José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasLuta entre grilos [dropcap]O[/dropcap] som intenso produzido pela série de pêlos colocados nas bordas das asas ao roçarem uma na outra dá para perceber estar o macho à procura de atrair uma fêmea. O grilo, insecto omnívoro da ordem Orthoptera da Família Gryllidae conta com cerca de 900 espécies. Em Outubro a fêmea põe c.500 ovos que eclodem em Abril, Maio, e nos primeiros 20 a 25 dias muda a pele por seis vezes, levando cada uma de 3 a 4 dias. Vivem 150 dias, sendo o seu cantar um sinal de boa sorte. O combate entre grilos foi para os chineses um dos seus divertimentos milenares e se a facilidade de os encontrar no campo permitia ao povo poder usufruir sem custos tal diversão, houve aficcionados entre oficiais governamentais e mesmo na corte imperial que não enjeitavam assistir a esses confrontos e alguns até adquiriram um animal vencedor. Inveterados jogadores, os chineses investiram nesses combates, que num entusiasmo crescente evoluiu para um negócio, fazendo-se apostas a atingir avultadas somas. Assim era preciso arranjar possantes grilos machos e daí aparecerem pessoas especializadas em os capturar nas tocas. Estes não se deixavam facilmente apanhar e só ao fim da tarde e à noite davam com o canto sinal da sua existência. Segundo Leonel Barros, “O grilo campestre é um dos insectos mais vulgares e abundantes na China. O preço de cada animal varia pelo seu tamanho e pela constituição física, podendo portanto, um bom grilo com três centímetros de comprimento, com fortes patas traseiras, vir a custar cerca de setecentas a novecentas patacas. Os menores, isto é, os que não ultrapassam os dois centímetros custam apenas umas cem a cento e vinte patacas, o que já se pode considerar bastante caro, pois o verdadeiro preço para animais desse tamanho, fora da época das apostas é apenas de umas cinco ou seis patacas.” Texto de meados do século XX que, em conjunto com o de Luís Gonzaga Gomes, refere os nomes das variedades dos grilos lutadores: cabeça branca; cabeça amarela; cabeça preta; mandíbulas de caranguejo; fios de seda; antenas prateadas; e mancha de flor de ameixoeira conhecido por Mui-fá-tim. “Os grilos apanhados nas tocas de escolopendras ou serpentes, também em hibernação, são os mais combativos e difíceis de apanhar, razão por que os insectos apanhados nestas circunstâncias são vendidos por elevados preços, que chegam a ser cinco vezes superiores ao valor dos grilos capturados nos campos de cultura”, segundo Leonel Barros, que adita, “Nas ilhas da Taipa e Coloane encontram-se alguns grilos que servem para os combates. No entanto, os mais apreciados são aqueles que vêm da China e, para os trazer existem pessoas especializadas.” Para os grilos entrarem em Macau era necessário pagar uma taxa de importação e por isso eram eles transportados ilegalmente dentro de “tubos de bambu em cujo interior existem algumas folhas verdes e bagos de alpista”, escondidos nas bagagens. “Só que as mais das vezes, tal intenção não é aceite pelo transportado: segundo consta, os grilos vêm muito caladinhos nos tubos de bambu e, como se possuíssem um sexto sentido começam a fazer barulho junto à alfândega… Daí que muitos sejam transportados de barco, para evitar aborrecimentos.” O valor de um grilo campeão, um Mui-fá-tim era de uma fortuna, pois rendia muito dinheiro ao seu proprietário “sendo o mais estimado e mais valioso, o bicho cujo chiar for mais ruidoso e estrídulo” e em Macau, os melhores exemplares “eram disputados principalmente entre os membros das riquíssimas famílias Siu, Lei e Kuan desta cidade.” Tratados como ídolos, os grilos “viviam em verdadeiros hotéis de luxo (luxuosos potes de barro vidrado), com todas as mordomias. Alimentavam-nos de duas espécies de peixe, gorgulhos especiais, castanha ou arroz cozido e mel para os avigorentar. Quando se encontram atacados de indigestão, uma dose regular de larvas vermelhas, os hong-tch’ong, põe-nos outra vez lestos. Se estão constipados, pequena porção de mosquitos, curam-nos logo; se andam febris, são