Das livrarias

[dropcap]E[/dropcap]stou numa livraria em Estrasburgo para um encontro com leitores, uma livraria com cerca de trinta e cinco anos de existência na qual trabalham cinco pessoas. Uma senhora ao meu lado pergunta por um livro de que leu resumo e crítica num jornal de Maio; não sabe precisar o jornal em questão ou o título do livro ou o autor, mas é um romance histórico que versa a República de Weimar e, na escola onde trabalha – é professora de geografia –, duas colegas falaram-lhe muito bem do livro. O livreiro chama um colega, justificando-se: a minha especialidade não é de todo o romance histórico, madame.

Chega o segundo livreiro: esta senhora procura um romance que saiu em Abril, Maio, sobre a república de Weimar, não se recorda se o autor é francês ou se… Sim – interpõe o outro – já sei. Venha comigo – dirigindo-se à senhora.

Veja se é este que procura – a senhora faz que sim com a cabeça, sorri –, é este mesmo. Eu lembrava-me de que a capa era em tons de azul, mas nem por nada me conseguia lembrar do nome. Se me permite – prossegue o livreiro – temos outro título aqui na livraria que poderia interessar-lhe, é o mesmo tema tratado de uma perspectiva inteiramente diferente, na minha opinião bastante mais realista… não diria realista, ambos os livros são bastante fiéis na perspectiva que cada um deles traduz dos acontecimentos pós-primeira guerra, mas são duas histórias contadas de modo muito diferente, e penso que até se complementam. A senhora segue-o, regressam à prateleira de onde o livreiro retirou o primeiro livro e ali se demoram em conversa sobre livros, a república de Weimar, o que já leram este ano e o que mais gostaram de ler e porquê.

Em França e exceptuando talvez Marselha, não há cidade que não tenha umas quatro ou cinco livrarias independentes. E uma livraria independente – pelo menos para os franceses – não é só uma livraria que não pertence a uma grande cadeia de retalho de livros. É sobretudo um local onde trabalham pessoas cuja especialidade é encontrar aquilo que se procura e aquilo de que nem se sabia estar à procura. Chega-se lá e descreve-se o bicho de que se tem uma vaga recordação num braile confuso e não só o especialista o conhece como consegue trazer à colação do interesse toda uma zoologia de criaturas da mesma família.

Em Portugal quase já não temos livreiros, tirando honrosas mas insuficientes excepções. As pessoas que trabalham nas Fnacs e Bertrands da vida não são, na sua grande maioria, especialistas. São mal pagos (como quase toda a gente) e não se lhes exige que acompanhem o “mercado literário” de um ponto de vista outro que o ponto de vista do departamento de marketing. O livro é um produto como outro qualquer e, como qualquer produto, está sob alçada da coordenação estratégica dos departamentos que tratam especificamente de produto: o departamento de marketing e o departamento comercial. Pouco importa que os possíveis clientes andem perdidos nas livrarias entre a savana da auto-ajuda e a cordilheira das culinárias do mundo sem saber exactamente destrinçar as diferenças entre secções ou focar-se num título em particular: desde que saiam dali com um tijolo debaixo do braço – e mesmo que não mais regressem – está tudo bem. O que interessa são os objectivos, e estes não vêem miolos.

As livrarias em Portugal tornaram-se uma espécie de restaurante típico cuja gestão passou para o filho mais velho: vamos cortar nos custos, refazer a ementa em função da estrangeirada que por aí anda à procura do very typical mas com um twist. Quando se derem conta do barrete já estão de regresso aos seus países. Desde que a sala esteja sempre cheia, tanto dá isto ser um restaurante ou uma manjedoura.

27 Set 2019

Perlaborar os formigueiros

[dropcap]T[/dropcap]inha vinte e poucos anos quando assisti a uma conferência de António José Saraiva. Retive na ocasião a ideia de que “os humanos não são formigas” e que, portanto, se não ousarem mudar radicalmente aquilo que são (ou julgam ser) ao longo da vida, mal vai a volta.

Pelo meu lado, tenho praticado esse anti-dogma várias vezes no correr do tempo. Razão por que abandonei muitas vezes os rituais de grupo em que me vi (ou vejo ainda) envolvido.

Alguns amigos meus – a maior parte mais novos do que eu – adora fazer provas de coerência e nem creio que dêem por isso. Talvez assim seja porque vivemos em tempos adversos a esse tipo de profissões de fé. Ou então porque os seus heróis-filósofos os satisfazem e lhes emprestam certezas inabaláveis, ou ainda porque o delírio hedonista os desenha numa (quase sempre protegida) fuga para a frente.

