Buzinadela

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo, um amigo juiz disse-me para não apitar, no trânsito a ninguém, nem a alguém que conduza, nem a qualquer transeunte. Acho que lhe devo ter dito que era mais pessoa para fazer sinais de luzes do que propriamente para apitar, que achava bárbaro. A praxis do meu amigo juiz era a base para o seu pedido. Vários casos de homicídio tinham-lhe chegado à barra. Os casos desgraçavam quase sempre duas pessoas: quem morre e quem mata. Nunca se sabe bem quem tem um destino pior, se quem morre ou quem mata. Ponto é que, embora consiga compreender como há muitos casos de homicídio provocados no trânsito, não tinha a percepção de que uma buzinadela pudesse provocar a ira do buzinado a ponto de desferir um tiro sobre o buzinado. Talvez manobras perigosas, ultrapassagens, transgressões várias levassem a uma resposta agressiva por parte de quem se julga exposto. Sobretudo, quando há crianças a serem transportadas, crianças que puderam ter sido postas em perigo. É natural que um pai ou uma mãe, instintivamente reagissem de um modo violento.

Mas buzinadelas? Não!

Ainda assim, dei por mim a pensar, o melhor é mesmo não buzinar em circunstância alguma. As pessoas andam com stress nas suas vidas. A condução de manhã à noite pode deixar alguém com a cabeça em água. E eu, que sou eu, nunca buzino.

Eis que se não quando dou por mim num dia particularmente infeliz, pensei. E buzinei muito. Há um carro que está parado à minha frente sem razão aparente. Buzino. Nada. Não reage. Apito de novo e nada. Depois, percebo que há alguém que procura arrumar o carro e que o carro está parado por esse motivo óbvio. Penso cá para mim que a coisa foi descabida. Mas também não penso que fosse necessário que o condutor gesticulasse ou me dissesse alguma coisa. Era um indivíduo urbano. Lá no fundo, o seu silêncio estaria a enviar-me para qualquer uma parte da sua preferência para que para lá me mandasse.

Uns Km à frente num daqueles cruzamentos de Lisboa em que abre o sinal para seguir em frente, mas não para a esquerda, não percebo também por que razão o cidadão continua sem iniciar a marcha e apito. Com suavidade, mas confiança, braço fora do vidro, aponta o indicador para o semáforo, para que eu perceba, finalmente, que o sinal está fechado para nós, que queremos cortar à esquerda.

Um urbano e outro delicado.

Mas a coisa não fica por aqui. Numa bifurcação em que há espaço para três fachas, pode cortar-se à esquerda ou à direita. Um tipo que podia perfeitamente aproveitar ainda o “verde” permitido pelo laranja, para-me exactamente no meio sem me deixar perceber se quer virar à direita ou à esquerda. Dou-lhe uma buzinadela tremenda. Olha para mim com cara de espanto. Faço os gestos que lhe pretendem explicar que nem andou para a direita nem para a esquerda. Olha para a mulher que lhe diz que tenho razão ou lá o que é que ela lhe disse- podia simplesmente ter sido: deixa-o que é um atrasado mental. E depois aguarda e faz-me aguardar pela abertura do sinal.

O pior foi quando uma criatura estava a tentar arrumar o carro, criando a forçosa fila de carros. Nem para cima nem para baixo. Um cidadão vai mesmo para o meio da estrada dar indicações. O veículo da frente não consegue ultrapassar, por que tem a passagem vedada pela pessoa. Eu apito. O condutor do veículo da frente acha que estou a apitar para ele. Gesticula. Aponta para o carro da frente. Eu grito a dizer-lhe que era para a criatura que estava no meio da estrada.

Entretanto, atrás de mim um veículo apita. Olho pelo retrovisor. Um indivíduo sai do carro. Dirige-se a mim.

Baixo o vidro.

Dou-lhe um tiro.

12 Out 2018

Capital Airlines quer voos directos entre Xi’an e Lisboa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] companhia aérea chinesa Capital Airlines pediu autorização às autoridades chinesas para iniciar um voo directo entre Xi’an, noroeste da China, e Lisboa, depois de ter suspendido, este mês, a ligação a partir de Pequim.

Segundo um comunicado da Administração da Aviação Civil da China, a que a agência Lusa teve acesso, a empresa quer arrancar com o novo voo em Dezembro deste ano.

A informação detalha que o voo terá duas frequências por semana e ficará a cargo dos aviões Airbus A330, com capacidade máxima para 440 passageiros.

Com cerca de 12 milhões de habitantes, Xi’an é a capital da província de Shaanxi, a cerca de mil quilómetros de Pequim.

Trata-se de uma das mais importantes cidades da China Antiga, servindo de capital ao longo de dez dinastias, incluindo os Qin (255 a 206 a.C.), Han (206 a.C. a 220 d.C.) e Tang (618 d.C. a 907 d.C.), e acolhe o ‘Exército de Terracota’, uma das principais atracções turísticas do país.

O pedido da Capital Airlines surge no mesmo mês em que suspendeu o voo direto, entre Hangzhou, na costa leste da China, e Lisboa, com paragem em Pequim, lançado a 26 de julho de 2017, com três frequências por semana.

Contactada pela Lusa na altura em que anunciou a suspensão do voo, a empresa recusou detalhar os motivos, referindo apenas “razões operacionais”.

No primeiro ano que voou para Portugal, a Capital Airlines transportou mais de 80 mil passageiros, segundo dados divulgados por altura do aniversário. A taxa média de ocupação do voo fixou-se nos 80%, nos meses mais fracos, enquanto na época alta superou os 95%.

Em dívida

A Capital Airlines é uma das subsidiárias do grupo chinês HNA, que enfrenta uma grave crise de liquidez, depois de ter fechado o ano passado com uma dívida de 598 mil milhões de yuan, de acordo com os dados divulgados na apresentação dos resultados anuais da empresa.

A escalada nos custos de financiamento desencadeou uma onda de venda de activos do grupo, que tem sido um dos principais visados das advertências das autoridades chinesas sobre “investimentos irracionais” no estrangeiro, que podem “acarretar riscos” para o sistema financeiro chinês.

No lançamento da ligação aérea, o primeiro-ministro português, António Costa, disse esperar que os voos directos Lisboa-Pequim fossem um reforço de Portugal como “grande ‘hub’ intercontinental” (centro de operações).

A afirmação de António Costa foi feita a 11 de julho de 2017 durante a cerimónia de inauguração dos voos directos Lisboa-Pequim, com a presença do presidente do parlamento da China, Zhang Dejiang, em visita a Portugal. Para António Costa, a abertura da rota Lisboa-Pequim tem um “enorme simbolismo” e “é a nova rota da seda do século XXI”.

12 Out 2018

Lá fora, o mundo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta cadeira em que agora escrevo vejo o meu mundo. Sob uma luz macia, quase sépia, estão mesas e estantes carregadas de livros antigos, jornais, gravuras, iluminuras e outras preciosidades. Vejo daqui, do fundo de uma longa sala com paredes de pedra bruta que ali existem há cerca de três séculos.

Tomo o lugar de gente ilustre que me antecedeu: Alexandre O’Neill, Ruy Cinatti, David Mourão-Ferreira. Escritores, poetas, jornalistas, amantes dos livros que aqui se sentavam a conversar com o fundador da livraria, Tarcísio Trindade, em tertúlias informais. O número 44 da Rua do Alecrim – a Livraria Campos Trindade – serve-me agora também de santuário, ajudado pela amizade que me liga ao actual proprietário, Bernardo, o filho do fundador. Aqui sacudo os dias, descanso da inclemência do quotidiano e invento o meu tempo e lugar.

Porque lá fora está a Babilónia. A Nova Lisboa, serva da mudança e do “progresso” (tão maravilhoso se ao menos o pudéssemos parar, dizia Musil), apressa-se na rua, num cafarnaum de línguas e de sons. É difícil, para quem como eu preza mais a herança do que a mudança, acompanhar a vertigem cosmopolita do que hoje é Lisboa, uma cidade que parece um gigantesco apeadeiro e que está a levar a sua vocação portuária às mais inanes consequências. Compreendam: não reclamo um lugar mitológico algures no passado, onde tudo seria perfeito. Desdenho o “antes é que era bom” e proclamo o “agora é que estou vivo”. Sei que a mudança é inevitável. Mas há uma terrível sensação de perda que atravessa quem conhece e vive esta cidade. Perda do que é familiar (não confundir com “tradicional”, que pode ter várias interpretações), substituído pelo anódino. A própria livraria em que me encontro é a única que sobrevive nesta rua – onde já houve várias –  graças ao saber, dedicação e paciente negociação do seu proprietário.

Quem ama Lisboa já deveria estar habituado: ela sempre foi senhora e puta, oferecendo a quem a deseja o seu pior e o seu melhor com a mesma generosidade ou falta de vergonha. Foi várias vezes violada e sempre se recompôs. Mas receio que tudo esteja a passar-se depressa demais e a minha cidade ostente agora a dignidade trágica de uma grande dame dos palcos, mal maquilhada e titubeante na sua derradeira representação.

Lá fora o mundo, outro mundo. Aqui, no abrigo que oferece o silêncio e esta luz sépia que entra pela montra não consigo escapar à lenta invasão de uma fortíssima melancolia. E é resignado que me ergo desta cadeira que agora também é minha e avanço devagar para a rua, para um lugar em que mal me reconheço.

10 Out 2018

Prolegómenos para um manual de sobrevivência em cidades sobrepovoadas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]nosso primeiro-ministro disse a um canal de televisão qualquer, há coisa de dias, que Portugal pode e deve receber mais turistas. Para quem esperava um módico de bom senso e de pudor por parte dos nossos governantes, estamos razoavelmente conversados. Para António Costa e Fernando Medina, as minudências de ter uma cidade selvaticamente ocupada por hordas de mochileiros expondo a periclitância das infraestruturas de Lisboa é largamente compensada pelos dividendos obtidos na forma de impostos e pela diminuição da percentagem de desemprego. É pensar em grande, dir-se-á. Não podemos deter-nos nas tragédias pessoais das rendas meteóricas, nos Robles da situação, nas lixeiras a céu aberto em que se tornaram a maior parte das ruas, no emprego precário e mal pago resultante do turismo com que se maquilham as estatísticas que se atiram para cima das mesas de reunião em Bruxelas com indisfarçável orgulho. Afinal, António Costa e Fernando Medina não vivem na cidade dos turistas, não frequentam os mesmos locais, nem sequer têm que conduzir nela; são as criaturas das garagens: saem da garagem de casa e entram na garagem dos locais para onde se deslocam. Da cidade conhecem o que se vê pelo vidro do carro e uma ou outra rua previamente higienizada para acolher uma arruada ou inauguração. “As pessoas não são números” é um belíssimo mantra pré-eleitoral. Depois da nalga bem assente na cadeira do poder, as pessoas são o que eu quiser.

As coisas não vão mudar por decreto municipal ou governamental. Continuar-se-á a ordenhar a vaca até das tetas só lhe sair areia. E, ainda assim, haverá quem diga tratar-se de leite em pó. A ganância desgovernada só conhece saciedade de curto prazo.

Felizmente, podemos fazer algo em relação a isto. Vivemos num tempo em que muitas das escolhas dos consumidores – e isso inclui o homo turisticus – são decididas por via de ratings e de comentários nas redes sociais e em plataformas disponíveis em qualquer smartphone. E parece ser mais fácil modificar as avaliações resultantes de uma visita a Lisboa ou ao Porto do que o comportamento de quem elegemos.

Comecemos pelo básico. Graças a não sabemos que providência divina, Portugal não tem sido assolado por qualquer tipo de catástrofe. Não temos tido a atenção do Daesh, a violência urbana é residual, as doenças são as que se conhecem um pouco por todo o lado e que não demovem ninguém, o custo de vida é ainda bastante razoável e até o terremoto tem-nos feito a fineza de não despertar abruptamente. Mas, naquilo que nos compete, podemos fingir. Pode não ser o suficiente para impedir a nossa trasladação para os subúrbios dos subúrbios mas, pelo menos, não teremos saído sem dar alguma luta.

Comecemos por ir para a rua de máscara, como em boa parte das cidades da ásia onde, graças à poluição, só se pode andar assim. Se nos perguntarem se é por causa da poluição, responderemos negativamente. Se insistirem em saber por que é, diremos apenas “que achamos que já não é transmissível e que já está tudo bem”. Deixemo-los laborar nos seus próprios receios. Como aprendemos com Hitchcock, uma porta fechada é mais assustadora do que o reflexo de um monstro.

Abandonemos, pelo menos por algum tempo, a nossa cordialidade linguística. Nous sommes super sympa, as everybody knows, mas não carece ser sempre assim. Finjamo-nos iletrados, tontos, distraídos. Reduzamos a nossa competência nas línguas estrangeiras a uns míseros “hello” e “thank you”.

Quando passarem os eléctricos sobrelotados e ávidos de captar para o Instagram os nativos na sua natividade, saquemos dos telefones e captemo-los com o mesmo embasbacamento com que eles nos fotografam. Invertendo a lógica do zoológico, pode ser que eles se manquem.

Não lhes sirvamos os melhores pastéis de nata, as sardinhas mais frescas, a fatia maior do abade de priscos. Abracemos o lema “em cada ementa pelo menos três tipos de hambúrguer excessivamente passado”. As ameijoas da ria são nossas. NOSSAS.

Aqueles que sobreviverem ao atrito civilizacional, adoptemo-los. Serão certamente os melhores. E, como em qualquer relação, temos de ser conquistados.

8 Out 2018

Exposição | “Fotossíntese”, de Tang Kuok Hou, chega a Lisboa

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]artista de Macau Tang Kuok Hou tem patente a sua exposição “Fotossíntese” na galeria de arte “Arte Periférica”, em Lisboa, onde estará disponível ao público até ao próximo dia 2 de Outubro. Esta exposição já foi mostrada em Macau em locais tão distintos como o Café Terra e o espaço “Anim’Arte Nam Van”, tendo o fotógrafo explicado ao HM as ideias por detrás da criação.

“Esta exposição é sobre luzes artificiais, é um trabalho que comecei a expor há três anos. Desta vez combinei luzes artificiais com o ambiente em redor e também pessoas”, contou.
Assumindo-se como um amante do artificialismo, Tang Kuok Hou referiu ainda que “as luzes revelam algo interessante, como um espectáculo que se mostra às pessoas. Grande parte das minhas fotografias não contêm pessoas, mas acabamos por descobri-las na cidade. Essa é a grande ideia por detrás do meu projecto”.

O artista ganhou o Prémio Fundação Oriente / Artes Plásticas 2017 atribuído pela Fundação Oriente. “A galeria Arte Periférica, em colaboração com a Fundação Oriente Macau proporciona ao artista a realização de uma exposição individual na galeria contribuindo para a promoção da obras destes artistas em Portugal”, aponta um comunicado.

13 Set 2018

Fechem tudo, caramba

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]echaram o Adamastor. A Câmara Municipal de Lisboa, a pretexto da “Requalificação do Jardim do Miradouro de Santa Catarina”, elenca objectivos como “melhor segurança” e “melhor ambiente urbano” para gradear o icónico miradouro de Lisboa. Por ora, a vedação é provisória, mas a Câmara assegura que pretende torná-la definitiva, para assim poder controlar o acesso ao espaço.