restabelecidos com rebentos da ervilheira selvagem, e se a respiração se lhes torna difícil, administram-se-lhes borboletas de bambu. Além desses cuidados materiais, o macho necessita de ser visitado por uma companheira todas as noites, não lhe sendo, porém, permitido prolongar essa visita por mais de duas horas”, segundo LGG Os combates Sendo Macau no início do século XX célebre pela luta de grilos, em Agosto as inúmeras hospedarias e hotéis enchiam-se de vendedores desses insectos e de entusiastas que chegavam como apostadores. Em dias previamente fixados, aberto ao público realizavam-se os combates em locais como o Hotel Central e o Hotel Ung Chao (situado primeiro na Rua do Bocage e depois na Rua das Lorchas), bem como em algumas residências particulares de chineses como na Rua dos Cules, na Travessa dos Anjos e na Calçada do Gamboa. Uma multidão enchia o espaço para assistir aos combates, iniciados pela escolha dos grilos que se vão gladiar através do peso, da sua força e do tamanho. A partir daí fazem-se as apostas, que nunca eram com dinheiro a pronto, havendo apenas duas espécies de paradas, as de porco assado (kâm-tchü ou Siu Chi 金猪), que podiam ser de $300, $150 ou de $100, conforme prévio ajuste e a do péang (饼, bolo chinês), de menor valor. As apostas eram feitas por contratos sob palavra ou lavravam-se promissórias e “Feita a jogada, nenhuma das partes podia voltar com a palavra atrás e as paradas elevavam-se frequentemente a mais de dez porcos assados ou seja, a uns poucos de milhares de patacas.” Colocados os grilos num vaso circular a servir de arena, os donos com um pincel de pêlo de bigode de rato esfregavam as costas do seu insecto acicatando-os, levando ao início de um combate cujo desenlace era decidido, ou pelo desmembramento de um dos animais, ou pela recusa e fuga de um dos grilos. Segundo Luís Gonzaga Gomes, “O proprietário do local ou do exclusivista recebia 20% e os donos dos grilos vencedores numa cerimónia solene com um galhardete encarnado, tendo inscritos caracteres laudatórios ao grilo campeão. Forma-se, em seguida, um cortejo para fazer regressar o grilo à casa do proprietário, indo à frente um criado empunhando com donaire o galhardete e durante o trajecto lançam-se petardos, com o fim de atrair a multidão dos curiosos.” “Quando morriam, os grilos vitoriosos eram metidos em pequenos recipientes, do tamanho de uma caixa de fósforos, e enterrados com grande pompa”, segundo Leonel Barros que termina dizendo haver em Macau “cerca de vinte equipas que participam todos os anos nos combates de grilos, organizando mesmo competições internacionais com equipas de Hong Kong, onde se disputam e distribuem medalhas de ouro aos vencedores.” Estas lutas ocorreram entre a segunda metade do século XIX e a primeira do seguinte. Desde então decaíram e agora deixaram de se fazer.
Isabel Castro Entrevista MancheteLuís Sá Cunha, investigador: “[Luís Gonzaga Gomes] trouxe o mundo para Macau” Luís Gonzaga Gomes é uma figura ainda por reconhecer, que deveria servir de inspiração para a cidade de hoje. Mais tolerante, mais transversal, mais pensada. Esta semana, Luís Sá Cunha recuperou o cenáculo que, no início da década de 90, criou para que o último grande sinólogo de Macau não fosse esquecido [dropcap]D[/dropcap] e onde vem o interesse por Luís Gonzaga Gomes? É uma coisa estranha, mágica, uma empatia. Vem desde miúdo: chegava a um sítio e, como o Papa João Paulo II, ajoelhava-me, beijava o chão, aquela era a minha terra. O facto de ser a minha terra significava que eu lhe pertencia e tinha de conhecer tudo. Quando cheguei a Macau, tive uma empatia com Luís Gonzaga Gomes. Comecei a ler. Em 1991, resolvi fundar o Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, porque achava que era uma pessoa que encarnava no pensamento, nas obras, no comportamento, o mais essencial do espírito de Macau. É um lugar-comum, mas tem de se dizer: Macau foi um lugar de intercâmbios e sínteses culturais, de biótipos de todos os valores culturais. Luís Gonzaga Gomes é o último sinólogo de uma grande escola e de uma