Sopros de paixão

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

[dropcap]E[/dropcap]xperiência é a palavra dum viajante em zona estranha, hostil.» Ainda há poucos dias, Fernando Belo (Lisboa, 1933-2018) publicava em uma das pontas da sua intrincada meada de blogues intenso depoimento acerca da entrada enquanto pensador irrequieto no jogo de gato e rato entre espiritual e intelectual. Engenheiro por causa dos números, padre por via de um transe, filósofo em resposta a uma enorme paixão… intelectual.

«Comecemos por distinguir intelectual e inteligente: este é quem compreende as coisas do mundo, além dos seus interesses próprios, aquele é quem sabe jogar com conceitos e literaturas. Há quem sem ter estudos superiores e sem ser intelectual seja fortemente inteligente e há intelectuais académicos que são burros de fazer dó (acontece-me em certos aspectos da vida). […] Também o motivo de ‘espiritual’ tem que ser distinguido de ‘religioso’, que se constituiu como uma forma social englobante de toda a sociedade, desde o nascimento, enquanto que o ‘espiritual’ parte da conversão da vida e rompe com o aparato ritual e doutrinal da religião. Mas também o ‘espiritual’ não é a pôr apenas do lado da ética, que esta também tem incidências intelectuais, ainda que filósofos, cientistas e artistas possam por vezes rebaixarem-se eticamente. Seria tentado a pensar o que chamei ‘respiritual’ do lado do sopro na vida, mais do que da ética de que, melhor ou pior, muita gente dá provas em vidas que não são fáceis: ‘respiritual’ seria o sopro duma paixão que se põe acima do culto dos feitiços habituais, o dinheiro, o poder, as ortodoxias mediáticas, uma paixão que não transige, não se dobra em face do que impera.»

Os seus textos não perdem densidade quando se deixam tomar pela poesia. E, contudo, deu, como poucos, atenção à materialidade e ciência. Lamento muito não o ter chegado a editar. Há que percorrer estas suas paisagens em busca de vestígios de funda linguagem, do ser e do tempo, do corpo e da alma. Como de oxigénio, dedo no ar, tenho que perceber de onde se pode reacender o sopro.

Povo, Lisboa, 3 Dezembro

A cada segunda, a noite estremece: por vezes arrepio, outras relâmpago. Outras nada, mas ainda assim há 274 sessões que Poetas são ditos e celebrados pelo Povo, no Cais Sodré de ancestrais traficâncias. Desta, tratava-se de alguém que ajudou, luas atrás, a definir o perfil do lugar. O mano José [Anjos] não teve como seguir as suas instruções e desaparecer. Dando cor aos seus versos, fez-se presente de guitarra na mão e pedais ao pé, de par com Filipe Homem Fonseca no teremim, que encheu o ar de futuros e distintas coreografias de mãos tocando o nada. O resto deu-se no ziguezague costumeiro das vozes cavas do Vitor [Alves da Silva] e do Pedro [Lamares] e as mais agudas do mano António [Caeiro] e do gordo que se assina.

Nem toda esta poesia nasceu para ser dita, mas em muita a voz fá-la ganhar corpo e respiração. Sou testemunha próxima do amadurecimento do poeta também na sua encarnação de diseur, encenando leituras com rigor extremo e testando sem descanso parcerias variáveis, em busca da companhia e do instrumento exacto para aquela palavra. Estas exibições não dispensarão leituras em modo íntimo, olho na página, mas toca lugares nem sempre visíveis apesar de palpáveis. No que me diz respeito, o mistério acontece na partilha plana da pessoal interpretação, como se a estivesse a ouvir na minha cabeça, sem efeitos de maior.

A voz que se segue logo revela mais possibilidade. E nisto se descobre pelo verso corrido, respirado, suado do Anjos a oculta arquitectura das paisagens.

Nova, Lisboa, 5 Dezembro

Aristóteles teve de ir a casa. O António [de Castro Caeiro] anunciou-o e o Luís [Gouveia Monteiro] explicou-o estabelecendo paralelo entre as personagens do clássico liceu e as tribos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O Paulo [José Miranda] detectou a estranheza com que o outro, qualquer que seja, nos surge (texto publicado há dias nestas páginas). «As Constituições Perdidas de Aristóteles» continuam a suscitar desafiantes leituras. «No mundo de Aristóteles os elementos têm vontades: a terra deseja cair em direcção ao centro do universo, o fogo anseia pelo céu, a natureza tem horror ao vazio. No nosso também, e ainda nem sequer nos livrámos da ideia de que os deuses nos olham lá de cima sentados numa nuvem, às vezes visitam-nos e podem até, em querendo, pescar-nos como peixes. E as Constituições, produto daquelas escolas, como a academia e o liceu, são um documento essencial para um momento único na história da espécie, uma verdadeira indústria de conceitos, de espírito, que procurou organizar e sistematizar o conhecimento disponível numa espécie de primeira grande modernidade intelectual da espécie.» Mas o Luís foi mais longe e traçou uma genealogia do jogo entre alma e corpo, espírito e matéria para concluir: «E é claro que as coisas têm desejos, como disse Aristóteles, como precisa a metafísica e como a poesia sempre suspeitou. A física contemporânea continua à volta dos problemas daquilo que não é nem espírito nem matéria, ou então é as duas coisas ao mesmo tempo, como a luz. […] O mistério continua intacto e esta tradução enriquece esse mistério, dá alimento ao pensamento e à imaginação.»

Palácio, Queluz, 7 Dezembro

A Divino Sospiro, assombroso projecto animado pelo Massimo [Mazzeo], instalou-se em boa hora no renovado Palácio Nacional de Queluz, lugar de prolongados namoros entre paisagem e arquitectura. E estendeu-se com um Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, que lançou, entre muitas outras iniciativas, um primeiro volume dos «Cadernos de Queluz» (ed. Hollitzer) dedicado à «Serenata and Festa Teatrale in 18th Century Europe», e coordenado por Iskrena Yordanova e Paologiovanni Maione. De grafismo irrepreensível, os dezasseis estudos levam-nos a lugares e celebrações do fausto, mas sobretudo a uma complexa maquinaria teatral que criava mundos nas capitais da Europa. Artifício e verdade, poder e arte dançavam apaixonadamente juntos. Dançavam?

S. Luiz, Lisboa, 10 Dezembro

«Sócrates tem de morrer», certo e sabido. Uma certa ordem das coisas, por exemplo a que diz serem distintas a alma e o corpo, precisa da morte para se afirmar. Mickaël de Oliveira investigou Platão e produziu um díptico, ao qual se soma «A Vida de John Smith», erguendo cenário para questões que nos atravessam, rindo, rasgando e perturbando. Na primeira parte, a lógica do pensamento que garante a sobrevivência da alma depois da morte leva à criação de grupo quase terrorista. E quase apenas por ser o assassinato o seu horizonte, não tanto o terror. A segunda parte revela-se distopia: «a matéria (a linguagem, as texturas, a luz) não é obstáculo ao conhecimento, no qual já não existem segredos, particular ou universais.» É um mundo triste, de onde a poesia está ausente, a custo, diz a personagem, mas ausente. Não radica aí a tristeza, antes na inescapável cedência à lógica de qualquer poder: jamais se questionar nunca. E o fim da linguagem não resolveu os imponderáveis. A ficção científica nacional, subitamente rica, tomou os palcos e neles questiona futuros de maneira aguda. John Smith, em poderosa interpretação de Albano Jerónimo (foto de Bruno Simão algures na página), pega na arma do mais chão bom senso e corta cerce.

13 Dez 2018

Escritora Dulce Maria Cardoso regressa com romance sobre a “vida normal” na era digital

[dropcap]E[/dropcap]liete, de Dulce Maria Cardoso, põe “a vida real e não editada” em contraponto com a vida digital, num romance que explora as “máscaras” que encobrem a “vida normal” das pessoas, a mudança e a identidade do país.

“Eliete – A vida normal” centra-se numa mulher de meia idade, caracterizada pela mediania em tudo, casada e mãe de duas filhas, agente imobiliária, que se sente insatisfeita com a vida e com o casamento, e que, na procura de mudança – vontade desencadeada na sequência da hospitalização da avó, com sinais de Alzheimer – vira-se para as conquistas através da internet e das redes sociais, que no romance têm um papel central.

“A grande dificuldade destes tempos é fazer coincidir o eu digital com o eu real e ultrapassar o facto de nós estarmos sempre a ser avalidados”, diz a escritora em entrevista à agência Lusa.

Um ‘like’ a mais ou a menos faz sempre mossa, “porque os ‘likes’ são agora as palmas de antigamente, é uma maneira de dizer ‘gosto de ti’, ‘estás bem’, e pressupõe sempre uma comparação com os outros, quem tem mais gostos e quem tem mais comentários”.

Esta é uma realidade que não pode ser ignorada, porque a “vida editada também é vida” e a grande dificuldade reside em conciliá-la com a vida real.

“Ainda estamos na mudança é tudo muito recente é a primeira vez na história da humanidade que estamos tão juntos”, e, embora os sentimentos básicos permaneçam, as circunstâncias em que esses sentimentos se manifestam são outros e “acabam por se revestir de outras máscaras”.

“O que a Internet veio fazer, e o Facebook, é esta possibilidade de cada um ter a sua voz ampliada até chegar a todos, é iluminar isso, é de alguma maneira nós podermos espreitar as outras vidas e perceber, nessa edição dessas vidas, que há muita solidão”, considera Dulce Maria Cardoso, que foi uma das convidadas do festival literário Rota das Letras.

Este caminho não agrada à autora, não pela Internet em si, mas pelo uso que dela se faz: serve para “eleger presidentes, com resultados terríveis”, mas também serviu para impulsionar a Primavera Árabe.

“A invenção da electricidade tornou-nos outros, passámos a trabalhar à noite, passámos a ser outros, cada vez que a técnica nos dá uma ajuda, passamos a ser outros, porque nos passamos a comportar de maneira diferente, passamos a ter outros limites. Agora a internet ainda nos está a mudar mais, porque é mais poderosa ou aparentemente pode, em termos emocionais, provocar mais mutações”, disse à Lusa.

No romance, Eliete começa a ensaiar traições ao marido através da rede social Tinder, ideia através da qual a autora explora o dilema da traição e do adultério real e virtual.

Dantes o caminho era o vizinho ou o colega de trabalho, agora “acho que não há ninguém que tenha Facebook que não tenha andado num ‘roça-roça’ virtual”, diz Dulce Maria Cardoso, para quem este livro é também “uma radiografia da traição”.

A normalidade em “Eliete”

A par da “mudança” como motor da história, Dulce Maria Cardoso escolheu a normalidade, conceito depreciativo, mas que esconde o “extraordinário” e “irrepetível” que cada vida é.

“Ninguém quer uma vida normal, apesar de ser um conceito muito tentador e ter sido o conceito com que Salazar convenceu os portugueses a aceitar a ditadura, e também por isso [o livro] se chama vida normal, porque Salazar está a enquadrar esta vida normal no livro, mas ninguém quer a vida normal”.

O ponto é que, visto de perto, “todos nós somos extraordinários”, cada um de nós “carrega o seu ponto de vista, que é único e irrepetível, e aí é que está a grande beleza disto tudo: a senhora mais desinteressante que se possa ver na rua tem de certeza uma história que carrega com ela e que é única, que é dela, pertence-lhe e não é repetível”.

Pelo caminho desta normalidade, Dulce Maria Cardoso reflecte sobre a identidade de um país “esquizofrénico” e com comportamentos ainda salazarentos, que esquece o passado recente.

“Há um paralelo político, há um retrato de Portugal no livro, e há a questão de Salazar e da herança de Salazar. Não se pode não responsabilizar a Eliete pelo que ela faz, mas também não se pode não se responsabilizar quem – a família dela – a deixou chegar àquilo. Em termos políticos é a mesma coisa, não se pode desresponsabilizar quem votou no Bolsonaro ou no Trump, mas também não se pode desresponsabilizar quem deixou chegar a isto”, considera.

O romance começa com uma referência a Salazar e termina com uma carta do ditador, que deixa em aberto o desenvolvimento do enredo no próximo volume. A ideia desta personagem inusitada surgiu do questionamento de quem é esta geração pós 25 de Abril e que país é este que ficou da revolução que deitou abaixo a ditadura.

“Infelizmente eu tenho que me declarar herdeira de Salazar, porque é o governante que mais tempo governou em Portugal, com uma máquina de propaganda, foi ele que nos deu esta imagem que carregamos, foi no Estado Novo que nós nos organizámos com esta ideia de povo que temos. Ele não deixou herdeiros, mas deixou estes herdeiros todos que formatou, há muitos comportamentos nossos que ainda são salazarentos”, disse.

Quando começou a pensar sobre identidade, Dulce Maria Cardoso começou a pensar em todas essas questões, e dá como exemplo o futebol.

“Há um capítulo dedicado ao jogo com que Portugal ganhou o campeonato, porque era importantíssimo enquanto identidade do país, como nós nos comportamos, porque temos aparentemente uma baixa auto-estima, mas basta ganharmos qualquer coisa, como uma final, e somos os maiores outra vez e já vamos dominar o mundo outra vez. Somos muito esquizofrénicos”, afirmou.

A avó de Eliete e a sua demência desempenham na história também um papel fundamental, por um lado, por uma questão metafórica, porque ela tem mais ou menos a idade dos anos que advêm da Segunda Guerra Mundial, e simboliza a demência de que padece o “corpo social”, que, esquecido da guerra, rapidamente se deixou arrastar pelo fascismo.

Por outro lado, a situação clínica da avó reflecte uma preocupação da autora com a incapacidade física e financeira das famílias para cuidarem dos idosos e da falta de respostas sociais para as situações de dependência em fim de vida: “Eu começo por não perceber porque nos querem prolongar tanto a vida, se depois não sabem o que fazer connosco”.

Os “amigos imaginários” da escritora

Dulce Maria Cardoso tem várias pessoas na cabeça, “amigos imaginários”, e são estas que a procuram e se afirmam enquanto personagens, como é o caso da Eliete, que é também uma brincadeira consigo mesma.

“Eliete”, romance sobre a “vida normal” na contemporaneidade, que abarca as relações humanas, a mudança imprimida pela Internet e a identidade do país, tem como protagonista uma mulher normal, caracterizada pela mediania, e que o menos normal que tem, aparentemente, é o nome.

“A Eliete nasceu primeiro, porque para mim as personagens nascem sempre primeiro, começa sempre por eu avistar, como se visse uma sombra ao longe, a ideia de uma personagem, depois vou à procura, tal e qual como se conhecesse uma pessoa”, explicou a autora.

“Dito assim parece uma conversa de maluca, mas sou extremamente cerebral em tudo o que faço e tudo o que é publicado é revisto e montado e cortado, tenho controlo absoluto no meu trabalho, só não tenho controlo nas personagens, portanto o único mistério na criação está nessa existência de personagens, que por vezes não se deixam ficar”.

Mas Eliete foi ficando, primeiro teve outro nome, outra família, até que Dulce Maria Cardoso percebeu que era a Eliete, com aquela família – marido e duas filhas – que tinha de ficar.

“É, na verdade, [um processo com] vários amigos imaginários estruturados, habituei-me a ter pessoas na cabeça, tenho sempre, e algumas ficam tempo suficiente para que eu possa trabalhar sobre elas”, disse à Lusa.

