Han Shan – Os poemas da Montanha Fria

Tradução de António Graça de Abreu

 141

Vivo algures numa aldeia, no campo,

não tenho pai, não tenho mãe.

Não tenho nome, nem família ilustre,

chamam-me “velho Zhang” ou “velho Wang”.

Ninguém me ensina coisa alguma,

pobre e simples, tal foi o meu destino.

No coração, gosto muito da verdade,

firme e sólida como um diamante.

 142

O tempo passou por aqui,

regresso hoje, após setenta anos.

Velhos amigos, já nenhum me visita,

foram enterrados em túmulos antigos.

Hoje, os cabelos todos brancos,

mas guardo ainda as nuvens da montanha.

Que posso ensinar aos homens do futuro?

Apenas palavras do passado.

 143

É sagaz o espírito do homem superior,

ouve, conhece a essência das coisas.

É claro o espírito do homem mediano,

pensa, entende o que é necessário.

É lento o espírito do homem inferior,

difícil penetrar num crânio entorpecido,

só quando o sangue lhe sobe às meninges,

compreende como foi demasiado longe.

Surpreendidos, todos olham o culpado,

no julgamento amontoa-se o povo da cidade.

Condenado, o cadáver é tratado como lixo,

ninguém tem mais nada a dizer.

Rapazes, gente crescida,

um golpe e cortam o corpo em dois,

Um rosto de homem, um coração de animal.

Quando terminarão estes negócios?

 144

Alcandorado nas rochas, num lugar secreto,

escondido, impossível de descrever.

Não há vento, as lianas agitam-se,

não há névoa, os bambus envoltos em bruma.

Os regatos cantam, mas para quem?

De súbito, na montanha, rolos e rolos de nuvens.

Ao meio-dia sentado na minha cabana,

para sentir o sol subindo no espaço.

 145

Vejo os homens do mundo,

perdidos, calcorreando os caminhos da poeira,

sem entender por onde vão,

nem como abandonar as rotas sem regresso.

Os dias felizes, quantos, no fim de contas?

os parentes, os amigos, tudo tão de passagem…

Mesmo diante de mil medidas de ouro

é melhor ser pobre, sob os pinheiros.

 146

O lucro, a fama, o teu coração exausto,

cem vezes envolvido pela cobiça.

O acender de um pavio, a ilusão de passagem,

em breve serás enterrado no desconforto de um túmulo.

 147

A cadeia de montanhas, as águas soberbas,

a névoa escondendo o horizonte verde.

O vento acaricia, humedece o meu chapéu,

o orvalho entra no meu casacão de palha.

Nos pés, as sandálias gastas do viandante,

na mão, um velho bastão de junco.

Ao longe, olho ainda esse mundo de poeira e ilusão,

o sonho, o que tem a ver comigo?…

 148

Recordo os dias da minha juventude,

caçando tantas vezes junto a Pingling.

Não era do meu gosto vir a ser mandarim,

buscar a imortalidade, também não me agradava.

Quase voava no meu corcel branco,

gritando atrás de lebres, soltando o meu falcão cinzento,

ignorava que um dia conheceria o exílio.

Agora, os cabelos todos brancos, quem cuidará de mim?…

 149

Nuvens, as montanhas entram pelo azul do céu,

um caminho afastado, a floresta densa, ninguém de visita.

De longe, a lua solitária, iluminada e pura,

de perto, o esvoaçar, o chilrear dos pássaros.

Velho, sentado, diante de cumes verdejantes,

nostálgico e tranquilo, no planalto entre os montes,

Os cabelos brancos, o ano passado, hoje,

o coração livre, como uma onda correndo para leste.

 150

Solitário, sentado diante da falésia,

a lua redonda ilumina todo o céu.

Dez mil coisas mostram-se ao luar,

naturais, sem nenhum disfarce.

O espírito claro, a essência do simples,

abraço o vazio, atravesso o mistério.

Um dedo aponta a lua, lá longe,

a lua, no meio do coração.

 151

Há quantos anos habito na Montanha Fria,

despreocupado, cantando, livre de todas as penas?

A cancela sempre aberta para o silêncio, o mistério,

doces, as águas do ribeiro, sussurando.

As lages da sala, no chão um caldeiro com cinábrio,

resinas de pinheiro, incenso, rebentos de cipreste.

Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,

harmonia no coração, encostado às rochas.

 152

A falésia fria, na essência, sempre bom,

ninguém atravessa estes caminhos.

Nuvens brancas ao acaso pelos montes,

cumes azuis, guinchos dos macacos, na distância.

Não mais parentes e amigos,

sigo o curso dos dias, vou envelhecendo.

Forma e conteúdo, frio e calor, tudo muda,

imutável uma pérola no coração.

