esta fotografia”, afirma António Conceição Júnior, como se aquela recordação não fosse apenas papel, mas o desenrolar de uma vivência real e palpável, com todos os seus sentidos.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio”, refere Conceição Júnior, “as pessoas apanham o comboio na estação que for.” E continua, “se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem”. Estas são as palavras que reflectem sobre o acto contínuo do tempo, com as suas coincidências e factos, sem distinções entre presente e passado.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio, as pessoas apanham o comboio na estação que for, se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem.”

No seu desenrolar, os nomes saltam com toda a sua importância: Pessanha, Mendes, Gomes, Jorge. Os apelidos da biografia de uma cidade a acontecer. As personagens de uma enorme importância para a vida cultural de Macau. Sem esquecer o de Conceição, pai e filho. Todos eles formam o núcleo da espiral de um ciclo de acontecimentos que ocorreram após o simbólico momento congelado no tempo, a fotografia tirada no pátio do Liceu Infante D. Henrique, por um autor desconhecido. Vivia-se a história de Macau e com ela rola esta crónica de coleccionadores.

Momento intensamente vivido

Camilo Pessanha com Silva Mendes, a seu lado, e António da Conceição e Gonzaga Gomes, da mesma altura, atrás de si

O próprio instante da fotografia é incerto. Se a fotobiografia de Camilo Pessanha refere o momento situado em 1921, Conceição Júnior marca-o no ano lectivo de 1925-26, pela referência do seu pai, António fa Conceição, o primeiro à esquerda, nascido em 1910. O poeta de “Clepsidra” morreu no dia 1 de Março de 1926 e os protagonistas têm um ar demasiado veraneante para que a ocasião possa ter ocorrido nesse ano, o ano em que o BNU se mudava para as suas instalações actuais. Talvez seja lógico pensar que a imagem traz o final do ano lectivo anterior, com as taças e os prémios de toda uma época e o início das férias. Mas Macau é sempre um mundo tropical onde tudo é possível.

Por detrás de Camilo está o jovem Luís Gonzaga Gomes. Sentado ao seu lado vemos Manuel da Silva Mendes e do outro lado da mesa dos troféus, no segundo lugar, está José Vicente Jorge, apoiado na cadeira. São eles as referências de uma visita guiada. O que têm em comum? Todos ousaram transpor a barreira da língua e ocupar um ponto na comunidade chinesa, na compreensão do idioma, estabelecendo desse modo ligações profundas com ela, na procura do conhecimento da cultura local. Facto notável numa sociedade colonial pouco receptiva à aceitação de outras formas de assumpção do quotidiano, com a sua zona cristã bem delimitada, que não se aventurava a conhecer o outro lado, na verdadeira acepção da palavra. Ainda hoje assim acontece.

Vicente Jorge (ao centro) do outro lado da mesa

A viagem começa aí, em Camilo Pessanha. Não o poeta excêntrico, que lhe trouxe a fama, mas o advogado, de raro brilhantismo, o juiz e sobretudo o professor de Filosofia, História, Geografia, Português, Literatura e Direito. Admirado pelos alunos, era figura central no mundo cultural, político e cívico da plataforma de Macau, à qual abordou em 1894. Terra de acolhimento onde desde logo tomou posições fundamentais no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses. Com a compreensão do idioma, abandonou desde logo a postura eurocêntrica da maioria dos seus contemporâneos, levando-o desde logo a traduzir, de forma livre, poemas da dinastia Ming (1368 a 1628). Talvez resida aí o rumor dessa poemária que viria a criar mais tarde. Na voz de Conceição Júnior, revivem-se as histórias de Pessanha. As suas casas, na Sidónio Pais, na Praia Grande, actual sede do Banco HSBC, na esquina que sobe para a Sé. Mas, principalmente, o gosto pela arte, que partilha com Silva Mendes e que fortalece toda uma relação de amizade entre os dois. O Palacete da Flora a ir pelos ares com uma colecção rara de que hoje não se conhece o rasto. O espólio de Silva Mendes, o homem que vindo do Porto, em 1900, ainda hoje tem uma presença preponderante na arte do território. Mendes foi o primeiro europeu a coleccionar peças de qualidade com as características da cerâmica de Shek Wan, da região de Cantão, reconhecendo-a como um dos mais refinados exemplos da arte chinesa, encomendando diversas peças durante toda a sua vida, que podem ser vistas nos dias de hoje no Museu de Arte de Macau. E uma ligação ao presente faz-se então por aí.