grande geração de sinólogos. Foi professor. Logo na escola, e depois onde esteve, começou a dizer que era preciso ensinar chinês nas escolas dos miúdos portugueses. Mas o que é que Luís Gonzaga Gomes teve de tão diferente de outros estudiosos e sinólogos daquela geração? A primeira diferença é que ele foi militante disto. Quando aqui cheguei, para compreender Macau e a cultura do Sul da China, e a China, lia os livros de Gonzaga Gomes – daí a minha empatia. Ele traduziu os clássicos, traduziu livros importantes para português. Também fez a tradução de livros portugueses para chinês. Sobretudo no ensino, procurou sempre impor nas escolas o ensino do chinês para os portugueses e vice-versa. Por onde ele passou, nos Correios e em outros lados, fez manuais para que se aprendesse cantonense. Foi uma vida inteira a escrever e a traduzir. O que é que tem de diferente? Tem de diferente que fez isso e os outros não fizeram. Tem 100 livros publicados, uma coisa enorme, esteve em todo o lado, fez parte de tudo. Também foi desportista, jogou ténis, tocava violino, na música era uma figura espectacular. Naquela altura, trouxe cá músicos famosos no mundo, pessoas que andavam no circuito internacional. Conhecia profundamente a música. Diz-se que tinha em casa um quarto inteiro forrado a corticite com uma discoteca enorme e o melhor que havia de aparelhagem. Era uma pessoa silenciosa, que andava como um gato, e que fugia dos sítios onde tinha de participar. Julgo que ia não só investigar, mas sobretudo ouvir muita música. Foi director da biblioteca, do arquivo histórico de Macau. Fez tudo. Abriu muito o conhecimento e a perspectiva sobre a China. Lia livros estrangeiros, tinha contacto com academias estrangeiras. Tirava cursos por correspondência, o que era muito normal naquela altura para gente que queria ter saber universitário, mas não tinha universidades. De certa maneira, procurou viver um próprio ideal universitário e de formação aqui. Ele respirou o mundo, ele trouxe o mundo para Macau. É uma figura que está longe de ter o reconhecimento público que devia. Acho inacreditável como é que Luís Gonzaga Gomes – considerado por toda a gente, e pelo Padre Manuel Teixeira o maior historiador de Macau de todos os tempos, com todo o trabalho que fez e publicou – não teve o devido reconhecimento e homenagem. Foi também uma das razões do Cenáculo, sobretudo por aquilo que ele representa e que eu desejava que se mantivesse nas gerações actuais, e nas gerações futuras. Há um pequeno reconhecimento na escola luso-chinesa. Há uma rua, mas isso, para mim, não é reconhecimento. É uma falha. Como é que é possível que se tenham editado obras completas de vários autores e não de Gonzaga Gomes – e não vou discutir o mérito deles. Como dizia o Padre Teixeira, “o pobre do Luís trabalhava até às duas da manhã”. Recolheu todos os artigos do Silva Mendes e publicou-os em quatro volumes. Mas ninguém fez o mesmo com a obra dele. Uma das coisas que o Cenáculo vai fazer, e que eu estou a fazer com o apoio nesta parte do Instituto Internacional de Macau (IIM), é juntar tudo o que escreveu nos jornais aqui. Depois tenho de ir a Portugal mas, agora, o mais importante está aqui, para haver um plano de edição das obras dele. Não digo a obra completa porque pode demorar muito tempo. Ele próprio organizou edições dos trabalhos dele. Depois, foram feitas edições sobre a obra, com selecções de artigos que são mais discutíveis, arbitrárias. Não são más, não é isso, mas não é aquilo a obra dele, há muita coisa para publicar, com rigor científico. Tem de se ir buscar prefácios, tem de se ver especialistas de antropologia, de etnografia de Macau, tem de ser feito um enquadramento histórico. Não é uma tarefa simples para um homem só. Já ando há dois anos a fazer isto, também a investigar, tenho toneladas de documentos para escrever a biografia dele para o Albergue da Santa Casa. Não tem uma biografia e acho que merece uma. Isto quanto a mim é a primeira base de um programa no plano cultural, que falta a Macau, e que é muito importante. E a importância