Por estar na moda desancar nos ‘franciunzes’ – por vezes também alinho nessa ‘gouttière’ -, passo a evocar um caso de curiosa metamorfose ligado a um senhor nascido em Versailles, meses depois do meu pai: Jean-François Lyotard.

Nove anos após ter publicado A Condição Pós-Moderna (1979) – um livro que varreu muita conversa nas duas décadas seguintes -, o autor adoptou, em O Inumano, a modalidade “reescrever a modernidade” em prejuízo do chavão “pós-moderno”, de que, aliás, se tornou bastante crítico. Nesse ensaio, justificou-se com dois argumentos para a mudança: o primeiro ligado à impossibilidade de imobilizar o tempo e o segundo ligado ao facto de não existirem narrativas plenamente relatadas.

A primeira vantagem sublinhava a futilidade de qualquer periodização da história cultural em termos de “pré” e de “pós”, e de “antes” e de “depois”, pelo simples facto de não resolver a posição do agora (do presente), a partir do qual é suposto adoptar-se uma perspectiva sobre os decursos cronológicos.

Já a segunda das vantagens, baseada no conceito de Sigmund Freud “perlaboração” (durcharbeitung), colocava em evidência o facto de uma narrativa nunca poder traduzir-se na plenitude, na medida em que existe sempre algo ‘não dito’ (ou “escondido”) num acontecimento, fazendo isso parte da sua própria constituição.

A perlaboração diz-nos que no mundo tudo está sempre a ser contado e que não existe uma única narrativa integralmente consumada. É natural que a tentação de desenterrar um dos aspectos dessa narrativa para lhe tentar descortinar a ‘essência’ – se é que isso existe – e a possível completude faça parte dos desígnios (ou das fantasias, dir-se-á) dos humanos.
Lyotard dá o exemplo de Marx e de Nietzsche, o primeiro, ao ter detectado por inefável sortilégio – o juízo é meu – “o funcionamento escondido do capitalismo”, aspecto que desenlaçaria todos os demais sentidos da história; o segundo, ao ter considerado que “não existe nenhum princípio primeiro e original” (um “ground” ou uma referência de fundo) a partir do qual uma narrativa pudesse ser pensada (caso da ‘criação do mundo’ e do ‘eschatón’ para as religiões axiais, do ‘bem’ para Platão ou do “princípio da razão suficiente” para Leibniz).

A modernidade seria, portanto, nesta acepção, um espaço de ilimitadas redescobertas e não o resultado de um desencantamento.

A atitude de “rescrever” um período que se evidenciou pelas suas características próprias tornou-se, para Jean-François Lyotard, em poucos anos, numa óbvia alternativa ao conceito “pós”. E o autor foi mesmo mais longe, ao afirmar que “o pós-moderno está já compreendido no moderno pelo facto de a modernidade” (…) “comportar em si o impulso para se exceder num estado que não é o seu”. A este dado, acrescentou ainda: “(O) que realmente se oporia à modernidade seria a idade clássica. Esta comporta um estado do tempo, digamos: um estatuto de temporalidade onde o “advir” e o “partir”, o futuro e o passado são tratados como se, em conjunto, englobassem a totalidade da vida numa mesma unidade de sentido.”.

Embora Lyotard tivesse desfeito o pacto esquemático (e ultrapassado) – ‘moderno vs pós-moderno’ –, a verdade é que a sua postulação é, também ela, uma longa história que está longe de estar contada. Mas isso ficará para uma outra crónica a acompanhar com material menos dietético e cauteloso.


Jean-François Lyotard. A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
Id. O Inumano: Considerações sobre o Tempo. Lisboa: Estampa, 1990.

26 Set 2019

Será a poesia feita de gnaisse puro?

[dropcap]N[/dropcap]em sempre Afrodite terá estado na disposição de dar vida a uma escultura para gáudio dos pigmaliões. Na ausência desse milagre e tal como afirmou Richard Rorty, no início dos anos oitenta, “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”, imaginando-se abraçados ao monte de vénus de uma Galateia de mármore. Pobres nenúfares.

A noção de texto que Rorty evoca aproxima-se da dos dogmas das religiões do ‘Livro’ que fez do mundo, durante séculos e séculos, uma iluminura escrita. Para o homem medieval, todo o sentido do universo dependia de uma harmoniosa refracção entre textos. Os modernos alteraram a pulsação das coisas, sondaram territórios, interrogaram o que é (e o que não é) o homem, mas não resistiram à tentação de voltar a transformar a palavra em mandamento. Tanto estalinezinho que se pavoneou por essa Europa e por essa Ásia fora nos últimos dois séculos, tendo como refém verbetes limados, frases redondas e suratas definitivas.