O Adamastor tem muitos problemas que não vêm de hoje. Falta de higiene – que as casas de banho públicas deficientemente cuidadas não resolvem –, excesso de vasilhame resultante das noites de festa no local, algum barulho, alguma confusão. Mas tem igualmente condições únicas e incríveis: é um espaço verdadeiramente democrático, onde convivem criaturas de esferas sociais e culturais inteiramente diversas, betos e amigos do djembê, turistas e moradores, miúdos de escola e velhos sequiosos de sol.

A pressa em resolver o “problema” do Adamastor não será alheia ao facto de ter sido implementado um hotel de cinco estrelas a poucos metros do Miradouro. No Booking.com, o Hotel é descrito do seguinte modo “Esta luxuosa propriedade beneficia de uma localização privilegiada, no centro histórico de Lisboa e oferece vista para o Rio Tejo. O Verride Palácio Santa Catarina disponibiliza quartos e suites elegantes, que combinam detalhes vintage com confortos modernos. A área do último piso do edifício proporciona vistas deslumbrantes de 360º para a cidade.”

Paula Marques, directora do Hotel, diz ao Público: “O problema são os traficantes aqui em volta. Ao longo da rua, com os clientes a virem para o hotel, são abordados esquina sim, esquina sim por traficantes. Não acho que a segurança seja uma questão, o problema é mesmo a abordagem insistente. Não é uma vez, são várias vezes.” Várias vezes, veja-se o topete destes traficantes.

O que está em causa no Adamastor é sintomático de um problema mais vasto. Lisboa é uma cidade excepcional por diversos motivos, mas um deles é precisamente a convivência transversal e relativamente pacífica de pessoas de diversas proveniências. Não é uma cidade guetizada, higienizada, falsa. No mesmo edifício podemos ter uma tasca frequentada pelos bêbedos profissionais do Caís do Sodré e uma gelataria gourmet. E uma coisa não choca com a outra porque as coisas foram acontecendo assim, organicamente. Como a vida. É esta ocorrência múltipla e desordenada de modos de vida diferentes que lhe dá um carisma único e irrepetível. Diria mesmo que é isto que as pessoas vêm ver. E é isto que o capitalismo, na sua vertente mais estúpida e incisiva, quer destruir.

Para quem não conhece Lisboa, para os departamentos de marketing das agências de viagem um pouco por todo o mundo, esta liberdade é inadmissível. Há que domar a vida pulsante da cidade e torná-la mais civilizada – a saber, plástica, artificial, redundante. Há que planear e executar a Lisboa que se pretende para o turista de classe média francês, para o abonado russo, para o chinês investidor. Porque Lisboa não pode ser só Lisboa, tem que ser um produto. Até isso acontecer, esta gente não vai descansar.

Já ouvimos ou presenciámos histórias semelhantes. Às vezes é uma cidade que vai acolher os jogos olímpicos e de onde os cães vadios desaparecem misteriosamente antes da cerimónia de abertura. Às vezes são os pobres que deixam de ser vistos. A cultura do empreendedorismo não admite sequer a existência visual daquilo que esta considera ser o fracasso. Tudo o que é vivo e livre tem que ser reconduzido à lógica do parque de diversões temático. Até que, de cidades inteiras, restem unicamente os edifícios – renovados e silenciosos – e uma mão-cheia de figurantes pagos para passar por locais.

21 Ago 2018

Apresentado estudo pioneiro sobre o valor económico e social do património arquitectónico português

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Nova School of Business & Economics e a Spira – agência de revitalização patrimonial, com o mecenato exclusivo da Fundação Millennium BCP, promovem o estudo pioneiro “Património Cultural em Portugal: Avaliação do Valor Económico e Social”. O estudo conta ainda com o Observatório do Património como parceiro, com o apoio da Portugal Heritage e com a patrimonio.pt como media partner. Em torno do projecto estão José Tavares, da Nova School of Business & Economics, Catarina Valença Gonçalves, da Spira, e José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, apoiados pela Fundação Millennium BCP. A Nova SBE é uma das faculdades da Universidade Nova de Lisboa e a mais prestigiada escola de negócios em Portugal e uma das mais importantes na Europa, e a Spira é uma empresa especializada na concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial.

O estudo, que decorre durante o ano de 2018, foi apresentado no passado dia 18 de Abril, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, na Fundação Millennium, numa sessão que visou também recolher opiniões, sugestões, críticas e advertências que a comunidade possa trazer a este instrumento de trabalho, e incluir essas recomendações. Está ainda prevista uma apresentação preliminar para a edição deste ano da AR&PA – Bienal Ibérica do Património Cultural, a decorrer em Valladolid, em Novembro; e uma apresentação final no mês de Dezembro, na sede da Fundação Millennium BCP.

Os autores do estudo consideram que, perante a tendência evidente de estruturação do sector, abordagem estratégica e ganho de escala e amplitude de representação e actuação de agentes, importa, por um lado, analisar o momento em que o país se encontra do ponto de vista de organização do sistema da gestão patrimonial, confrontando essa análise com a leitura de casos internacionais de destaque; assim como importa aferir economicamente o valor do recurso endógeno transversal ao território do país que é o património cultural. O cruzamento destes dados permitirá identificar modelos de gestão, linhas de actuação, prioridades, critérios, isto é, uma estratégia de longo prazo para o melhor retorno, sustentabilidade e partilha do património cultural de Portugal. O estudo, inédito em muitos aspectos, inventaria e sistematiza exaustivamente, pela primeira vez, todo o património edificado em território nacional, composto por cerca de 30.000 monumentos classificados, um trabalho que tem sido feito, mas que nunca foi devidamente organizado pelas várias instituições, acabando resultar num inventário do património não uniformizado.

Antecipa-se a relevância do património como recurso endógeno que pode contribuir de forma decisiva para um desenvolvimento harmonioso do país pela sua equitativa dispersão geográfica e diversidade tipológica.

Catarina Valença Gonçalves, directora-geral da Spira e historiadora de arte, que coordena o projecto, considera que o património cultural pode ser gerador de formação qualificada, de uma maior estabilização da população no interior do país, de criação de emprego e de criação de inovação. Considera que esta dinamização económica das regiões irá trazer, entre outros factores, a fixação das pessoas, a criação de riqueza e tornar os territórios apelativos para visitar e para a fixação de mais pessoas.

Tendo em conta a população residente, as regiões do Alentejo, da Beira Interior, uma parte de Trás-os-Montes e do Alto Minho têm a maior concentração de património por habitante do país, até mais elevada que Lisboa e Porto. Porém, em termos de visitantes, a maior concentração encontra-se em Lisboa e Porto, cerca de 40%, sendo muito evidente, através duma análise dos números, que há uma disparidade (no território nacional), e um desperdício da potencialidade da atractividade, nomeadamente turística, do conjunto de património monumental que todos herdámos, e que está nas regiões. A historiadora entende, assim, que o país não precisa de construir nada, nem o `shopping`, nem o castelo nem as igrejas porque já lá estão, tendo essa enorme vantagem, e há é que activar tudo isto, económica e socialmente.

Além disso, a historiadora considera que “a distribuição no país do património cultural edificado é muito equilibrada, quer do ponto de vista de quantidade, quer do de qualidade e de atractividade, mas não há nesses territórios a adaptação a este recurso. É necessário criar nas diferentes regiões as condições necessárias, como formar um olhar e uma perspectiva económica sobre esse património. A questão que coloca é, com o fluxo de turismo que já se aproxima do excesso em Lisboa e no Porto, porque não aproveitar este recurso em todo o país? A ideia parece óbvia mas não se põe mãos à obra sem primeiro estudar o terreno.”

Neste sentido, Catarina Valença Gonçalves sublinhou que “qualquer valorização do património cultural do ponto de vista turístico – tendo em conta o que são as tendências do turismo, em que as pessoas procuram autenticidade e contacto com a população local -, obriga a que o próprio território seja o cicerone desses turistas, enfatizando que tem de haver pessoas da região a receber os turistas. Defendeu a necessidade de formação na área do turismo cultural dando, desta forma, uma carreira profissional aos jovens, que podem, assim, criar empresas locais e criar valor e, deste modo, contribuir para uma melhor e mais harmoniosa distribuição da população pelo país”. A responsável afastou qualquer “perspectiva capitalista ou meramente económica” deste projecto, mas antes “adicionar um olhar económico-social ao olhar cultural”.

Referiu ainda que “o património cultural raramente é visto como um activo estratégico do ponto de vista do desenvolvimento económico e social. Nunca foi feito um levantamento do que existe e muito menos foi feita uma análise do que isso pode significar”. E é por aí que o estudo vai começar a ser feito. Um levantamento exaustivo das igrejas, capelas, túmulos, sítios arqueológicos, castelos, fortalezas, e e outro património, que existem de norte a sul do país e que têm o seu valor simbólico por analisar e o seu verdadeiro potencial económico por aferir. Uma segunda etapa será a distribuição geográfica desses monumentos, e tentar perceber qual a incidência de património classificado ao longo do território.

O propósito deste estudo é olhar também para os 308 concelhos nacionais e perceber quantos mosteiros ou igrejas existem per capita, ou seja, que “activos patrimoniais há por habitante”. Catarina Valença Gonçalves diz que “este é o melhor negócio que podemos ter visto que a infra-estrutura já lá está, sendo só preciso animá-la, aplicar o nosso conhecimento para saber como animá-la e usá-la. Até as auto-estradas já existem!”

Será ainda levado a cabo um inquérito com vista a identificar uma base de cerca de 350 elementos do parque patrimonial, que, pelo número de visitantes, empregos associados e receitas directas, permita qualificar um número de visitantes para cada concelho do país de forma mais correcta. Além disso, depois de feito esse inquérito, será realizada a caracterização do sistema de gestão em uso pela Direcção-geral do Património Cultural, a entidade estatal que gere o património, e para as políticas culturais nesta área dos últimos 44 anos.

Catarina Valença Gonçalves referiu que “a ideia é fazer recomendações estratégicas para o sector com base numa análise crítica dos números, comparar o nosso sistema de gestão com outros modelos europeus, perceber o que funciona ou não e o que é possível fazer em Portugal. Esta abordagem nacional, que pela primeira vez inclui as ilhas, é uma espécie de ‘começar de novo’, apoiado na premissa de que todos os territórios são iguais e de que é preciso ‘olhar para o que temos’ para a partir daí recriar dinâmicas locais.”

Portugal tem uma das mais baixas taxas europeias de visitantes nacionais a monumentos e museus, estimando-se que cada estrangeiro que veio a Portugal em 2017 (um número que se aproxima dos 12,6 milhões) tenha visitado, em média, um monumento durante a sua estada, sendo o património cultural, amiúde, a principal motivação da sua vinda a Portugal. Porém, existem 4300 imóveis classificados – 15 detêm a classificação da UNESCO de Património da Humanidade – e 30 mil bens patrimoniais imóveis inventariados, lista a que acresce o património intangível já classificado também pela UNESCO: chocalhos e olaria preta de Bisalhães, cante alentejano, fado e bonecos de Estremoz, e ainda, em conjunto com outros países, a dieta mediterrânica e a falcoaria.

José Tavares, da Nova SBE, explicou que, apesar disso, quando falamos em monumentos mais visitados, falamos sempre dos mesmos dez, aqueles cujo investimento turístico é mais forte, onde os meios de transporte mais chegam, onde existem mais agentes económicos, mais hotelaria e mais operadoras, e dá um exemplo: há três milhões de visitantes nos Parques de Sintra, um fluxo excessivamente orientado para os mesmos locais. Logo, a assimetria económica não corresponde à assimetria patrimonial. Outro exemplo é a Rota do Românico, em Lousada, que compreende 12 municípios e mais de 30 monumentos. A articulação entre eles teve como resultado o sucesso do número de visitantes, êxito na educação patrimonial, recuperação e criação de emprego.

Depois de fechada a análise a nível nacional, proceder-se-á ao cruzamento de dados com os existentes nas entidades públicas como a DGPC, o INE, e o monumentos.pt e ver se há incongruências. Tudo isto envolve dados geográficos, demográficos, descrição, localização e distâncias entre monumentos. No entanto, a base para inferir o valor económico e social do património cultural é deduzida a partir de três grandes factores associados: o emprego gerado, a receita (de bilheteira) e o número de visitantes de cada monumento. José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, referiu a este propósito que “cruzando todos os dados se podem determinar quais são os factores mais importantes para cada município.”

O passo seguinte é descrever o modelo de gestão que existe e propor o modelo que maior rentabilidade dá. A isto chamam os criadores do estudo “potenciar o impacto económico e social do património cultural”. Uma metodologia que vai pela primeira vez ser aplicada. José Tavares explicou que “os dados são para ser interpretados através do princípio da história e técnicas estatísticas para inferir qual é o potencial valor, gerar uma estimativa município a município, para que os atores políticos e privados possam dizer o que vão fazer a mais.”

O retrato à escala nacional tem objectivos tácticos e estratégicos: avaliar o potencial de distribuição do tráfego turístico, nomeadamente para o interior do país — potencial esse que ainda não foi nem avaliado nem devidamente explorado —, contribuindo, desta forma, para que o património cultural seja reconhecido como parte integrante da agenda estratégica económica e social do país.

Note-se que são poucos ou nulos os intervenientes privados na gestão do património cultural português, representando este a maior fatia do Orçamento de Estado para a Cultura e executando-se principalmente em obra física nos monumentos, esquecendo-se quase sempre a fruição do mesmo.

Nas suas recomendações estratégicas, de resto, os elementos que realizam o estudo propõem avaliar a criação de modelos de parcerias interinstituições a nível nacional e regional, a criação também de modelos de parcerias público-privadas e a concretização de uma nova mecânica de financiamento dos recursos considerados activos estratégicos, que conte já com o apoio do Turismo 2027 e do Portugal 2020 e futuro quadro comunitário.

O estudo não deixa de lado a vontade de mostrar a capacidade dos vários territórios de fixar gente, apresentando-se como um caminho para a sustentabilidade e regeneração do interior e “para uma nova abordagem às políticas dessa região”.

O estudo estará disponível online em versão portuguesa e inglesa (www.valordopatrimonio.pt), bem como será editada uma versão portuguesa do estudo completo. O acompanhamento do estudo e de alguns dos dados alcançados à medida do seu desenvolvimento serão divulgados de forma periódica na plataforma patrimonio.pt.

27 Jun 2018

«As recordações ajudam a esquecer»

Cervantes, Lisboa, 14 Maio

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeço com demasiada facilidade. Se a poeira pouco importa, algumas migalhas dos dias mereciam repousar na conserva da memória. Para digerir mais tarde. Foi um dia forrado a urgências e agitação, que não lembro, embora me tenham até impedido este exercício diarístico.

Podia ter nevado que o esqueceria de igual modo. No fim da tarde dou comigo sentado em mesa posta perante plateia, como em segunda tremenda adolescência, tremendo. Que desejei eu para merecer estar ali na companhia de Luis García Montero, do seu tradutor, Nuno Júdice, do pintor Juan Vida, e de Chus Visor, desmesurado editor? As capas negras da colecção Visor (50 anos, mais de 2000 títulos de poesia) escondiam a potência do desejo, claro.

Júdice despertou apetites adolescentes com prosa inesperada, sim. García Montero iluminou longas tardes na Andaluzia onde aprendi sinuosidades do coração, pois. E creio que chegámos a ele por Lorca e Alberti, seus companheiros, talvez meus, se me atrevo. Mas o encontro devo-o por completo ao versado em desejo, Javier [Rioyo], que orienta a conversa exemplarmente, despida de formalidades, aberta às ondas dos que se fazem presentes e podem afirmar, contar, lembrar. Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.