A escolha do nome para a personagem tem a ver com o facto de o romance ser sobre a identidade, na medida em que Eliete era um dos nomes possíveis para a autora, antes de nascer.

“Achei que fazia sentido, era uma maneira de recuperar esta outra que toda a vida me acompanhou”, disse, contando a história que a mãe toda a vida lhe contou, de como o pai – que estavam em Angola quando Dulce Maria Cardoso nasceu – estava convencido de que iria ter um filho rapaz, e mandou à mãe uma lista com dois nomes masculinos “normais”, Manuel e Francisco, e dois de rapariga “disparatados”, Eliete e Dulce.

A mãe não gostou de nenhum, mas na altura não lhe passou pela cabeça desobedecer e escolheu o menos mau, tendo passado toda a vida a contar esta história à filha e a dizer “Eliete era bem pior, não achas?”.

“E eu toda a vida sempre vivi com esta dúvida: se eu me chamasse Eliete quem é que eu teria sido?”

Para Dulce Maria Cardoso, escrever é a possibilidade de ter várias vidas, e, nesse sentido, “é muito infantil”: “Posso ser tudo o que me apetecer, e em várias vozes, e em certos comportamentos que em termos fisiológicos não posso ser”.

A pesquisa nas redes sociais

Sobre os métodos de pesquisa para o seu romance, a autora afirma-se muito atenta ao que a rodeia e, para explorar as relações e as formas de comunicação através da Internet, bastou-lhe andar três dias no Facebook para perceber toda a dinâmica, porque a Internet e as redes sociais “são muito intuitivas”.

A pesquisa mais aprofundada que fez foi para a personagem de Salazar, que aparece como uma referência no início do romance, e assina uma carta, no final.

“Li os discursos todos dele. Não procurei os trabalhos de outros sobre Salazar, tive como matéria só a própria produção de Salazar, li os discursos todos, e a própria carta é montada só com palavras dele. Fui pegar nas palavras que ele costumava usar e a carta é feita de forma a que possa surgir com o vocabulário dele e com a maneira dele construir as frases, tive esse cuidado para tornar a carta mais credível”, explicou.

Sobre o seu processo de escrita, diz ser “o mais anormal possível” e conta que chegou lá “por acidente”, mas depois adoptou o método como permanente.

“Reescrevo muito, faço uma versão, depois outra, depois outra até achar que a versão está bem, depois apago tudo e escrevo de memória, é uma coisa horrível que não recomendo a ninguém”, afirmou à Lusa.

Tudo começou no seu segundo romance, “Os meus sentimentos”, quando um vírus apagou todo o romance do computador. Nessa altura, Dulce Maria Cardoso fechou-se e escreveu tudo “numa corrida contra o tempo”, para se esquecer o menos possível.

Quando releu, achou que estava muito melhor do que o romance inicial: “Vou muitas vezes por caminhos desnecessários, quando reescrevo, o cansaço fala mais alto e vou ao essencial”.

Este processo é para a autora “muito difícil” e, em termos físicos, muito exaustivo, porque demora anos na primeira fase, mas breves meses na reescrita de memória, em maratonas de 12 a 14 horas diárias. “Mas é compensado pelo enorme prazer que me dá”, sublinha.

Assume que ao escrever este romance, sentiu a pressão de não desiludir, depois do enorme sucesso de “O retorno”, mas “não foi paralisante”, foi como uma “dívida de gratidão para com os leitores”, de “não querer desiludir quem tanto gostou”.

Sobre o próximo volume, que dá continuação à história de Eliete, adianta que tem mil páginas escritas, ainda por individualizar, e que sabe muita coisa do que acontece à Eliete, mas não tudo.

“No princípio do ano vou começar a trabalhar no segundo volume, mas ainda não sei quantos vão ser. Sei que gosto muito de estar a trabalhar nisto”.

11 Dez 2018

A literatura lusófona é afectada pela periferia linguística, diz Ondjaki

[dropcap]A[/dropcap] literatura lusófona está “numa certa periferia linguística” a nível internacional, apesar de o português ser uma das línguas mais faladas do mundo, considera Ondjaki, um dos escritores angolanos mais conhecidos em Portugal.

“Nós, os do mundo da língua portuguesa, lemo-nos”, mas as traduções do português não são suficientes para saírem desse universo, comparadas com a dimensão de outras expressões linguísticas, como inglês ou o francês, reflecte o escritor.

Ondjaki, nascido sob o nome Ndalu de Almeida, deu uma entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque, poucos dias depois de ter visitado a Feira do Livro de Guadalajara, que decorreu no México, entre 24 de Novembro e 2 de Dezembro, e que tinha Portugal como convidado de honra.

Apesar do pouco conhecimento que os autores actuais têm fora “do mundo da língua portuguesa”, Ondjaki afirma que é inegável a qualidade que existe e que deve continuar a existir.

Na visão do escritor, “temos de continuar a batalha” explorando as traduções para mercados que têm mais força, como o inglês, francês ou alemão, e “continuar a gerir a nossa literatura com qualidade”, para que a literatura lusófona seja fortalecida a nível internacional.

Em Guadalajara, o ficcionista, poeta e autor de livros infantis, inseridos no Programa Nacional de Leitura, participou numa mesa de debate com Pilar del Rio e Gonçalo M. Tavares, sobre o escritor José Saramago, que dá o nome ao prémio que ganhou em 2013 pelo romance “Os Transparentes”.

Nesse mesmo festival, fez parte de uma performance artística com o artista plástico António Jorge Gonçalves e o pianista Filipe Raposo, dando continuidade a uma vasta lista de apresentações ao vivo que o autor tem realizado em várias partes do mundo.

Ondjaki tem explorado a performance artística e não hesita em participar em actividades de improvisação em frente ao público, sendo estas “oportunidades de estar com outros artistas” e de rever amigos, diz o escritor à Lusa.

Além de leituras ao público, o autor participa em projeções de textos escritos ao vivo, com improvisação musical ou improvisação imagética (pintura) por outros artistas – uma “oportunidade de experimentar outras sensações, para depois voltar à escrita”, resume.

Com uma vasta obra editada em vários países, Ondjaki diz que “a performance é uma reescrita, uma oportunidade para escrever de outra maneira”, mas também “tem um grau de risco, porque não tem tempo para editar, não tem tempo para rever”. “Um momento que vive e morre aqui”, assegura o autor à Lusa.

Sobre os temas literários com que se costuma relacionar, Ondjaki diz que “qualquer tipo de literatura, incluindo aquela que às vezes pensamos ser para crianças, deve abordar qualquer tipo de temática social, (…), mas, sobretudo, se isso se acasalar com o objectivo literário do escritor”.

Ondjaki defende também que todos os leitores devem ser habituados à reflexão sobre os grandes problemas da actualidade, de forma “urgente”.

Homossexualidade, desigualdade, exclusão social ou ecologia são alguns dos temas que o autor e sociólogo defende que devem ser introduzidos na educação das crianças, em tenra idade, para que sejam discutidos e debatidos.

“Para que a criança não tenha de lidar com o racismo quando esse racismo já está profundamente incorporado na pessoa”, exemplifica Ondjaki.

“Quando se trata do meu universo infantil”, diz o escritor, “tento descobrir que parte do labirinto da infância se pode tornar labirinto da literatura. Porque a literatura também é um labirinto. E a nossa vida também. E os nossos sonhos também”.

10 Dez 2018

De cavalo para burro

[dropcap]Q[/dropcap]uando no outro dia acabei de ver “Broken Lance” (“A lança quebrada”) na TV reforçou-se-me a convicção de que dar atenção aos filmes pela assinatura do realizador, segundo o vigente e peremptório dogma do “cinéma d’auteur”, traz menos benefícios do que prejuízos a quem quiser ver o cinema sem os óculos escuros dos estereótipos.

Quase ignoto, pode-se considerar “Broken Lance” como um anódino produto saído em 1954 da linha de montagem de Hollywood. Edward Dmytryk, o seu realizador, nunca se fez digno do pendão e caldeira dos “auteurs.” E se David Thomson, sumo pontífice da história do cinema, o despacha como um que de tanto lhes puxar o lustro as suas fitas redundavam embaciadas e pomposas, também Pauline Kael a insurgente da crítica clássica, além de não ligar pevas ao filme, nunca isenta Dmytryk da sua mordacidade nas escassas referências que lhe faz em 5001 noites de cinema.

Estaríamos conversados não fosse “Broken Lance” uma caubóiada lauta e suculenta como um bacalhau com todos. Ora aqui está um belo exemplo de que para percebermos como as coisas resultam convém perceber como são feitas. No período exuberante de Hollywood as obras tanto poderiam surdir da ambição de um produtor em haurir a popularidade de um elenco, como despontar de um argumentista que trouxesse um guião promissor. Normalmente estas e outras mil intenções, em concordando, transitavam para a produção. De modo que realizadores com influência e arbítrio para convencerem os produtores a investirem nos seus projectos eram apenas um punhado, aqueles que tinham o “nome acima do título” – e mesmo estes, as guerras que tiveram para conseguirem, quando conseguiam, meter a unha na montagem final…

Há filmes bons e filmes maus e é aqui que tudo vem ter antes e depois de qualquer “ideia de cinema.” E se amiúde um filão de filmes notáveis confere com o nome de um autor, raro é que um determinado autor rubrique sempre filmes relevantes. Ora observar o todo pelos seus particulares e a partir das excepções, dar-nos-á dele o melhor, mas bastante peixe graúdo passa pela malha larga dessa rede.

Os eloquentes méritos de “Broken Lance”, que a ele nos prendem, promanam em primeiro lugar do cativante argumento. Veio ele de Philip Yordan, que apesar de vender histórias avulsas, mormente a companhias de 2.ª, o seu estro era sobejamente respeitado pelos pares. Que tenha ganho um Oscar depois de três vezes nomeado, valerá talvez menos hoje do que ter escrito o idolatrado “Johnny Guitar”. “Broken Lance” é um filme com ”mensagem” e está cosido de referências cultas – gato de rabo de fora é a alusão a Rei Lear e seus herdeiros.

Mas à boa maneira clássica isto é exposto sem levantar a voz; quem quiser ou puder, vê, e quem não vir não se perde no enredo. Por esta altura já o western não elidia a sua maior inclinação para o trágico do que para o épico. Fanada a suposta superioridade moral da conquista do Oeste o foco assestava agora nos dilemas e nos conflitos impiedosos que aquela terra sem barreiras acicatava. Portanto o argumento de “Broken lance” não poupa esforços para nos inquietar.

Merecedor de apreço paralelo ao da história é o elenco. Spencer Tracy, ciente do seu Outono, investe na personagem a altivez e a fúria que ela exige, mas também a convicção e o denodo que a tornam respeitável, traços de só um actor sazonado seria capaz. Com ele contrasta um Robert Wagner a filar o osso da sua crescente celebridade e um Robert Wydmark que por esta altura nunca deixava por mãos alheias os seus créditos como vilão.

Com balas deste calibre no revólver Edward Dmytryk tem o tento de não as desperdiçar. Ou seja, não estraga com temperos de “autor” os óptimos ingredientes que lhe deram. E nesta discrição manifesta-se a sua competência.

Artefacto de confecção industrial, comparado com os filmes de hoje “Broken Lance” dá-nos boa medida do quanto cinema se desvigorou. Todo o cinema. Quer o de cariz industrial, tributário dos planos de marketing, quer o que se diz independente ou auto-intitula de cultural, inflamado de propósitos ou afectado de estilo, mas que só ocasionalmente se desonera da falta de polimento e da parcimónia do artesanato.

7 Dez 2018

Direito de proposta

[dropcap]N[/dropcap]a semana passada escrevi uma crónica chamada Make Portugal Great Again. Do título ao conteúdo, era um texto provocatório. Além de pretender causar algum desconforto, dado conter elementos de populismo que nos remetem para outros tempos ou outras latitudes, tinha um propósito ulterior: o de mostrar, por contraste, que o horizonte do populismo e de outros movimentos tendencialmente totalitários, sejam eles de tendência fascista ou comunista, não é sempre claro e perfeitamente identificável. A maior parte das vezes, o corpo narrativo destes movimentos que, na prática, calçam botas cardadas, é composto de mensagens bastante mais cálidas e aceitáveis do que os pontapés e bastonadas nos quais se traduzem nas ruas.

Qualquer discurso populista tem que conter elementos de verdade para ser aceite, digerido e assimilado. Normalmente estes são lestos a identificar os problemas que preocupam a fatia maioritária da sociedade sobre a qual se funda o conceito vago de identidade nacional. Alguns destes problemas são-no de facto, i.e., correspondem a um defeito ou a um excesso no modo como o estado dá conta dos obstáculos com que os cidadãos se deparam no dia-a-dia. Alguns destes problemas assentam em deficiências estruturais dos recursos estatais disponíveis ou alocados: é assim normalmente nos incêndios de Verão, nos hospitais e nas escolas públicas, na administração da justiça. A maior parte das vezes não há dinheiro que chegue para tudo e, ainda por cima, o pouco que há é mal desperdiçado, seja por via da incompetência seja por via da corrupção. Outros problemas, porém, advêm da própria concepção de estado, do poder que nele investimos e do que ele esperamos. Mais estado pode equivaler a mais impostos, menos liberdade individual mas, como contrapartida, mais segurança social para todos. Menos estado é commumente sinónimo de mais investimento privado, menos impostos e – não há bela sem senão – menos capacidade de resposta aos problemas dos mais desfavorecidos.

O texto que escrevi e que ainda está disponível no site do Hoje Macau é essencialmente caricatural. Propõe diagnosticar uma série de problemas sem na verdade equacioná-los à luz dos factos. Apela sobretudo à inesgotável capacidade de indignação do leitor. E não é assim por acaso. A primeira reacção de qualquer sujeito perante um texto desta natureza é essencialmente emotiva: ou se revê nele e as palavras são uma espécie de espelho no qual surge tudo aquilo que ele gostaria de ter dito e não o soube ou pôde fazer, ou o rejeita porque a mensagem que este veicula fere a matriz de convicções que o norteia. Apenas após assentar a poeira disposicional é que o sujeito se dispõe a ver a coisa pelo prisma racional. Na maior parte das vezes, as convicções de cada um nós são tão fortes na expressão como fracas na estrutura, pelo que o sujeito prefere a sensação de ter razão do que a certeza de o ter. Não lê o texto duas vezes, não admite segunda opinião. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online.

Embora as falácias do populismo sejam instrumentos assaz eficazes na manipulação de massas, a verdade é que estas só têm algum efeito quando o contexto sócio-político e económico lhes é favorável. Não surgem Trumps, Bolsonaro ou Salvinis a toda a hora, embora eles não deixem nunca de existir. Apenas o contexto não lhes é favorável ao crescimento. Seja porque a economia vai de vento em popa, seja porque o fantasma de uma guerra recente ainda ensombra a população, seja porque as pessoas decidiram trabalhar para algo que os transcende e que confere um sentido superior aos interesses imediatos que o capitalismo e a economia de mercado estimulam incessantemente.