Esta obstinação de escrever e de ler o mundo como se só existissem textos tem, de facto, marca categórica, fosse a sua origem escolástica, ideológica ou académica. A plenitude que cremos herdar (obsessivamente) do império da escrita sempre trouxe consigo esquadrias rígidas. Autores como Sade, Bukowski, Genet ou Céline, que misturaram registos elevados e ditos consagradamente levianos, viram-se amiúde como filhos de uma penitência menor.

No penúltimo Livro de A República de Platão, Gláucon reconheceu que a cidade ideal, longamente descrita ao longo dos diálogos da obra, era coisa ‘só de palavras’ (“Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras, pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra” – 592b/ p. 447). O fundamental estaria fora das palavras, seria até anterior a elas e, seguramente, jamais por elas fundado.

Se contarmos para trás a mesma distância que vai de Platão até ao nosso tempo, chegamos à Epopeia de Gilgamesh. Trata-se de um texto inscrito em argilas refundidas com origem na actual região do Iraque que data de antes de meados do terceiro milénio a.C., embora existam compilações conhecidas já do final do segundo milénio a.C..

O relato é um dos primeiros registos escritos da espécie humana. Não lhe pré-existindo uma matriz rígida para replicar (haveria matrizes mitológicas orais, como a de Afrodite que deu vida a Galateia para gozo supremo de Pigmaleão, mas essas sempre foram maleáveis e, portanto, sempre se alteraram no correr dos tempos ao contrário do dogma), o texto ocupa-se das coisas essenciais e não ainda de outros textos ou de idealidades contaminadas.

É por isso que a Epopeia de Gilgamesh é uma história de heróis e de deuses com os sonhos a funcionarem como ignição primordial. O tema de fundo é o da imortalidade, claro está: Gilgamesh bem tenta aceder ao dom da vida eterna, passa por mil obstáculos para o conseguir, mas acaba por se confrontar com o nosso denominador comum mais escandaloso: a mortalidade.

O que se torna fascinante, ao longo da leitura, é pressentir a respiração genuína dos humanos de há quase cinco milénios e perceber que o essencial que está em causa é o mesmo que, hoje em dia, ainda nos permite confiar (dir-se-ia mesmo ‘acreditar’) na poesia, porventura o único tipo de texto contemporâneo que, de vez em quando, tenta escapar a outros textos refundando-se radicalmente enquanto se forma e enuncia. A grande poesia restitui à fonte o leme perdido pela palavra. Pelo menos é neste tipo de transparência glosada que eu entendo a grande poesia, mesmo quando ela parafraseia as suas merdas, pois, ao fim e ao cabo, somos todos humanos e não génios a apalpar corpos perfeitos esculpidos em gnaisse puro.

Para uma boa leitura da Epopeia de Gilgamesh, aconselho a tradução/versão assinada por Pedro Tamen (Edições António Ramos, Lisboa, 1979).

12 Set 2019

E se a Gronelândia fosse um travesti?

[dropcap]H[/dropcap]á alguns dias, andei à procura de ilações absurdas para iniciar uma crónica. Precisava desse condimento. Já veremos por que razão. O percurso seria elementar: bastava passar por notícias vindas da Arábia ou do Irão, ou entrar em algumas universidades como a de Quilmes, em Buenos Aires, cujas pesquisas científicas são sempre interessantes, nomeadamente a que provou que os hamsters recuperam melhor das mudanças de fusos horários, quando estão sob o efeito de viagra.

Mas como os humanos são seres azougados, bastou esperar umas horas para que um dos títeres do nosso tempo me proporcionasse ilações absurdas: depois de se comemorarem 152 anos sobre a compra do Alaska ao Canadá (já nem falo dos conhecidos episódios na fronteira sul pela mesma época), eis que o PR dos EUA se propôs comprar a Gronelândia à Dinamarca, um território correspondente a 26 vezes a superfície de Portugal. Um simples negócio imobiliário.