Em voo, que parte de 1982 e percorre nove livros até 2017, com «À Porta Fechada», a antologia apresenta bem este labor que faz do quotidiano superfície, uma pele, na aparência transparente, que esconde/revela as convulsões que são a sua matéria, a sua carne. «Em lembrança/ do seu assombroso odor a sobrevivência,/ quero atravessar a casa/ e despir-me às escuras,/ sem incomodar,/ sem acender sequer as luzes do espelho,/ para não me perguntar/ de que serve um oásis,/ se o coração conhece os desertos/ e sabe que o esperam/ como pegadas antigas que já vão à frente.» (de «Nocturno»).

As escolhas de Nuno desenham um percurso de maturidade que nos põe a andar, com o autor, no fio da navalha e de costas para o futuro, como mandam os clássicos. Uma antologia assim, que propõe distintos caminhos torna-se lanterna. Os versos com os quais o poeta foi experimentando o tempo, o natural, a cidade, a memória e a palavra ajudaram-me de imediato a andar sobre estes dias movediços. Não que seja a função, mas sucedeu. Apanhemos os ossos do cadáver do tempo nas ondas desfeitas. Senti-me um pouco menos estrangeiro da minha intimidade.

Terei aprendido a lição? «Estrangeiro na própria intimidade,/ não conhecem o meu nome/ nem as margens da plenitude,/ nem o cadáver do tempo escondido nas ondas./ Mas entendem a forma dos meus passos/ na areia que cai,/ se confundo o relógio com o deserto/ ou vigio a casa tal como ao horizonte,/ e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,/ e no valor encontro cobardia,/ nos olhos a noite com a sua luz/ e o coração da criança/ numa alma de antigas corrupções.» Também acontece mundo e até política, essa arte de saber construir casas que nos abriguem, dúvidas onde caibam o mundo, e desejos que poderão sempre afundar-se.

De «Meia estação»: «Contra o meu corpo,/ o seu passado e as suas razões,/ a história devolve-me/ o repto de viver/ como numa segunda adolescência.// Volto a temer aquilo que desejo,/ outro luxo encantado nesta parte/ de minhas horas tardias. Não preciso do mundo/ que discute e ama e transborda/ com as suas regras alheias/ no andar de baixo.// Quero a minha residência, embora a casa/ seja uma árvore doente. Aqui estão a memória/ de ter sido, os anos de anseios,/ a chuva do caminho em cada livro/ que ainda guardo e a janela/ para aquela cidade que só existe/ dobrada com a minha roupa.» Falo mais do que devia, como no verso que dá título à crónica, roubado ao poema que rompe todas as regras e sobre quase até ao corte, rompendo as regras, para sussurrar «nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.»

Na sessão, García Montero teve gesto de comovente generosidade, ao ler belíssimo ensaio sobre as afinidades que encontrava na poesia do seu tradutor. Outra lição que te fico a dever, Javier. Somos vizinhos da cidade que existe nas dobras.

Mymosa, Lisboa, 15 Maio

Recebo a mesa (quase) completa da noite anterior em visita de cortesia e amizade. Encontro-os cansados de tanta cultura e património e passeio, levo-os à sala de estar para assistir em directo à barbárie: em Alcochete anunciavam o desmando com fragmentos de imagens. Tentávamos a todo o custo trazer a conversa para poetas, leituras, antologias possíveis e impossíveis, comentários soltos, mas era impossível. Foi chegando gente, como se o plenário voltasse a ter assim, de Moçambique, de Macau, aqui do lado, mas era impossível. Estávamos em plena peça de absurdo, Ubu era imperador e desinteressante, usava barba e gritava às riscas.

Museu Bordalo Pinheiro, Mercado Santa Clara, Lisboa, 18 Maio

Corrida entre lado e outro para apresentações falhadas. O Museu sentiu-se incomodado com a opinião da apaixonada, Isabel [Castanheira], no seu «Una Piccola Storia d’Amore». Sou capaz de perceber, quando se troca carne por papéis, tendemos a perder noção do sangue. Mas não me caiu bem a deselegância de convidar e depois pedir desculpa por isso, em público. Aprendi a estimar mais quem coleciona sabendo do que quem pensa sem arriscar.

Logo a seguir, o que parecia mal-entendido modernaço – convocar lançamento para a hora de jantar – reveliu-se arrogância de senhores para quem a criatividade se faz meio de fortuna. Era mesmo ali, no meio do nada, fosse hora ou sítio, que «O Sono Desliza Perfumado», em torno da publicidade ilustrada, do Jorge [Silva] devia ser apresentado. Como se não bastasse, ainda tivemos que ouvir o histérico dono do microfone a tentar correr com quem estava em lugar nenhum. Saudade dos pianistas de bordel.

  1. José, Lisboa, 21 Maio

Deveria escrever hospytal de tantas vezes te visito? De qualquer modo, preparo-me com Garcia Montero, e atente-se no fulgurante título, «A Ausência é uma Forma do Inverno»: «assim dói uma noite,/ com esse mesmo inverno de quando tu me faltas,/ com essa mesma neve que me deixou em branco,/ pois de tudo me esqueço/ se tenho de aprender a recordar-te.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Maio

Na minha parede pobre brilham traços de negro, morse de expansiva alegria, uma mulher de braços levantados. Júlio Pomar (1926-2018) entrou em mim pelos livros, como tantas outros, oriundos do Círculo de Leitores, iluminando textos de José Cardoso Pires, que, não fora a minha inépcia, poderia ter sido abysmado. Temos para um século de carnes e superfícies por desvendar. Não consegui ir, também por insanável melancolia, ao novo mausoléu oficial dos sem-basílica, o Teatro Thalia. (Quem o baptizou de mausoléu foi o saudoso Diogo Lopes, que, após assinar a recuperação, logo o inaugurou nessa triste função de forma do inverno, tendo sido depois seguido pelo vanguardista, Manel Reis.)

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Desmonto em ápice inglório os originais irregulares (exemplo algures na página) da Cláudia R. Sampaio, a que demos, trocando mensagens e por causa de maiúsculas espontâneas, o título de «NÃO ESTAVA A GRITAR». Para mim, a pintura da Cláudia levanta sempre a voz, mas a das plantas e das flores, um jardim bonsai de ervas daninhas e iluminuras e anjos. E seres, dos que se soltam das palavras. E de nós. A jardineira faz selfies, ora ruivas, ora com palavras, mas que precisa sempre do enquadramento vegetal. Diz-nos que muito crescer tendo nós como epicentro da horta: asas, olhos, pétalas, fuste, cabelos, seios, coração, mesmo que seja «coração prefácio à espera de ser escrito».

6 Jun 2018

Conselheiros de Macau do CCP reúnem-se em Maio

[dropcap style≠‘circle’]É[/dropcap] já nos próximos dias 14, 15 e 16 de Maio que os representantes de Macau do Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) participam no encontro anual da entidade, que decorre em Lisboa na Assembleia da República (AR). Ao HM, Rita Santos, uma das conselheiras, adiantou o que vai estar em agenda, sendo que o funcionamento do consulado-geral de Portugal em Macau será um dos pontos abordados no encontro.

“Embora haja muito esforço da parte do nosso cônsul (Vítor Sereno), achamos que continua a existir uma falta de pessoal para responder a tantas solicitações. Acresce o facto de estarmos perante especificidades de Macau, porque nem todos dominam a língua portuguesa. A questão que está sempre a ser colocada ao Governo português são os baixos salários que continuam a ser pagos. Este ano vou voltar a falar sobre este assunto.”

Além disso, será abordada a “possibilidade de modernizar a área informática dos consulados de todo o mundo”. “Macau é um caso especial, porque face ao esforço do senhor cônsul temos marcação online que tem facilitado muito as marcações”, acrescentou Rita Santos.

De frisar que a questão do funcionamento dos consulados portugueses em todo o mundo voltou a ser abordada numa questão colocada por três deputados da AR aos governantes portugueses. Apesar de não falarem do caso de Macau, José Cesário, Carlos Páscoa e Carlos Gonçalves, deputados eleitos pelo círculo fora da Europa, consideraram que existe uma “degradação assinalável do atendimento ao público” nos consulados da Venezuela, Rio de Janeiro, Salvador ou Reino Unido.

Outro ponto que será discutido no encontro anual do CCP prende-se com o fim do representante fiscal em Macau. Contudo, há questões burocráticas por resolver relativamente aos aposentados de Macau que recebem a sua reforma da Caixa Geral de Aposentações. “Vou marcar um encontro para que se possa resolver a questão do representante legal. Foi prometido que a partir de Janeiro deste ano esta figura do representante fiscal iria terminar, mas ainda temos de resolver problemas ligados aos idosos que não dominam a língua portuguesa”, rematou Rita Santos.

1 Mai 2018

Pontapés na bicicleta

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] orreu o Manel [Reis] (1947-2018), inventor sem registo de patente, senhor da liberdade. Vem dali vento, voo, escorre dali maré, descubro. Noite rimará doravante com cidade, conta sílabas e descobre o gosto, o gesto. Senta para ver, comenta, desdobra o horizonte, que não será nunca engomado, e colha o fruto por haver, a surpresa não pode ser nódoa, siga a elite construindo farol com medo da solidão, a querer um cheiro, antes do perfume. Sou de nenhures e ainda assim me custa vê-lo a atear fogos despropositados e tristes na louca pradaria de trufa da opinião a pedir mais e sempre mais ardências, despontando deslugar deslassado, carne mole de não lugar, coisa que não se pisa a não ser pelo dedo e olho, que ao mesmo tempo esfarela as palavras a fingir que não agridem, mas que depois risca a giz no ecrã o lugar que marca identidade e tribo como castelo de onde partir a partir, além de louças onde comer, as canelas que fazem o andar. Não entendo nem uns nem outros, que se fecham no arremessar dizeres fingindo que pensam, granito feito palavra. Agora que o intelectual se tornou insulto, a «ideia» virou pedra de calçada. Quanto mais escrevo, melhor percebo que despertenço, que falhei no modo de ser grupo, que logo me disperso indo e vindo, maré a compor praia em noite fria. Nem da minha tribo creio que sou. Ponto. (E ao nada empresto a realidade.) Posso ser, apenas, brilhando, ou morando baço? Posso, em querendo. Os estilhaços do gozo de ir indo e acendendo hão-de atingir alguém, dos quietos dos moribundos, dos apagados. Foi de sem querer. O Manel alargou apenas as possibilidades. Sem desenhar fronteiras, sem ferir. Dando os bons dias, acolhendo as boas noites. Só porque sim. Entenda quem possa. Pare de explicar quem o respeite.

 

Bica do Sapato, Lisboa, 2 Abril

De tão bons intérpretes da vida, alguns lutos não param a festa. Estava cinza o rio, gerundiando em rima com o céu. Contudo, diferença se fez a maré de amigos convocados para assistir de pé à Inês [Meneses] brilhar enquanto explicava de que modo podem ser os «Amores (Im)Possíveis»: pela palavra, esticada ao além, por gozo e alegria. «Ela lembrou-lhe que o amor é fogo que arde sem se ver, e ele deu-lhe uns óculos.» As frases-projéctil parecem-me isso mesmo, óculos que nos fazem ver as ardências das aproximações e afastamentos que, em cada momento, nos definem. Vemos mais longe, também com a lente aberta do sorriso que se solta destas tiradas, colhidas no seu habitat natural, o facebook, de modo a tornarem-se objecto. Para o malabarismo de palavras e ideias, a Elisabete [Gomes] criou um palco ao baixo, de apenas duas cores e suas variantes, plantando ênfases e aumentando corpo de letra, respondendo com movimento à dinâmica das ilustrações-metáfora do Tiago Galo, figuras que nascem de massas de cor em jogos de ternura e confronto. Ainda por cima, ergueu as mãos à dimensão de personagens, das que dançam. Não me canso de folhear o livrinho, que cresce muito para além da sua dimensão, de tanta subtileza que esconde. Uma frescura.

 

São Luiz, Lisboa, 3 Abril

Para celebrar os 30 anos da Cotovia, a Fernanda [Mira Barros] organizou ciclo de conversas, no vizinho jardim de inverno onde as únicas plantas são pessoas. Calhou a de hoje tratar da sobrevivência das pequenas editoras. Serviu logo o pretexto para reencontrar o Vasco [Santos], da Fenda, que há muito não nos encontrávamos. Ficou por matar a saudade, pois a ocasião não pedia fado. Apesar do competente esforço da Mariana Oliveira, não aconteceu novidade ou conversa, com a Adriana C. Oliveira, da Flop, e o António Guerreiro, cronista do Público. De tão simples, o assunto fez-se complicado: são poucos os que lêem, menos ainda os que compram. A Flop usa a angariação de fundos para a «altíssima literatura» edita. A Fenda aconselhou o assalto aos bancos, mas não creio que o pratique. O resto foi o habitual negrume analítico do António Guerreiro expondo o dilúvio de lixo que enche o mercado. Não há saída, só esforço. Cansa-me que nos deixemos aprisionar pelas minúcias das finanças, sem nos concentrarmos na recorrente ausência de estratégias e colaborações.

Sem querer, o dia foi salvo pelo golo de Ronaldo na baliza de Buffon: sem desistir da jogada, vai à linha de fundo recuperar uma bola que parecia perdida, faz o passe e logo corre para a receber no lugar onde ludibria os defesas e vence a gravidade aos 2,40 metros para marcar com pontapé de bicicleta digno de um bailado. E o estádio da Juventus, rendido, aplaude-o. De mão no peito, o enorme jogador agradece. A Cotovia, em 30 anos, fez elegantíssimo trabalho de edição dos clássicos gregos onde se celebram heróis.

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Abril

A chuva pesa no hoje, encerra-o em si, não abre o espaço à fruição, oferece tristezas líquidas, incómodos, restrições. Cá dentro, brilham singulares fulgores. Como bom Caleidoscópio (ilustração a propósito nas redondezas), um ligeiro movimento muda cores e perspectivas, sugere formas, outras leituras. Momento e movimento. O próprio conceito da exposição evoluiu e se deixou encaixar no demais que fazemos, nas pressas e adiamentos. O João [Fazenda], parceiro de tantas andanças, abre rasgos nas paredes como há muito não fazia. Traz uma pasta negra e pesada, como o dia, mas mal se abre muda o mundo, com perfumes e fauna e paisagens e corpos e flora e começos de história e ritmo e nada, tão só o resultado dos gestos sobre os materiais. Por um triz não nos atrasámos, de tanto e saboroso tempo gasto na escolha e encenação dos originais. Urbanita que é, muita atenção espraia pelas ruas, pelos mercados das cores que se juntam às vozes, pelos jardins onde os corpos se confundem com as plantas. Mas os interiores são palcos portáteis, uma cena banal só pelo prazer do traço, ou composição com outra densidade retratando alguém que esculpe. Gosto de imaginar este desenhador incansável a desenhar o chão que pisa, sem rectas, movediço e inconstante, somente feito de cruzamentos, de rotundas, de encruzilhadas, de entroncamentos, enfim, de multiplicadores de possibilidades. O João desenhou-se maestro de visões, condutor de olhares, manipulador de camas de gato, domador de espelhos e prismas. Mas o tema da exposição acontece ser o estilo: ao figurativo, a cor e desenhado com a cor ou a preto e branco, junta-se o abstrato em pastel, em grattage, a lápis de cor, a pincel. Na sua gramática, o vaivém entre linha fina e traço grosso ganha aqui a vantagem dos que correm mais rápido. Manchas, nuvens, incisões, traços, formas soltas que ocupam o espírito dos que se atrevem a olhar, a alinhar em confundir-se com paisagem, em ser paisagem. Parece que oiço na pele o discorrer do papel, o absorver da tinta de tão sensorial se faz o conjunto, a escolha das cores, a organização das linhas. Nas suas composições, o João costuma exercitar uma elegância explosiva, um conforto que nos atrai e pede para ficar, solar. Nalgumas destas indefinidas deixa entrar diferente energia, desequilíbrios de plástica bruteza, plúmbeas. Lá fora parou de chover.