de Luís Gonzaga Gomes para o que é hoje Macau? Ao ler esta semana uma newsletter no IIM encontrei uma nota para a revista em 2007 a dizer assim: Macau está-se a descaracterizar nas volumetrias da cidade. Na chegada massiva de turistas, na falta de conhecimento dos turistas que chegam aqui e disparam fotografias perante fachadas. Aquilo para eles é plástico, não existe, acham muita graça… Não há cá, no meu entendimento, um turismo cultural, mais profundo. Devia haver, porque Macau é uma coisa riquíssima nesse aspecto, e podiam-se chamar cá mais nacionalidades, se houvesse esses programas e se se fizessem esses itinerários. Dantes, quando vinha cá um Presidente da República, chamava-se o Padre Teixeira para ir explicar, porque ele sabia tudo. Hoje se vieram cá várias pessoas quem é que se vai chamar? O arquitecto Marreiros pode falar da cidade, também pode ser. Devia haver essa formação. Mas hoje não há visita guiada para que haja explicação. Mas há aí muitas coisas. Eu podia fazer um itinerário romântico de Macau, era interessante. É a mesma coisa que o Schliemann fez, quando andou a buscar a história da Guerra de Tróia, investigou o mito de Helena de Tróia. Mas encontrou pouco. Supõe tu que estava lá uma pedra e que havia uma prova qualquer que era ali o trono dela. Era o suficiente para atrair uma multidão de turistas, porque a lenda e a história à frente daquela pedra têm outra solicitação. E aqui há pequenas coisas, casas que davam para isso. Coisas muito interessantes, muito bonitas. Luís Sá Cunha Diz que Gonzaga Gomes incorpora uma essência de Macau que se está a perder. Há uma integração de 150 mil, 200 mil novos habitantes de Macau de repente, que não sabem nada disto. Estão aqui a viver, vão para os casinos e não sabem. Devia haver um museu. Os americanos têm de saber que Macau os ajudou, numa fase crucial para eles, para o desenvolvimento do comércio e de uma certa identidade cultural, porque as elites americanas vieram para aqui, para o comércio do Oriente. Foi com o auxílio de Macau que destruíram a Companhia Inglesa das Índias Orientais. Essas coisas não se sabem. Macau podia dizer assim ‘vocês agora estão com os casinos, vão outra vez ganhar dinheiro’, deviam fazer algum mecenato para obras culturais, revistas… Falta uma revista em Macau para certas áreas. E isso significa a descaracterização de Macau. As novas gerações não sabem nada, só de negócios. São cidadãos do mundo – não sei bem o que isso significa, para mim um cidadão do mundo é uma pessoa que pode andar em vários lugares, radica lá, mas ajoelha para beijar a terra. Tem de a conhecer, e tem de se dedicar também a ela quando está lá. Não podemos permitir essa descaracterização. Há gente nova que está aqui como se estivesse na Jugoslávia, no Sri Lanka ou noutro sítio qualquer. Refere-se a uma comunidade em particular? Estou a falar de todos. O novo Cenáculo vai ser diferente dos anteriores, porque o Cenáculo teve uma fundação em 1991 e foi interrompido em 1992, depois foi reanimado em 2007, e agora é reanimado outra vez. Vai ser diferente porque já foi convidada gente da nova geração de Macau, com uma grande participação de chineses bilingues. Isto é que é rigorosamente o espírito de Gonzaga Gomes. O bilinguismo, a multiculturalidade. Exacto. A edição, a tradução, a sinologia. Não só na língua, é também na gastronomia, na pintura e na música. Está aí o Simão Barreto que sabia todos os instrumentos, faz parte do conselho honorífico. Chamei mais de 30 pessoas [para o Cenáculo] e vou chamar mais.