Moral da história: procurar ilações absurdas no nosso tempo é um acto absurdo. Kierkegaard e Camus, cada um a seu jeito, já se tinha encarregado do assunto e a primeira-ministra Mette Frederiksen, em Copenhaga, leitora do primeiro dos autores por razões óbvias, voltou agora a sublinhá-lo com aqueles seus olhos de iceberg verde vago. Há seis anos, já outra PM dinamarquesa, Helle Schmidt, tinha caído no goto de Obama, durante as exéquias de Mandela. As primeiras-ministras dinamarquesas e os EUA parecem, pois, para o pior e para o melhor, manter uma relação estilo Deucalião e Pirra.

Mas o assunto que me trazia para os corredores desta crónica era literário e elevado, podia lá ser outro, e prendia-se com o conto de Truman Capote ‘Uma candeia numa janela’ que pode ser assim resumido: um homem perde-se na floresta e descobre uma casa onde é bem recebido. A anfitriã é uma senhora de idade, viúva, que vive com vários gatos. O homem passa aí a noite e no outro dia descobre que o amor pelos gatos de Mrs. Kelly estava recheado de dotes faraónicos. Ao abrir a arca frigorífica, uma vasta colecção de gatos congelados comprova-o. E a dona da casa confessa a sua perdição: “Todos os meus velhos amigos. No eterno repouso. É que eu não suportava a ideia de os perder”.

O conto tocou-me, porque faço parte daquela franja da humanidade que tem um enorme fraquinho pelos gatos. Mas não sou maluco ao ponto de ir votar no PAN, pois é mais importante voltar a normalizar o Serviço Nacional de Saúde do que criar um paralelo destinado aos mais belos felinos da galáxia.

Voltando ao tema, devo referir que, por razões profissionais, procurei na rede críticas a este conto de Capote e ao livro onde ele surge publicado, ‘Música para Camaleões’. E foi então que, por acaso, encontrei um artigo científico que deixa as pesquisas da Universidade de Quilmes a um canto. Insere-se no naipe de investigações que, hoje em dia, fazem vida nos chamados ‘Estudos de Género’. O texto é da autoria de Michael P. Bibler e deixo-o aqui sem mais comentários (a tradução é minha, deixo o original em inglês em rodapé):

“Embora a história nos prepare para o facto de os gatos congelados serem símbolos ou substitutos do seu falecido marido, torna-se claro que ela ama os seus gatos literalmente enquanto gatos e nada mais. Capote leva-nos a compreender e a aceitar este amor pelos seus gatos como uma coisa em si mesma. E ao fazê-lo, ele convida-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro capaz de se ajustar a outras opções para além dos limites do casamento heterossexual, incluindo, ainda que sem se limitar a tal, a sua homossexualidade.”

Depois de ler esta preciosidade, pergunto-me se valerá a pena sequer comentá-la. Entre comprar a Gronelândia e a ideia de que os gatos congelados significam uma sexualidade de várias entradas, o que sobrará?

Sobrará talvez uma breve narrativa de teor oral que me foi contada por um amigo pintor que, por coincidência, é um apaixonado pela prosa de Truman Capote, pelos romances de Camus e pela filosofia de Kierkegaard:

‘O marido queria praticar sexo anal com a mulher, mas não sabia como pôr em prática um projecto de tal complexidade. Lembrou-se de comprar um busto de Napoleão. Colocou-o em frente à cama, ao lado da televisão. Na noite seguinte, a mulher perguntou – “O que faz ali aquele busto?” – e o marido, virando-se para ela, replicou – “qual busto, qual quê, o que tu queres sei eu”. E lá avançou como pôde, coitado’.

Esta breve narrativa, que em certos meios científicos é classificada como anedota, tem uma carga suplementar de vernáculo (diz literalmente “ir ao cu”), o que lhe confere um certo fundo antropológico. Se se convidasse o senhor Michael P. Bibler a interpretar este excurso no auditório da Gulbenkian, o que diria ele?

Diria que o marido, ao focar-se no peito de Napoleão (era essa a inexorável proeminência do busto), estaria a convidar-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro e capaz de se ajustar a outras posições e opções para além dos limites do sexo oral, competência em princípio partilhável nos mundos hetero e homossexual.

Acrescentaria ainda em jeito de conclusão: como os humanos não conhecem o género a que pertencem e precisam de aulas para o descobrir (por causa do dilúvio, Deucalião e Pirra ainda estão na lista de espera), se se tratasse do busto de Trump, tornar-se-ia necessário descongelar os gatos de Mrs. Kelly e a Gronelândia inteira e, depois de tudo derretido, tal como aconteceu com os hamsters de Quilmes, logo se veria para que fuso pendiam as coisas. Só então se podia, com propriedade, falar em negócio imobiliário.


