A mão no rosto

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Setembro

Conhecia este texto, que dança nas profundezas, da Inês [Fonseca Santos], fruto da deliciosa prática da partilha – toma que está maduro, ajuda-me a descascá-lo. Desconhecia o quanto de solar dele extraiu o Mantraste – olha como o cubismo nos permite fazer do fragmento corpo inteiro. E depois ao ser impresso o raio do texto ganha outros tons – será rosto maquilhado? «António Variações – Fora de tom» (ed. Pato Lógico/ Imprensa Nacional), esguio de formas, como todos os da colecção Grandes Vidas Portuguesas, está cantarolando pelas estantes, nas minhas mãos.

Os bem-pensantes, que os há sob cada pedra em todos os quadrantes, insistem no erro de que os livros de putos apenas a eles se destinam e dispensam leituras aos entretanto crescidos. Neste pequeno volume, a Inês e o Bruno dizem tanto sobre a vida de cada um, as vidas dos outros, o peso das palavras, o modo como elas nos abrem ou fecham os dias, falam do que somos se o soubermos ser! Sem condescendências, sem medo de se apaixonar pelo tema, brincando invariavelmente às construções, das caras e dos versos. «Não é em linha reta, o humano», mas há geometrias ocultas, linhas de terra. A fortíssima face do António Variações atravessa o livro por completo, faz-se paisagem e cadeira, dança e ternura, microfone e enxada. Perto, tão perto, passeiam-se as mãos, enormes. Notável a subtileza com que o Bruno insere elementos de uma ruralidade identitária que só o Variações soube tornar cosmopolita – raiz e antena. As convenções, se podem ser casa, tendem a tornar-se prisão. António Variações não deixou ainda de rasgar cantando a liberdade.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 16 Setembro

Andamos nisto, a disparar em todas as direcções assoberbados com estampas e retratos, talvez auto, à velocidade do absurdo. A Festa da Ilustração explode lá para o início do outonal mês e o José Teófilo [Duarte], à queima-roupa, sem apelo nem agravo, pede-me reflexão escrita em torno do labor de misturas da Marta [Madureira]. Travo a fundo as urgências e fecho-me para vaguear nos seus rostos, lado visível de dilectas geometrias: «A colagem tem sido o seu território. O corpo a sua matéria, o seu assunto, a borracha ilimitada com que estica as histórias, ainda que de outros. E nessa estrutura de tronco e membros, a peça principal tornou-se a cabeça. Ou melhor: o rosto.» Amo mãos, a sua dança na atmosfera, a deliciosa relação que estabelecem com a face respectiva. Do gesto nascem caras (algures na página, exemplo virtuoso). Nisto, a colagem a imitar estes dias, feitos disto e aquilo, sobras e princípios sobre uma qualquer folha suja (de calendário). «A Marta desde sempre integrou na sua linguagem fragmentos do mundo, que deixam de lhe pertencer mal pousam sobre a página tornando-se cor, textura, sinal. Uma mola reproduzida tal e qual não prende nada, do mesmo modo que as esferas metálicas se podem tornar olhos de bicho. E até foi fazendo mais, acrescentando dimensões ao plano, ou vestindo de penas e tecidos certos corpos. Um pouco mais de vida em naturezas mortas.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 17 Setembro

Na escala evolutiva, um livro em pdf ou afim, por útil e facilitador que seja, não consegue ainda andar como um livro. O texto, longe dos nossos olhos, combina-se com as imagens, de modos que só a geometria descritiva explicará, e explode em objecto de capa e espada, perdão, página. Dá-se, então, o mistério. Doravante não será mais meu, ou do Tiago [Albuquerque], que o enriqueceu com visões, este «Jean Moulin – A sombra não apaga a cor».

Serão as vidas a terra de onde brotam as histórias? Basta discorrer um percurso para prender leitores a ponto de ignorarem a vida? Esta biografia aventurosa e por um triz banal deu filmes e romances, mas deu sobretudo um rosto, aqui tintado a negro e sombreado de azul. Ecoa ininterrupta a bela frase de Malraux, à beira do Panteão, com o que este contém de abysmo: «Hoje, juventude, pudesses tu invocar este homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele foi o rosto da França.»