Na ressaca de uma crise económica mundial e com dezenas de problemas em mãos, uns nacionais, outros europeus, a nossa confiança não parece estar em alta. Ninguém arrisca uma previsão a médio prazo. A qualquer momento, uma nova crise económica pode mergulhar o país ou mesmo a Europa no caos. Mais: não parece ninguém capaz de endereçar os problemas que nos tolham os movimentos. Mais ainda: não parece haver ninguém capaz de falar sobre eles e de mobilizar a atenção pública para um debate de vários níveis – a segurança social, a produtividade, a sustentabilidade das contas públicas e o seu modelo de receita, o ensino e as saídas que este proporciona ou deveria proporcionar, o turismo e os custos e benefícios, os salários miseráveis dos portugueses e as diferenças gritantes entre os mais mal pagos nas empresas e os mais bem pagos – que deveria acontecer e que deveria produzir respostas de consenso que ultrapassassem o prazo de uma legislatura.

As pessoas estão entre a indignação, o cansaço e a raiva. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Estão fartas da política e dos políticos que temos. Estão cansadas de sentir que são permanentemente descartadas do diálogo no espaço público. Sentem que os políticos não falam nem para eles nem com eles. A esquerda portuguesa move-se há algum tempo entre causas de conquista civilizacional – direitos das minorias, paridade de salários entre homens e mulheres, fim da violência doméstica, direitos lgbt e outros temas que são fracturantes até deixarem de o ser – e aquilo que parece ser óbvio em Portugal, i.e., que se ganha mal, que se trabalha demais e por migalhas e que é necessário aumentar o salário mínimo.

Mas nem por isso os impostos – directos ou indirectos – baixam. A esquerda é aquele coleguinha de trabalho que está sempre a dizer o óbvio acerca daquilo que está mal e que responde invariavelmente “só estava a dar a minha opinião” quando lhe perguntam o que fazer para resolver as coisas. No melhor dos casos, oferece soluções que esbarram no cálculo mais simples. A direita, por sua vez, é apenas uma piada. Ou os agrobetos do CDS ou o autismo entrincheirado do PSD do Rui Rio. Não falo da aliança do Santana por vários motivos, um deles a indispensável manutenção de uma réstia de higiene mental.

Depois temos a corrupção, que nos últimos anos tem vindo a ser posta à luz de diversas formas. Parece ser endémica, tentacular e deveras resistente à exposição do antibiótico da justiça. Fora umas carpas de rio que mal cabem na cova de um dente, nada de particularmente doloroso tem acontecido a capangagem que forrou os bolsos com dinheiro público anos a fio. Salgado, João Rendeiro e tutti quanti ou esperam julgamento sogaditos nas suas vidas milionárias ou foram condenados a penas suspensas. A justiça igual para todos é um dos pilares fundamentais da democracia e um garante de paz social.

Por fim, o racismo latente, a xenofobia, o preconceito. A maior parte das pessoas que não gosta de gays não conhece um gay sequer – conscientemente, i.e. A maior parte das pessoas que insistem em fazer piadas de pretos não passa qualquer tempo com pretos. A maior parte das pessoas que… E assim por diante. A ignorância é quase sempre a raiz de todos os preconceitos. Desconfiamos daquilo que não conhecemos, e é muito fácil passar da desconfiança para o ódio quando as coisas não correm bem e temos de encontrar um culpado. O que não é de todo claro que funcione é combater a ignorância com repressão ou de cima de um púlpito moral. A ignorância combate-se com educação, com tolerância. A ignorância não é o fascismo ou o comunismo, mas estes últimos alimentam-se da primeira. De igual modo, a ignorância não se combate de uma posição de superioridade, mas de uma posição de igualdade. Se a conversa começa por repudiar, julgar ou acusar alguém, a conversa não continua. Cada um dos intervenientes numa relação de entrincheiramento acaba mais entrincheirado do que antes. Chamar alguém à razão não é chamar alguém à pedra. E, por fim, temos de aceitar que existem pessoas as quais nunca seremos capazes de modificar quanto às suas crenças, por muito antiquadas e grotescas que nos pareçam, e com as quais teremos de conviver. Podemos punir quaisquer comportamentos ilegais que tenham, podemos tentar minorar os efeitos de contágio das suas convicções, mas não podemos impedir que pensem ou sintam o que pensam e sentem. À ignorância e preconceitos alheios teremos de contrapor a nossa tolerância e aceitação. É difícil, é em muito contranatura, mas é a única forma que temos de integrar uma convicção que repudiamos sem esta nos consumir.

Talvez esta crónica hormonada não consiga esclarecer quem na semana passada fez uma leitura literal do texto a que faço referência aqui. Talvez eu próprio não esteja a conseguir articular correctamente a cadeia de pensamentos que me levaram a escrever o que escrevi. Espero, no entanto, que pelo menos desfaça o equívoco segundo o qual o texto era lido como uma apologia do populismo ou era classificado de perigosa e desnecessária provocação. A minha intenção foi sempre a de mostrar que o populismo mistura e confunde para seduzir e não se apresenta de uniforme. O mais importante, de qualquer modo, é sair das trincheiras que cavámos – de boa ou má-fé – e encontrar os consensos sobre os quais se fundam as sociedades democráticas, porque a minha intenção não é a de calar ninguém ou de ter a última resposta: a minha intenção é a de que voltemos rapidamente a falar.”

26 Nov 2018

Make Portugal Great Again

[dropcap]P[/dropcap]ortugueses e portuguesas, trabalhadores e desempregados, ricos e pobres, irmãos e irmãs.

Passamos por um período histórico particularmente difícil. Leio o desespero na vossa cara, aqui e agora, mas também nas caras de tantos homens e mulheres que vejo todos os dias, a caminho dos seus empregos, vagueando na ilusão de terem um rumo para a vida. Como vocês, também eu fingi anos a fio perceber o mundo e o meu lugar nele. Como vocês, também eu pus uma máscara com a qual me apresentava, feliz e optimista, aos meus colegas de trabalho, à minha família, aos meus amigos. Mas, como vocês, também eu carregava no coração um peso ao qual não sabia dar nome ou cara. Um peso que me consumia todos os dias. Um peso que me fazia desejar o dia em que a morte, finalmente, me libertasse desta obrigação incompreensível de estar vivo. E, no entanto, como vocês, sorria.

Procurava atenuar este peso assistindo a programas de televisão. Vendo a bola com amigos. Bebendo e falando com amigos. As nossas conversas, como as vossas, iam sempre dar ao mesmo ponto, por muitas voltas que déssemos. Sentíamo-nos abandonados. Pelos políticos nos quais nos habituámos a votar vezes em conta. Pelos empresários que sempre disseram que a riqueza deles seria a nossa. Pelas pessoas a quem entregámos a nossa fidelidade e amizade à espera de que nos fossem recíprocas. Por aqueles que tinham poder sobre nós. E toda a gente parecia ter poder sobre nós.

Anos a fio assistimos a este desastre em câmara lenta: desemprego ou trabalho precário para quase todos, riqueza apenas para alguns; uma justiça para a classe média, outra para os ricos e impunidade para os marginais; suborno, corrupção, compadrio e gatunagem por parte daqueles que foram eleitos para cumprir a vontade do povo. Na verdade, só cumprem a pequeníssima e mesquinha vontade deles: da esquerda à direita, não passam de corruptos que compram votos e poder distribuindo o nosso dinheiro. Para eles, somos apenas os agrilhoados dóceis cuja manipulação se tornou tão fácil que já nem precisam de nos agradar aqui e ali. Habituaram-se à nossa passividade e à nossa complacência. Contam com elas. Alimentam-se delas.

Um dia, porém, depois de ter chegado ao fundo do poço da minha desgraça, estando vivo apenas de nome, sem nunca realmente o estar, vi claramente que o problema não era eu. Que, a despeito de tudo quanto nos repetem todos os dias como um mantra, não somos a areia na engrenagem do progresso desejado. Não somos nós os culpados pela baixa produtividade, pela criminalidade alarmante, pela corrupção nas empresas e no estado, pela imigração que nos tira o trabalho e nos desvirtua a paisagem social, pela fraqueza que acomete os braços e pernas deste povo que outrora conquistou um país aos árabes e deu mais de meio mundo ao mundo. Não somos nós. São eles. São eles que estatizaram a sociedade, que destruíram a família e o seu sentido, que impõem agendas marginais que apenas servem para fazer implodir a coesão social e disfarçar a cobardia que têm de tomar decisões verdadeiramente importantes. São eles que reescrevem a história para que nos envergonhemos dela ao invés de nos orgulharmos dela, são eles que manipulam a comunicação social e que impedem que a verdade veja a luz do dia nas páginas dos jornais, são eles que entregam o país e os portugueses que nele habitam à Europa, aos chineses das multinacionais e dos fundos de investimento, aos terroristas islâmicos que se aproveitam das nossas fronteiras abertas e nos colonizam às claras. São eles, são a cruz no boletim de voto, a cara no cartaz numa rotunda, as frases batidas que lhes ouvimos desde sempre como se fossem transmitidas hereditariamente. São os nossos políticos.

No Partido pela Verdade Democrática, não vos pedimos sequer para que votem em nós nas próximas eleições. Rogamo-vos, isso sim, que não votem naqueles que nos andam a enganar desde sempre. Votem em alguém que tenha como prioridade Portugal e o Povo Português. Votem em alguém que fale com vocês, que trabalham e contribuem, e não com os párias da sociedade que tantos nomes têm e nenhum benefício social trazem. Qualquer que ele seja e a despeito das mentiras e do medo que vos tentem influir. Votem na esperança. Precisamos de refazer esta sociedade e este destino. Precisamos cumprir Portugal.

19 Nov 2018

O eu abreviado

[dropcap]Q[/dropcap]uando entro no café e peço uma água das pedras e uma bica, a menina que me atende sorri e eu sorrio de volta. Nenhum de nós imiscua no comércio da vida cotidiana aquilo que de mais pesado e verdadeiro transportamos todos os dias no coração como trocos na algibeira. A maior parte das nossas interacções rege-se pela batuta da cordialidade superficial. Aquilo que somos, aquilo que temos de verdadeiramente único, escondemo-lo. Às vezes, à vista de todos; outras, em sítios de que até nós nos esquecemos.

Manda a etiqueta da convivência social que não andemos nus. Não impomos a nossa intimidade física a outrem. É desadequado. É estranho. Há sítios remotos e cercados para onde vão as pessoas que têm vontade de andar em pêlo. Chamam-se colónias de nudistas e praias de nudistas. Com os nossos segredos, é muito assim; não os partilhamos desnecessariamente porque tal seria infringir um código não escrito e, simultaneamente, um sinal de vulnerabilidade e de desequilíbrio. Mas como são esses segredos que, em grande parte, nos definem, o seu radical escondimento acaba por no fundo configurar uma forma de mentira socialmente aceitável: respondemos afirmativamente às perguntas cotidianas sobre o nosso bem-estar, negamos a existência de problemas quando nos chamam a atenção pela nossa ausência, divergimos imediatamente de assunto quando confrontados com a possibilidade de alguém adquirir indevidamente informação que não pretendemos transmitir. E todos fazemos isso. O tempo todo, ou quase.

Estranha forma de vida, esta, e estranhamente bela. Passamos noventa e tal porcento do tempo a fingir o que não somos para termos oportunidade de sermos o que somos para pouquíssimas pessoas por pouquíssimo tempo. É como se a vida fosse uma espécie de mina de baixo rendimento onde é necessário processar dezenas de toneladas para obter um mísero grama de ouro. Uma mina com uma rentabilidade tão negativa como a nossa já teria sido fechada. A maior parte de nós, no entanto, opta manter as portas abertas, a despeito de por vezes ter imagens muito claras do logro enorme que são as relações humanas: uma gigantesca teia de formas que supostamente devemos assumir, de acções que supostamente devemos ter, de respostas que supostamente devemos dar. E nada disto é claro, e nada disto está escrito. O código mais complexo e poderoso de regulação social encontra-se ausente de qualquer manual.

De vez em quando, somos confrontados com pessoas que, em situações extremas, nos deixam nas mãos muito mais do que aquilo que tínhamos pedido. Que nos emprestam, contra a nossa vontade inicial, parte do peso que carregam e que se dispõem a receber da nossa parte a intolerância e a incompreensão ou a radical bondade de querer ajudar a encontrar no peso e na profundidade uma leveza ou um ângulo que facilite o transporte.

A vida que se diz passar à frente dos olhos quando a mente antecipa a morte não corresponde a mais do que meros segundos de experiências vividas. A uma sequência de imagens de que muitas vezes desconhecíamos a importância. O eu tem uma forma de escalonar a grandeza daquilo que vivemos e o cérebro parece ter outra. Ambas correspondem na forma: qualquer vida pode reduzir-se a um filme de 30 segundos. Esses trinta segundos são a sinopse daquilo que de facto nos faz sentir únicos. São os sete ou oito picos de intensidade no sismógrafo existencial que nos definem e definem em grande parte a nossa forma de agir. O resto, o filme em si, é o cotidiano. É a mentira.

12 Nov 2018

José Anjos, poeta: “Escrevo para entender a morte”

O poeta José Anjos esteve em Macau a filmar com João Morais o que será um documentário informal de viagem. Do território leva um sentimento de estranheza que pretende renovar a cada regresso. Entretanto, a poesia que escreve e diz é um acto de sobrevivência e resistência

[dropcap]É[/dropcap] formado em Direito, exerceu advocacia e agora dedica-se à poesia. Como foi esta transição do Direito à poesia?
Acho que o Direito à poesia é fundamental (risos). Nem sei bem, confesso. Nem queria ser advogado, mas acabei por fazer o estágio e gostar muito. Depois fui integrado e iniciei uma carreira que se adivinhava ser para sempre. Acho que foi isso que me assustou. Em Portugal ainda vivemos uma ideia de vida muito linear, quer dizer, as pessoas tornam-se naquilo em que é suposto tornarem-se. Na altura, uma pessoa cumpria aquilo que tinha que cumprir: fazer o curso com bom aproveitamento. Não havia outra opção que não entrar dentro de um túnel gigantesco, tornar-se o melhor possível, cumprir as suas obrigações e depois, na verdade, já não se saía do doutro lado deste túnel. Acho que há pessoas que estão mais preparadas para isso e digo isto com admiração. Quanto a mim, fiz o estágio já a trabalhar praticamente como advogado, fiquei na sociedade de advogados onde estava, depois passei para director jurídico. Aos 29 anos era associado sénior de uma das maiores sociedades de advogados do país.

Uma carreia brilhante, mas que não chegava?
Sim. Cheguei a um ponto em que olhava à minha volta e pensava “agora é isto”. Tentava olhar em frente e não conseguia, não me identificava, não havia nada que me fizesse querer. Olhava para as pessoas com quem trabalhava, pessoas maravilhosas, mas não me via a fazer o que elas faziam e a ser quem elas eram com a idade delas. Sentia-me até mal com isso. No fundo, até me sentia bastante egoísta, sentia que não estava a cumprir o que me era suposto e que estava a ter pensamentos proibidos.

Quase um ingrato?
Exacto, quase um ingrato. Aliás, tanto que deixei a advocacia, mas também fui voltando a ela muitas vezes.