Capote, Truman, Música para Camaleões, trad. paulo Faria, Livros do Brasil, Porto, 2015 pp.35-38 [Em linha]. (S/D.) https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829044.pdf [Consult. 3 Ago. 2019].

“Although the story prepares us to expect that the frozen cats could be symbols or surrogates for her dead husband, it becomes clear that she loves her cats literally as cats and nothing more. Capote pushes us to acknowledge and accept this love for her cats just as it is. And by doing so, he invites us to imagine a more hospitable world in which we accommodate other kinds of object-choice beyond the confines of heterosexual marriage, including but certainly not limited to his own homosexuality.”. In Michael P. Bibler,  Capotes´s Frozen Cats – Sexuality, Hospitality, Civil Rights, Journal Angelaki, Journal of theoretical humanities. [Em linha]. (Volume 23, 2018 – Issue 1 / Queer Objects. Issue Editors: Guy Davidson and Monique Rooney) https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969725X.2018.1435387?journalCode=cang20 [Consult. 3 Ago. 2019].

29 Ago 2019

Os novos misticismos

[dropcap]T[/dropcap]entar explicar uma realidade que não caiba nas palavras (ou nas possibilidades mais vastas da linguagem humana) pode conduzir a dizer, não o que ela é, mas aquilo que ela não é. Por outras palavras: em vez de o raciocínio avançar com as características que seriam próprias dessa realidade (e com analogias várias que a sugerissem), prefere antes enumerar o que ela certamente não é (negando e interrogando, ao mesmo tempo). Aplicado a deus, este método denomina-se teologia negativa; na retórica recebeu a feliz designação de apófase.

O ‘Cântico Negro’ de José Régio popularizou a fórmula com versos que se tornaram famosos, o que não deixa de ter a sua graça: “Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. São Tomás de Aquino também recorreu abundantemente a esta prática, mas ela acabou sobretudo por ficar conotada com a tradição mística, caso de Johannes Scheffler (1624-1677), por exemplo.

O Verão, redundantemente apelidado de “silly season”, é um período associado a uma menor densidade de carga informativa. Trata-se de um fenómeno recente que não se adequaria, com toda a certeza, à era de quase ininterrupta devastação que ligou duas das datas fundamentais do século passado: 1918 a 1945. Antes do assassinato de Sarajevo, a alegada “agenda informativa” não tinha o peso, nem o significado de pedra angular que adquiriu dos anos sessenta para cá. De forma que o tráfico comunicacional da expressão “silly season” é filha do presente imediato e seria incompreensível fora das fronteiras da nossa época.

Por vezes, penso na sorte tremenda que é ter vivido, até hoje, sem me ter cruzado com uma guerra (ou com os seus efeitos directos na pele). Por vezes, penso como é frágil pronunciar e comunicar expressões como é o caso dessa idiota “silly season”.

Uma tal expressão quer essencialmente dizer que, entre Julho e Agosto, o mundo deve ser esquecido, removido, desclassificado. A anestesia a que os veraneantes são convidados coloca as greves como um pano de fundo divertido, as mortes no Mediterrâneo como lance para extraterrestres e as quedas nas bolsas enquanto episódios para esquecer a meio do hipnótico ‘zapping’ diário. Por outras palavras: a “silly season” é uma teologia negativa, porque é um modo prático e chão de dizer o mundo pelo que ele não é.

Há contudo algo que não bate certo. A teologia negativa só existe na medida em que os humanos se encontram face a uma realidade que não conseguem traduzir (que não cabe nas possibilidades da linguagem). Quando se traduz, intenta-se uma aproximação entre dois registos, pratica-se amizade. Quando nem se consegue traduzir, é porque estamos face a qualquer coisa de que não sentimos proximidade e que se torna, portanto, inexplicável, distante. A pergunta é: qual é ‘essa coisa’ que os veraneantes não conseguem entender e que os leva em massa para esta espécie de profana e elementar teologia negativa?

A resposta parece-me clara: a turba afirma claramente e sem complexos que não entende, nem pretende entender o mundo e por isso o apaga neste recente ritual dos meses de verão.

Na larga maior parte da história dos humanos, sempre houve grandes perguntas e grandes respostas, isto é: valores óbvios, referenciais. Foi por isso que surgiu a filosofia e foi por isso que surgiram mil e um mandamentos religiosos ou ideológicos, pelo menos desde que, no alvor do mundo moderno, o homem (e não a transcendência) se colocou como objecto por excelência a ser investigado pelos saberes. O nosso tempo saiu dessa fornada de aflições carregadas de sentimento de dever. Os veraneantes querem é que não os chateiem, querem é que os deixem em paz a arrastarem os carros pelas auto-estradas, querem é que os deixem em paz nas procissões pelo deus-património, querem é que os deixem em paz entre o iphone, o fato de banho e o shopping.