Artur Bual, Lisboa, domingo, 19 Setembro

Surge-me estranha, a praça, talvez deprimente no sinuoso como se apresenta, indistinta entre o que deve ser a face e a rabada. Certos bairros parecem ser, de qualquer ponto de vista, traseiras. A minha infância tardia andou por perto, mas não conhecia o lugar que meia dúzia de organizadas cadeiras encheram em momento aprazado, regras sanitárias cumpridas com escrúpulo. O evento, que rima para mim com cimento, cruza depoimentos de gente que é o bairro com poesia solta sobre a habitação. O Henrique [Manuel Bento Fialho], que me acompanha a convite do Nuno [Ramos Almeida], está visivelmente mais confortável com estas circunstâncias de campanha, as palmas ritmadas, as palavras de ordem, o entusiasmo que não sei fingir.

«Já não se fabricam pistolas de brincar./ Os meninos brincam aos contabilistas com pistolas a sério,/ visões demasiado gerais, ou demasiado concretas, de uma realidade com cimento nas frestas.// Do mesmo modo, hão-de acabar com o teatro, o namoro, e todas as reinvenções da realidade.// O Porky Pig há-de acabar em chouriços e estes no cu dalgum político, cheio de sucesso e anacoretismo.»

Desorientação militante. Não posso apoiar candidato maioritário e triste que foi entregando a cidade aos interesses mais venais, a ponto de continuarem a ameaçar uma das minhas colinas (a de Santana). Custa-me que seja socialista a gerir ao sabor das modas sexy. Não alinho na política cultural invisual e incapaz de perceber que nem tudo se constrói sobre nomes. Ergo, portanto, voz titubeante em favor do João Ferreira e de um partido comunista que se abra em curva sinuosa. E na passada li três poemas do Miguel [Martins], incluídos em «São Miguel da Desorientação» (ed. Macondo), por serem exemplos da boa prática da raiva. Herdeiro do desmancho exacto de bom pata negra, o poeta usa diligentemente a frase longa, que espeta da página a marcar as peles que se aproximem. Se ainda houver punk está por perto, mas em jardim. A sua afirmação vigorosa consiste em levantar-se arrastando paisagens com a lentidão de quem tem necessidades a cumprir: dizer-se.

«E, então, sim, poderemos progredir sem estorvos, rumo a uma sociedade cor-de-rosa// governada por antidepressivos de última geração,/ em que comer baratas já não seja uma desgraça/ mas uma oportunidade para nos conectarmos com possibilidades alternativas da nossa história comum.”

29 Set 2021

Fonseca Santos. 2018. Inês. Suite sem Vista. Lisboa. Abysmo.

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a poesia da Inês, há uma situação paradoxal que é explorada no laboratório vital. De uma forma activa, a compreensão faz ver, dá a ver. Por um lado, a interpretação estrutural dos espaços privados, públicos, subjectivos e cósmicos, é feita toda ela a partir do interior íntimo da sua habitação.

Este interior é tudo menos geométrico. Não se opõe a nenhum exterior. É antes o ponto de irradiação da nossa vida. É heterogéneo. Permite uma geografia da instalação da existência e, por isso, faz vibrar também o desenraizamento. O existencial é constituído a partir da privacidade. Sente-se tensa a relação entre o limite extremo abobadado e o aquém, onde cada um tem, não o seu ponto de vista, mas o seu corpo próprio.

Opera-se a personificação dos objectos. Melhor, porque não há objectos, das coisas. Há peças. Peças de mobiliário. O mobiliário é a totalidade das coisas, cidades e campo, edifícios públicos e privados, casas, quartos, hotéis: o recheio do mundo, as peças de mobiliário da nossa existência.

Em ambos os casos, percebemos que é o quarto, recesso recôndito do amor e de tudo o que lá se faz sem amor, a partir de onde se expandem as vidas dos amantes num único mundo, numa única vida, numa eternidade à escala universal. E nem mesmo quando é uma suite de Hotel deixa de ser o sítio inóspito para onde somos atirados, despidos de nós. A morada provisória transforma-se numa morada permanente. Inverte-se o sentido habitual. Afinal a vida não é mudança mas a imobilização que nos pode prender a um sítio, num tempo que nunca mais se transformará. E, contudo, está em permanente mudança como Jonas na barriga da baleia no seu percurso interior e submarino. Ou, como nas antigas cosmogonias, a vida é a barca em que embarcamos e de onde desembarcamos.