 

18 Abr 2018

Yang Yankang retrata o budismo tibetano em Lisboa

[dropcap style=’circle’] D [/dropcap] esde o passado dia 1 de Março que a Galeria Fidelidade Chiado 8, em Lisboa, acolhe a exposição de fotografia de Yang Yankang, intitulada “Espelhos de Alma”. A curadoria é do advogado e fotógrafo João Miguel Barros, que fala de uma obra que revela uma grande dimensão de religiosidade

 

Depois de ter levado o trabalho de Lu Nan a Portugal, João Miguel Barros voltou a apostar num outro fotógrafo chinês que, pela primeira vez, expõe em Lisboa e que promete mostrar aos portugueses as facetas do budismo tibetano. A exposição “Espelhos de Alma” estará patente até ao dia 4 de Maio na Galeria Fidelidade Chiado 8, em Lisboa.

Depois de ter levado o trabalho de Lu Nan a Portugal, João Miguel Barros voltou a apostar num outro fotógrafo chinês que, pela primeira vez, expõe em Lisboa e que promete mostrar aos portugueses as facetas do budismo tibetano. A exposição “Espelhos de Alma” estará patente até ao dia 4 de Maio na Galeria Fidelidade Chiado 8, em Lisboa.

A mostra reúne 40 fotografias a preto e branco, “ampliadas analogicamente e que estão centradas no budismo tibetano”, explicou João Miguel Barros ao HM.

As imagens “retratam diversos aspectos do quotidiano dos monges tibetanos, na sua fé e nos seus tempos livres. Mostram, ainda, aspectos vários de peregrinos nas suas viagens espirituais”. Na visão do curador, Yang Yankang “é um fotógrafo fantástico, com uma visão orientada para o culto e a fé”. “Refiro genericamente o culto, e não apenas na fé budista, porque ele tem um outro trabalho de grande fôlego centrado no Catolicismo na China, que espero ter a oportunidade de ajudar a divulgar”, acrescentou.

João Miguel Barros não tem dúvidas de que “a arte chinesa tem tido um crescendo de aceitação no ocidente, se bem que em Portugal, ao contrário de outros países europeus, não esteja nos lugares cimeiros de maior valorização”.

Abertura mútua

Em Portugal há ainda muitas ideias feitas em relação ao que é considerado arte chinesa. “Pensa-se quase sempre na porcelana ou nas pinturas a tinta da china, muita dela seguindo as mesmas técnicas e estruturas narrativas dos clássicos. Mas não é essa a que eu me refiro. Estou a pensar na arte contemporânea chinesa quer seja a pintura, a escultura, as instalações e, particularmente no que mais me interessa, a fotografia”, esclarece o curador e fotógrafo. “A arte contemporânea chinesa começou o seu processo de afirmação em décadas mais recentes, fruto da política de abertura das autoridades chinesas nos anos 70 do século passado, e que tem vindo a ter uma expressão enorme junto do público”, acrescenta.

No que diz respeito à fotografia contemporânea, “teve um nascimento mais tardio e não é ainda a forma de expressão artística mais significativa”.

João Miguel Barros garante que a mostra de Lu Nan “teve maior repercussão em Portugal, no sentido da sensibilização para a importância da fotografia chinesa”.

 

“O Espelho da Alma”

 

Uma conversa entre o artista Yang Yankang e o curador João Miguel Barros

 

Quando começou a fazer fotografia de forma continuada e profissional?

Comecei a entender fotografia através da revista “Fotografia Moderna”, em 1985, em Shenzhen, e tornei-me fotógrafo profissional em 1992.

 

Nos seus primeiros tempos como fotógrafo quais eram os objectivos que ambicionava concretizar? Eram já projectos relacionados com a fé e a religião?

Nessa altura queria apenas tirar as melhores fotografias; eu não tinha ambição nem objectivos a longo prazo. Através do sentimento e experiência adquiridos durante a minha jornada na fotografia, encontrei pessoas e motivos religiosos, que gradualmente fortaleceram a minha própria convicção. Ao obter alguns resultados, decidi concentrar-me em fotografar as 3 religiões principais. Utilizo a fotografia para interpretar a vida e o espírito de pessoas religiosas e, ao mesmo tempo, encontrar a minha própria fé.

 

Quem o influenciou nos seus primeiros trabalhos?

No início, fui influenciado por fotógrafos chineses como Hou Dengke, Hu Wugong, Pan Ke e outros grupos de Shaanxi. Com a abertura da fotografia na China, fui fortemente influenciado por fotógrafos de países estrangeiros, como Sebastião Salgado, Marc Riboud, Diane Arbus, Sally Mann.

 

E depois? Há algum nome que considere ser um mestre e que se tenha mantido ao longo dos anos como fonte importante de inspiração para o seu trabalho?

Nas minhas fotografias posteriores, considero Josef Koudelka e Sebastião Salgado os fotógrafos mestres, que continuam a ser fontes importantes de inspiração para o meu trabalho e que me conduziram para a maturidade e profissionalismo.

 

A sua opção é pela fotografia a preto e branco. Porquê?

A fotografia a preto e branco é uma maneira directa de ilustrar o tema, não estando sujeita à tentação de interferências das cores. As imagens a preto e branco são tradicionais, clássicas, mas cheias de encanto, mostrando a realidade do que está a ser capturado pela imagem.

 

Acha que a cor é menos rigorosa para os objectivos que pretende alcançar?

Sim, a imagem a cores não é capaz de expressar o meu tema religioso. Transformei as cores das objectivas numa emoção subjectiva e numa visão única. Utilizo a fotografia a preto e branco para alcançar os meus objectivos, para expressar com precisão os meus pensamentos.

 

Já registou o modo como as comunidades católicas expressaram a sua fé no interior da China. No trabalho que agora expõe em Lisboa, centra-se no Budismo e no Tibete. E o projecto que está neste momento a desenvolver é sobre as comunidades chinesas que professam a religião islâmica. Porquê essa opção?

Os Chineses não têm fé, não existe um conceito tradicional de crenças religiosas, as pessoas entendem a gratidão, o temor, não vão contra a moralidade. A fé permite que as pessoas conheçam o amor e o carinho. Depois de me confrontar com o catolicismo, budismo tibetano e o islamismo na China, fiquei profundamente tocado pela fé. Eu também me converti ao catolicismo e ao budismo tibetano, sou uma pessoa de duas religiões. Com fé, tenho a coragem de acreditar, mas também explorar profundamente e fotografar imagens íntimas. Capturá-los em fotografia é como capturar a minha própria vida religiosa. Isso toca-me a mim, como toca os outros.

 

É um homem religioso?

Sou uma pessoa de duas religiões. Qualquer crença é humana, cheia de amor. A nossa alma é como um copo, podemos enchê-lo com café, chá ou água. Afinal, trata-se de uma alma. Uma forte crença conduz a uma fé forte.

 

Qual é a sua fé? Em que é que acredita?

Já respondi a isso na pergunta anterior. Mas a fotografia também é a minha fé. Utilizo a fotografia para expressar a humanidade, para expressar amor, louvar a rectidão, louvar a bondade! E repreender a maldade.

 

O seu trabalho está centrado numa forte dose de espiritualidade. A espiritualidade e a fé são momentos individuais. Essa opção pode levar a pensar que se interessa menos, enquanto objecto do seu trabalho, pelas dinâmicas sociais e pelas relações materiais entre as pessoas. É uma opção deliberada?

As minhas fotografias focam-se mais na espiritualidade da vida religiosa; é uma forma de fotografia espiritual. Entre o material e o espiritual, eu escolheria o espiritual. É perigoso se as pessoas gananciosas não forem conduzidas espiritualmente no mundo material. O que é uma sociedade? Qual é a dinâmica social? Qualquer sociedade civilizada necessita de ter fé. A fé direcciona a alma para se aperfeiçoar. Quanto mais desenvolvida a sociedade e mais dinâmica é, mais precisamos do consolo e do calor da fé. Quando eu estava a fotografar a vida religiosa no Tibete, foi o brilho da tranquilidade e a calma que a sociedade chinesa necessita ver e sentir. Estas são as imagens poéticas que procuro.

As suas fotografias demonstram uma enorme relação entre a natureza, a fé e o sagrado. Qual é o seu método de trabalho para captar estes momentos de tanta intimidade?

Na importante relação entre a natureza e a fé religiosa, misturo-me na vida pessoal das pessoas religiosas com respeito e crença para registar e capturar os momentos. Fico com elas e aguardo pacientemente pelos melhores momentos. As pessoas religiosas têm um coração aberto, são muito gentis e amigáveis. Elas também precisam de espalhar a sua fé e fazer com que as pessoas entendam a sua vida religiosa, aproximando-se delas e senti-las. Isso torna a fé um elemento muito vívido e comovedor na natureza.

 

Qual a foi metodologia que utilizou para concretizar o projecto sobre o Budismo e o Tibete?

Coloco sangue, suor e lágrimas para capturar o Tibete. Num ano, eu passo 8 meses a tirar fotografias no Tibete. Mantive-me no Tibete durante dez anos. Utilizo filmes tradicionais e a máquina fotográfica Leica para trabalhar. Revelo e escolho as minhas próprias fotografias. Eu ando sozinho, escolho uma imagem entre milhares, e tento apresentar os melhores clássicos!

 

Quanto tempo demorou a concluir o projecto “The Reflections of Soul”?

Passei 80 meses em 10 anos para completar “Xin Xiang” (“O Espelho da Alma”).

 

Já agora, porque razão escolheu esse nome para o livro que publicou?

A tua aparência reflecte quem realmente és, “Xin Xiang” é o espelho da tua alma, capta-te a ti, e captura os outros. Uso o meu coração, os meus olhos, e para me completar e sentir-me realizado, trago riquezas espirituais valiosas para a sociedade e para as pessoas.

6 Mar 2018

2ª edição de “Famílias Macaenses” apresentada em Lisboa

A segunda edição do livro que espelha as origens de muitas famílias macaenses vai ser apresentada amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O autor, Jorge Forjaz, faz-se acompanhar do arquitecto Carlos Marreiros, em representação do Albergue SCM, e do embaixador João de Deus Ramos

 

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Albergue SCM leva a Lisboa uma obra icónica para a comunidade macaense e que teve a sua primeira edição em 1996. Depois de um profundo trabalho de revisão e actualização dos apelidos das famílias macaenses da parte de Jorge Forjaz, a segunda edição do livro “Famílias Macaenses” é apresentada amanhã na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Esta segunda edição, que já teve a sua apresentação oficial em Macau, constitui “uma revisão geral da obra, actualizada em quase todos os capítulos e sub-capítulos, acrescentada com 80 novos capítulos e ilustrada com mais de três mil fotografias”.

A história deste novo livro começou em 2011 e partiu da iniciativa do presidente do Albergue SCM, Carlos Marreiros. “Em 2011, consciente da importância de tal obra para a preservação da memória macaense, o Albergue SCM convidou o dr. Jorge Forjaz, na passagem do 15º aniversário da publicação das ‘Famílias Macaenses’, a vir a Macau partilhar uma reflexão sobre o seu trabalho e o impacto que teve na comunidade. Após a conferência, o arquitecto Carlos Marreiros desafiou o dr. Jorge Forjaz para uma nova etapa, ou seja, a revisão e actualização da 1ª edição. Após cinco árduos anos de trabalho, o resultado monumental está à vista, e ultrapassou largamente o que esperávamos do autor”, lê-se em comunicado.

O Albergue SCM considera ainda que a apresentação da obra produzida pelo genealogista e historiador “pretende revisitar as circunstâncias da investigação que conduziu à publicação de ‘Famílias Macaenses’, o seu eco junto das comunidades estudadas, a interligação entre os diversos países ou territórios de língua portuguesa e a importância da preservação destas memórias familiares”.

Aquando da sua primeira publicação, em 1996, as “Famílias Macaenses” acabou por dar início “sem que o autor tivesse consciência, a uma mais vasta investigação sobre as famílias que ao longo de séculos povoaram o então império ultramarino português”.

A apresentação aconteceu durante o II Encontro das Comunidades Macaenses e, “pela primeira vez, era reunida toda a família macaense dispersa inicialmente pelo imenso território da China (Hong Kong, Cantão, Xangai, Harbin etc), Japão (Kobe, Nagasaki, Tóquio), Tailândia, Singapura e mais tarde Brasil, Canadá, Estados Unidos e Portugal”.

O evento em Lisboa conta com o apoio da Delegação Económica e Comercial de Macau, a Fundação Macau e Bambu – Sociedade de Artes Limitada.

29 Jan 2018

Tiago e Fong Fong Guerra chegaram a Lisboa

Os portugueses Tiago e Fong Fong Guerra, que fugiram para a Austrália depois de condenados por peculato em Timor-Leste, chegaram no passado sábado a Lisboa, onde foram recebidos por uma dúzia de familiares, mas escusaram-se a falar aos jornalistas. Afirmando não ter problemas em falar à comunicação social, Tiago Guerra disse que não o faria naquele momento no aeroporto.

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] chegada ao aeroporto Humberto Delgado (Lisboa), este sábado de manhã, o casal foi recebido com emoção por alguns familiares, incluindo os dois filhos, que estão à guarda dos avôs paternos e que não abraçavam os pais há três anos.

Tiago Guerra escusou-se a falar aos jornalistas, posição também pelo pai, Carlos Guerra, que, ainda assim, não escondeu a emoção do reencontro, vivido entre família e “dois ou três amigos chegados”. “Está tudo bem. (O Tiago) Chegou bem. Está felicíssimo. Isto é um Natal antecipado. É dia 25”, desabafou, aliviado. “Basta olhar para a cara dos filhos, dos meus netos”, continuou.

O casal foi detido na semana passada, em Darwin (Austrália), onde entrou ilegalmente de barco, no início do mês, com passaportes portugueses. Os Guerra pediram a extradição para Portugal, tendo o requerimento, que visava o accionamento da convenção existente entre Portugal e Austrália, dado entrada na Procuradoria-Geral da República dia 17 de Novembro.

Dois dias depois, os pais de Tiago, responsáveis pela petição que solicitava a extradição do casal e que foi entregue no Parlamento, foram recebidos pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, de acordo com informação disponível no site da instituição.

Tensão diplomática

A fuga do casal casou tensão diplomática entre Portugal e Timor-Leste, com o assunto a suscitar críticas de dirigentes políticos e da sociedade civil, com artigos a exigir investigações à embaixada de Portugal em Díli.

Na semana passada, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, garantiu que a embaixada em Díli respeitou a legislação portuguesa ao atribuir passaportes ao casal. Na sequência da fuga para a Austrália, Augusto Santos Silva ordenou a realização de um inquérito urgente à Inspecção Geral Diplomática e Consular, cuja conclusão foi entregue esta quinta-feira.

O casal Guerra renovou os respectivos cartões de cidadão no início deste ano e, mais recentemente, foram emitidos passaportes portugueses, o que motivou críticas na imprensa timorense. “Os cidadãos portugueses têm direito a documentos de identificação como cidadãos portugueses, independentemente da sua situação jurídica, desde que não violem certas disposições legais. Neste caso, não houve essa violação, segundo o inquérito a que procedemos, a legislação portuguesa aplicável foi cumprida e, portanto, os passaportes foram atribuídos, no cumprimento da lei”, referiu então Santos Silva.