 153

Encontrei uma menina na casa do leste,

ainda não completara dezoito anos.

A oeste, todos os homens a queriam p’ra si,

combinou-se uma boda, houve um casamento.

Assaram-se carneiros, mais de mil convidados

morderam a carne, saciaram a gula.

Tão felizes, riam de alegria,

chegará um dia a colheita das lágrimas.

 154

Hoje, sentado diante da falésia,

sentado até ao levantar da névoa.

Um simples arroio frio de cristal,

a dez léguas, ainda os cumes e picos de jade.

Imóveis as sombras das nuvens ao nascer o dia,

o luar da noite ainda flutua no vazio.

No meu corpo nem manchas, nem poeiras,

no meu coração nem traço de inquietude.

 155

Velho, doente, perto do fim, mais de cem anos,

rosto amarelo, cabelos, brancos, ainda adoro a montanha!

O corpo coberto de peles, sigo o meu destino,

afastado de vez das seduções do mundo.

Quando se usa o coração para renome e fama

entram no corpo cem diferentes desejos.

Esvoaça a vida, extingue-se a candeia, dissipa-se a ilusão,

no túmulo, enterrado o corpo, temos o não ter.

 156

Habito a montanha,

ninguém me conhece.

Entre nuvens brancas,

o silêncio, sempre o silêncio.

31 Jul 2023

O Poeta da Montanha Fria – Liu Qiuyin

Porquê questionar as gotas de orvalho,
o sol nasce, elas transformam-se em névoa.
O corpo não é um palácio,
mas uma simples estalagem.
Por isso tu, hóspede de passagem,
liberta-te da paixão, da ignorância, do ódio.
O que resta depois? A mágoa, a iluminação,
uma gota de orvalho, rigorosamente nada.

 

O homem que um dia se chamou Han Shan, ninguém sabe quem foi. Quando alguém o via, considerava-o um doido, um pobre diabo. Vivia retirado na montanha Tiantai, sete léguas a oeste do distrito de Tangxing, num lugar chamado Han Shan (Montanha Fria), entre rochas e falésias. Daí descia frequentemente para o templo de Guoqing, ao encontro do seu amigo Shi De, encarregado da limpeza da cozinha do mosteiro que lhe guardava restos de comida em malgas feitas com cana de bambu.

Han Shan costumava passear-se pelos terraços do templo, gritava de alegria, falava e ria sozinho. Os monges corriam atrás dele, tentavam agarrá-lo, insultavam-no, às vezes queriam bater-lhe. Então Han Shan assumia outra vez um comportamento normal, esfregava as mãos, sorria e partia. Parecia um verdadeiro mendigo. O corpo e o rosto estavam gastos, consumidos pelos anos, no entanto havia coerência nas suas palavras e bastava pensar no discurso de Han Shan para adivinhar ideias profundas. Tudo o que dizia tinha a ver com os segredos do passado, com o subtil princípio das coisas. O seu chapéu era uma casca de bétula, as suas roupas estavam cheias de buracos e usava tamancos de madeira muito gastos. Assim vivia este homem extraordinário, afável, isolado, diluído na natureza, espalhando bom gosto. Nos terraços do mosteiro murmurava palavras surpreendentes como “a transmigração e os três mundos”. Nas aldeias e herdades próximas, Han Shan cantava e brincava com as crianças que pastoreavam os búfalos de água.

Quer as coisas lhe corressem bem, quer as coisas lhe corressem mal, mostrava-se sempre satisfeito. Se não estávamos na presença de um sábio, então como reconhecer um sábio?…

Há tempos atrás, quando ainda não ouvira falar em Han Shan, fui nomeado para um posto pouco importante na prefeitura de Tanqiu. Na altura da partida apareceram-me umas terríveis enxaquecas.

Chamei um curandeiro que me tratou, mas os padecimentos agravaram-se. Atendendo à minha solicitação, veio então um mestre chan 禅 de nome Feng Gan que me disse habitar no templo de Guoqing, na montanha Tiantai. O monge Feng Gan cantava hinos e costumava cavalgar um tigre, o que assustava os outros monges.

Quando lhe perguntavam qual era a essência dos ensinamentos de Buda, o mestre respondia: “Seguir o tempo.” Pedi-lhe então que tratasse da minha enfermidade. Feng Gan sorriu e disse:
“Os quatro elementos estão no seu corpo, a doença provém da ilusão. Se vos quereis libertar da moléstia é preciso simplesmente água pura.”

Trouxeram água e o mestre despejou-a sobre mim. Pouco tempo depois as enxaquecas desapareceram. Feng Gan acrescentou: “A prefeitura de Tanqiu fica junto ao mar, perto das ilhas no meio do oceano, o clima é muito húmido. Ao chegar, cuidai bem de vós.”