A cidade inteira, a Terra, o céu é o interior. Embora a astronomia tivesse afastado irremediavelmente a subjectividade das estrelas, para as transformar em objectos regimentados por regras e leis, ainda subsiste a compreensão para a claustrofobia das vidas das pessoas no seu encaminhamento, as pessoas que encontramos e aquelas de quem nos desencontramos, os que ficaram para sempre e os que se foram não menos para sempre. Em XII, lê-se este lugar, “suite sem vista”, “passa a subúrbio”.

Mas é no próprio ponto de vista, na perspectiva, ou talvez melhor do acesso, que percebemos sempre de um modo negativo a presença dos objectos das nossas vidas, presentes, passados e a haver.

Em I., lemos a “cegueira voluntária”, o “encobrimento” como espaço estrutural criador de opacidade para o presente, mas também o “esquecimento”. O esquecimento não é um acto psicológico negativo que nos faz esquecer apenas, ou não nos deixa lembrar, do passado, mas é o que pode apagar um mundo e por sua ineficácia também o manter vivo. Por mais que se possa “tapar os olhos”, não é possível “esquecer o cheiro do outro”. O outro está presente, mas é apenas a sua impressão, deixada em nós do passado. Com ele somos o estado em que fomos deixados.

A vida é a lentidão do tempo reflectida na lentidão do movimento, da deslocação e na dificuldade ou aparente impossibilidade de acontecer qualquer transformação e mudança. “Os passos lentos/ devolvem o peso ao corredor”. O outro não é residual: “a sujidade das unhas como a humidade ou bolor interno”. A rapariga “cega atravessa paredes”, tem a densidade de um fantasma, porque como diz a filosofia existe em e por si, exclusivamente para si. Não é vista. É um fantasma a conviver com o fantasma daquele outro.

Só olha para “A cama: só cama, demasiada, insultuosa/ tudo a dobrar ou excessivo para quem fica numa casa sem outro que a houvera habitado”. O quarto todo, a casa toda, é como se fosse o hotel, mesmo que habitado na suite, no melhor quarto. Mesmo que o hotel não fosse de beira de estrada, porque tinha sido um sítio para dois. E tudo sobra: “dois lavatórios pelo preço de um, dezenas de miniaturas// para o asseio, cofre, minibar, canetas, um postal,// a garrafa de Evian por cortesia.”

Em II, descreve-se esta sobra. Há “metade da vida”, quando se “respirava a vida inteira cronométrica”. Desce-se ou sobe-se até “Ao lado, [até a]o casal demasiado brando,// roupões brancos, lençóis brancos, dedos brancos”. Qual o sentido da brandura? A da ternura ou a do tédio que permite ver o desfecho cruel mas inevitável de quem quer literatura e não a vida? A verdadeira solidão, porém, não é compreendida na sua dinâmica sem se perceber na ”desolação da abominação” como diz a teologia.

Em III., a geografia da solidão é a da desolação da abominação, é a do abandono. E o gato vadio que é levado para casa e “mija” em cada canto não reclama um espaço para si. O que faz é para se reconhecer ainda, a partir de um detrito de si próprio: A cartografia da vida é ““um mapa mental que jaz sepultado onde outra mulher exibe a cabeça dele, um troféu// terra devastada de ninguém.”

O outro é outro, é adulterado e alienado. E é afirmado na sua impermeabilidade a nós. Segue a sua vida, faz a sua vida, com outra pessoa. É esquizofrenia pensar numa criatura da nossa cabeça ser a criatura na cabeça de outrem, a fazer vida com outra pessoa.

Se os espaços amplos permitem espraiar-nos, lidamos com espaços estreitos, espeleologicamente: a “escavar” (IV). Por onde vamos é “túnel”, só há “dentro” e é “sem vista”. E na demanda minimal por um sítio onde se possa estar, havemos de topar com a “caixa do primeiro luto”, “minúsculo caixão do passarinho negro”, “esqueleto do pássaro e o que outrora terá sido a rapariga.” O “passarinho” (Catulo) símbolo zoológico das delícias do amor, da promessa, da esperança. E também da despedida, da morte, do desespero.

As formas de acesso identificáveis permitem-nos descer à altura do passado, ao subterrâneo, ao tesouro da vida (Santo Agostinho). Nenhuma memória sobrevive impune. É necessária a sua reconstituição afectiva. Todas as mortes, todas as nossas sobrevivências, estão arredadas do quotidiano. É necessário esconjurá-las, mesmo que depois nunca mais nos larguem. A vida é habitada por estes vários revestimentos. Somos variadíssimas pessoas que ainda temos contacto residual com vidas passadas, habitualmente em sossego.