Tiago e Fong Fong Guerra tinham sido condenados em Agosto por um colectivo de juízes do Tribunal Distrital de Díli a oito anos de prisão efectiva e a uma indemnização de 859 mil dólares por peculato (uso fraudulento de dinheiros públicos).

Os portugueses recorreram da sentença, considerando que esta padecia “de nulidades insanáveis” mais comuns em “regimes não democráticos”, baseando-se em provas manipuladas e até proibidas.

Um “pedido internacional de extradição para Portugal com detenção provisória” foi enviado à Procuradora-Geral da República portuguesa, Joana Marques Vidal, com conhecimento para a ministra da Justiça, Francisca Van-Dúnem, e para o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, segundo uma carta do advogado do casal à qual a Lusa teve acesso.

Álvaro Rodrigues confiante

O advogado do casal Guerra disse ao HM estar confiante num resultado favorável a Tiago e Fong Fong. “Estou confiante num bom resultado. Achei e continuo a achar que eles estão inocentes e aguardo uma decisão favorável da parte do tribunal de recurso de Timor.”

Apesar do recurso à sentença que condenou o casal já ter sido entregue em Díli, Álvaro Rodrigues não sabe a data da próxima sessão de julgamento.

“O recurso já deu entrada na Comarca de Díli, o Ministério Público timorense já respondeu ao recurso e penso até que já subiu para o tribunal de recurso”, acrescentou o advogado que afasta qualquer ilegalidade na concessão dos novos passaportes e cartões de cidadão a Tiago e Fong Fong Guerra, como tem sido afirmado pelas autoridades timorenses.

“Qualquer cidadão português tem direito a ver renovado o seu passaporte e cartão de cidadão. Julgo eu que a embaixada de Portugal em Díli fez [o que estava correcto]”, apontou.

O casal já está em Lisboa graças a um pedido de extradição apresentado por Portugal junto das autoridades australianas. O casal Guerra havia chegado a Darwin de forma ilegal, o que “motivou uma detenção por parte do Governo australiano”. “Em virtude dessa detenção que Portugal requereu a extradição e mais nada, e isso não tem nada a ver com o processo final”, rematou Álvaro Rodrigues.

Ana Gomes está contra a extradição

A eurodeputada Ana Gomes escreveu às autoridades australianas objectando à extradição para Timor do casal português que fugiu para a Austrália após condenação pela justiça timorense, por o crime que lhes é imputado não ter fundamento. “Tendo ontem [segunda-feira] sabido que eles estavam detidos na Austrália e que, possivelmente, iria haver – como se confirmou – um mandado de captura e eventualmente um pedido de extradição por parte de Timor, e tendo lido as leis australianas em matéria de extradição, vi que é possível serem levantadas objecções à extradição”, disse Ana Gomes à agência Lusa.

“Portanto, escrevi às autoridades australianas – ao Procurador-Geral e ao ministro da Justiça – dizendo que tendo acompanhado o processo desde Maio de 2015 e sendo, de resto, uma velha amiga de Timor, estou disponível para ser ouvida e apresentar toda a informação que tenho sobre o caso, para o efeito de ser levantada uma objecção à extradição e para que eles possam ser repatriados para Portugal”, relatou Ana Gomes.

Frisando que tomou esta iniciativa por estar “convencida da inocência deles e de que estão a ser vítimas de um erro de Justiça”, a antiga embaixadora de Portugal na Indonésia, uma observadora atenta da realidade de Timor-Leste, explicou que esse erro decorre das “dificuldades e incapacidades do próprio sistema timorense”, que é “um sistema judicial novo e pouco experiente”.

“Como conheço peças do processo, sei que as acusações não são minimamente consistentes: peculato é um crime de que só podem ser acusados funcionários do Estado timorense, ora, não é o caso. Só esse simples facto é, do meu ponto de vista, demonstrativo de que as acusações não têm fundamento e de que a sentença não tem fundamento, e compreendendo eu as debilidades do sistema judicial timorense e estando absolutamente convencida da inocência deles, acho que é minha obrigação ajudar quem está a ser vítima de uma grande injustiça”.

Ana Gomes vincou que, da mesma maneira em que o fez “em relação a muitos timorenses”, também o faz “em relação a estes dois nacionais portugueses, sem dúvida nenhuma”.

27 Nov 2017

Corpos celestes

Horta Seca, Lisboa, 20 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hega no último minuto, enfunado de mares e acordes, de ventos e carnes e bravezas e terra, este «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Por continuar celebrando os cinquenta, desdobra-os para regalo de quem se dê ao esforço de andar descalço nas pedras de quase tantos poemas quantos anos de (muita) vida: «entre as sombras do recreio/ és tu que desces pelo meio/ de um mês de sol cheio// e como tudo o que nomeio/ vens de noites caladas/ duma solidão/ inda mais entranhada/ que ensina/ ao seco som da pancada// que morres porque vivo/ somes porque verme/ no meio das pedras/ que te sabem indemne// desamigado dos pasmos/ que sempre foram/ uma comprida conta/ no rosário da infância». Embrenhamo-nos no território do imponderável, guiados pelo metálico da voz que esculpe, como nenhuma outra, a golpes de navalha na carne da nossa língua materna.

Sabendo da relação do autor com a fotografia, chamámos à capa uma chapa do Flávio Andrade (que ilustra esta crónica), e que sinaliza bem as múltiplas sombras e direcções deste andamento. A estrada feita lugar-comum, mas ninguém por ela passa da mesma maneira. Toca-me mais fundo por ser esta a nossa primeira co-edição, disparada, com a Rosa de Porcelana, na direcção de Cabo Verde celeste. «Boa viáji!»

Escola de Mulheres, Clube Estefânia, Lisboa, 20 Outubro

Dia gordo, este, que acaba sob o signo da perturbação. Em vale desaguando no escuro, as cadeiras desenhavam as colinas que predispunham os corpos para experimentar o rio que aconteceu ali em baixo, mesmo à frente dos nossos olhos. O Nuno Moura respigou restos de vida a dois, amorosa, afectiva, conjugal, matrimonial. A Marta [Lapa] não procurou narrativa, antes deslaçou ainda mais as palavras, deu ao texto tratos de laboratório e dele extraiu, com a participação dos actores Margarida Cardeal e Vitor Alves da Silva, uma segunda voz para o fio musical do Pedro [Moura]. O combate virou dança. Ou terá sido o inverso. Passei dias mergulhado em pintura, talvez abstracta, homem e mulher a desdobrarem-se em músculo e suor, carne e espírito, consentimento e aversão, entrega e desapego, fuga e comunhão, relâmpago e monotonia. Leves e soltos, por instantes, para logo se fazerem de chumbo. Líquido, por força da temperatura, regressando à forma dos corpos, por via da palavra. Uma intensidade minimal de grande risco, onde cada peça de marcenaria encaixou, da luz ao trabalho dos actores, da orquestração das figuras à melodia. Há muito que não saía de um espectáculo* assim, desorientado, sem saber bem o que pensar. (*Escreveria experiência, se a palavra não tivesse sido roubada pelo marquetingue). Ainda não sei bem se gostei, mas isso interessa? Ah, tinha por título, de que desgostei, «AAC – Associação Amizade no Casamento». Sou homem casado, sei da amizade no casamento. Aprecio bastante o risco, como à mesa com ele.

Praça da Criatividade, Óbidos, 22 Outubro

No meio do desarranjo destes meses, contribuímos para a baderna do Folio com umas «rapidinhas», que as circunstâncias foram reduzindo a mínimos, mas cujo modelo gostaria de aprofundar: intervenções de 15 minutos, nas quais os autores, ou alguém por eles, se atrevem a extrair tema de um livro. E metidas a martelo na programação. Foi um ensaio, mas há que insistir em desenrascar outras formas de festivalar. Folia, mas melancólica, aconteceu na subida ao palco dos «Tomara Tu Ter uma Tia Assim (TTTTa)» para cantarmos loas ao desvario dos corpos. Sem copos, por razões que se não explicam.

Horta Seca, Lisboa, 23 Outubro

Desde sexta que, a cada pausa arrancada a ferros, me atiro a «Cento e Onze Discos Portugueses – A Música na Rádio Pública Portuguesa» (ed. Afrontamento/RTP/Antena 3/Cultura FNAC). Com coordenação do Henrique Amaro e do Jorge Guerra e Paz, a lista começa em 1936, com duas marchas de Beatriz Costa, para marcar o início da Rádio Pública, e segue até Capitão Fausto Tem Os Dias Contados, do ano passado. Estrutura e desenho simples, mas apetecível: capa do disco, comentário ao lado, ficha técnica, conjunto devidamente acompanhado por cronologia, pequenos textos de enquadramento e índices. Que mais precisamos para o deleite? Da rede, além da rádio. As listas possuem uma dinâmica curiosa: exigem logo opinião, artistas que faltam, trabalhos que podiam ser outros, discussão de critérios, etecetera. Nenhuma será perfeita, mas esta apresenta-se de talhe bem equilibrado, nos gostos, estilos, épocas e formatos. Oferece matéria para desilusões, que o afecto adolescente não é dos melhores críticos. Há rugas, claro, mas serão de expressão. Podemos ler as capas só por si, a ver se o que sobrou ainda diz bem ontem ou se desfez em nada. Mas serve sobretudo para revisitações e até descobertas. Diz-me ao ouvido que ter a minha idade pode ser consolo. Quando não estava distraído, assisti a uma série de pequenas e médias revoluções. A de Zeca e Sérgio e Zé Mário e Paredes e Fausto, a dos Telectu, Mler If Dada, Variações, Pop Del Arte, a dos Mão Morta ou Palma, a de Camané e dos Ornato Violeta. E por aí fora, em altas rotações, até à enorme riqueza deste presente pobre.

Horta Seca, Lisboa, 24 Outubro

«Contemplação Particular». Depois das desafiantes pinturas, que transcendiam o corpo, que o elevavam na sua mais pura materialidade, em abstracta dança de formas carnais, expostas depois em «Delubro», espaço do sagrado que parava o tempo ali para os lados do Centro Cultural de Belém, eis o livro, a tornar portátil o experimento. O António [Gonçalves] fecha com a inteireza da madeira (carvalho?) este seu deslumbrante e desafiante projecto, ignorado pela crítica. Aliás, que bem se cruzaria a peça da Marta com as telas do António! São da mesma massa, do mesmo risco: traço e navalhada. Por isso me irrita sobremaneira esta indigente falta de curiosidade. Serão cometas, mas podemos dar-nos ao luxo de ignorarmos a sua passagem por nós? Fecho parêntesis. Este objecto, ao menos, continuará a dizer do erotismo muito para além da inevitável morte, essa irmã chegada. Não será de igual modo, apesar de se estender a álbum, que a pintura se vê com o corpo todo, mas permite aproximações. E atira muita lenha para o desejo, com dvd e tudo. Tudo, que nasceu da leitura corpo-a-corpo de Flaubert e Bataille.

1 Nov 2017

Valeu a pena

Omnia fui, et nihil expediti.

Séptimo Severo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que nasci, vivi rodeado de livros. Esses, os que já existiam lá em casa antes de mim, continuam sendo, e creio que serão para sempre, os que mais me marcaram.

Contudo, a dado momento, naturalmente, a biblioteca do meu pai deixou de ser suficiente para alguns aspectos da minha curiosidade e do meu gosto pessoal. Assim, comecei a comprar alguns livros e, sobretudo, a socorrer-me dalgumas das bibliotecas públicas que então existiam na cidade de Lisboa. As que os governos britânico e norte-americano nos proporcionavam (entretanto, ambas encerradas), contam-se entre as que me foram mais úteis.

É bastante provável que tenha sido aí que se geraram e estruturam vários aspectos da minha anglofilia, um amor por um Reino Unido que só muito tangencialmente existe e talvez nunca tenha existido de outro modo, por uma selecção que resulta numa invenção por medida. Mas não será sempre assim, com todos os amores?

Amo Madrid. Gosto do ruído das ruas e dos bares, dos seus restaurantes e tascas, do mercado de San Miguel e de outros mais pequenos, incrustados nos bairros, do Museu do Romantismo, da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, do Museu Lázaro Galdiano, dos três grandes museus, mesmo se com filas à porta, etc.

Também gosto muito de Bruxelas, da Bélgica, em geral, e de Bruxelas, em particular. Uma cidade mal-amada pela maior parte dos que a visitam. Gosto do pequeno Impasse Saint-Jacques, do teatro de marionetas Toone, de mexilhões com batatas fritas, do Museu dos Instrumentos Musicais, de um densíssimo ragout que comi num pequeno restaurante familiar ao pé do Menino Mijão, dos Musées Royaux des Beaux-Arts, da brasserie A La Mort Subite, etc.

Gosto muito de uma pequena vila piscatória na Cornualha, chamada Polperro.

Amo, mais do que qualquer outro lugar, uma minúscula aldeia de xisto, atravessada por um rio, no meio da Beira Litoral. Dessa, não vos direi o nome.

Acerca de Lisboa também não falarei muito. A minha relação com a cidade é demasiado pessoal, quase doentia, certamente dolorosa, para que a minha experiência possa aproveitar a terceiros. Não, não faz sentido eu falar da Lisboa que existe e não tenho idade para falar da Lisboa-aldeia, de aguadeiros e choras.

Contudo, recordo uma cidade em que muitos aspectos desta última sobreviviam ainda, nos bairros históricos, a par de cinemas e centros comerciais microscópicos, sobretudo nas Avenidas Novas, os quais anunciavam já os muitos desmandos que, paulatinamente, foram tomando conta da cidade, que ganharam dimensões assustadoras durante o “cavaquismo”, e que tiveram a sua apoteose no verdadeiro monumento urbanístico-arquitectónico à saloiice triunfante que é o Parque das Nações.

Limitar-me-ei aqui a listar alguns museus lisboetas que me encantam: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, a Casa-Museu Fundação Medeiros de Almeida, o Museu de Macau, o Museu da Carris, o Museu Geológico (um museu de um museu…), o Jardim Botânico Tropical (apesar do estado ruinoso em que se encontra).

Como já devem ter percebido, os museus, alguns museus, sem didactismos ou tecnologias, mais ainda do que as bibliotecas, sempre foram os locais onde me senti melhor. Porque muitos deles estão quase sempre vazios, o que convém aos momentos em que me apetece fugir do mundo, porque não pertencem ao tempo e ao espaço presentes, porque combinam bem com uma certa forma de aristocracia, novecentista, vitoriana para ser mais exacto, que sempre cultivei de mim para mim.

Certa vez, inserido num grupo, fui realizar um espectáculo a Braga, ao Museu Nogueira da Silva, outro dos meus preferidos de Portugal (o predilecto é, certamente, a Casa dos Patudos, em Alpiarça). Ao chegarmos ao museu, que era suposto providenciar-nos alojamento, a senhora que nos recebeu disse que ficaríamos a dormir no próprio edifício. Supusemos que, nas traseiras, algures por detrás do belíssimo jardim, houvesse um anexo onde seríamos hospedados.

Qual não foi o nosso espanto (perdoem-me a formulação batida) quando fomos conduzidos a quartos que integram o espaço do museu e as camas de dossel e demais mobiliário foram postos à disposição dos nossos reais costados!

Em circunstâncias várias, tenho dormido em hotéis de muito luxo, aos quais, aliás, em geral, preferiria uma hospedaria modesta. Mas nunca antes nem depois daquela noite dormi num local tão condizente com os pergaminhos que a mim mesmo me outorguei.