Este dissociar do mundo, que se tornou crónico, passou a ter o seu clímax massificado nesta altura do ano (enfim, no hemisfério norte do planeta). Duvido que seja um período de franca realização, é-o muito mais de fluxo, de repetição, de reconstrução das rotinas diárias num novo contexto em que a irracionalidade – como acontecia nas antigas tradições do carnaval – pode dar-se ao luxo de dar uns passos de dança em falso, mas, desta feita, sem temer atropelar o outro. Os meios esquecem-se e os fins cingem-se amiúde às gargalhadas frugais do indígena (a amizade e a ideia de ‘outro’ escapam-se facilmente à voragem).

Para explicar uma realidade que não cabe nas possibilidades das expressões humanas, bastará, pois, colocar à solta um leme negativo. Repetir o que ela não é. Se os místicos o faziam com poemas particularmente elaborados (e muitas vezes foram conotados com ateísmo, refira-se), os humanos de hoje escrevem-nos através das indústrias do lúdico como se elas fossem a redenção de uma qualquer divindade ausente, irremissível e jamais superável.

O misticismo está a renovar-se, como se vê. Para o provar, deixo em baixo dois poemas: o primeiro é um original de Johannes Scheffler, o segundo é de minha autoria, embora literalmente baseado na rescrita do primeiro:

“O Deus Desconhecido.
O que é Deus, não o sabemos: ele não é luz.
Não é espírito.
Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é
Aquilo que chamamos divindade:
Não é sabedoria, não é intelecto, não é amor nem
Querer nem bondade.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Uma essência, não é um coração:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
Criatura
Antes de ter-se tornado naquilo que Ele é, jamais
Conhecemos.”*

O Mundo Desconhecido.
O que é o mundo, não o sabemos: ele não é uma prancha de surf.
Não é hora de ponta.
Não é androide, nem sindicato das matérias perigosas, nem CGTP, ele não é
Aquilo que chamamos ginásio ou solário:
Não é charter, não é low cost, não é bandeira verde nem
Vilamoura nem festival no passeio marítimo de Algés.
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa.
Não é
Um fio dental, não é um alojamento local:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma
criatura
Antes de ter-se tornado aquilo que o mundo é, jamais
Conhecemos.


*Tradução Nícia Bonnati em Derrida J, Salvo o nome, Papirus Editora, Campinas, 1995, pp.32/33.

22 Ago 2019

Dos hábitos

[dropcap]O[/dropcap] meu avô materno morreu com cerca de noventa anos. Gabou-se durante largas décadas de nunca ter ido ao médico e de nunca ter tomado um comprimido. Quando lhe apareceram cataratas nos olhos, não deu grande atenção à coisa, até ficar cego de um deles.

Deixou-se relutantemente operar ao outro olho para logo se lamentar de não ter operado ambos. Quando o ia visitar, vendo ele já muito mal, acenava-lhe de longe e gritava-lhe
vende-me um desses borregos, o mais gordinho?
para ele responder, irritado com o despeito dos citadinos

não estão para venda!

Detestava médicos, hospitais e tudo quanto na cidade por motivos vários o afastasse do campo e dos seus afazeres.

Tinha outra característica peculiar: fazer sexo todos os dias; coisa que, a determinada altura da sua provecta idade, a minha avó deixou de achar piada. Criando a necessidade o engenho, o meu avô passou a dizer à minha avó, sempre que iam para o quarto, à noite

Maria, é a última…

E, durante quase vinte anos, todos as noites foi a última.

Numa dessas noites, a minha avó, tentando de algum modo fugir ao prazer que para ela se tornara um suplício, caiu da cama. Fracturou o fémur. Escusado será dizer que a minha avó tinha tanto apreço por hospitais e cidades quanto o meu avô. Nisso, coincidiam em uníssono.

Magríssima e picuinhas com a comida, enquanto esteve no hospital comeu apenas as bolachas Maria que a minha mãe lhe levava. Era para ter estado três meses mas ao fim de mês e meio estava pronta para ir para casa. Ao que parece, não tinha sinal da osteoporose que costuma afligir as mulheres a partir de uma certa idade.