Perguntei-lhe: “Gostava de saber se existem alguns sábios na região, pessoas que eu possa considerar como meus mestres”.

Feng Gan respondeu: “Os sábios são fáceis de encontrar, difíceis de reconhecer. Quando a gente os vê, não os reconhece, quando a gente os reconhece, não os vê. Se quereis mesmo vê-los, não confiai nas aparências. Podereis então olhar para eles. Han Shan é como Manjusri,[1] escondido no templo de Guoqing, por sua vez, Shi De é como Samatabhadra.[2] Ambos parecem uns pobres diabos, uns doidos. Chegam e desaparecem, trabalham no templo de Guoqing, cuidam dos fogões, da cozinha.”
O mestre acabou de falar, pediu licença para se retirar e partiu.

Chegou a altura de ser eu a meter pés ao caminho, rumo ao meu posto em Tanqiu. Não esqueci o assunto e, três dias depois de entrar em funções, dirigi-me a um templo próximo e interroguei respeitosamente um velho monge. O que me respondeu, correspondia exactamente às palavras do mestre Feng Gan. Dei então ordens para que, em todo o distrito de Tangxing, se tentasse encontrar Han Shan e Shi De. O mandarim distrital disse-me:

“Quinze léguas a oeste da nossa prefeitura encontra-se uma falésia enorme onde existe uma gruta habitada por um vagabundo que visita frequentemente o templo de Guoqing. Às vezes passa lá a noite. Na cozinha do mosteiro trabalha um monge parecido com ele, de nome Shi De.”

Decidi então dirigir-me para Guoqing. Ao chegar perguntei:
“Este templo é habitado por um mestre chan chamado Feng Gan. Onde se encontra o seu quarto? Vivem também aqui os monges Han Shan e Shi De, como é que eu os posso encontrar?”
Um religioso de nome Tao Jiao respondeu:

“O quarto do mestre Feng Gan fica por detrás da biblioteca, mas neste momento ninguém habita lá e de vez em quando ouvimos os rugidos de um tigre. Han Shan e Shi De estão agora na cozinha.”

Em seguida, o mestre conduziu-me ao quarto de Feng Gan. Abriu a porta e não havia ninguém, viam-se apenas as pegadas de um tigre. Perguntei aos monges Tao Jiao e Pao De: “Quando o mestre se encontra aqui, o que faz?” Deram-me a seguinte resposta: “Durante o dia, Feng Gan anda por aí, recolhendo e descascando arroz, à noite canta para se distrair.”

Dirigi-me depois para a cozinha. Diante do fogão dois indivíduos aqueciam-se e riam às gargalhadas, os rostos iluminados pelo fogo. Saudei-os respeitosamente. Deram um grito, apertaram as mãos e começaram outra vez a rir. Um deles disse: “Ah, o Feng Gan, esse grande coscuvilheiro! Se o senhor não é capaz de reconhecer um Amithaba[3] porque nos veio cumprimentar?”

Aproximaram-se outros monges surpreendidos com a estranha situação de um mandarim saudar e conversar com aqueles pobres diabos. Han Shan e Shi De aproveitaram para fugir. Ainda pedi que alguém fosse no seu encalço, mas os dois homens já tinham desaparecido a caminho da Montanha Fria. Perguntei depois aos monges se eles estariam dispostos a alojar as duas criaturas permanentemente no mosteiro.

Foram preparados dois quartos para eles e pedi que alguém lhes fosse comunicar o meu desejo de se instalarem de vez no templo de Guoqing.

De regresso à prefeitura, dei ordens para que fossem feitas roupas novas para Han Shan e Shi De e que as mesmas lhes fossem entregues, junto com pauzinhos de incenso. Os dois homens não haviam regressado mais ao templo e os meus criados levaram as vestes e o incenso para a Montanha Fria. Quando lá chegaram, Han Shan gritou: “Ladrões, ladrões!” E entrou numa gruta. Antes de desaparecer, pronunciou estas últimas palavras: “Digo-vos, segui os ensinamentos de Buda.” Depois foi impossível acompanhar os seus passos. O rasto de Han Shan tinha desaparecido.

Por fim, solicitei ao monge Tao Jiao que tentasse saber algo mais sobre os dois homens e que recolhesse os poemas de Han Shan. O homem da Montanha Fria escrevera pouco mais de trezentos poemas que gravara em lâminas de bambu, na casca das árvores, nas rochas, em muros de aldeias. Shi De escrevera os seus poemas nas paredes do templo. Tudo foi então compilado e organizado em livro.
O meu coração procurou o refúgio de Buda. Tive a sorte de encontrar os homens do Tao.