De facto, às vezes, sabe bem sermos bem tratados. De tal modo que só então nos apercebemos do bem que nos faz, da falta que isso nos fazia sem que nos inteirássemos.

Há uns anos, decidi presentear-me, e à minha namorada de então, com uma viagem à Grécia, sem cuidar do facto de que a Páscoa ortodoxa decorria nesse período. O nosso destino final era a ilha de Spetses, uma das Ilhas Sarónicas, logo a seguir a Hydra.

Em Atenas, encontrámo-nos com um conhecido, calhou em conversa perguntar-lhe qual o melhor restaurante da ilha, tendo em vista o jantar da noite de Páscoa, e recebemos uma resposta cabal, quase impositiva.

O que não sabíamos é que a ilha iria estar repleta de atenienses e que uma chuva copiosa se abateria sobre todos nós.

Assim, ao chegarmos à porta do restaurante recomendado, uma turba cercava já a entrada, sem que, todavia, a sorte lhe sorrisse. As mesas estavam todas reservadas, e o mesmo deveria suceder nos demais estabelecimentos.

Preparávamo-nos, pois, para regressar ao hotel e debatermo-nos com uma longa noite de larica quando o dono do restaurante me perguntou: “Portugueses?”; e, ante o nosso espanto, nos conduziu à mesa que o tal conhecido, providencialmente, nos reservara.

E mais espantados e agradecidos ficámos quando, após o excelso repasto, nos foi servido, junto com uma travessa de sobremesas variadas, o anúncio de que a conta fora, previamente, saldada pelo nosso anjo da guarda.

Nessa noite, para mais embalados pelo marulhar das águas que lambiam as fundações do hotel, dormimos um daqueles sonos que não nos é dado dormir todos os dias.

19 Out 2017

Os dias cobram dívidas

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue obituário escreveria o coelho, personagem principal da crónica mais pequena da nação, tantas vezes surrealista em toda a potência e delícia do termo, para dizer da vida e obra do seu criador, Jorge Listopad? Não arrisco vestir-lhe a pele. Sei que devo a Listopad teatro, palavras, cidades, visões, servido o ensemble com irrequieta frescura. Desejava arrastar o dia à procura de flores e frutos na horta de papel onde guardo alguma daquela sua flora. «Jorge é o mesmo que Jíri. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em Novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro.» Assim se nomeou em autobiografia, passados os oitenta. Custa-me saber que o lavrador de Novembro deixou de amanhar a horta que mantinha na teia de um palco.

Horta Seca, Lisboa, 3 Outubro

Raspo dos dias apenas o mel. Quando devia estar a arrumar a casa, batem-me à porta com projectos. Primeiro o Bruno [Portela], que arrasta consigo a fotografia. Arrasta por alto, rente ao tecto onde habita. Gosto dos seus modos. De fazer. Neste país que prefere estender passadeiras, o Bruno desenvolve tapetes onde nos podemos sentar mediterraneamente, uns num canto, outros a meio, mas no conforto do encontro. Anima, com o Luís Vasconcelos, o ponto de encontro do fotojornalismo nacional, a Estação Imagem, iniciativa que vem rasgando o país para o mostrar melhor, que convoca parceiros internacionais de ofício e olhar, que anseia por preservar a memória, que procura resposta simples para o complicado: sobrevivência. Depois, também se pode discutir gostos. Assentados. A espessura das ideias que trouxe, como as que levei eu para a troca, adiante as partilharei.

Com o Alex [Cortez] chega-me, de seguida, o desafio de acolher em livro os «Poetas Portugueses de Agora», a mais recente empresa da Lisbon Poetry Orchestra, banda rica de vozes ditas e instrumentos tocados, quase canções com o texto a dançar sobre a rica tessitura de baixos e guitarras e tecladas e sopros de variegada respiração, além de mais cordas convidadas. Os versos são de próximos de agora ou nem tanto: Daniel Jonas, Cláudia [R. Sampaio], Paulo [José Miranda], Valério [Romão] e Filipa Leal. Ditos por Paula Cortes, Miguel Borges, André [Gago] ou um Nuno [Miguel Guedes] acabado de conhecer há uns 40 anos. Lá está: como dizer não ao presente? E o embrulho, que não terá apenas um CD, vem com aspiração a objecto, desenhado pelo Daniel Moreira, que ilumina ainda os detalhes. O Alex não tocou apenas argumentos, trouxe EP que oiço em modo vertigem. Diz o Paulo na voz do André: «Os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dívidas// ser-se cobrado/ é como andar à chuva e ter coração/ e precisar de respirar/ e precisar de andar/ e precisar de cuidar das plantas que enfeitam a varanda/ ou as marquises dos arredores de Lisboa.»

Horta Seca, Lisboa, 4 Outubro

Distinta estava a noite na auto-estrada. O escuro não se assume na via rápida, nem mesmo em pleno coração do Alentejo. Vislumbro ao correr do vidro as constelações, a mancha leitosa da via láctea. Não me podia alhear, que assim o exigia o cansaço de quem conduzia, de sul para norte, de quem me conduz, nas direcções cardiais. A Lua dizia mais luz, de cheia que estava. Nisto, o mal-estar. Mal dou por mim, ao quilómetro cento e trinta e seis vírgula oito, detalhe ampliado, aquele oito infinitamente maior que o resto dos numerais ordinais, tenho a meus pés uma mulher estendida no asfalto, sem dar cor dela. De que branco seriam os nossos rostos na escura noite nívea da auto-estrada, sem darmos por nós, um acordado outro nem tanto. Tomo por justa esta imagem para os dias que passam velozes.

Casa da Cultura, Setúbal, 5 Outubro

Ninguém dá por ela, como convém a um bom fotógrafo. A Graça [Ezequiel] desfaz-se nos cenários, nas paisagens, nos momentos. Ninguém a vê. E por isso o seu território outro não é que os bastidores. Mesmo quando fotografa o palco, o que nos dá a ver é o outro lado, o da preparação, o esboço antes do risco final, o momento em que o artista se apaga para deixar entrever o indivíduo. Em performance ou repouso, de atenção presa ou distraído no acaso, alguém foi apanhado sendo. Apenas sendo, vibrantemente existindo. Daí o negro, a enorme quantidade de negro que estas fotos contêm (conferir nesta página com a de Helder Macedo). No palco, pouco mais há além do negro profundo, a cor da arte, e precisamos do olhar e da câmara da Graça para libertar a luz destes rostos. Eles estão a criar para nós, a dizer que não podemos ser apenas isto, que no negro se encontram todas as cores que precisamos para abrir mundos neste. Ensaiando ou descontraindo, como representando ou dizendo, o escritor, o artista, o actor, o músico são mais, são maiores. Por serem nós, por que nos fazem ser com eles. Atenção, com eles, que não como eles. Por ora, estes esboços estão perto no sul feito de beira-rio.

Horta Seca, Lisboa, 6 Outubro

Podia a entrada estar datada de 11/9, o dia exacto e icónico em que disponibilizámos este denso e fulgurante ensaio do António [Araújo]: «Consciência de Situação – Um Ensaio Sobre The Falling Man». A partir de uma fotografia célebre, a de Richard Drew a que alude o título, o António ajuda-nos como nenhum outro a enfrentar a ferida que se abriu nos nossos mundos, em 2001. A queda é o eixo desta poderosa reflexão, que vai muito além da costumeira compilação de notas de leitura, provavelmente de toda a bibliografia sobre o assunto, para tocar a história da fotografia, o miolo do jornalismo, a análise de comportamentos em situações de risco real, a filosofia e a religião unidas pela umbilical ideia de salvação, mas também de beleza ou presente. Este pensamento vem, como gosto tanto, insuflado de um sopro de – ia escrever emoção, mas é – humanismo, que me comove e perturba, mesmo nas descrições violentas, nas esmagadoras reflexões, nas poéticas construções. Apesar de ser sobre este incandescente assunto, há-de concluir, são as «divagações vazias que constituem a melhor metáfora do nosso tempo». Não será o caso, garanto. «Na manhã de 11 de Setembro de 2001, as câmaras de televisão filmaram uma mulher na rua, horrorizada pelos corpos em queda do cimo das Torres Gémeas. Aos gritos, dizia: «há ali gente a saltar, gente a saltar! Acho que estão a tentar salvar-se!» Ninguém pode tentar salvar-se saltando de um 102.º andar de um edifício. Tudo depende, no entanto, do que entendermos por “salvação”. Em função disso, o grito descontrolado daquela mulher pode ser encarado como uma frase insensata e ditada pelo pânico; ou, pelo contrário, como a observação mais certeira e sagaz alguma vez feita sobre os suicidas do 11 de Setembro.» Sei bem onde estava (e com quem estava, certo, Cristina [Sampaio]?). Mas nunca mais soube onde estamos.

P.S.: Cultivo a superstição de contrariar a vontade de abrir o livro mal me chega da gráfica. Costumo dar logo com a gralha grasnando. Confirmou-se: na 123, esquecemo-nos de limpar a repetição da capitular.

Horta Seca, Lisboa, 7 Outubro

Divertido, não fora perturbador. Percebo melhor a tatuagem do presente: business as usual. Estás bem? Péssimo, respondo: exausto por isto e por aquilo, além de que a minha distribuidora faliu. Que maçada! Olha, o meu livro, quando sai? E a factura, quando me pagas? ‘Bora jantar? ‘Bora, respondo.

11 Out 2017

A ironia é um passaporte

 

Fidalgo, Bairro Alto, Lisboa, 2 Agosto

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]erto e sabido: não nos encontramos na refeição apenas para comer. Celebramos Gaia. Por breves momentos, somos matéria afinada, ser e planeta, absorvendo a vida que dele resulta para a prolongar nos modos que soubermos. A arte da mesa fez-se sinal enorme de civilização, um gosto atento aos detalhes, capaz de retirar de cada grão o essencial. Não distingo nisto, nem a amizade, maneira de criar chão e céu vencendo a solidão a que somos destinados, nem a cultura, a ferramenta com que operamos a mais cirúrgica das funções: sabedoria.

Na prateleira, a mancha de texto distingue bem a garrafa das restantes. Palavras a vestir o vinho. Juntou-se, em rótulo de vinho exclusivo de restaurante com os pergaminhos do Fidalgo, o desenho original à pena de autor desconhecido, mas oriundo de uma redacção qualquer do velho Bairro Alto, um texto de Ateneu a explicar a cadência das refeições, devidamente traduzido e enquadrado pelo mano António [de Castro Caeiro], tudo sob a batuta gráfica do mano José Teófilo [Duarte]. Testemunho simples de gestos talvez complexos: à mesa se celebra o começo e o fim dos dias. O negro dança sobre fundo branco e o vinho é da região de Lisboa. Aconselha-se vivamente.

Santa Bárbara, Lisboa, 5 Agosto

A nossa casa ergue-se em largo lugar com o nome da santa que, na tradição cristã e por via de martírio violentíssimo com final dramático, se tornou protectora contra tempestades e relâmpagos e padroeira dos artilheiros, mineiros e outros trabalhadores do fogo. Oiço a reza da minha avó, santa bárbara dos trovões, enquanto fechava tesouras e alinhava talheres para que não atraíssem o raio.

O chão escalda-me e por isso fujo cobardemente das notícias sobre o país que arde. Fecho as páginas-tesouras. As imagens só agravam mais a ferida da impotência. Em poucas áreas da nossa vida comunitária teremos, há várias décadas, uma tal produção de pensamento tido e havido sobre a nossa floresta, outra forma de dizer, a nossa ruralidade. Basta acompanhar as incansáveis investigações e as intervenções de figuras como o estimado biólogo e professor da Universidade de Coimbra, Jorge Paiva, para o confirmar. Não apenas as ideias jamais foram postas no terreno como se caminhou na direcção oposta, a da fogueira. Arde nisto também uma forma de fazer política, a da universal cedência aos interesses, à cupidez e ao encolher de ombros, na qual a governação não se ergue da mediocridade e os actos de cidadania activa não abandonam as mesas de café. O meu próprio cansaço me queima. Nem Santa Bárbara nos vale.

Diário de Notícias, 7 Agosto

Moro por estes dias em montanha russa, sem saber onde me encontro, se no pico antes da queda se no esforço da subida. Encontro bálsamo no Folhetim de Verão do Diário de Notícias, narrado com a mestria habitual do Ferreira Fernandes, e ilustrado pelos corpos irónicos do Nuno [Saraiva] (ilustração nesta página). A soma das partes ainda há-de resultar noutro objecto, um livro, está bem de ver. Foi nascendo nas mesas da vizinhança, por entre conversas e gargalhadas, em delírio, mas dos que podem ser a notícia a qualquer momento. O cronista maior do reino esconde grande conhecimento das curvas e contracurvas da história, de quem conduz nas suas estradas, dos que foram sendo atropelados, das paisagens e das suas árvores. Há que conferir com as figueiras-benjamim e os loendros rosa. Deram por isso? Leva por título, «Lisboa, Capital do Mundo», mas esconde na ironia a ideia de porto de abrigo. Parte da plausível ideia de que Trump poderia bem despejar a sede da ONU, por razões venais e simbólicas, a qual, por via das típicas manipulações da alta política, aterraria em Lisboa. Afinal, daqui «partiram as naus que fizeram o mundo juntar-se». Não há ponta de inverosimilhança na narrativa que vai discorrendo com a leveza de gin and tonic, nem na composição das personagens, menos ainda no retrato da política, com os seus cálculos e ligeireza. O fato da ficção, embora talhado à medida, não esconde o músculo e as gorduras da realidade. E depois, sob o manto diáfano da fantasia, mora um belo amor por Lisboa.

Nova do Almada, Lisboa, 8 Agosto

Passaporte morto, passaporte posto. Já perdi um bom quarto de hora a mirar e remirar o livrinho de rasgar fronteiras. Conheço o pânico de não o ter à mão nos olhares e gestos do poder absoluto. Recordo a febre adolescente de encher as páginas de carimbos, troféu inefável do sítio que não se conhecerá nunca, apesar de visitado. Não gosto de viajar, consigo agora sabê-lo. Verifico as minhas características e confirmo a minha identidade, na qual falta o essencial, o peso. Eles lá sabem. Antigamente também contava a cor dos olhos. Nesta edição, a ilustração que complica as falsificações diz dos monumentos, da fauna e da flora, da guitarra e do cante que faz agora a identidade do rectângulo. Também se esconde muita tecnologia nisto que se dá a ver, dizem. Tanto esforço para garantir a estrangeiros que somos mesmo este nado e criado aqui.

Metro, Lisboa, 9 Agosto

Se a Maria [Keil] fosse viva, muito provavelmente iríamos celebrar os seus 103 anos ali para o Príncipe Real. Subiria a rua com ar ladino, a parar para comentar a roupa estendida, o motard ruidoso, o reflexo do sol na fruta ou aquele azulejo. Trazia sempre a ironia de ponta e mola, mas não amanhava com ela o peixe. Trocaríamos as mais recentes dos gatos e duas ou três lamentações. Os azulejos dos Anjos têm as volutas meio apagadas da sujidade do passar, do tempo e das gentes, mas brilham de cada vez que as olho.