As memórias afetivas permitem esta compreensão de diversas vidas que temos e a dificuldade em acedermos ao modo como éramos sós ou com alguém, antes ou depois, nas diversas idades das vidas. A solidão configura a existência, crucifica-a. O outro despega-nos e desprega-nos como “iunx”, a ave condenada a vaguear uma existência sem fim, pregada às rodas de um carro, a rodar por todo o terreno, a toda a velocidade. A roda não é a da fortuna mas a da prisão onde Afrodite e Ares foram presos com cavilhas por um Hefesto ciumento.

Outrora (V), era o tempo das cerejeiras. Era o tempo que marca o fim do inverno e o princípio da primavera. Era o tempo da contemplação da transitoriedade que é metáfora viva da vida na sua crónica curta duração, símbolo do Samurai no Japão não apenas da guerra mas também da sensualidade do fruto da cerejeira. Aqui há “cerejeiras a avançar agressivas pela rapariga dentro”.

A sujidade luto das unhas, vestígio residual do outro, requer (VI): “corta-unhas”, “lâminas”, “eixos metálicos”, “dedos”. Mas também sobraram “peles”, “pensamentos”, “spleen”. O baço está cheio de bílis negra. E a melancolia actua como todos os grandes impérios: “ferindo e alastrando, sangrando”. (XIII): “Espelho e parede dão o mesmo a ver”. “Bebe de novo o tédio do lado rachado do corpo. E da boca da rapariga sai a palavra sangue.”

É com o cerco feito à cidadela que pode nascer uma outra possibilidade (VII): viver e fazer literatura fazer amor e escrever sobre o amor escrever e ser inscrito. Mas a possibilidade de oferecer resistência ao vazio de sentido, à partida do outro, à abominação da recusa, à amargura da interdição pode não existir. Talvez o da nossa usura da vida por mor da arte e não por mor da vida.

Porque só há outros para poder não haver outros. Só há encontros para poder haver desencontros. Só há promessa para poder haver despedida. E demora muito tempo a perceber que foi sempre esta a chave para a nossa compreensão do mundo. E sim (VIII) haverá “Silêncio, nenhuma voz, descanso ruminante de electrodomésticos, limpeza de quartos, porta, paredes, suite sem vista”, porque “A rapariga é a própria suite dentro da qual ela se encontra” (IX). A rapariga vê-se no seu interior como dentro de uma suite sem vista para a rua. Mas a rapariga poderá nunca ter saído de si. Quem quer ter a sua vida configurada pelo sentido da arte já deu a sua alma ao diabo ou tê-la-á vendido. Terá de compreender, e o mesmo quer dizer aceitar, que não há volta a dar. Foi para além do ponto, a partir de onde não há regresso: “Não te será permitido amar”. “O artista é irmão do louco e do criminoso.” (Thomas Mann).

A presença invisível àquele outro único que poderia ter olhos para ela e de cuja presença depende a sua existência não é já actual. Ter pertencido a alguém é reflexo da memória no espelho. Um reflexo do reflexo, inconsistente outrora. Mas agora já não existente. Já só tínhamos o reflexo do próprio que era o outro. Agora, existindo só como fantasma, temos o reflexo do reflexo. O outro insinuou-se e ficou inoculado no próprio. O próprio é um reflexo que age ou reage ao outro na sua ausência. É residual em si de qualquer coisa que ainda tempera e dá um gosto, melhor, um travo do que foi. Mas, agora, é só “o amargo de boca”.

Como sobrevive a rapariga “amputada de si, do outro que lhe dá prazer naquele sítio que como na alma acolhe o geodésico instante da loucura” (XI)?: “o olho do medo brilha e amplia o espaço onde não se pode estar// dentro das palavras é dentro das paredes da suite sem vista// cheiro insuportável da rapariga era o de quem escreve.” (XIV).

16 Jan 2018

Inês Fonseca Santos: “O meu tempo é da espera”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta, escritora de livros para crianças, onde tens sido distinguida com prémios, e apresentas neste momento um programa na televisão “Os Livros”, acerca de livros. Qual a principal diferença entre escrever para crianças e escrever poesia?