Porquê?
Era, de facto, aquilo que eu sabia fazer e obviamente que há uma parte do Direito que gosto muito. Mas a advocacia, em si mesma, tem características que são absolutamente contrárias à ideia que temos de uma relação não antagónica com os outros e com o nosso horizonte. A advocacia implica um contencioso, uma negociação que é absolutamente importante nalguns casos porque é preciso pugnar pela justiça em geral, mas também pelos direitos dos clientes em particular. Outras vezes é uma espécie de campo de batalha de egos e vaidades. É preciso criar um cinismo. O cinismo é visto como uma grande qualidade e eu não consigo fazer isso.. O Direito, não especificamente o que é exercido na advocacia, tem outro fundamento, outro substrato de verdade, quase mesmo de ingenuidade. A construção jurídica das sociedades é muito tributária daquilo que é o reconhecimento humano dos direitos do outro. O Direito faz-se através da delimitação negativa do meu espaço da minha esfera jurídica, da minha esfera de acção, enquanto que na advocacia é o contrario: quero aumentar os meus limites, quero aumentar os limites do espaço que habito para lá do dos outros. Daí ser importante o Direito, precisamente para definir onde está este limite, quais são os direitos que são intangíveis e quais são aqueles que devem soçobrar ou cair perante outros. Esta criação complexa de uma sociedade que funcione de uma forma, dentro dessa hierarquia axiológica móvel, é absolutamente apaixonante.

FOTO: Sofia Margarida Mota

E a poesia? Já existia?
Entretanto, comecei a ler alguma poesia, por volta dos 30 anos, porque me apaixonei. A poesia não está ligada obrigatoriamente à paixão, mas como não tinha tido nenhum contacto com poesia, tirando a que tinha dado na escola, nessa altura comecei a ter e foi quando comecei a escrever e a dizer poemas. Aliás, todas as cartas de amor acabam por ser poemas de certa forma. A poesia permite-me ligar às pessoas e criar em mim pontos de declinação com os outros e de inclinação para com os outros de uma forma não antagónica. Na advocacia era o contrário. Poesia e advocacia acabaram por se tornar incompatíveis.

O que lhe trouxe a poesia?
Acima de tudo, o que a poesia me permitiu foi a destruição de uma personalidade que tinha criado e que seria aquela que iria habitar até ao fim da vida. A poesia permitiu-me conhecer outra. Somos demasiado complexos e não temos personalidades unívocas. Seria impossível proibir a pluricidade das nossas personalidades. Por isso somos incoerentes, por isso somos instáveis. O Aldous Huxley dizia mesmo que o único homem verdadeiramente estável que ele tinha conhecido era um morto.

O José Anjos não é só conhecido pelo que escreve, mas também por colocar os poemas em voz alta em palco. Qual a diferença entre a poesia escrita e a dita para os outros?
O Leonard Cohen tem um texto chamado “Como se diz poesia” em que diz que “a língua original do poema é o silêncio”. O poema é escrito em silêncio como uma forma de mergulho e isso nunca vai mudar independentemente da forma como entregamos o poema. O poema escrito, o próprio acto de escrever já é uma interpretação, já é uma tradução. O poema faz-se de uma forma intuitiva, mais ou menos pensada, mais ou menos sentida, mas é uma coisa interior. Quase podemos dizer que vem de um sítio muito ruidoso dentro de nós, mas consegue sair cá para fora através de um apaziguamento, da organização desse ruído. Através de um silêncio que é construído e depois transformado em algo que cognoscível e que consegue exprimir sentidos e significados que vão para lá do gesto da expressão. Chamo a isso o milagre semântico. Escrevo uma palavra, e para uma pessoa que conheça aquela língua não estou apenas a juntar letras, mas estou a criar um sentido que abre uma porta que permite uma descoberta. A própria palavra, a poesia escrita, já é um caminho para a deturpação e tem que ser mesmo assim. Porque a palavra nem sempre tem um comportamento tão transparente como nós queríamos. Às vezes o equívoco da palavra serve um propósito. A grande tecnologia da linguagem é conseguir contar a história toda sem abdicar da sua ambiguidade. A poesia tenta através da metáfora e de outras figuras de estilo conseguir a transparência da palavra, ou seja, renegar a palavra. Um poema nunca é definitivo.

E o que acontece quando é dito para os outros?
O acto de dizer em voz alta poesia para o público é diferente do acto de dizer em voz alta sozinho. É mais um passo nesta linha de interpretação de algo. Uma interpretação das coisas como se lhes tentássemos dar uma voz para que elas se possam expressar e não o contrário. Não estamos, através do poema, a tentar expressar o que está dentro de nós. Estamos a servir de veículo, a inventar uma linguagem que permite às coisas expressarem-se. Há uma voz dentro das coisas. O leitor é o último degrau deste comboio de interpretação. Sem ele, o poema não existe. Ao dizer um poema cria-se uma urgência na leitura. Há pessoas que quando lêem um poema escrito não sentem nada. Quando o ouvem a ser dito por alguém, de repente abre-se um novo espaço e cria-se uma urgência na leitura. Hoje em dia, temos muito menos disponibilidade para nos sentarmos a ler. Temos uma velocidade interior que faz com que seja mais difícil parar e abrir espaço suficiente para a poesia entrar. Temos também mecanismos de defesa que não deixam as coisas entrarem. Curiosamente, quando estamos a ouvir um poema, estes mecanismos estão muito mais em baixo e a disponibilidade para ouvir é maior. Nos espaços onde a poesia é dita, as pessoas conseguem identificar-se mais porque estão mais vulneráveis. Há um contrato implícito das pessoas com o palco, um contrato de atenção e vulnerabilidade. Aqui a responsabilidade do artista é contemplar a realidade e a sua beleza terrível. Defini-la e torná-la acessível, primeiro a si próprio, como se estivesse a conter uma estrela para depois a poder mostrar aos outros sem que faça mal a ninguém. Há uma violência intrínseca nas coisas que a arte consegue transformar e transmitir com algum sentido. Estamos todos no caminho da autodestruição. A morte é disparada à nascença como um fio esticado. Somos o encaminhamento da morte. Mas, por outro lado, pensar na morte é também afastá-la, como afastamos o horizonte. É preciso dar ao horizonte a possibilidade de ele fugir de nós. A autodestruição é uma inevitabilidade. Leio para entender a vida, escrevo para entender a morte. O que nos pode salvar é que podemos escolher a inevitabilidade que nos cabe e podemos ser surpreendidos.

A poesia é um acto de resistência?
Exactamente. De várias resistências e também de resistência contra aquilo que entendemos que está mal no mundo. A humanidade é uma coisa insuportável. Ainda mais quando somos bombardeados com todo o tipo de crueldade e com todo o tipo de regressos de coisas horríveis. O mundo está muito melhor do que estava e é preciso relembrar isso. Só que nós agora temos muito mais informação.

Temos mais responsabilidades também.
Sim, e não estamos preparados para isso. Vivemos uma hiperestesia, principalmente aqueles que têm mais sensibilidade porque não conseguem deixar de ter empatia. O poema também é uma denúncia, uma denúncia daquilo que estou a sentir em relação a qualquer coisa. Mas é uma denúncia também do que está a acontecer e é preciso enunciar isso como algo que é mau. É preciso denunciar os sítios onde falta justiça e humanidade. A poesia tem uma eficácia limitada. Mas tem uma eficácia de criar um espaço em que os outros partilhem do meu pensamento, do meu sentimento e isso ganha força, e às vezes de uma maneira que dá a volta ao mundo e, mais importante, dá a volta ao medo.

Está em Macau a filmar com o João Morais. Qual vai ser o resultado?
Queremos fazer um documentário informal. Quando cá estive no ano passado, saí daqui com a ideia de que não tinha aproveitado para conhecer Macau. Mas gostei muito. Senti um sentimento de estranheza imenso que penso que pode ser o sentimento de estranheza do exílio e que é a mistura de algo que é absolutamente estrangeiro com aquilo que nos é familiar. Isto, mediado pela distância, faz com que esse sentimento fique dentro de nós. Tivemos agora a ideia de fazer um documentário informal, de viagem. Uma espécie de “on the road” para mostrar o que é ir a Macau ou tentar entender o que é Macau sem pretender entender Macau. Tentar ver como reagimos a estas realidades tão díspares num curto espaço de tempo. Isso permite um ímpeto de espanto, uma contemplação emocionalmente relevante sem tentar entender.

O que leva mais daqui?
Levo este sentimento de estranheza ainda mais vincado. Esta estranheza é um conceito sempre provisório. Quando percebemos que há certos sentimentos de estranheza que não vão a lado nenhum e que só vão criar ainda mais estranheza percebemos que as coisas não têm que ser entranhadas. Aliás, as coisas devem ser vividas como se fosse a primeira vez sem abdicar da bagagem que trazemos, o que é um pensamento também muito oriental. Nós vamos perdendo isso. Perdemos a capacidade e espanto. O que levo de Macau é este ímpeto de espanto que me permite, no fundo, voltar cá sempre a recomeçar.

12 Nov 2018

Roteiro de uma novela

[dropcap]P[/dropcap]or uma manhã de 1948 estava Marta no mercado a sopesar a frescura das toranjas quando do fundo do corredor esbravejou uma voz masculina: “Mentiras, Martas, mentiras! Acredita que eu nunca tive sífilis!” Era Arnold – septuagenário, cabeça de Pierrot, calva lunar – quem assim ralhava de maneira tão destemperada. A Marta dirigia o escândalo, causando-lhe grande embaraço e estupefacção nos outros clientes. Mas ao contrário destes, intrigados com o desacato, seria doido?, estaria bêbado?, Marta percebeu tudo. Arnold referia-se a Adrian, personagem central do último romance de Thomas, que nalguns traços é verdade que poderia ser um avatar de Arnold. Desencadeado o drama passemos às apresentações.

Marta, de nome completo Marta Feuchtwanger, era mulher e musa de Lion, mentor de Brecht e escritor a quem os arbítrios da história não entronizaram no Panteão da literatura à medida do prestígio que gozava na época.

Arnold era Schoenberg, o Pedro fundador da música ainda hoje chamada de contemporânea, demiurgo e sumo pontífice da atonalidade e do dodecafonismo. Como boa parte dos criadores, sobretudo os que geram doutrina e se crêem deturpados por epígonos, sentia-se invariavelmente incompreendido. Dissabor que amiúde exprimia com um proverbial mau feitio.

O romance que Schoenberg invectivara era “Doutor Fausto” da autoria de Thomas Mann, publicado no ano anterior. Glosando a lenda de Fausto, o livro narra os sucessos de um compositor, o tal Adrian Leverkühn, que num pacto com Mefistófeles contrai sífilis para que a loucura lhe potencie o génio. Assim é que inventa um novo sistema musical, o dodecafonismo – não haveria Arnold de se sentir insultado?

À data, Schoenberg e Mann, em virtude da obra já fabricada, vasta e basilar, eram duas torres que deitavam sombra imensa na cultura alemã do século. E se na geometria instável e variável das relações humanas, sobretudo entre cabeças de cartaz com cismas de prima-dona, ora se conciliavam, ora gelavam, o certo é que as suas relações iam para além de um mero “passou bem” e conviviam nas soirées dos Feuchtwanger, nem que fosse para se evitarem e formarem círculo em salas diferentes.

Estas tertúlias que o desvelo e a encantadora personalidade de Marta promoviam – “tem o perfil de uma princesa egípcia”, diria dela Thomas – celebrizaram-se por a elas acorrer o who’s who da intelectualidade germânica: além de Thomas o seu irmão Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Horkheimer, Theodore Adorno, Kurt Weill e a formidável Alma Mahler-Werfel, que à época já fora viúva do compositor Gustav Mahler, ex-amante de Walter Grupius e de novo viúva do escritor Franz Werfel. Introduzidos os protagonistas talvez seja o momento de desferir um golpe de teatro.

O cenário em que se deu a truculenta peripécia entre Arnold e Marta não era o de alguma cidade em escombros e miasmática na devastada Alemanha de 48. Aconteceu sim no refinado Brentwood County Market, num dos bairros mais gentrificados de Los Angeles. E todos os nomes atrás evocados, além de outros de menor, mas não menos certa fama, igualmente domiciliavam em Pacific Palissades, onde a vida espairecia ao rumor das palmeiras, temperada pela suave brisa do Pacífico e o prazenteiro sol da Califórnia.

É fácil depreender que esta fina-flor ali viera culminar não de vilegiatura, como se em estância de repouso e lazer numa montanha mágica, mas por obséquio do cabo Adolfo. Entre as incontáveis patifarias por ele perpetradas contra a humanidade em geral conta-se esta em particular de ter estropiado de maneira irreversível a cultura alemã em nome de uma pureza primordial, de uma autenticidade acrisolada, de um integrismo inabalável.

Como todas as novelas também esta há-de ter moralidade.

Ainda hoje quem traga no bolso cinco melréis de mel coado de snobismo olha por cima do ombro para Los Angeles como para um descampado cultural. Imagine-se em 1948. Hitler votava pela América o desapreço que lhe merecia um povo rafeiro e sem raízes, uma nação dominada por plutocratas e judeus. Do ponto de vista cultural sintetizava-a como “uma anedota estúpida”: “o que é a América senão concursos de beleza, milionários, música idiota e Hollywood?” Em resumo: “uma sinfonia de Beethoven tem mais cultura do que tudo o que a América produziu até hoje.” Convenhamos que esta opinião calava fundo não só na Alemanha nazi, como em muitos círculos intelectuais europeus. Também alguma intelligentzia nova iorquina a partilhava em relação ao que provinha da Califórnia.

O sulco deixado por estas luminárias germânicas nas universidades da Costa Oeste – e não tanto nos filmes, porque aí foram outros alemães que marcaram – foi indelével e contribuiu sobremaneira para dar à América uma primazia ainda hoje incólume. Por mais que cegos não a queiram ver.

9 Nov 2018

Ordenhar com amor uma vaca da Frísia

[dropcap]E[/dropcap]xistem coisas terríveis no planeta azul, é verdade. A amostra e o armazém confundem-se: jaíres que amam a estabilidade das ditaduras, sanguinários sauditas à solta e, virando a página, milhões e milhões de refugiados a errarem na parte sul do Sudão, nas Américas ou no Mediterrâneo. E dias há em que a televisão nos dá a ver inundações e tsunamis, mas há sempre vozes ventríloquas a papagaiar que tudo se passa lá muito ao longe.

As coisas terríveis têm a mania de acontecer na outra margem. Como se existisse um rio entre nós e a realidade, interrompido apenas quando sobre a nossa cabeça se abate uma gigantesca bigorna de aço. Se acordássemos do choque, essas vozes persistiriam. Cair uma bigorna na cabeça de alguém é sempre um pára-arranca a deambular lá muito ao longe. Nem seria preciso citar Napoleão a acossar pirâmides do Egipto, para concluir que os humanos gostam de imaginar os longes (‘longes bem longínquos’ onde tudo arde), adoram lucubrar sobre episódios terríveis e até se deram ao trabalho de inventar o teatro e a própria palavra “catarse”.

Colocando de lado por instantes o ‘coiso’ do Brasil, os tsunamis e os ventríloquos, é coisa corrente no dia-a-dia que as grandes e pequenas monstruosidades andam geralmente camufladas. Atravessamos a rua no fim da tarde de uma sexta-feira amena e temos aquela sensação na boca de estar a solfejar “Amor, I love you” de Marisa Monte, ou então vemo-nos a apanhar da calçada uma folha de plátano com toda a ternura, antes de teclar um coração no iphone. Depois, encaramos as nuvens paradas e concluímos que a vida é bela, cheia daquela harmonia dos verões da infância, lânguida de ardores (dos que antecedem os arsénicos de Emma Bovary). Poderemos até abraçar um peru ainda vivo ou ordenhar com amor uma vaca da Frísia e dizer que o natal é quando a alma de Mahatma Gandhi quiser.