admin CulturaViagem a partir de uma fotografia Uma imagem antiga é o pretexto para recordar figuras importantes da história de Macau e o seu mundo antigo. Figuras que fizeram a ponte entre os dois lados da terra. Que se interessaram pelo outro e cruzaram culturas distantes. Vamos à vela, pela memória da descendência da História [dropcap]P[/dropcap]arte-se de uma fotografia. Um tempo a sépia. O pai no liceu, aos 16 anos, os seus colegas, os professores, um passado vivido apenas por uma memória visual. Mas o sentido de pertença por uma imagem e por um impulso antigo, muito presentes, no dobrar da esquina de uma memória. “Eu cresci com esta fotografia”, afirma António Conceição Júnior, como se aquela recordação não fosse apenas papel, mas o desenrolar de uma vivência real e palpável, com todos os seus sentidos. “Macau tem uma continuidade, Macau é o fio”, refere Conceição Júnior, “as pessoas apanham o comboio na estação que for.” E continua, “se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem”. Estas são as palavras que reflectem sobre o acto contínuo do tempo, com as suas coincidências e factos, sem distinções entre presente e passado. “Macau tem uma continuidade, Macau é o fio, as pessoas apanham o comboio na estação que for, se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem.” No seu desenrolar, os nomes saltam com toda a sua importância: Pessanha, Mendes, Gomes, Jorge. Os apelidos da biografia de uma cidade a acontecer. As personagens de uma enorme importância para a vida cultural de Macau. Sem esquecer o de Conceição, pai e filho. Todos eles formam o núcleo da espiral de um ciclo de acontecimentos que ocorreram após o simbólico momento congelado no tempo, a fotografia tirada no pátio do Liceu Infante D. Henrique, por um autor desconhecido. Vivia-se a história de Macau e com ela rola esta crónica de coleccionadores. Momento intensamente vivido Camilo Pessanha com Silva Mendes, a seu lado, e António da Conceição e Gonzaga Gomes, da mesma altura, atrás de si O próprio instante da fotografia é incerto. Se a fotobiografia de Camilo Pessanha refere o momento situado em 1921, Conceição Júnior marca-o no ano lectivo de 1925-26, pela referência do seu pai, António fa Conceição, o primeiro à esquerda, nascido em 1910. O poeta de “Clepsidra” morreu no dia 1 de Março de 1926 e os protagonistas têm um ar demasiado veraneante para que a ocasião possa ter ocorrido nesse ano, o ano em que o BNU se mudava para as suas instalações actuais. Talvez seja lógico pensar que a imagem traz o final do ano lectivo anterior, com as taças e os prémios de toda uma época e o início das férias. Mas Macau é sempre um mundo tropical onde tudo é possível. Por detrás de Camilo está o jovem Luís Gonzaga Gomes. Sentado ao seu lado vemos Manuel da Silva Mendes e do outro lado da mesa dos troféus, no segundo lugar, está José Vicente Jorge, apoiado na cadeira. São eles as referências de uma visita guiada. O que têm em comum? Todos ousaram transpor a barreira da língua e ocupar um ponto na comunidade chinesa, na compreensão do idioma, estabelecendo desse modo ligações profundas com ela, na procura do conhecimento da cultura local. Facto notável numa sociedade colonial pouco receptiva à aceitação de outras formas de assumpção do quotidiano, com a sua zona cristã bem delimitada, que não se aventurava a conhecer o outro lado, na verdadeira acepção da palavra. Ainda hoje assim acontece. Vicente Jorge (ao centro) do outro lado da mesa A viagem começa aí, em Camilo Pessanha. Não o poeta excêntrico, que lhe trouxe a fama, mas o advogado, de raro brilhantismo, o juiz e sobretudo o professor de Filosofia, História, Geografia, Português, Literatura e Direito. Admirado pelos alunos, era figura central no mundo cultural, político e cívico da plataforma de Macau, à qual abordou em 1894. Terra de acolhimento onde desde logo tomou posições fundamentais no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses. Com a compreensão do idioma, abandonou desde logo a postura eurocêntrica da maioria dos seus contemporâneos, levando-o desde logo a traduzir, de forma livre, poemas da dinastia Ming (1368 a 1628). Talvez resida aí o rumor dessa poemária que viria a criar mais tarde. Na voz de Conceição Júnior, revivem-se as histórias de Pessanha. As suas casas, na Sidónio Pais, na Praia Grande, actual sede do Banco HSBC, na esquina que sobe para a Sé. Mas, principalmente, o gosto pela arte, que partilha com Silva Mendes e que fortalece toda uma relação de amizade entre os dois. O Palacete da Flora a ir pelos ares com uma colecção rara de que hoje não se conhece o rasto. O espólio de Silva