Para além de “Os Livros”, também edito e apresento o “Todas as Palavras”, sendo que neste caso o programa é partilhado com o Luís Caetano e a Ana Daniela Soares. Não há grande diferença, na verdade. Se houver, é meramente formal. A poesia e a literatura infanto-juvenil são irmãs gémeas, gémeas siamesas, para ser rigorosa, porque nascem do mesmo “zigoto”, do mesmo ovo. Que normalmente é a imaginação e o espanto, sobretudo no que diz respeito ao modo de nos relacionarmos com o mundo e com a linguagem. Em suma, poesia e literatura para a infância e a juventude partilham da mesma natureza e em ambas é possível aproximarmo-nos das essências, questionando a regra, libertando-nos dela.

De qualquer modo, o teu livro de poesia A Habitação de Jonas, acerca do qual escrevi aqui no jornal e pelo qual tenho grande apreço, tem um tom de “realidade” que não é próprio para crianças.

Claro. Mas não é para crianças. Os outros, ditos “para crianças”, é que são para todos. Seja como for, o que disse na resposta anterior, tem a ver com a criação, com as “ferramentas” e os “truques” e os “recursos” que tem ao dispor quem escreve poesia e quem escreve literatura “para crianças”.

Recentemente lançaste um novo livro para crianças, que é também uma biografia, de José Saramago, com ilustrações de João Maio Pinto, na editora Pato-Lógico. Que te levou a este projecto, o autor, o género biografia ou a literatura para crianças?

O livro é co-editado pela Pato Lógico e pela INCM. A editora Pato Lógico, em parceria com a INCM, tem uma colecção de biografias para os mais novos que se chama “Grandes Vidas Portuguesas”. É nessa colecção que está integrado o livro “José Saramago — Homem-Rio”. Escrevi-o porque o André Letria, editor da Pato Lógico, me convidou a fazê-lo. Aceitei de imediato precisamente por me permitir somar todas essas parcelas que referes: a literatura para os mais novos, a biografia, a obra de um grande escritor e ainda a criação de um álbum ilustrado, que é sempre um desafio acrescido, uma vez que temos que escrever deixando espaço para que alguém acrescente significados com imagens. Esta combinação de parcelas permite que o livro não fique confinado a um só território, pois, em rigor, não estamos perante uma biografia convencional; tentei escapar a isso precisamente por ser um álbum ilustrado para a infância e a juventude. Tive que escolher o que contar e, mais importante, como contar.

Tens dois livros de poesia – escrevi neste jornal acerca do teu segundo e último livro – As Coisas (Abysmo, 2012) e A Habitação de Jonas (Abysmo, 2013). Para quando um novo livro de poesia?

Para breve, espero. Tenho um livro por acabar há uns anos. Chama-se “Suite Sem Vista”. E um outro que reúne poemas dispersos, publicados em antologias e revistas, e alguns inéditos. Este aguarda que lhe ponha ordem, se é que tal é possível; o outro aguarda algumas palavras. Costumo ser uma pessoa organizada, excepto quando escrevo. Escrever é, na essência, uma actividade livre. Por isso, só escrevo quando preciso mesmo de escrever, quando não há maneira de escapar àquela qualquer coisa em mim que se quer transformar em palavras, para lembrar Paul Claudel. O meu tempo é o da espera.

Tens alguma ideia de programa, que gostasses de fazer na TV, acerca de livros ou de livros e crianças?

Tantas, que terias que pedir mais páginas de jornal para as podermos partilhar todas. Resta saber se essas ideias cabem numa televisão…

Sei que estiveste uma vez em Macau, tinhas acabado de ser mãe há pouco tempo. Como sentiste essa tua experiência?

Fui a Macau para um encontro de poetas lusófonos e chineses, a convite do Centro Nacional de Cultura. Foram muito intensos esses dias em Macau por vários motivos. Partilho os bons: ter ficado muito amiga do Luís Quintais, um dos poetas com quem fiz essa viagem e que eu já lia há muitos anos, mas não conhecia pessoalmente; ter conhecido um lugar onde o meu Pai viveu uns tempos e sobre o qual escreveu e me contou histórias; ter partilhado poemas e experiências com pessoas que desconhecem em absoluto as línguas que eu sei falar; ter sentido o medo e a adrenalina de ser estrangeira; e ter sentido que, em qualquer sítio do mundo, estamos sempre com os nossos, estamos sempre a regressar a eles, a casa.

30 Dez 2016