A minha mãe ofereceu-se para a ir buscar ao hospital e levá-la para casa. Ao contrário da satisfação que esperava ver na sua cara com a ideia de ir para casa, a minha avó, cochichando, perguntou-lhe

não posso ficar uma semaninha ou duas mais?

A minha mãe, estupefacta

mas mãe, porquê?

E a minha avó

ai filha, nunca estive tão descansada…

A minha avó, que nunca tirou férias (o campo não tira férias, filha, respondia, quando a minha mãe lhe perguntava porque não tiravam uns dias para passear), descobrira na inesperada hospitalização um sossego que nunca conhecera ou de que não se lembrava. Provavelmente, o mais parecido que teve a vida toda com férias. Não pôde ficar essa semana adicional. Não disse uma palavra durante a viagem. O meu avô, sempre todo emoção, recebeu-a em lágrimas.

Ainda hoje penso no que ele terá feito enquanto a minha avó esteve fora.

16 Ago 2019

A poesia não é um lamento

[dropcap]O[/dropcap] que é a poesia? Para esta pergunta, eu sei que há sacerdotes a sorrir e a guardar para si o sumo do mistério, mas também sei que há uma turba de poetinhas a pavonearem palavras e palavrinhas. Deixemos, pois, de lado os ‘jardins dos poetas’ e os guardiões do tesouro e falemos de lapso. Sim, a poesia é um lapso, uma inflexão incurável, um modo de descompensar as anamorfoses do mundo. Através da poesia, os humanos recorrem à roleta russa: disparam e por vezes a bala atravessa a linguagem e consegue emendar a morte. Um lapso de ouro.

Num jogo de xadrez, é possível viver esse momento-chave: o jogador levanta a peça no ar e ainda não a pousou. O poeta aprendeu há muito a manter o braço no ar (nessa suspensão infinda) e a movimentar as peças da linguagem entre variados campos semânticos. E é no movimento e não na escolha – essa morte súbita – que se lhe reconhece a pulsão essencial. O poeta tem setas movidas e moventes que imitam a luz, fonte de vida.

O desempenho inicial da linguagem é de natureza poética. É esse o seu cariz de “númen”. Hans Blumenberg situou o “absolutismo da realidade” nos primeiros estádios da caminhada humana – a chamada “vorverganggenheit” – desenvolvendo-se a comunicação nos antípodas das actuais convicções de realismo, ou seja, naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. O númen, embora concreto como a areia que o mar amassou, designa um enigma que instaura algo ou que o faz viver e reviver.  Na obra que abre o romantismo em Portugal, Camões (1825), Garrett recorre justamente à figura do númen para se aproximar dos sortilégios da saudade: “Misterioso númen que aviventas/ Corações que estalaram, e gotejam/ Não já sangue da vida, mas delgado/ Soro de estanques lágrimas – Saudade!”.

O númen mostra e oculta ao mesmo tempo. Num conhecido fragmento (o nº93) atribuído a Heraclito por Plutarco, pode ler-se: “O senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem fala, nem oculta, mas manifesta-se por sinais”. Os impactos desta bitola reversível que circula entre o conhecido e o desconhecido (e entre o visível e o invisível) sempre suscitaram disrupções emotivas e fóricas. Razão por que, quer na casa da filosofia (livro X de A República de Platão), quer nas narrativas axiais (caso do Alcorão por exemplo, em suratas como a 21,5, a 26,223, a 69,41-42 ou a 31,5), a poesia, enquanto registo, e os poetas, enquanto performers, foram amiúde mal vistos e até perseguidos. No entanto, G. Steiner, em A Poesia do Pensamento (2011), confirmou que a voz poética é também um númen que pensa e que, portanto, ao fim e ao cabo, nada seminalmente a distingue do ‘telos’ da filosofia. A não ser, estar muito para além dos modelos e das alfaias técnicas e metodológicas que a delimitam.

No início da Poética, Aristóteles afirma que a poesia é “uma arte que até hoje permaneceu inominada”. Desde então, durante mais de duas dezenas de séculos, a poesia foi fortemente dissecada e gramaticalizada, mas sem nunca perder, enquanto vestígio de fundo, a pulsão de númen. Daí a sua persistente incógnita. Borges bem avisou nas “Palestras Norton” (1967), referindo-se a Stevenson, que a poesia mais não faz do que devolver a linguagem à sua fonte. Com a passagem do tempo, os jogos de linguagem foram-se tornando num aquário opaco em que tudo – nas suas muitas camadas – se diluiu. Teriam, pois, que ser os românticos a redescobrir na singularidade da poesia o poder de desvelar o ser e o cosmos, no momento em que as grandes escatologias começavam a ceder o seu papel dominador a novas formas modernas de codificar o mundo.