Mendes, o homem que vindo do Porto, em 1900, ainda hoje tem uma presença preponderante na arte do território. Mendes foi o primeiro europeu a coleccionar peças de qualidade com as características da cerâmica de Shek Wan, da região de Cantão, reconhecendo-a como um dos mais refinados exemplos da arte chinesa, encomendando diversas peças durante toda a sua vida, que podem ser vistas nos dias de hoje no Museu de Arte de Macau. E uma ligação ao presente faz-se então por aí. Juiz multifacetado, professor e reitor do liceu, advogado, magistrado, presidente do Leal Senado, Manuel da Silva Mendes foi um dos intelectuais mais representativos da história de Macau, dedicando-se ainda ao estudo da filosofia taoista e flutuando nos enredos da arte chinesa, como erudito e coleccionador. A colecção valiosíssima de Silva Mendes viria a formar grande parte do importante espólio do Museu Luís de Camões, situado no que é agora a Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, que foi instalado, com grande competência e conhecimentos da arte chinesa, por um seu aluno, Luís Gonzaga Gomes, um dos símbolos de Macau, no lugar do diálogo, da harmonia e da tolerância. Nascido em Macau em 1907, sinólogo fervoroso, Gonzaga Gomes viria a traduzir para chinês “Os Lusíadas contado às crianças”, entre muitas outras obras escritas. Profundo auto-didacta, acabaria por ser professor de língua chinesa, defendendo sempre a importância do seu ensino junto da comunidade portuguesa, facto que raramente teve repercussão. Aí se aprofunda a ligação a António da Conceição, num tempo com todas as cores, no jornal Notícias de Macau, situado no local preciso da actual Tribuna de Macau, a que viria a juntar-se o nome de Deolinda da Conceição, mãe de Conceição Júnior, como a primeira jornalista do território. E as imagens continuam. O Hotel Riviera, os anos a correrem, o Museu Luís de Camões, as peças de Silva Mendes sem rasuras a caminharem para a actualidade e, finalmente, a memória da família de José Vicente Jorge, também um sinólogo e grande coleccionador de arte chinesa, que se viria a mostrar no prelo nas suas “Notas sobre a Arte Chinesa”. As memórias passam ainda pelo seu palacete, por cima do Lilau, também ele repleto de obras de arte, com o seu rico jardim, um espaço vivido por dentro pelo condutor desta viagem. Uma memória adormecida? “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes.” Pelas suas funções de intérpretes, professores e diplomatas, estas personagens da história foram a peça-chave da mediação cultural entre os dois mundos: o português e o chinês, contribuindo para um entendimento, muitas vezes difícil, de forma exemplar. E pergunta-se pelo valor que tens estas memórias? “Têm o valor que as pessoas quiserem encontrar nelas”, responde Conceição Júnior, o homem do leme. “Pessoalmente penso que é uma questão intimista, no sentido de que têm um valor muito subjectivo, na medida em que na vida actual a objectividade tem cifrões”. É nesse idioma do cifrão que se fala da Arte nos tempos que decorrem como se tudo começasse a ser criado agora, onde se ouve sempre o sussurro das indústrias do criar. Conceição Júnior responde: “Isso passa pela força do desconhecimento e pela ausência de memória, uma memória colectiva. Quando não se acede a essa memória, provavelmente animam-se pensando que são as pioneiras de uma coisa que já foi pensada por gerações”. Haverá ligação ao passado, actualmente, numa comunidade tão diversa? Que significado poderão ter estes nomes que passaram pela história de um território sob o cunho português? Haverá importância para outro lado do trampolim, por entre os resquícios da “zona cristã”, nesta Idade de Casino? António Conceição Júnior aponta: “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes”. Assegurando que “neste momento é de uma imensa importância encontrar pontes entre as comunidades, não só sobre o actual mas também sobre passado”. Porque só podemos saber para onde vamos se soubermos quem fomos, para finalmente sabermos realmente quem somos. Quem somos nós, afinal, as gentes de Macau?