Le Monde du Dimanche, 11 e 12 Agosto

Sophie Calle conta da sua Histoire de Amour com o gato de irónico nome Souris (rato). O nome de alguém que mais vezes pronunciou. Conta detalhes habituais para os que celebram o que contém de vida esta inquietação a que chamamos gato. Mas inusitada e perturbadora resulta a foto do Souris em pequeno caixão e mortalha. Com estranheza, revela-se melhor o pequeno deus que nele habitou. Não achas, Manuel [António Pina]? «Há um deus único e secreto/ em cada gato inconcreto/ governando um mundo efémero/ onde estamos de passagem.// Um deus que nos hospeda/ nos seus vastos aposentos/ de nervos, ausências, pressentimentos,/ e de longe nos observa.// Somos intrusos, bárbaros amigáveis,/ e compassivo o deus/ permite que o sirvamos/ e a ilusão de que o tocamos.»

16 Ago 2017

Martim Moniz | O portal que une comunidades

O Portal Martim Moniz é uma plataforma portuguesa que presta serviços de ligação entre chineses e portugueses. Do ensino de línguas ao apoio logístico, os serviços são actualmente fundamentais num momento em que China e Portugal estreitam laços

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xiste em Portugal uma plataforma que une as comunidades portuguesa e chinesa, o Portal Martim Moniz. Além de proporcionar informação bilingue de actualidade com interesse para públicos de ambos os países, fornece uma série de serviços com potencial para a integrar a comunidade chinesa em Portugal. “O Portal é uma plataforma digital de intercâmbio cultural entre Portugal e a China, cujo objetivo é dar conhecer Portugal aos chineses e a China aos portugueses”, resume a directora executiva, Sara Costa.

A vertente informativa é a mais visível da plataforma, mas são os serviços, nomeadamente relativos à língua, que representam uma maior procura. “Temos um Centro de Língua Chinesa e um Centro de Tradução e Interpretação de modo a optimizar a comunicação entre as comunidades”. O objectivo, afirma, é o fomento do intercâmbio cultural entre os dois povos.

Aprendizagem de línguas é, neste momento o serviço mais procurado e em particular o ensino do português a chineses. “É uma oportunidade de aprender português com professores qualificados para o ensino de PLE (Português Língua Estrangeira) e que possuem também um total domínio do mandarim”, diz Sara Costa. O contrário também acontece e, de acordo com a directora, são cada vez mais os empresários portugueses a procurar formação em mandarim. Estudantes do ensino secundário e universitário também integram estas formações, bem como alguns curiosos acerca da língua e cultura chinesa.

Para a responsável, a existência do portal é fundamental no momento actual de relações que os dois países vivem. “A plataforma surge numa altura especialmente próspera das relações Portugal-China. Esta é uma história que tem mais de 500 anos, uma vez que os portugueses chegaram à China no início do século XVI. Nos últimos anos temos vindo a assistir a um reforço dos investimentos chineses em Portugal, nomeadamente no sector da energia, dos seguros, da banca, do imobiliário, entre outros”.

Sara Costa não deixa de sublinhar o desenvolvimento de relações entre os dois países também no sector do turismo, sendo que “Portugal foi um dos primeiros países a estabelecer um acordo estratégico com a República Popular da China definindo, a posteriori, diretrizes para cooperação no turismo”.

“O acordo estratégico assinado em 2005 é sobretudo uma declaração de intenções passada a escrito que a China adotou para privilegiar alguns países com quem tem melhores relações e que começou a ter repercussões mais visíveis a partir de 2010”, explica Sara Costa.

Integração inevitável

A comunidade chinesa em Portugal já está, se acordo com responsável, enraizada. “Se, por um lado, continuamos a ver comunidades um pouco fechadas entre si nos negócios mais tradicionais desta comunidade, por outro vemos já a segunda geração a integrar-se nas nossas escolas, atividades e sociedade civil”. Por outro lado, refere, os sectores de trabalho a que se dedicam são também cada vez mais diversos. Para Sara Costa as relações entre os dois países estão a passar “uma das melhores etapas” e a existência deste tipo de trabalho é cada vez mais importante.

17 Jul 2017

Do turismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] turismo chegou para ficar. Pelo menos enquanto Lisboa for a capital do cool e da luz de Byron, os portugueses o povo mais acolhedor da Europa e Portugal um país tão pacífico como ridiculamente barato. No fundo, como alguém de que não me recordo terá dito, o melhor dos mundos consiste em viver num país do sul com um ordenado de um país do norte.

Mas a questão do turismo, para os lisboetas, está longe de ser respondida de forma consensual. Se há os que prezam e louvam tudo quanto os turistas trouxeram de bom a uma cidade que, há apenas dez anos, se encontrava em estado vegetativo, desertificada no seu centro excepto por aqueles que não tinham para onde ir e por meia dúzia de excêntricos encantados por morar num quarto andar sem elevador desde que se visse uma nesga de rio, existem também os que protestam por causa do aumento absurdo das rendas, por causa da sobrelotação dos transportes públicos, por causa do barulho nocturno e da sujidade e, não infrequentemente, por causa dos tuk tuks que se tornaram uma espécie de cartão postal da cidade e um hóspede regular dos pesadelos dos lisboetas mais agorafóbicos que se imaginam a ser atropelados por um daqueles modelos cem porcento eléctricos que fazem menos barulho do que uma geisha na cerimónia do chá.

Eu vivi muito tempo em Albufeira, antes de esta se ter tornado um protectorado britânico, antes dos pubs com live football e typical english breakfast e antes de o cheiro a terra vermelha tostada pelo sol ter sido substituído pelo cheiro a bronzeador na variante coco e cenoura. Na altura, a estrada que ligava Albufeira às Areias de São João era de terra e brita – very typical –, a praia de Albufeira ainda tinha uma generosa porção de areia reservada aos barcos dos pescadores e o português ainda era a língua oficial, embora alguns afoitos do engate de praia se aventurassem em iterações do inglês – factor tuelve, beibi, no sics – a que as inglesas respondiam com a generosidade do sorriso.

A inesgotável cobiça e o passar do tempo fizeram com que Albufeira fosse crescendo de forma absolutamente caótica excepto pelo facto de tudo passar a ser feito pelo e para o turista: os aparthotéis, os restaurantes, as esplanadas de praia com preços proibitivos para os autóctones, as lojecas de rua entupidas de bóias e baldes de plástico e de todo o tipo de jornais e tabaco exceptuando, claro, os nacionais. De repente, o turista com algumas posses e sequioso de sol e sossego passa a cruzar-se, na Albufeira que escolheu para torrar o subsídio de férias em gins e cataplanas de marisco, com o seu jardineiro, com o tipo que lhe guarda o jornal no quiosque e com o taxista que por vezes o leva a casa depois de uma noite no pub. De repente, os pescadores convertem-se ao comércio de bugigangas nas artérias que circundam a praia ou ao alcoolismo profissional, as tascas em pistas de dança multicolores animadas por sessões de karaoke e música de micro-ondas e as praias, outrora tão desertas como paradisíacas, são agora línguas ínfimas de areia pejadas de gente desejosa de levar para casa um melanoma de origem demarcada.

Lisboa, ainda vamos a tempo de perceber a distinção entre óptimo e o incomportável, entre qualidade e quantidade e entre viver e sermos meros actores involuntários ou bichos de circo. Lisboa só tem graça porque é the real thing e não uma encenação feita para consumo alheio. E as pessoas percebem isso. E as que não percebem ou não se importam, acreditem, não queremos que sejam a maioria dos que vêm para cá.

6 Jun 2017

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 14 Novembro

[dropcap]M[/dropcap]ão amiga traz-me de S. Tomé e Príncipe umas barras de chocolate assinadas por Claudio Corallo. Não acho mesmo graça nenhuma à cada vez mais totalitária gourmetização das nossas vidas, mas o rolo compressor deixa despontar aqui e ali uma erva daninha. Como esta atenção aos produtos da terra e ao modo como dela os extraímos. Um chocolate extremamente amargo, que não esconde o sabor a chão, contém uma saborosa contradição. Rima com tanto destes meus dias…

Mymosa, Lisboa, 15 Novembro

Circula por aí o catálogo Ilustração Portuguesa 2016, que reúne, em cerca de 400 páginas, trabalhos de quase uma centena de ilustradores, um deles o Rui Rasquinho, que sentou um pensativo Pessanha em descansativo cemitério. O regresso desta montra aconteceu a pretexto da Festa da Ilustração, de Setúbal, em cuja equipa, agora mesmo e depois de hesitações várias, acabo de manter-me. Continuo espantado com o luxuriante jardim de criatividade que esta linguagem cultiva e rega e apara entre nós. Apesar da seca criada pelos mercados e seus feiticeiros de algibeira. Tem sabor de enigma, o modo como continuam a desmultiplicar-se em projectos, a alimentar cursos, a ganhar prémios internacionais, a reinventar suportes como ecrãs ou paredes, a mastigar livros. Curiosamente, ou nem por isso, várias foram as imagens que tomaram o livro por tema, que tiveram origem em capas, que dançaram com o texto. O João Fazenda (autor da ilustração ao lado), parceiro de tantos riscos e querido amigo, foi um dos que mais converteu o bicho em metáfora: fez dele fruto e casa, rosto e partitura, mesa de cozinha e mais, muito mais. Que gosto dá flanar nesta cidade, feita de lombadas e guardas, de lombos e cortantes, de baixos-relevos e vernizes mate! Sempre em mate, que o brilho fere os olhos.

Horta Seca, Lisboa, 17 Novembro

Orson Welles morreu sem o acabar. Ainda se consegue vislumbrar o que poderia ter sido. Terry Gillian há décadas que o persegue, e um documentário, que devia dizer dos bastidores, dá-nos perfume do impossível. Nenhum deles me parece capaz de se deixar amedrontar pelo suposto gigantismo da empresa, pela comprovada complexidade da personagem, menos ainda por tola maldição colada à pele de papel. Onde procurar, então, as razões para que soçobrem os filmes sobre o sempiterno D. Quixote? Tremo ao ler a notícia de que a Disney se vai atirar à bruta figura. O mais cruel aplainador de rugosidades da história da ficção cuspirá, estou em crer, um cavaleiro de desmedida sensaboria.

Horta Seca, Lisboa, 18 Novembro

O Oxford Dictionary escolheu para palavra do ano post-truth, pós-verdade. Não era nova, mas a campanha presidencial norte-americana colocou-a nas nossas bocas. Pior, nas nossas vidas. Como se vivêssemos no universo Disney, «os factos objectivos influenciam menos a formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças individuais.» Ouviremos cada vez mais gente aparentemente sã de espírito afirmar que Obama criou o ISIS, Hillary Clinton desdobrava-se em duas. Melhor: que em democracia, cada um pode escolher a sua verdade. A democracia está cada vez mais fantasiosa, apesar de narrativa.

Rua Nova da Trindade, Lisboa, 19 Novembro

Já apagaram os carris do eléctrico? Bem sei que não os arrancam, afogam-nos em alcatrão, atirando para o futuro a leitura daquelas linhas. Houve tempos em que couberam dois sentidos ali e gosto de imaginar o chá nas canecas a fazer-se pequeno mar durante uma passagem simultânea. Dói-me não termos partilhado uma última refeição, que também as gostavas longas, mas talvez tivesse mesmo que ser assim, sem lugar para despedidas. A tua morte apanhou-me no torpor a que chamei, por fraqueza de vocabulário, férias. E agravou a crença de que talvez ainda possamos trocar umas ideias sobre o assunto, um qualquer: aguardente, pão, uma capa, a derradeira versão. A nossa última conversa foi ao telefone, quando resolveste saudar o aparecimento da abysmo da mais inusitada maneira: não queres comprar a Cotovia? Tinhas as contas feitas e os argumentos alinhados. Anos depois, percebo melhor que me querias poupar agruras. O preço era uma pequena fortuna, muito longe do que devia valer uma chancela admirável como a tua. Cuidei que brincavas, mas não. Era um preço de amigo. Demorei a perceber o gesto e só podes ter ficado sentido com a indiferença com que o recebi. Não foi por mal, foi por miséria. Quando a conversa acontecer, não voltaremos ao assunto, não vamos achatar o reencontro com conversa triste de ofício, sonharemos antes um empreendimento qualquer. Folgo em saber, pela Fernanda ainda agora, que as dores não te toldaram o sentido de humor. Chegaste com recorte de um jornal do Bombarral na mão. «Não quero a Servilusa. Detesto pequenos impérios. Já escolhi a funerária que vou querer.» No papel, anunciava-se, em corpo 12, a competência de 20 anos do gato-pingado, Carlos Nogueira: «Incontrolável em mim». Depois, em menor: «Decididamente fazer funerais é aquilo que eu mais gosto de fazer.»

Horta Seca, Lisboa, 20 Novembro

Somos excessivamente narrativos. Por exemplo, o ter passado a usar óculos, horas depois de fazer 50 anos, parece indicar o sentido óbvio do inexorável desgaste dos materiais. Mudaria alguma coisa se tivesse sido antes da data? Não, mas assim ganhou a intensidade de um sinal. O objecto acomodou-se ao corpo, quase faz parte dele. Não sem resistência, que o primeiro par logo se desfez. Os dias ganharam novas rotinas, que a limpeza tem que ser constante. Tanto pó, tanta gordura vem do que vou vendo? A escrita destas linhas faz-me viver os assuntos de outra maneira. Mas tiro pó ou acrescento gordura?

23 Nov 2016

Web Summit | Evento em Lisboa sem startups de Macau

Macau não respondeu aos apelos do primeiro-ministro português António Costa e não tem nenhuma startup representada na Web Summit, uma das principais cimeiras mundiais de tecnologia que começou há dois dias em Lisboa. Alguns empresários locais participam de forma individual para analisar o evento e o mercado

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m olhar para a lista de empresas que participam na edição deste ano da Web Summit, em Lisboa, permite chegar à conclusão de que Macau não levou nenhuma startup à capital portuguesa, ficando atrás no contexto asiático que, este ano, tem muita expressão numa das maiores cimeiras mundiais de tecnologia. Regiões como Taiwan e Hong Kong estão presentes com várias empresas, incluindo a China, o Japão e a Índia. Nem o Sudeste Asiático escapa à presença na Web Summit, existindo empresas da Tailândia, da Malásia e até do Myanmar, que começa agora a abrir-se ao mundo.

O HM confirmou junto do Instituto de Promoção do Comércio e Investimento (IPIM) que não foi enviada qualquer delegação de Macau a Lisboa, apesar dos recentes apelos deixados pelo primeiro-ministro português, António Costa, aquando da sua visita ao território.

A vinda de Costa a Macau foi mesmo pautada pela assinatura de um memorando de entendimento para “promover o empreendedorismo e o apoio às startups”, celebrado num evento destinado a olhar para a criação destas empresas ligadas à tecnologia, internet e redes sociais.

“Na economia de hoje, assente no conhecimento, na criatividade e inovação, se há algo que é essencial é estabelecer pontes (…) entre o talento e a diferença. É esse trabalho que queremos prosseguir à escala global, acolhendo em Portugal em Novembro, e nos próximos três anos, o maior evento mundial na área da inovação e do empreendedorismo, que é o Web Summit”, disse António Costa na altura.

Olhar lá para fora

Ao HM, o economista José Sales Marques recorda-se das declarações do governante português e confessa ter até ficado “entusiasmado” com a possibilidade de as empresas de Macau se poderem mostrar em Lisboa.

“Não é uma notícia agradável porque fiquei com a impressão de que Macau estaria representado. O evento em Lisboa é de muitíssima importância e teria sido também muito importante que empresas de Macau participassem”, aponta. “As empresas de Macau têm de ir lá para fora, faz parte do processo de diversificação que Macau quer empreender e é necessário que as empresas sejam competitivas.”