Então porquê as monstruosidades camufladas? Não, não é por paixão carnavalesca. Talvez seja, na mesma ordem de ideias que levou Polonius a questionar Hamlet – “Will you walk out of the air, my lord?”, por causa daquele grau de suspeita que permite deduzir que ‘eles andam aí’. Por vezes nem precisam do ar que respiram. Sobrevivem ao jeito da melanina que protege do sol os mais apetecidos recessos cutâneos. ‘Eles andam aí’, pequenos e grandes, e comportam-se com tique de máscara mal colocada, fazendo lembrar osgas, louva-a-deus, cavalos-marinhos, sapos, lagartas, girafas, aranhas e corujas que sabem confundir-se com o pano de fundo da natureza onde se acoitam, sejam florestas, desertos ou corais. Só que, de um momento para o outro, aparece quase sempre quem os detecte. Coisa de sortudo e não de pobre diabo.

Pobre diabo é uma designação feliz, sim. Dizem que os pobres diabos são tão leves que sobem ao reino dos céus como sumaúma. E podem inesperadamente ser muitos, muitos milhões. Por exemplo: já experimentou, caro leitor, telefonar para Meo a perguntar por que razão a factura mensal aumentou de repente (e sem qualquer razão)? A voz gravada há-de desafiar a sua paciência celestial durante 40 minutos e depois você desiste por ter compromissos marcados. Já experimentou, caro leitor, ir às finanças anular um pagamento que teve como base o lapso de um funcionário? Há-de conseguir a validação dos dados, sim, mas, logo a seguir, terá que subir à secção das dívidas e vão dizer-lhe, a esfregar as mãos feitas de sumaúma: “a intervenção humana está feita, mas o sistema tem os seus timings próprios e, por isso, vai ter que pagar (e com juros), caso contrário haverá penhora das contas bancárias”. De um momento para o outro, os predadores confundem-se com as osgas, as louva-a-deus, os cavalos-marinhos, as aranhas, etc, etc, e não com o pobre diabo que se lembrou de ir resolver umas coisinhas correntes, no fim de uma amena tarde de sexta-feira, quando na esplanada do bairro toda a gente cantava em uníssono “Amor, I love you”. Há alegorias que valem mais pela amostra do que pelo armazém.

Seja qual for a escala do desvelo, caro leitor, confesso que não há gramática que resista a uma bela bigorna a perfurar o tálamo ou às pirâmides de gizé a mangarem com a estatura de Napoleão, pois tudo se passará inevitavelmente do outro lado, na outra margem, no silêncio de Polonius. O pessoal vê sites e notícias sobre os jaíres pistoleiros e as novas “invasões bárbaras”, o pessoal vê crianças mortas nas praias e ouve a nova geração de políticos da Hungria, da Polónia ou de Itália e, a caminho do ginásio ou de regresso das finanças, vai pondo uns likes na atmosfera. E com os phones cada vez mais enterrados nos ouvidos, a maior parte do pessoal continuará a ouvir sem parar os anjinhos ventríloquos e natalícios a fazerem de coro grego: ‘Let it be’, ‘No pasa nada’, ‘Baby It’ll be alright’ e outros hits tipo rap evangélico. Tal como Camus escreveu no romance A Peste: “…o flagelo reunia todas as suas forças para as lançar sobre a cidade e se apoderar dela definitivamente” (1). Já faltou mais.


(1) Camus, A. A Peste, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p.156.

8 Nov 2018

Dos jornais

[dropcap]T[/dropcap]omé não planeou enfiar-se no chapa e raspar-se com a viatura quando a viu estacionar à frente da barraca Trinitá e topou o motorista a esgueirar-se – torcido pelo gotejar de uma mija – para as traseiras. O apagão que logo a seguir, com artes de cleptómano, fez desaparecer a cidade é que lhe ondulou na cabeça e aí limitou-se a obedecer ao impulso.

Entrou na cabina, rodou a chave na ignição. A carrinha deslizou suavemente por entre os volumes enegrecidos (experimentou os óculos Ray-Ban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.

Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no breu, mansas criaturas amodorradas, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba – gado bom de ordenhar.

Era estranha a música que o leitor de dvds emitia, uma toada electrónica que parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça um refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Vacilava, se achava mais bizarro o gosto musical daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam na mente, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Deixou a música fluir, a ver onde aquilo ia.

Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people, botões que se acotovelavam na gana de aninharem em casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Quase gala-gala, mas não conhecia. Voltou a pisar o play. Algas com ferrugem num mar electrónico – como vira uma vez na Costa do Sol. Já apinhado o carro, deu conta que aquele chapa andava sem cobrador – melhor, cobrou ele logo à cabeça.

Era vinte e duas horas em ponto e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade.

Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando sacou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais ruído que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez – ajudaram.

O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros, no calado de um navio de muitos quilates, miravam as vítimas de cabeça pendida. Atingira um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço gorgolejante. Uma mulher gritou, pela última vez na sua vida. Remédio santo para os demais.

Disse-lhes:
– Bradas, passem tudo o que têm nos bolsos.

Depositaram tudo no lugar do morto. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até camisinhas. Encheu os bolsos. Depois fechou as luzes do chapa e articulou, pausadamente:
– Zuca lá para fora mas easy, relax, vamos pôr os mortos onde devem estar…

Aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava metálica, não se apercebia. Desceram do chapa retardando o passo, mais enfiados que o esterco no rabo do cabrito.

Veio-lhe ao nariz a certeza de que um gordo se borrara. Depois do gordo desceu um madala com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando-lhes o estupor, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os, eram treze. Abateu o gordo:
– Crazy, não gosto do treze e o camone fedia…

Uma mulher soluçou. Baixinho. Grossas bátegas de calafrio entrechocavam-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecido. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado e observou:

– Black é assim mesmo, vive da bacela do medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro…

Os homens superam-se. Os cadáveres rebolavam sobre si mesmo, impulsionados à justa. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, somou uma reviravolta ao trajecto e pairou no ar antes do ombro esquerdo ir embater no topo do muro fazendo-o girar para o outro lado. Suspiros. Não ficaria mal aqui a ratonice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, Há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu!

Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
– Somos melhores que os mambas… os moçambicanos só precisam de uma motivação… – e atirou para o ar – Alguém guia?

Um rapaz novo, receoso, levantou a mão. Tomé – deu-lhe um súbito cansaço – deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, atencioso:
– Leva-os daqui… – após o que sorriu, antegozando a ideia – Para os jornais digam que foi um comando da Renamo, e largou uma gargalhada.

Num ápice, desapareceram. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando.

Tudo correra pelo melhor. O apagão, a hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói… até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom.

Encaminhou-se para casa, ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. Os óculos Ray-Ban ficavam-lhe a matar.

Glossário: madala, cinquentão; bacela, brinde; mambas, equipa moçambicana de futebol

8 Nov 2018

As pessoas são estranhas

[dropcap]É[/dropcap] possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos.

O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem.

Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns.

Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia.

Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor ? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens ? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária ?

Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.

7 Nov 2018

A fragância do riso

Menina e Moça, Lisboa, 3 Outubro

[dropcap]S[/dropcap]em conseguir estancar a sangria, parar o relógio, cegar a agenda, por entre idas e vindas ao Fólio, dou uma saltada à Menina e Moça, a livraria da Cristina [Ovídio], entalada entre alcatrão pink e céu tintado pelo [João] Fazenda. Trouxe comigo o Rui [Garrido], de modo a podermos concluir se quem vê capas também pode ver corações. Indisciplinadamente, ou não estivéssemos sentados em mobília de infantário a beber como gente grande, discutimos muito para pouco concluir. Apesar da venenosa massificação, e da desatenção comercial, encontramos livros desenhados com cuidados de leitor, a procurar oferecer à primeira vista, ao primeiro toque, um sinal do que lhes vai no miolo. O livro a esticar-se objecto, quase um ser, pelo menos para os sentimentais que neles veem amigos, ferramentas que mudam vidas. O Rui contou da sua experiência de muitos anos e formatos e encomendas e cretinos, ajudando a desmontar essa ideia-feita de que a capa pode ser responsável por fazer ou desfazer bestas céleres. Ou até que deva ser pensada dessa maneira tacanha e desviante. Nas grandes fábricas da livralhada asséptica, tudo começa e acaba aí: na suprema ideia de venda. Nem que seja ao engano, prometendo por fora tema ou experiência ou escrita ou qualidade que não se encontra dentro. O Rui já nos ofereceu logótipos, ergueu grandes livros, pintou capas, e posso testemunhar da inteligência atenta a cada detalhe e desejosa de brincadeira. Por aqui sacrificamos, ainda que em cadeiras de adulto, ao deus lúdico.

Facebook, 6 Outubro

Divertida, a maneira como Bansky voltou a navalhar a arte enquanto jovem assunto. Serão feridas, serão arranhões, que a morte não bate assim? Três ou quatro fitas para reflectir na encenação: a galeria desconhecia por completo a moldura armadilhada? E uma com bomba incluída, passaria nas análises dos peritos? Quem o foi o primeiro dono da peça, ele próprio, orquestrando a cena? Era suposto a menina ser toda rasgada, ou o rosto escondido, o corpo cortado e o balão esvoaçando propõem nova versão? Há meias-destruições? A obra agora consiste apenas na moldura com original estraçalhado ou deve incluir os olhares e as expressões e os murmúrios durante a performance? Outras duas para pensar na atitude: Bansky quer mesmo fugir do mercado, fazer das ruas a sua galeria, das redes o lugar de debate? Que outra expressão artística se alimenta tanto da (auto) crítica como as plásticas? Por junto, eis mais umas quantas golpadas para o dinheiro, motor do velho assunto arte: a menina agora fendida vale mais, muito mais que o milhão que a arrematou. E o valor artístico mede-se em contado? Milagre da multiplicação do vazio. Valha-nos S. Dada. Um balão, neste espelho, nunca será apenas um balão.

Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 13 Outubro

O Pedro [Proença] desafia tempestades anunciadas com inauguração em Évora, que ficará Março do ano que aí vem correndo contra mim. «O Riso dos Outros», mais do que exposição, instalou-se por uma boa dezena de salas e em nós como máquina produtora de histórias, de personagens, de reflexos e reflexões, de experiências sensoriais. O Pedro não pára um segundo, nem de pensar e menos ainda de fazer, em excesso celebratório de uma invejável alegria de viver. Tenho assistido com prazer à desmultiplicação de heterónimos que fazem vida a experimentar as relações das imagens com a literatura, da palavra tornada imagem, etc.. Se por um lado, a arte se deixa pensar em toda a sua gramática, nos seus processos, por outro, a bichocarpinteirisse criou, além de um sem número de livros, algumas passagens à parede destas ideias. Nesta mais recente, desmultiplicou-se em curador, João Gafeira, para convocar à livre criação sete artistas: John Rindpest, Sandralexandra, Sóniantónia, Pedro Proença, Rosa Davida, Pierre Delalande e Bernardete Bettencourt. Podemos, portanto, experimentar instalações, gigantescos frescos, colagens, fotografias, jogos com etiquetas-títulos-aforismos, pintura de frases e seus duplos, postais de viagens ao imaginário das viagens, formatos variegados, poesia solta, sarcasmo avulso [ver foto algures na página], telas. O jogo faz-se em idas e voltas ao texto, nas legendas e enquadramentos, nos títulos, nas frases soltas, claro, nas biografias. Há por aqui qualquer coisa de Oulipo, que nos convoca ao jogo de espelhos, a continuar a produção. Sofro de afecções peculiares suscitadas por cada um dos artistas incarnados, mas o Rindpest com a sua pintura de palavras toca-me mais além: «eu sou o texto que trai a sua sombra». Se parece artificial, tal se deve à minha inabilidade, que no Palácio da Inquisição, ampliada pela lente do humor inteligente, acontece muita vida, carne, sangue, suor e lágrimas. E, se a vida fede, como diz o Henrique [M. B. Fialho], em um dos seus contos, há que crer na «revolução interna que ajude o corpo a exalar uma fragância simpática, agradável, aprazível, a fragância do riso».

Biblioteca, Oeiras, 13 Outubro

«Geração Espontânea», o ciclo de conversas de «novos autores da língua portuguesa com o seu público» incluiu este mês o Valério [Romão]. A terra não tremeu com a conversa, orientada pelo José Mário Silva, mas não carecia. Uma primeira surpresa confirma a velha ideia de que as bibliotecas conservam tesouros. A receber-nos, um primeiro «romance», que o autor renega com (imberbe) veemência. Nenhum dos mais recentes estava à vista, embora disponíveis no final. Estavam, contudo, nas mãos dos leitores. E aqui reside a segunda surpresa, um lembrete para quem que ache tempo perdido tais sessões (quem nunca?): no final, as intervenções foram pura curiosidade, dúvidas luminosas e comentário inteligente. As bibliotecas ainda conservam leitores.

Casa da Cultura, Setúbal, 26 Outubro

Multiplicaram-se por estes dias cinza as vezes em que me sentei ao lado do Henrique [Manuel Bento Fialho], e delas todas conservo a rara sensação de que a conversa nos saiu, mais a ele, que a mim só me cabe suscitar, prazenteira e fluida que nem flume, rio ardendo na corrida para a foz que não chegará nunca. Desta vez, e para além do costumeiro distribuir de jogo sobre «A Festa dos Caçadores», mostrando aqui e ali um trunfo, o Henrique ergueu-se apreciador e intérprete do Zeca [Afonso]. Acabámos a trautear, mais ele, que só me cabe desafinar, a surrealista ternura: «Era um redondo vocábulo/ Uma soma agreste/ Revelavam-se ondas/ Em maninhos dedos/ Polpas seus cabelos/ Resíduos de lar […]»

Prazeres, Lisboa, 29 Outubro

As almas livres também se perdem? Só deambular á toa permite a descoberta. O Zé [Sarmento Matos] (1946-2018) ia sempre um pouco mais longe, mais adiante, e não apenas no calcorrear da cidade. Não se limitava a recolher informação, que o fazia e como poucos, mas arriscava interpretações. Com risco. Dava ideia que os seus passos faziam cidade, desenhavam-na. E os seus olhos tiravam da sombra, iluminando, o esquecido, o ignorado, o oculto. Lisboa não lhe escondia nada. Fez livros, não tantos como devia, mas o que trouxe a lume garante-lhe lugar de destaque na olissipografia. Devemos-lhe, ainda, a toponímia mais aventurosa do mundo e arredores. Por causa do Zé, Lisboa tem tatuada na pele ruas como a da Ilha dos Amores ou travessas Sandokan, Sinbad o Marinheiro ou Corto Maltese.

Na despedida, o ataúde não entrou à primeira na cripta dos escritores. O que não te deves ter rido… Não, não foi erro de construção arquitectónica e coiso. A cidade apenas não estava preparada: falta um beco, que seja, com o teu nome. Não esperas pela demora.

7 Nov 2018

As varreduras

[dropcap]V[/dropcap]arrem e varrem – ad eternum – e nesse gesto dactilografam as manhãs. Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano.

Pianíssimo num repertório monocórdico, interminável. Ruge-ruge em surdina, como uma nuvem de mosquitos enredada nas micaias.

É incalculável o apego colocado na mão que abraçaa cintura da vassoura e lhe comanda a dança, o desenho das parábolas ou de outras figuras geométricas na varredura – embora nem sempre se conjugue o tanto que foi varridocom o que haveria a varrer.