Juiz multifacetado, professor e reitor do liceu, advogado, magistrado, presidente do Leal Senado, Manuel da Silva Mendes foi um dos intelectuais mais representativos da história de Macau, dedicando-se ainda ao estudo da filosofia taoista e flutuando nos enredos da arte chinesa, como erudito e coleccionador. A colecção valiosíssima de Silva Mendes viria a formar grande parte do importante espólio do Museu Luís de Camões, situado no que é agora a Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, que foi instalado, com grande competência e conhecimentos da arte chinesa, por um seu aluno, Luís Gonzaga Gomes, um dos símbolos de Macau, no lugar do diálogo, da harmonia e da tolerância.

Nascido em Macau em 1907, sinólogo fervoroso, Gonzaga Gomes viria a traduzir para chinês “Os Lusíadas contado às crianças”, entre muitas outras obras escritas. Profundo auto-didacta, acabaria por ser professor de língua chinesa, defendendo sempre a importância do seu ensino junto da comunidade portuguesa, facto que raramente teve repercussão. Aí se aprofunda a ligação a António da Conceição, num tempo com todas as cores, no jornal Notícias de Macau, situado no local preciso da actual Tribuna de Macau, a que viria a juntar-se o nome de Deolinda da Conceição, mãe de Conceição Júnior, como a primeira jornalista do território. E as imagens continuam. O Hotel Riviera, os anos a correrem, o Museu Luís de Camões, as peças de Silva Mendes sem rasuras a caminharem para a actualidade e, finalmente, a memória da família de José Vicente Jorge, também um sinólogo e grande coleccionador de arte chinesa, que se viria a mostrar no prelo nas suas “Notas sobre a Arte Chinesa”. As memórias passam ainda pelo seu palacete, por cima do Lilau, também ele repleto de obras de arte, com o seu rico jardim, um espaço vivido por dentro pelo condutor desta viagem.

Uma memória adormecida?

“Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes.”

Pelas suas funções de intérpretes, professores e diplomatas, estas personagens da história foram a peça-chave da mediação cultural entre os dois mundos: o português e o chinês, contribuindo para um entendimento, muitas vezes difícil, de forma exemplar. E pergunta-se pelo valor que tens estas memórias? “Têm o valor que as pessoas quiserem encontrar nelas”, responde Conceição Júnior, o homem do leme. “Pessoalmente penso que é uma questão intimista, no sentido de que têm um valor muito subjectivo, na medida em que na vida actual a objectividade tem cifrões”. É nesse idioma do cifrão que se fala da Arte nos tempos que decorrem como se tudo começasse a ser criado agora, onde se ouve sempre o sussurro das indústrias do criar. Conceição Júnior responde: “Isso passa pela força do desconhecimento e pela ausência de memória, uma memória colectiva. Quando não se acede a essa memória, provavelmente animam-se pensando que são as pioneiras de uma coisa que já foi pensada por gerações”. Haverá ligação ao passado, actualmente, numa comunidade tão diversa? Que significado poderão ter estes nomes que passaram pela história de um território sob o cunho português? Haverá importância para outro lado do trampolim, por entre os resquícios da “zona cristã”, nesta Idade de Casino?

António Conceição Júnior aponta: “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes”. Assegurando que “neste momento é de uma imensa importância encontrar pontes entre as comunidades, não só sobre o actual mas também sobre passado”. Porque só podemos saber para onde vamos se soubermos quem fomos, para finalmente sabermos realmente quem somos. Quem somos nós, afinal, as gentes de Macau?

13 Jul 2010