O economista considera que as Pequenas e Médias Empresas (PME) de Macau devem conseguir ir além dos apoios do Governo. “A iniciativa privada e o empreendedorismo são fundamentais e, nessa perspectiva, a aquisição de experiências novas e a entrada em ambientes mais competitivos faz as empresas e os projectos ganharem força. O apoio de qualquer só faz sentido se for complementar. O fundamental é que esses projectos ganhem o interesse dos mercados e investidores privados.”

“É evidente que o caminho a percorrer é só um, e exige que as nossas empresas apareçam e façam aquilo que referi. O apoio do Governo pode ser fundamental em certos aspectos, mas nunca será apenas por essa via que as nossas empresas irão expandir-se”, referiu o economista.

Os que foram sozinhos

Apesar da ausência de uma delegação oficial, a Web Summit conta com a participação de alguns empresários locais que foram sobretudo analisar o evento e o próprio mercado. O HM apurou que o empresário Jorge Neto Valente está presente, bem como outros empresários do território.

A participação de Manuel Correia da Silva, um dos fundadores da marca de moda Lines Lab, surgiu da realização do evento sobre startups em Macau e do protocolo assinado. O designer foi a Lisboa apresentar o seu mais recente projecto a convite da Fábrica de Startups Portuguesa e do Turismo de Portugal.

A startup que Manuel Correia da Silva quer implementar chama-se “I’m Mo” e trata-se de “uma plataforma online que gere e cria valor ao tempo livre que nós temos, para que possamos saber o que podemos fazer, onde e como”, conta. “O projecto está ainda a desenvolver-se e é fruto da licenciatura que temos na Universidade de São José, que tem vindo a desenvolver-se fora da faculdade.”

Manuel Correia da Silva falou da adesão massiva que as pessoas têm tido em relação ao evento, com longas filas e muitos bilhetes comprados. “Esta é a primeira vez que participo numa Web Summit e interessava-me saber o formato e os conteúdos de uma cimeira como esta. Já tinha participado num evento de Hong Kong ligado às startups, mas com uma escala completamente diferente. Queremos aproveitar a vinda de todas estas pessoas a Lisboa para lançar algumas parcerias, algumas que já temos e que estão presentes e estamos a aproveitar para trabalhar com elas.”

Sobre a ausência de Macau da cimeira, o designer acredita que, nos próximos dois anos, haverá possibilidades de maiores participações. “Seria importante haver uma representação mas também teríamos de saber como seria feita, e por quem. A Web Summit vai continuar por mais dois anos em Lisboa e vamos ter a oportunidade de ter Macau representada de alguma maneira, seja mais governamental ou independente”, conclui.

A cimeira tecnológica que nasceu em 2010 na Irlanda, e que se realiza pela primeira vez em Portugal, vai manter-se em Lisboa até 2020 e poderá prolongar-se por mais dois anos, havendo uma expectativa de retorno financeiro na ordem dos 175 milhões de euros para a edição de 2016.

Entre os mais de 50 mil participantes estarão 7787 portugueses. Além dos que vêm da área tecnológica, muitos são de sectores tradicionais como o retalho, a construção, a advocacia e a agricultura. Os participantes são oriundos de mais de 165 países, incluindo a presença de mais de 20 mil empresas e mais de duas mil startups.

OMC defende necessidade de apostar na tecnologia

O director-geral da Organização Mundial do Comércio, Roberto Azevêdo, considerou que o comércio é o “alvo fácil” das sociedades, quando é a inovação e a tecnologia que estão a reduzir os postos de trabalho nos empregos tradicionais.

“Temos um problema e está aí. E o problema é que hoje no mercado de trabalho existem sentimentos de incerteza, sentimentos de abandono, de as pessoas terem sido deixadas para trás, de não terem oportunidades suficientes”, disse o responsável brasileiro da OMC na abertura da Web Summit em Lisboa.

Roberto Azevêdo disse que “muita desta culpabilização do comércio é uma forma de encontrar um alvo fácil, o inimigo fácil, o forasteiro”. “Apontar o que é diferente e que vem de fora. E isso é injusto. Mas se formos honestos e virmos o que está a acontecer com o mercado de trabalho, não tem nada que ver com o comércio”, disse o responsável da OMC.

O dirigente da entidade que regula o comércio mundial admitiu que “dois em cada dez empregos que se perdem nas economias avançadas têm que ver com o comércio”. “Mas oito em dez ou mais tem que ver com novas tecnologias, tem que ver com maior produtividade, com inovação. E não podemos estar contra essas coisas, não podemos lutar contra essas coisas. Temos de as abraçar e perceber que são o futuro”, disse Roberto Azevêdo.

O director-geral da OMC deu como exemplo o serviço de entrega “em grande escala” de encomendas e pacotes por drones ou por camiões automáticos, sem condutor. “Só nos Estados Unidos há 3,5 milhões de condutores de camiões. Esses tipos vão perder os seus empregos. E não só eles? Todos os da assistência à beira das auto-estradas, cafés, restaurantes, estações de serviço. O que vai acontecer com todas estas pessoas?”, questionou o dirigente perante muitos milhares de jovens que assistiam à abertura da Web Summit.

Roberto Azevêdo também considerou que não vale a pena dizer “daqui a uns anos que não se sabia que isso ia acontecer”. “Isto vai acontecer. A questão é saber como lidas com isso. Se não perceberes qual é o problema vais receitar o remédio errado, e o remédio errado é o proteccionismo”, disse o responsável da OMC, para quem essa receita significa “esmagar as oportunidades de milhares de pessoas como as que estão aqui hoje”. “Jovens que querem ser empreendedores, que querem conectar-se e fazer negócios. O comércio não é o monstro, mas também não é a panaceia”, concluiu.

9 Nov 2016

Heterónima e outras demonstrações

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas.

Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos.

Pessoa, de que todos falam, ninguém ainda escutou no devido silêncio de um temor antigo. Conhecem a parte que lêem como uma adaptação de cada um de nós em sua voz, como algo que vem de fora para dentro, mas não sabem os caminhos de fronteira que fazem os homens serem assim e não de outra maneira: mesmo os estudos Pessoanos são vazios de observação neste domínio, que se me apresenta, vital, para que tenhamos então todas as associações probabilísticas. Este judeu, era, como todos, de natureza velada, tanto que nem anatomicamente se mantinha o mesmo, havendo o lado fugidio de quem sempre em fuga não faz mais que reproduzir a herança, pondo-a a trabalhar e a ser – no mínimo que faz. Este míope, que ora dilatava, ora ficava esguio como uma enguia, que trazia as calças por cima dos calcanhares ( todos os judeus fazem isto, mesmo que não notem. Jacob, quando da luta com o Anjo, fere-se no calcanhar, era coxo, portanto; e essa fronteira que dá para o chão fez de cada um homens de calças curtas) que era conversador, também, errante na cidade, trilhava os passos de algo que lhe estava prometido.

Notemos a infalibilidade de um destino quando se tem herança assim: que faziam eles? Eram astrólogos, magos, iniciados. O Catolicismo, mesmo de fachada, nada lhes dizia, e a sua forma de trabalhar foi sempre pelo registo do elemento alquímico. Não era certamente um anunciador de futuros para senhoras de sociedade e tagarela da prosápia dos jogos de cartas. Não, trata-se de um respeitável intérprete de rigor e íntima contemplação, que fez interagir no seu enunciado e deu forma a cada personagem que “inventou”: ou eram mesmos reais? Elementos de uma cultura de graus vários… também os profetas eram pastores! O medo é real, perante ele podemos expor o melhor de nós. A poesia de Pessoa não é um jogo de palavras que se amontoam com sentimentos em cima. É uma inteligência fina da alma, um refinamento singular numa laboriosa maneira de cumprir o génio por detrás da palavra escrita. Não há Pombas do Espírito Santo, nem Pentecostes nestes processos, nada cai na nossa cabeça… e na língua, por milagre infantil, tudo é um longo processo de elaboração, um caminho trilhado na linha da continuidade. Todo o seu drama era passar da casa oito para a casa nove… astralmente… um drama de passagem do deserto para a Terra Prometida. Para entender o que Pessoa fez é preciso muito, muitíssimo, mais.Ffoi necessário algo que até aqui ainda não foi lembrado: contextualizar todos estes dados e não andar atrás da quimera do ente isolado que tanto gozo dá aos que gostam de estar sozinhos. Mas a sós ou não, ele seria sempre a pessoa que Pessoa era.

Todo este dispositivo tremendamente óbvio, de tão desconhecido, dá-me por vezes uma intimidade muito boa com esta consciência, como se lá do fundo ainda me segredasse coisas que só direi depois. Como sabem, ele ainda está a escrever, idem as enigmáticas e as misteriosos frases que por aí aparecem… eu não jurarei que não… Afinal, trata-se de alguém que está disfarçado e, mesmo que não estivesse, foi assim que ao longo de séculos se apetrechara para sobreviver.

Se as pessoas fossem mais atentas, saberiam porque são raros os poetas: eles são os últimos de uma longa cadeia que reuniu toda uma herança, e tal como ele bem viu: “sentimentos todos nós temos” para depois: “sentir, sinta quem lê “. Ele tinha a denúncia toda em si, mas, o mais óbvio, sabemos que os povos não são capazes de ver, encaminhando para teses amorfas, análises pesadas, formas pedantes, análises irracionais, algo que está a nível chão da nossa percepção.

Também com esta postura foi firmando o seu ar triste e grave, dando-se conta da fragilidade da memória dos Povos, estando em trânsito como um corpo estranho numa nave de loucos. E com esse olhar se foi. E, ainda hoje, a louca leviandade do mundo acrescenta teses às suas formulações a partir deste ente que tanto desconhecem. Teriam certamente uma vida mais monótona pois que, a existir, um poeta está a dinamizar o mundo em vários ângulos que a própria vida na sua robustez não conseguiria jamais fazê-lo.

28 Jul 2016

Hotel Lisboa | Ministério Público exige mudanças na acusação

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a sessão de ontem do julgamento que coloca Alan Ho, antigo director do Hotel Lisboa, no banco dos réus, juntamente com mais quatro arguidos, o Ministério Público (MP) pediu aos juízes para alterarem a acusação de Alan Ho, Peter Lun, gerente do hotel, e Bruce Mak, chefe de segurança.
Segundo a Rádio Macau, o MP pretende que os arguidos passem a estar acusados pelo primeiro artigo do crime de exploração de prostituição, referente a pessoas que aliciem ou atraem outras para a prática de prostituição ou que explorem a prostituição de outrem, ainda que com consentimento. Já o segundo artigo, pelo qual os arguidos estavam acusados até então, faz referência a quem angaria clientes para prostitutas, com ou sem pagamento.
A mudança na acusação pode implicar uma pena de prisão entre um e três anos. Os advogados de defesa têm agora dez dias para responder ao MP. A Rádio Macau noticiou ainda que ontem foi o último dia em que as testemunhas foram ouvidas. Um vice-gerente de recepção do Hotel Lisboa confirmou outras informações já ditas em tribunal em relação ao departamento das “Young Single Ladies”, nome pelo qual eram conhecidas as prostitutas que frequentavam o 5º e 6º andar do Hotel Lisboa. Este funcionário confirmou novamente que Alan Ho, Kelly Wang e Peter Lun geriam este espaço.

10 Fev 2016

Lisboa acolhe a primeira Festa do Cinema Chinês

Os espaços Cinema Ideal e Cinemateca Portuguesa vão receber a primeira Festa do Cinema Chinês na capital portuguesa, entre os dias 10 e 30 de Setembro. 12 filmes actuais e cerca de vinte clássicos vão ser transmitidos numa festa que será repetida em 2016 na China, mas com filmes portugueses

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] mais uma tentativa de aproximação de dois países distantes que querem ser mais próximos. Entre os dias 10 a 30 de Setembro será organizada em Lisboa a primeira edição da “Festa do Cinema Chinês”, a qual irá mostrar ao público cerca de 12 filmes produzidos por realizadores chineses na actualidade, incluindo mais vinte películas clássicas.
Segundo um comunicado difundido nas redes sociais, a “Festa do Cinema Chinês” é o “resultado de uma nova colaboração a nível cultural e cinematográfico entre os dois países e que no próximo ano dará lugar a uma Festa do Cinema Português na China”. Com este evento, “o cinema chinês e de expressão chinesa terá uma grande celebração pública em Portugal, naquele que será o primeiro grande acontecimento da rentrée cinematográfica”.
A abertura do evento far-se-á com a presença de uma delegação oficial dos responsáveis de cinema da China, incluindo membros da Cinemateca Chinesa e do Xiao Xiang Film Group.

Locais com carisma

Os filmes irão passar em dois lugares de eleição para ver cinema na capital portuguesa, o Cinema Ideal e a Cinemateca Portuguesa. O festival começa dia 10 no Cinema Ideal, com a exibição do filme “Mountains May Depart – Se as montanhas se afastam”, do cineasta Jia Zhang-ke. Até ao dia 16, o Cinema Ideal continuará a receber mais filmes contemporâneos, incluindo a ante-estreia do mais recente filme de Hou Hsiao-Hsien, “A Assassina”, que ganhou o prémio de Melhor Realização do Festival de Cinema de Cannes deste ano. Vão também ser exibidas películas de Lou Ye, Ann Hui e Tsui Hark, incluindo mais seis filmes produzidos pelo XiaoXiang Film Group.
Cabe à Cinemateca Portuguesa exibir os vinte clássicos chineses, entre os dias 17 e 30. O programa de filmes intitula-se “Cinema Chinês: Panorama Histórico e Retrospectiva Xie Jin” e procura “traçar um panorama histórico dos filmes realizados entre 1933 e 1997, exemplificando as quatro grandes etapas da cinematografia chinesa”.
Estas etapas dizem respeito ao cinema de Xangai produzido antes do ano de 1949, o cinema feito entre 1949 e a Revolução Cultural, as películas feitas no período da “quinta geração” e todo o período até à “sexta geração”. Na Cinemateca Portuguesa “dedica-se uma retrospectiva de Xie Jin, um dos maiores realizadores chineses, cuja obra foi reconhecida antes e depois da Revolução Cultural” e o período de transição entre a “quinta” e a “sexta geração”. Por outro lado, dedica-se uma retrospectiva a Xie Jin, um dos maiores realizadores chineses, cuja obra foi reconhecida antes e depois da Revolução Cultural.” Segundo a apresentação publicada no website da Cinemateca, este ciclo dedicado ao cinema chinês antigo “visa antes de mais proporcionar a quem a desconheça um primeiro contacto com as várias etapas dessa história”.

A bem do intercâmbio

A Festa do Cinema Chinês é uma iniciativa das cinematecas Portuguesa e Chinesa, com o apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), do departamento do cinema da Administração de Estado da Imprensa, da Edição, da Rádio, do Cinema e da Televisão da China, da embaixada da China em Portugal e da congénere de Portugal na China.
O evento resulta da colaboração estabelecida, a nível cultural e cinematográfico, entre Portugal e Pequim, e decorre na sequência da visita oficial à China do secretário de Estado português da Cultura, Jorge Barreto Xavier, em Novembro de 2014. Em 2016, a I Festa do Cinema Chinês em Lisboa terá a correspondente Festa do Cinema Português, na China, segundo o comunicado do ICA.
“Favorecer o intercâmbio cinematográfico através do diálogo entre autoridades, responsáveis e profissionais dos cinemas chinês e português, e dar a conhecer na China a riqueza do património cinematográfico e da cultura de Portugal” são objectivos do certame, lê-se no comunicado.

20 Ago 2015