Ainda a alba se espreguiçae assoma aquele arrumo ou raspagemfugida à insonorização da noite; furtiva, antes de ser um mantoe do som das cerdas -nas placas de cimento,à diante dos portões,das portas, dos túneis, dos degraus,em redor da caldeira das figueiras-da-índia -,do seu raspar, se elevar acima do passodos guardas, cobrindo a cidadede uma redoma sem nome.

Varrem, varrem, varrem – escavam uma fonte? Num frenesim que fosforesce na mais inexplicável mansidão.

Terá sido a noite a levedurade uma culpa que anseiam agora apagar,extinguir, sem deixar rasto -amortalhada no ar?

Maputo não desperta, Maputo varre-se para debaixo de um tapete inexistente até à madrugada seguinte quando os guardas, unânimes no hipnotismo da sua insónia, repegam na vassoura.

Quatro horas depois, no bulício, já a urbe se enovela em babugem e lixo e voltou aos ritmos do desconcerto e à intimorata prioridade aos chapas, enquanto se ouvem ao longe as goteiras do impasse e fungos nascem à sombra dos ”works in regress” da política.

Mas volta a chegar a noite; cansados de frango, de xima, da matapa, de esmolas, do calor brutal dentro dos chapas, do uísque martelado, vem a noite sem aplausos, envolta na dor que se sente pelo demente que se arma em chefe. E a quietude impõe-se como baforadas de cego, arcando os desejos de um milagre impossível.

O vento encostado ao escuro tubula, sonda a ferrugem dos fusos horários, ou cai a chuva num alarde de praga.

Raramente, contudo, mesmo em corda, a chuva ultrapassa o dealbar da alba, e aí, parecendo nascer directamente das axilas de todos os anjos caídos,recomeça o ruge-rugedas vassouras, alastram-se as cerdase o seu vaivém, fazendo-se uno, espesso,contínuo,  como se a madrugadanão passasse do sonho intempestivo de milhões de limpa-chaminés.

Embora o como eles varrem, o que varrem, o quanto varrem –  buscam afanosamente o bíblico buraco da agulha? – raramente se ajuste ao que haveria de ser varrido.

Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano. Julgava eu, até este domingo vinte e oito ter visto a varredura que correu no Brasil.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas.

Vai ser varrida a Amazónia, para dar lugar às manadas de bois.

Vai ser varrida a preguiça dos indígenas e quilombolas, depois os próprios índios; as onças, as anacondas e piranhas serão esquartejadas e amontoadas no bojo de grandes betoneiras eléctricas para o fabrico das rações para os bois.

Os peixes-boi, tão ternos, irão ser varridos para as piscinas das esposas dos grandes diplomatas dos países latino-americanos “sem viés ideológico”, homens imensamente ocupados em rápidas de xadrez e leituras do Levítico.

Os botos da Amazónia (os seus golfinhos) irão ser varridos para dentro dos selos comemorativos do complexo de campos de golfe que o amigo Trump irá fazer depois de resgatar da selvática floresta os arredores de Manaus.

Vão ser varridos os homossexuais, que irão conhecer as provações que Job não teve.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas

Vão ser varridos os morros onde se acumulam as favelas, ou melhor terraplanados, e a nuvem de coca que se adensar sobre os escombros será aproveitada para melhorar os records de todas as modalidades desportivas, catapultando o Brasil para a elite do desporto.

Vão ser varridos para o Atlântico todos os remédios que não sejam placebo, porque na terra do Corcovado homens não têm fracalhadas.

Vão ser varridas todas as ex-criaturas humanas que não cerrem as pálpebras, devotamente, para rezar o Padre Nosso com o seu presidente.

Fora com os depravados, Chico Buarque, Caetano, Gil, e Jó Soares, varridos para Cuba.

Varridas serão as pistolas de plástico das crianças e substituídas por verdadeiras, com balas de borracha até aos dezasseis anos e, após, de aço; para usarem em legítima defesa.

Varridas também as cotas raciais na universidade, até porque os negros serão convertidos em varredores – os melhores do mundo.

Teses universitárias que se debrucem sobre Drummond ou Villa-Lobos serão varridas, doravante só interessa o conhecimento aplicado: como transformar o bafo de onça em sabonete ou introduzir o sincronismo das bailarinas do Bolshoi em relógios de quartzo.

Varrida a educação sexual das escolas, substituída pelas prenhezes prematuras e as ladainhas do Círio de Nazaré!

Bom, nem tudo será mau nesta varredura:  o candidato eleito prometeu ainda que vai procurar “relações com países que possam agregar valor económico e tecnológico aos produtos brasileiros” e isto pode ser um “negoçião” para Moçambique, se quiser exportar milhares de cerdas – que a oportunidade não se malogre.

2 Nov 2018

Se calhar, Deus chama-se Baldwin

[dropcap]N[/dropcap]a insónia, há um túnel viscoso que se forma. É coisa que faz alastrar o borboto das paisagens perdidas: praias inóspitas, areias tempestuosas, planícies extensas, estepes desertas, fundos soturnos de todos os oceanos. Vincado sobre esta cenografia, o momento da insónia coincide com o da tentação falhada, algo parecido com o hiato em que Orfeu, segundo o mito, se vira para trás, já perto da saída do Hades, e deita tudo a perder na vida. Para o evitar, Van Gogh tomava cânfora, Proust tomava Veronal e Marilyn Monroe tomava fenobarbital. Em vão.

Na insónia, a lira deixa de encantar panteras e propõe os seus rombos e soluções: Death in paradise na Fox Crime, pó de calcitrin para as cirurgias da Grey, Hailey Baldwin a passear na praia com um globo terrestre na palma da mão e o grande jipe cherokee na Syfy para penetrar a vénus amarelada dos candeeiros de rua que invadem os tectos do quarto. Para o bem e para o mal, há que saber percorrer o túnel da insónia como se não houvesse tempo no horizonte. Mas apenas e tão-só um brevíssimo instante, uma ínfima travessia, um logro que até poderá vir por bem (noites há em que um busto de Alexandre Magno caminha na nossa direcção com barbatanas avermelhadas, tudo é possível).

O que se vê, o que se delira e o que se pensa numa insónia não é nunca objectivo, claro está. É veludo pardo. Melhor: é uma ebulição de gases miríficos tipo esboço de arte expressionista à procura das tripas. Com mais clareza ainda, caros leitores: a insónia é um degredo sem geografia, um sarcófago que pôs a múmia à venda na feira do relógio, um canal sem qualquer tipo de Veneza à volta, por vezes uma simples Stabat Mater a propagar-se nos arrabaldes de Urano.

É voz comum afirmar-se que a ideia de perspectiva rareia na insónia. É da praxe. Leonardo da Vinci não faria a mínima ideia, mas tudo parece abater-se num mesmo plano que se esfuma, enquanto se entreabre. No entanto, apesar do tom crepuscular, sabe-se que o comboio da vida irá continuar. Para além do muro. Para além do roubo das armas de Tancos. Mais: sabe-se que o desconhecido percorrido pelos dedos da insónia se ajustará, em todo o caso, a coisas que já conhecemos. Mesmo se vagas, pouco gramaticais e deleitosas, pois, verdade se diga, ‘ele’ há sempre no universo uma mão amiga.

Numa das minhas mais recentes insónias, pus-me a imaginar as dores de cabeça por que passaram alguns investigadores europeus, quando, a partir de 1799, foram confrontados com um animal que misturava o ‘imisturável’: era um mamífero que punha ovos e que via o leite escorrer ao longo do seu corpo peludo; além disso, apoiava-se em patas que atrás tinham esporões e que à frente ostentavam umas pequenas asas. Um quebra-cabeças do diabo capaz de ameaçar regras estáveis. Coisa de insónia, realmente, ou, se se preferir, um panorama próprio dos prodígios de Boaistuau e das monstruosidades de Ravenna. O animal era o ornitorrinco, escapava a todos os modelos e um alemão, de nome Blumenbach, chegou a baptizar o bicho como Ornithorhynchus paradoxus precisamente por parecer incategorizável. Só quase um século depois, o mistério seria resolvido por W. H. Caldwell e o estado de insónia substituído pelo palavrão “monotrémato” (mamíferos que são, ao mesmo tempo, ovíparos).

No território da insónia o paradoxo dirige sempre a sua desmedida fauna. No território da insónia, confundimo-nos todos com um ornitorrinco com os faróis de nevoeiro acesos. No território da insónia, cruzamos inevitavelmente o nosso olhar com o de Medusa e por isso ficamos feitos de pedra. Imobilizados. Vimo-nos e já estamos a vislumbrar as vertigens de Bosch. Tentamos moldar o mundo, mas ele escapa-se-nos sempre: tanto põe ovos e dá de mamar ao busto de Alexandre Magno e às suas barbatanas avermelhadas, como é capaz de pressupor a existência de bolsonaros de bolso nos horizontes mais tropicais do planeta. Grande parte do globo terrestre insinua-se (e sempre se insinuou) em estado da mais pura insónia.

Tal como nos dias aziagos, o pião das horas mortas e florbelianas continua a girar. Gira sem parar. E eu com a convicção cristalina de que foi a mão de Hailey Baldwin quem o atirou sobre o veludo pardo que agora lentamente já se abre para a alvorada (dos dedos cor-de-rosa). O túnel, afinal, não era modelo para insónia nenhuma. O túnel era a próprio modelo. Nada de cyberstalking, confesso: apenas insónia, desatino, sôfrego abysmo.

1 Nov 2018

A luz do desejo

Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 4 Outubro

[dropcap]E[/dropcap]difício que já foi banco alberga tesouro maior. Se não é museu, engana bem, tantas vezes as portas generosamente se abrem para entrarmos no «cofre» onde se expõe a maior – dizem-me, em coro a Isabel [Castanheira] e a Margarida Araújo – colecção de cerâmica caldense. João Maria Ferreira faz parte daquela raça de coleccionadores cuja paixão o leva, não tanto à acumulação, mas a descobrir o máximo sobre o objecto do seu desejo. A projectar sobre ele luz. Sem eles, muito património se teria perdido nas voragens do tempo e desatenções estatais. Faltou tempo para apreciar cada detalhe, cada história, cada brilho. Obrigatório voltar, e não apenas por causa de Bordalo. A simpatia de João Maria a isso obriga. Outros pretextos podem ainda acontecer, que das idas ao Oeste costumam resultar aventuras.

Museu Municipal, Óbidos, 4 Outubro

Além das muralhas, de pedra e humidade, este lugar está cheio de igrejas, vãos de silêncio onde a luz troca carícias com as sombras. As fotografias que Fernando Lemos tomou de Hilda Hilst ergueram outro desses espaços dedicados ao sagrado. E ao desejo. Na dança entre o olhar e o modelo, sendo no essencial pose, a intimidade encandeia de natural. Ela entrega-se sobre a mesa, mão estendida, olhar fugindo; ele desce para recolher o movimento. Só em três dos doze retratos se cruzam os olhos de ambos, mas em todos ela e ele se tocam. Dela emana absoluta liberdade, de pálpebras cerradas solta tranquilidade. As pupilas, as unhas-garras e o cigarro dizem tão só arrebatamento. «Já não sei mais o amor/ e também não sei mais nada./ Amei os homens do dia/ suaves e decentes esportistas./ Amei os homens da noite/ poetas melancólicos, tomistas,/ críticos de arte e os nada.» Assim lhe disse ela, Hilda, a ele, Lemos. «Agora quero um amigo./ E nesta noite sem fim/ Confiar-lhe o meu desejo/ o meu gesto e a lua nova.»

Circula (pelo menos na Ler Devagar) cuidado volume (Edições SESC), com organização e texto de Augusto Massi, além de fotomontagens inéditas de Fernando Lemos. Ao texto de enquadramento não se podia pedir mais. A recomposição pelo artista das imagens da memória sublinha mais a luz e os olhos, rasgando, colando, focando, desejando. Os retratos, esses, brilham de intensidade. Não consigo deixo de me abrigar neles, templos portáteis de melancólico gesto, lua nova em noite sem fim. (Na página, exemplo do diálogo entre lâmpada, digo lua, e olho.)

Fernando Lemos foi para o Brasil, em 1953, cansado da ditadura. Tantos anos depois, inverte-se o movimento de outros artistas por via das trevas que ameaçam o mais solar dos países.

Casa José Saramago, Óbidos, 5 Outubro

Orquestrada pelo [José] Anjos, assisti intermitentemente às tentativas do [João] Barreiros, do Filipe [Homem Fonseca] e do [Luís] Carmelo para materializarem a incorpórea ideia de «realidade aumentada». (Já vos disse que o tema do Fólio deste ano procurava tactear o futuro?). Ela anda aí, não apenas nos livros de ficção científica, não apenas na literatura ela mesma, não apenas nos delírios tecnológicos, mas sobretudo nas expansões comerciais das redes. Retive duas notas. Esta de que os esforços mais recentes limitarão a nossa liberdade de escolha, ainda que anunciem o contrário. E outra: nos primeiros esforços de contar o mundo (Gilgamesh, Mahâbhârata) logo este se viu aumentado. Nem tanto resolvido.

Isso poderia ter acontecido na longa conversa, partida e logo reunida em um sem número de outras, mal se juntaram a nós o António [de Castro Caeiro], alegre com a realidade física das «Constituições», e o Henrique [Manuel Bento Fialho], solto de uma prestação televisiva de primeira. Disfrutando a sombra de digníssimas oliveiras, à força de um pão com sabor a verdade, devidamente regado, a tarde discorreu como rio fresco pelas margens da FC nacional e internacional, do cinema de género, das memórias, da inevitável filosofia, além de desabafos vários e pitada de má-língua. Nasceu ali, creio, a ideia intensamente hodierna de um festival literário cosplay: cada fã só teria entrada se vestisse a pele do seu escritor de eleição. Quanto tardará a acontecer tal visão do inferno?

Museu Abílio, primeiro, Museu Municipal depois, Óbidos, 6 Outubro

Cedo, demasiado cedo, o mano Tiago [Ferreira] expôs com desarmante clareza os desafios que enfrentamos face à tecnologia, sobretudo o seu braço armado, a robótica. Acalmou uma ou outra ansiedade, talvez tenha despertado outras, mas afirmou confiança invejável no futuro. Pelo que conheço dele no presente, descansou-me. Deu por título à masterclass, Apocalípticos ou integrados, piscando o olho a Umberto, e logo ecoando na do mano António [de Castro Caeiro], que à velocidade da luz, nos fez perceber que é nos momentos em que tudo parece impossível que o futuro se nos rebenta nas mãos: «o piscar de olhos da eternidade age sobre nós». O apocalipse ilumina, afinal, outra possibilidade de sermos em andamento. Assim saibamos ler cada sinal, cada brilho.