*Governador de Taizhou
Pilar superior do Império
Portador da insígnia do peixe, dom do Imperador, guardado num estojo vermelho (Séc. IX)

Tradução e notas de António Graça de Abreu

9 Set 2022

Impermanência

É ela a grande dama do chá «Anicca», um conceito a que se juntam dois outros e que nos fala de mutação, essa constante do universo na melhor acepção budista que assenta na fluidez e no vínculo temporal que mantemos com as coisas e a consciência; ela pode ser até a porta giratória para as várias situações que ao serem interrompidas, se esgotam, morrendo, ou voltam mais tarde de outra maneira, não havendo o caminho linear que produza ditame último. Talvez tudo deixe de existir quando não fizer sentido, que o sentido do universo será essa forma de ” bailya d´amor” associado ao fluxo do tempo que passa.

Este maravilhoso princípio aplica-se a tudo, e não será de mais lembrar « o banhar nas mesmas águas» que manteve para sempre jovens os filósofos gregos, onde mais tarde dogmas vários foram abrindo fissuras para essa capacidade de se conseguir estar vivo por sucessivos fenómenos que transpõem o fim de considerados limites: aqui a morte entra no conceito, não como términus, mas ainda como processo constante de dádiva permanente, e é bem por esta perspectiva que o fluxo das coisas deve ser constante, que o mesmo universo de movimento vasto deverá ser um só e único Poema num verso que aqui se integra condensado. UNI(VERSO).

Os dramas agarram-nos como âncoras, e quando reparamos, sabemos que interrompemos o ciclo fluvial das marés e questionamos os pescadores sobre o canto de amor das baleias, que eles pensam ser sereias, sentindo-se atraídos para o mar profundo pela melodia cuja princípio fluído desconhecemos em nós. Esta imponderabilidade é mãe de lendas e narrativas, encanto que não devemos incapacitar pela sorte artificial dos bens terrenos agarrados a férreas estratégias de fixação.

Que a terra dura, se refaz, e se transmuta tão insistentemente como qualquer outro elemento prendendo aos mastros os Ulisses, e embarcando-os em todas as «Naus a Haver», que em nós, nunca repousa a dúvida nem permanece o estanque sentido da certeza; não há certeza, ainda assim habitamos em tudo.

De repente, a vida não quer que a nossa própria vida caminhe pela rota traçada, e traçamos mais caminhos cujo futuro desconhecemos – que o futuro se esconde enquanto o olhar de ontem permanece imóvel- e ao não controlarmos coisa nenhuma deixamos todo o espaço de uma fonte, vazia, para requerer a sua habitação, mudando-nos na via da composição como uma outra qualquer estrela. Nunca saberemos quem vamos encontrar, ou melhor, integrar, que o encontro, marca já o desencontro, mas na integração não existe mais a chacina da ruptura.

A Desfiguração, esse gigante imanente a toda a nossa produção da ideia moderna, não entra aqui. Não se está alinhado aleatoriamente compondo um sucessivo historial de coisas na vertente do ego, não morando portanto nesta inqualificável unidade que se diria inefável a todo o sábio budista, que para tal leveza teve de ter toda a disciplina de uma vida, mas onde podemos recorrer a algumas semelhanças mesmo na mudança de rumo que vemos flutuar entre as duas injuções. – Mutável, não é mutante, diferente, pode acabar por ser igual, mas unido, é um algoritmo que transcende a base de dados até do espectro virtual. – É belíssima a capacidade oriental de saber contemplar o cálice vazio! Mas, vazio de quê? Esta pergunta separa-nos para sempre, que velozmente as nossas sociedades perdem também a sua dinâmica de “cálice cheio”.

E cheio de quê? [Quem estava antes virá depois, quem estava longe estará presente, quem acreditou será traído, quem venceu será derrotado] por instantes tudo parecerá a antítese dos construtores de verdades, mas quem trilhou o caminho do meio estará ausente das consequências finais. No centro não há princípio nem fim, o Cabo das Tormentas engloba as escusas que fizemos a um tal encaminhamento, crendo-nos o centro de uma centralidade indevida manchada por exaustivas imprudências de contemplação.

Entre «Encontrado» e «Encoberto» prolonga-se na vida o silêncio escuro da paz, que a luz faz desaparecer a escrita terrena que cega os seres que não sabem da leitura para além de seu limitado alfabeto. Que nesta impermanência, toda a luz sobeja. Ela que nos queimou os manuscritos não resguardados e nos fez soletrar a treva sem a disciplina para o nada da imponderável manifestação. Digo, esquecimento.

«…. Quem consegue desligar-se do mundo
E sentar-se comigo no meio das nuvens brancas?
Han Shan

24 Ago 2022