Casa abysmo, Óbidos, 6 Outubro

O primeiro andar do Jacinto [Gameiro], ali na Rua Direita, quase caía com o peso do bom humor e da luz que o Carlos [Querido] lançou sobre «As Constituições Perdidas de Aristóteles», finalmente vertidas em português de lei pelo António [de Castro Caeiro], e embrulhadas com sabor e saber pelo Miguel [Macedo], aproveitando bem do passado o que ele pode conter de futuro. Por junto, também com o mano [José] Anjos, parecíamos aviadores de balcão, mas, se olharmos às circunstâncias, servíamos possibilidades. Cada constituição começa por esta altura a instituir-se, com perigos, identidade, mas também expectativa, probabilidade outra. De súbito, veio a Raquel [Santos] arrancar-me daqui…

Museu Municipal, Óbidos, 6 Outubro

…para aqui. Estava para começar a sessão de homenagem ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, que se espraiou singela e luminosa, com o Nuno [Miguel Guedes] a gerir conversa solta com Luís Coimbra e o Vasco [Medeiros Rosa]. Falando de futuro, houve quem no passado tivesse razão antes do tempo, que fizesse do seu presente pavimento de utopia ajardinada: parques naturais, desenvolvimento sustentável, arquitectura integrada, luta anti-nuclear, amor à terra, hortas urbanas e política, bem entendido, de tudo se falou. Com soberano respeito pelas diferenças. Sim, é possível.

Fui surpreendido, neste contexto, por públicos agradecimentos do Zé [Pinho] e do Humberto Marques, que preside à Câmara. Protestei comovido. O prazer tinha acontecido antes nas longas sessões de preparação, sonhando possibilidades, fazendo pontes, discutindo identidades e constituições e braços amigos, os da robótica.

Bons malandros, Óbidos, 6 Outubro

Um dos segredos mais divertidos e mal guardados do Fólio neste lugar sagrado de pândega. E desejo. Recolhidas as díspares colheitas do dia, vão chegando ao longo da noitada infindável os poetas tomistas e alguns esportistas. A cada um, a Zélia e o Luís [Cajão] oferecem o conforto de um repasto, temperado pelo carinho, e a última bebida da noite ou a primeira da madrugada. Hoje, estivemos a ler futuros nas mãos até cheirar a jornais do dia e o dia raiava.

31 Out 2018

Os idiotas úteis

[dropcap]A[/dropcap] penúltima cena do filme Sicario, de 2015, mostra um dos protagonistas da história, um advogado de acusação mexicano chamado Alejandro Gillick – protagonizado por Benicio del Toro –, a participar numa operação da CIA que culmina na invasão da mansão de Fausto Alarcón, capo de um dos cartéis de droga mais sangrentos do México.

Alejandro, separado da equipa da CIA que lhe permitiu descobrir o caminho para a casa de Alarcón, tem um motivo muito pessoal para não desistir da perseguição: este, quando Alejandro era um incómodo advogado de acusação, mandou matar-lhe a filha e a mulher.

Quando chega à mansão de Alarcón, Alejandro encontra-o a jantar no jardim, tranquilamente, com a sua mulher e os seus dois filhos adolescentes. Fausto Alarcón, reconhecendo o antigo advogado de acusação e os motivos que o levam a estar ali, diz: “à frente dos miúdos, não”. Alejandro, como resposta, mata a mulher e os filhos de Alarcón antes de atirar sobre o capo di tutti capi.

Brazil, 2018. Bolsonaro terá sido eleito chefe de Estado da República Brasileira ontem mesmo. Multiplicam-se as dezenas de análises políticas versando sobre as condições que levaram a que isso pudesse acontecer. Uma coisa é clara: muitos daqueles que votaram Lula e Dilma em eleições anteriores votaram agora Bolsonaro. O povo brasileiro, diz-se, ou ensandeceu ou eclodiu em fascismo.

Não sendo politólogo, graças a Deus, posso avançar com o meu bitaite descomprometido de necessidade de rigor conceptual acerca do que vem acontecendo um pouco por toda a parte no mundo ocidental. Os partidos de consenso – o centrão, como sói dizer-se – têm vindo a distanciar-se cada vez mais uns dos outros e dos cidadãos. A política do possível, aquela que aproxima a vontade de partidos de eleitorados distintos e que permite a negociação de interesses opostos, foi substituída pela política de claque: confrontos hostis entre forças de esquerda e de direita fazem com que a zona de consenso tenha sido terraplanada. Ao invés de negociações e permutas, que fazem a democracia funcionar sem sobressaltos, porque se atendem a petições de sectores muito diferenciados da sociedade, temos imposições de agendas únicas: a esquerda é cada vez mais esquerda (ainda que esta esquerda de causas e de identidades não seja a esquerda de há 50 anos) e a direita cada vez mais direita. E ambas são cada vez mais surdas às necessidades de quem não lhes pertence ideologicamente. O bom senso deu lugar à radicalização. As razões de fundo a razões de forma. O apelo à calma ao apelo à turba. Há cada vez mais eleitores a não se sentirem representados por ninguém. A sentirem-se injustiçados. Há cada vez mais pessoas solidárias com o gesto aparentemente redentor de Alejandro Gillick.

Frente a Fausto Alarcón, frente ao sistema que as injustiçou e que as torna mais indefesas e minúsculas que formigas à mercê de uma bota, há cada vez mais pessoas que não têm dúvidas: antes o fascismo, antes a anarquia, antes o sangue do que isto. Do que este estado ignominioso de coisas que parece beneficiar apenas e sempre os mesmos. Os do sistema. Os votos em Trump e em Bolsonaro são votos anti-sistema. São votos anti-surdez. São votos de um profundo desencanto com o estado de decomposição a que o sistema e a política que o sustenta chegou. E não perceber isso, rotulando de doidos ou de fascistas inúmeros milhões de brasileiros e de americanos que elegem fascistas ou extremistas, é não perceber sequer porque é que o vizinho insiste em não pendurar a roupa do avesso. É estar tão intoxicado de superioridade moral que se dispensam todas e quaisquer perguntas ao outro e às suas razões. Chegamos terrivelmente a este ponto por nossas próprias mãos, quando nos convencemos de que o outro – e não estou a falar dos fachos e dos nazis, que são uma minoria – é apenas um idiota útil a quem não endereçamos perguntas, mas reprimendas, quando ele age como não esperamos ou queremos que ele aja.

29 Out 2018

Braco, a alegria do espargo

[dropcap]D[/dropcap]obra quase um século sobre o que o poeta T. S. Eliot escreveu «Onde está a sabedoria,/ que se perdeu com o conhecimento?/ Onde está o conhecimento/ que se perdeu com a informação?»

Vivemos sob a orbe de uma sociedade da informação cujos fluxos são disparados, com consentimento ou não, e quantas vezes basta conectarmo-nos à Internet para colher os frutos de um maravilhoso pomar de dados, embora tema que estejamos mais isolados e intolerantes.

E talvez o mais vital não se situe na comunicação, mas no conhecimento. Que é? Temos demasiada pressa para o identificarmos enquanto nos lambuzamos nos novos hábitos de recolectores da informação. Radicará nesta falsa aurora, como um remix de fragmentos chegados de fora de nós, a facilidade para nos julgarmos com opinião sobre tudo, presumindo que agora a esfera pública está confinada às irrelevâncias que nos permitimos em privado? Morreu a esfera pública, ou emudeceu, como a crítica.

Entretanto, enquanto o velório prossegue, faço meu um dito de Ezra Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.» A comunicação é tudo que está exterior a nós, na horizontal, já o conhecimento atinge-nos como uma reminiscência, abrindo horizontes na vertical como se raiasse de dentro. O que só acontece pela duração e não na instantaneidade da comunicação porque o tempo é suado e denso e não superficial e rápido, como o mercado ou as redes sociais afirmam.

E isto ocorre no rasto da mudança de paradigma na nossa relação com a palavra. A tendência niilista que se manifesta nesta reviravolta política para uma direita populista advém entre outros factores de uma desvalorização da palavra e de um descarrilamento na trivialização.

Aparentemente estamos mais conectados, contudo ao ser-nos repetido que tudo se mercantiliza descremos do valor da palavra e caímos no cinismo.

É sintomático que o actual guru de maior sucesso na Europa seja Braco, o Mudo. Braco o Contemplador, que cura as pessoas olhando-as por alguns minutos. Centenas afirmam que os seus padecimentos desapareceram por completo após terem fitado os seus olhos pacíficos. Parece que também funciona em animais, que provoca látegos de ternura nos frangos congelados e orgasmos nas ervilhas. O croata de 46 anos é popularíssimo na Europa e já é um fenómeno crescente nos EUA.

Ele não fala em público nem dá entrevistas; só se ouve a sua voz “amorosa” através de seu DVD. Consta que perderia os seus poderes especiais se falasse.

Um jornal americano chamou-lhe «o guru de uma nova era sem nada para dizer». Explicitamente, o seu silêncio é uma inscrição oracular onde cada um vê, encontra, o que julga precisar. Ressalta daí que já não se busca nem se acredita numa experiência partilhável pela mediação da palavra, que seja comum, pública: estar a sós com a mudez do olhar de guru basta.

Hoje, morta a esfera pública, as convicções e crenças pessoais repudiam os factos. Um dia, em 2007, na universidade em Maputo, cheguei à aula e os meus planos foram furados por uma reportagem televisiva que urgia, diziam os alunos, ser debatida. Nos subúrbios, uma rapariga parira um bule e duas chávenas. Metade da turma rejeitava a hipótese, alguns hesitavam e outros defendiam a sua possibilidade. Foi inútil explicar-lhes as leis da biologia e o que fosse o ADN.

Contra convicções não há factos: faça-se silêncio sobre séculos de ciência. O olhar de Braco desautoriza Einstein.

Igualmente, o inexplicável no fenómeno das fake news (que “industrializou” uma prática que se ocultava) é que face à sua motivação política tão descarada a sua implaubilidade concite afinal adesões tão maciças, sem que o crédulo interrogue os efeitos de se institucionalizar a mentira. O militante crê, afasta qualquer crivo de análise: basta-lhe o olhar bovino do candidato, daquele que prescindiu de debates, e tudo devém credível.

É absurdo que no fito de exprimirmos a insatisfação contra um sistema estabelecido aceitemos um conservador autoritário que usa processos desonestos e nem cumpre as regras do jogo, alheando-nos de que ele nos está a avisar que não tem valores e o seu programa viverá da vantagem, do oportunismo e da violência; para ele o passado não é uma inscrição na memória mas narrativa morta, que qualquer alusão revisionista desmancha, reverte e desclassifica.

As pessoas sérias da direita democrática não separam o trigo do joio? O ensaísta Bruno Carvalho, professor de Harvard, mete o dedo na ferida: «O facto de o eleitorado mais de direita optar por um radical, ao invés de outros candidatos da direita mais comprometidos com a democracia, indica uma necessidade urgente de autocrítica entre elites conservadoras e liberais».

A confirmar-se a eleição de Bolsonaro a hecatombe não é só para a esquerda, a direita democrática fica sem legitimidade ou recuo moral.

Reagia Bolsonaro às acusações sobre a Caixa 2: embora reconheça a ilegalidade do acto, no fundo é uma vítima da liberdade das pessoas que se organizam para divulgar mensagens em massa em seu benefício, sejam militantes ou empresários… pelo que é inocente. Há alguma coisa de que este homem se sinta responsável?

É uma resposta tão cínica e destituída do factor humano como a reacção de Trump à queda das Twin Towers: «A Trump Tower voltou a ser a mais alta!»

Por que é que se fica cego a estas evidências, achando que são apenas minudências de um orador desastrado, um mal menor? Porque na generalidade as pessoas vêm preferindo a trivialização da comunicação ao conhecimento, que exige outro comprometimento e a manutenção duma esfera pública: ou seja, de critérios fora de nós.

Há décadas que Bauman preveniu que a paulatina primazia que se dá à segurança sobre a liberdade pode resultar na paranoia que anseia por liquidar o exterior, o espaço público. Que São Braco, Deus dos espargos, nos acuda!

25 Out 2018

A arte perdida de andar na rua

[dropcap]P[/dropcap]ara quem vive e escreve de dentro dos dias são sempre as pequenas coisas que contam. São muitas vezes sinais quase prosaicos, tão embrenhados na normalidade do quotidiano que só merecem atenção para o coleccionador de acasos relevantes. Como esta história de que fui testemunha: um dia como os outros, uma estação de metro lisboeta apinhada. Uma vez saída das carruagens a multidão dispersou para os seus destinos e vidas, alheia a tudo o que não lhe dissesse respeito.

À minha frente, um cavalheiro idoso avançava apoiado numa bengala, com o esforço dos anos em cada passo. A cabeça estava inclinada para a frente, o que atribuí à sua idade. Errei: na mão tinha um telemóvel, que parecia naquele momento todo o centro do seu mundo. Subitamente, sou ultrapassado a grande velocidade por uma mulher de meia-idade. A mesma posição cabisbaixa e pela mesma razão. Nem por um segundo terá pensado em erguer o rosto, saber onde estava, para onde ia. O resultado foi inevitável: com alguma violência abalroou o cavalheiro que seguia à sua frente. O homem caiu, mais surpreso do que ferido; a mulher olhou-o de forma quase indignada, à beira de pedir satisfações. Alguns transeuntes ajudaram o homem a levantar-se, a mulher balbuciou algo remotamente parecido com uma desculpa e continuou, cabisbaixa, a sua marcha irreversível.

O que me interessa e choca neste episódio não é a sua originalidade: é a sua banalidade. Todos os dias presenciamos esta gente cabisbaixa que invadiu o nosso mundo, as nossas ruas. Muitas vezes pertencemos-lhes por sermos iguais. Os passeios estão repletos de gente como nós, olhando para algo que não sabe o que é mas que aparentemente tem sempre uma urgência absoluta. Perdemos a capacidade de olhar, de ver o outro através do rosto e não de um ecrã. E perder o olhar para o outro é, quer-me parecer, abdicar um pouco de ser humano.

Exagero? Talvez. Mas experimentem parar, olhar, contemplar, flanar. Vejam o que vos rodeia. Vejam se gostam do que vêem. Não me interpretem mal: não é minha intenção lançar aqui um libelo contra as modernas tecnologias, que muito fazem para nos simplificar a vida. Mas não podemos desistir do olhar, da curiosidade pelo que está à nossa volta. Andar na rua – olhar, perceber, enfrentar, sorrir – começa a ser uma arte perdida, algo a que só estetas nostálgicos e exilados destes tempos parecem dar importância. Num romance de Evelyn Waugh, Put Out More Flags, há um personagem – um dandy decadente chamado Ambrose Silk – que lamenta o mundo em que vive, suspirando pela arte desaparecida da conversação e o “mundo sepultado de Diaghilev”. Daqui a pouco tempo suspeito que alguém irá lamentar a arte perdida de andar na rua. Na verdade já o estou a fazer.

Conseguimos, em séculos de evolução, chegar ao homo erectus. A ideia seria pelo menos conseguir manter esta condição. Porque ao olharmos apenas para um falso espelho arriscamo-nos a deixar a vida passar ao lado. Ou abalroar-nos de surpresa e sem desculpas.

24 Out 2018

O diabo

[dropcap]C[/dropcap]om os anos devemos à memória mais, muito mais do que a toda a informação obtida, dado que a informação não cultiva, e a memória cultivada regista outros parâmetros onde aquela com sede de novidade já não pode inovar. O alarido “diabólico” das mentes ofegantes que geram no éter as nossas informações parece montagem de maus demos no exercício das suas funcionalidades. Barricamo-nos na deriva de tanta presunção diabólica, coisas que na memória, tal como disse, não parecem funcionar assim. Recuar até Giovanni Papini, converso cristão, que de forma ilusionista lhe vestiu o manto e quase se santificou até ao mais improvável alibi, ao seu «Diabo» que em nada se parece com esta dimensão desconcertada de um mal aleatório. Que grandes páginas a ele dedicadas o mundo não padece «O Dicionário Infernal» de Collin de Plancy, que veio a ser, e muito justamente, designado por «género frenético» até a «Hora do Diabo» de um Fernando Pessoa. Há matéria para tais deletérios e, pasme-se, que podem ser louvados enquanto exercício de uma esfera fecunda, que o é.

Mas qual o efeito deste Demo, senhor das coisas impensáveis, que cavalgou as nossas vidas antes da lava larval dos novos conteúdos? Nenhum. O Diabo, a haver, já se foi, da mesma forma que Deus morreu. Só nós, no centro do labirinto da teomania, nos avantajamos para mostrar obra feita que reponha tais princípios, podendo bem dar-se o caso de ser agora uma lenda bem menos amarga que as nossas tão humanas interpretações. — Que Pessoa afirmou na sua Hora que ele era um cavalheiro e que deveria, por isso, uma senhora mostrar-se confortável na sua presença — o que não deixa de ser uma grande reabilitação face ao homúnculo que por este mundo anda, até ao seu Beijo, com a carga que selou um improvável encontro. Foi Deus que desceu à condição e teve como resolução final a Paixão, ela, não se encontra pendurada sangrando de humana barbárie – não – a isso chama-se assassinato. Um beijo assim tem mistérios tais que milénios de cânones não conseguem descortinar. Afinal, não se deve tocar em ninguém e, sobretudo, como bem viu um jovem professor, obrigar crianças a beijar avós ou quem quer que seja contra as suas vontades. Tocar é um mistério, ser tocado, também.

A venda não tapa os olhos dos vendidos, vender é fazer negócio, e que se saiba ninguém negociou beijos ou vendeu a resgate o ponto imóvel de um deles, que desse origem a esta arrasadora frase de Papini: «que resta a fazer quando nada mais é possível? Volver-se pois contra si mesmo…abocanhar-se, fazer-se em pedaços…e um dia? Um dia, abrasar. Mas nos seus membros lassos por entre os coágulos acres de sangue, há um pouco de carne intacta, onde ele com Judas beijou», o que pode bem responder à questão do Evangelho segundo Mateus – Amigo, que vieste aqui fazer? Sem mácula, a carne beijada. Mantivemos a luxúria como um elo da malignidade e, de certa forma assim é, mas o Beijo não tem escala percorrida na antecâmara das profanações, nem estas carnes que se tocam são de natureza profana a produzir simples desejos. Estamos na intimidade de uma grandeza.

Há muitos sortilégios em forma de códigos morais nas ideias alternativas e nas mentalidades modeladoras. São bocados de encantamento que lutam contra o desgoverno mundial mas, mal feitas e dirigidas a não se sabe quem, coisas de arrepiar se multiplicam sem que tenhamos capacidade de as reconduzir a uma forma de combate leal. Atravessamos a loucura como um estado de coisas naturais, gostamos da bruxa má, do inferno porque é giro, da resiliência soez, e andando nisto até parece que Satã nos fica a matar. Não. Não está aqui. Nada disto tem sentido infernal nenhum. A vacuidade produziu uma estranha importância cuja cauda não chega à de um crocodilo e bizarramente altiva-se de perfeccionismo serôdio para alinhar no esconderijo do pormenor. Regra de Demo, sem que se lhes reconheça sagacidade para juntar todas as peças de um acorde: o que ele gosta de violino!!!

Cada época recorrerá, criará a sua noção de malignidade, mas não creio que se possa recorrer já em todas as culturas aos arquétipos: as advertências são grandes e o próprio mal uma consequência e, na medida em que nos falta elementos valorizadores da natureza humana para que as tabelas oníricas se mantenham como suportes, é mais fácil um desventrar sem causa do que uma perseguição por culpa. Quem não entendeu um Beijo não pode querer saber mais do muito que ainda tem para lhe acontecer – e aconteça o que acontecer – já não há beijos que nos ressuscitem ou nos condenem. As nossas bocas fazem dieta e o nosso corpo deseja-se magro. «Encontrei-os cegos – ensinei-lhes a ver. Agora não me reconhecem nem me vêem» Blake, este Lúcifer tem mais potência que toda a industria energética que não deve ser cortada por subalternos de um deus menor, uma fonte que por cá, não raro, até prodigaliza incêndios ficando a terra um inferno sem brilho.

O físico Stephen Hawking acaba de deixar estranhos prognósticos dizendo mesmo que nos podemos extinguir em face de uma espécie melhorada… mas o pior é darmos de caras com o Demónio do Apocalipse, aquele que virá para julgar os vivos e os mortos, sendo os vivos horrorosamente nós: «Nesses tempos os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá para longe deles» Não, não é contra a eutanásia. É a vingança do retorno do Diabo. As almas estarão num tubo de ensaio para não mais ser vendidas. E dos beijos que der, mais ninguém terá conhecimento.

23 Out 2018

Literatura | Universidade de Milão inaugura cátedra António Lobo Antunes

A Universidade de Milão, em Itália, decidiu homenagear um dos grandes escritores portugueses contemporâneos com a criação da cátedra António Lobo Antunes. A cerimónia de lançamento aconteceu ontem com a presença do escritor

[dropcap]A[/dropcap] cátedra António Lobo Antunes, que visa “promover e potenciar o ensino e a difusão da língua e cultura portuguesas”, foi ontem inaugurada, na Universidade de Milão, com a participação do escritor.

António Lobo Antunes, de 76 anos, encontra-se em Itália, onde recebeu no passado sábado, o Prémio Bottari Lattes Grinzane, no castelo Grinzane Cavour, na região de Piemonte.

“Sob a direcção de Vincenzo Russo, professor de Língua e Literaturas Portuguesa e Brasileira, esta Cátedra tem como finalidade e propósito, promover e potenciar o ensino e a difusão da língua e cultura portuguesa”, afirma em comunicado o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.

A cerimónia de inauguração da cátedra realizou-se ontem na Sala Crociera Alta di Giurisprudenza, em Milão, durante a qual foi assinado o protocolo entre o Instituto Camões, representado pelo embaixador de Portugal em Roma, Francisco Ribeiro Telles, e o reitor da Università degli Studi di Milano, Elio Franzini.

A inauguração da cátedra “será celebrada com uma ‘lectio magistralis’ proferida pelo escritor mais importante da contemporaneidade portuguesa: António Lobo Antunes, autor desde 1979 de uma rica e vastíssima obra que conta com mais de 30 romances e cinco volumes de crónicas, traduzida, lida e admirada em todo o mundo”, segundo o mesmo comunicado.

António Lobo Antunes publicou recentemente um novo romance, “A última porta antes da noite”, que dedica ao seu amigo George Steiner, crítico literário e professor nas universidades de Cambridge e Genebra, que lhe falou nesta frase, da personagem Judite, da ópera “O castelo do Barba Azul”, de Béla Bartók.

No final da ópera, a personagem “pede que lhe abram ‘a última porta antes da noite’”, explicou Lobo Antunes, numa entrevista à agência Lusa. “Uma frase que não foi criada para este livro, já existe há muito tempo, e foi uma frase que sempre me tocou, e em certo sentido é uma homenagem a um amigo [George Steiner]”.

23 Out 2018

“Torto Arado” do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior vence Prémio LeYa de Literatura

[dropcap]”T[/dropcap]orto Arado”, do escritor brasileiro Itamar Vieira Junior, é o romance vencedor do Prémio LeYa de Literatura, no valor monetário de 100 mil euros, com edição prevista pelo grupo editorial, anunciou hoje Manuel Alegre, que presidiu ao júri.

O Prémio LeYa de Literatura é o maior galardão para uma obra inédita escrita em língua portuguesa, e o júri desta 10.ª edição, contou com os novos membros, a escritora angolana Ana Paula Tavares, a jornalista e crítica literária portuguesa Isabel Lucas e o editor, jornalista e tradutor brasileiro Paulo Werneck, que substituíram o escritor angolano Pepetela e os professores e críticos brasileiros José Castelo e Rita Chaves, que saíram.

Além do escritor Manuel Alegre, que mantém a presidência do júri desde o início, continuam também a fazer parte Lourenço do Rosário, professor de Letras e ex-reitor da Universidade Politécnica de Maputo, José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Coimbra, e o escritor e poeta Nuno Júdice.

O júri reuniu-se na terça-feira e hoje na sede do grupo LeYa, em Alfragide, no concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa.

Ao galardão candidataram-se, este ano, 348 originais provenientes de 13 países, a maioria, de Portugal e Brasil, embora tenham chegado “obras de países tão diversos como Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, China ou até mesmo da Islândia”, segundo o grupo editorial. No ano passado, o vencedor foi o romance “Os Loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho.

O galardão foi atribuído pela primeira vez em 2008, ao brasileiro Murilo Carvalho, pelo romance “O Rastro do Jaguar”, e por duas vezes não teve vencedor – em 2010 e em 2016 -, dada a qualidade dos originais a concurso, segundo justificou então o júri.

“O Olho de Hertzog”, de João Paulo Borges Coelho, venceu o prémio em 2009, “O Teu Rosto Será o Ultimo”, de João Ricardo Pedro, em 2011, “Debaixo de Algum Céu”, de Nuno Camarneiro, foi o vencedor em 2012, ao qual se sucedeu “Uma Outra Voz”, de Gabriela Ruivo Trindade, em 2013. Em 2014 venceu o romance “O Meu Irmão”, de Afonso Reis Cabral, e, em 2015, “O Coro dos Defuntos”, de António Tavares.

18 Out 2018

Sophia de Mello Breyner Andresen – “Meditação do Duque de Gândia”

Meditação do Duque de Gândia

[dropcap]N[/dropcap]unca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.

Sophia de Mello Breyner Andresen

17 Out 2018

Gérard de Nerval

[dropcap]Q[/dropcap]uando em Baudelaire vamos encontrar o radical efeito de um sedutor das trevas rapidamente notamos que não está sozinho. No seu repositório belo e bravio acenam muitas imagens e aspectos de composição do imaginário poético, o esqueleto transparente de Nerval, nascido doze anos antes, no esotérico e escatológico universo do Romantismo. Que eles, poetas, vêm para salvar o mundo com suas imponderáveis intervenções, e nesta corrente é ainda a imolação que preside ao destino imposto. A loucura ronda sempre por perto como uma escavadora, no entanto «La dernière folie que me restera probablement, ce sera de me croire poéte» (Nerval).

Século dezanove é quando o belo poema de Baudelaire irrompe. «Spleen et idéal» onde cremos ainda estar a ler – continuar lendo – o poema sempre inacabado «Le Christ aux Oliviers» e tão próximo é a mesma atmosfera e estrutura do poema que sabemos que todos os poetas são Unos, escrevendo, reescrevendo o mesmo legado do mistério de uma ferida. Sem ela não havia existência possível para estes seres no mundo, nem a sua já tão débil existência teria tido entre todos algum sentido. Escrevemos estas coisas que agora aqui são ditas à distância de dois séculos e parece-nos que todos estes “erros meus, má fortuna, amor ardente” foram resgatados ao fluxo de não nos consentirmos na indagação que culmina em vãos alheios pelo espírito da época, quando o temor lhes fecha as portas. Mas eles são tão poderosos que não há antídotos para tal esquecimento.

Nerval nasce, ainda tal como Baudelaire, numa organização social onde as suas sensibilidades só podem continuar com as heranças de família e onde o conceito artificial do trabalho não se lhes impõe como forma de “ganhar” a vida, um pouco corroborando a bíblica frase: «quem quiser ganhar a sua própria vida, perdê-la-á» e esse aspecto que não é nunca uma questão de somenos importância carrega um pesado anátema face ao tempo que vivemos. O “trabalho” é a arma de quem não pode ou não sabe fazer mais nada, e do nada produzido transportar o tempo ávido com uma condição de viciado. Nem sequer pode ascender aos «Paraísos Artificiais», o artefacto não sobe na direcção de «Quimeras» bem construídas, pois que os sonhos não gostam de quem deles se afasta e delegam para a robustez dos sobreviventes a lava da sua mortificação. Perfilha-se Nerval ainda jovem nos apoios românticos de Victor Hugo e frequenta o «Petit Cénacle», antes surge com as suas poesias e sátiras políticas, traduz o «Fausto» de Goethe, adaptado por Berlioz em 1829.

O poeta das buscas pelas fontes secretas não se retém apenas na sua «Alquimia» ocidental, simbólica e tem o ensejo de partir para mais longe rumo a Oriente. Médio Oriente onde resultam as notas conhecidas de uma viagem que desejou como uma quarentena no deserto (as areias são mais divinas a seus olhos que as ondas do mar). Publica mais tarde «Cenas da vida Oriental», mas o seu estado de saúde oscila entre crises psicóticas onde a intermitência dos internamentos começa a destruir toda a energia que encaminhava para uma obra cujo tamanho nos deixa confundidos. É, no entanto, nesta altura que um conjunto vasto da sua poesia fica registada na memória do tempo, o que faz Proust mais tarde debruçar-se na sua busca como um triunfo de um imaginário que resiste. Alastra-se o seu encanto até ao surrealismo, Nerval que fora um homem ocupado de transcendências, profecias e leis cármicas, escreve nesta altura Antéros, o deus da classe dos Erotes, sublinha a importância de um socialismo futuro, e sem que a corrente se parta jamais vamos dar ao nosso próprio Antero. E tão fina ela se move que a resolução encontram-na no suicídio, a longa viagem destes Atlantes que desemboca num cais, «sózinhos num cais deserto», Ode Marítima aos desertores da vida, onde todos começam, e outros desaguam nas mesmas águas levando sempre traços inquebrantáveis de uma mesma lucidez.

Com alguma tristeza deparo-me com um compêndio de História da Literatura Francesa de liceu, que o não engloba, e estas coisas podem não ser tão negligentes quanto imaginamos. Surripiamos as lendas, mas o tempo é ainda mais agreste para quem lhes veste as fardas sem acreditar na quimera daqueles que as escreveram, vivendo-as. Não queremos descer ao abismo esperado, e nunca se desfez tanto em tão curto espaço de tempo e se projectou a vontade da insignificância dos méritos de cada um. Para o mês ainda nos deixou «As noites de Outubro» e afirmou de si mesmo na imponente frase que nos ergue e mete em guarda: «je suis le ténebreux, – le veuf, – l´inconsolé». Uma panóplia de vozes nem sempre nos leva à heteronímia, mas elas coexistem dentro dos melhores condutores de partículas que ao acelerarem, serão sempre as primeiras a encontrar a de Deus.

Nenhum acelerador é feito destas malhas, nem a velocidade a que se deslocam se precipita na cauda de uma competição, isso, que a nossa Humanidade esqueceu, terá que ser recordado ou paramos todos neste transbordo dos que se agitam num mundo sem futuro, num retábulo de movimento a cada instante mais ilusório. «A mão encantada» fica para obra póstuma pois que a sua própria interrompe a vida em 1855. As suas primeiras obras completas saem em 1867 em seis volumes na editora de Michel Lévy. Até hoje há essa mão encantada que vamos buscar a tão raro talento magoado.

«Judas! lui cria-t-il, tu sais ce qu´on m´estime
Hâte-toi de me vendre, et finis ce marché:
Je suis souffrant, ami! sur la terre couché…
Viens! ô toi qui du moins, as la force du crime!»

16 Out 2018