Foi por isso que Shelley, em  Defense of Poetry (1821), se aventurou a dizer que “o poeta participa do eterno, do infinito e do uno”, acentuando no ofício uma perspectiva gnosiológica. Desligada de finalidades práticas e aberta a partilhas fluidas, a poesia surge em Kant (na Crítica da Faculdade do Juízo, 1790) entre as “artes elocutivas”. Na mesma época Schlegel, em Lucinda (1799), agradecia às entidades ‘superiores’ a novíssima revelação da ‘poiesis’: “Estamos contentes e gratos para com a vontade dos deuses, estamos satisfeitos e agradecidos com o que eles nos indicaram tão claramente nas Sagradas Escrituras da bela Natureza.”. Na mesma obra, a poesia afirmava radicalmente toda a sua autonomia e recusava a instrumentalização a que tanta vez fora votada: “Há poemas na antiga religião que, em si próprios, possuem uma beleza, uma santidade e uma delicadeza únicas. A poesia formando-os e transformando-os, deu-lhes tanta riqueza e tanta fineza que a significação deles, já de si tão bela, ficou imprecisa e permite interpretações e formações sempre novas”.

Entrávamos, logo a seguir, na esquadria do chamado ‘nosso tempo’ com a poesia, por vezes, a querer diagnosticar o que nunca lhe coube, nem caberia diagnosticar. É essa a doença dos realismos e dos artificialismos sem fim que persistem no seu cego jogging. Verdade seja dita que poucos ainda hoje agarram o animal pelo númen da roleta russa, ensaiando a abertura aos territórios onde o maior dos lapsos permitiu a Hilda Hilst escrever: “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra da sua própria sombra?/ Sim. Em sonhos via/ Prateado de guizos”.

Não, a poesia não é um lamento, nem é uma representação seja do que for, mas confirma na plenitude o que Píndaro deixou escrito na sua oitava Ode: “O humano é o sonho de uma sombra”.

A poesia pode não nos ensinar nada, mas pelo menos proporciona ao nada o espanto que o realiza.


Blumenberg, H. Work on Myth. Cambridge; Massachusetts; London. The MIT Press, 1985, p. 57.
Garrett. A. Camões. Editorial Comunicação, Lisboa. 1986, p. 55.
Hilst, H. Poema XVII/Via Espessa  em Da Poesia. Companhia das Letras, S. Paulo, 2017, p. 460.
Kirk, G.; Raven, J.; Schofield M. Dos Oráculos da Pitonisa – 11/604A em Os filósofos pré-socráticos, F.C.G. Lisboa, 1994, pp. 217-218.
Píndaro, Odes, trad. António de Castro Caeiro. Quetzal. 2010, p. 64.
Schlegel, F. Lucinda. Guimarães Editores, Lisboa. 1988, pp. 133-134.
Shelley P. A Defense of Poetry, Shelley´s Poetry and Prose. New York, Norton. 1977, p. 478-479.

8 Ago 2019

O fio que nos prende à vida

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, papel em que os meus fantasmas desafogo. Nunca vo-lo confiei, que nem tudo o que me cruza o dia a dia há-de, pois, desaguar nesse leito com que me tolerais, contrafeito, mas, em tempos, um infeliz, desses sem dentes, à cata de beatas com que entreter os lábios, confessava a outro que tal, cúmplice nas vidas mal vividas: «Isto há dias que parecem noites». Aquilo colou-se-me ao ouvido, aconchegou-se-me à memória e ficou lá a dormitar até espertar hoje. Pois não sejais impaciente, meu secretário, toda a vez mais incerto: se vos falo de poesia, acolheis distraído o que vos digo, enrugais-vos inquieto e mal contente, esquivando-vos às palavras, desatento. Mas falando-vos de infelizes aos caídos, já vos excita a curiosidade mórbida e tornais-vos hospitaleiro, cheio de mesuras: todo ouvidos. Há sei lá quantos anos trago a frase na modorra da memória para logo hoje me roer a dúvida do seu significado: metáfora de um dia escurecido, quase negro? De dia longuíssimo como uma noite de insónia, com o tempo pingando, como ruído de fundo? Ou um dia de farra e festa, que nem noite até de madrugada? Que sei eu das curvas da vadiagem pelas noites que ultrapassam muitos dos nossos dias caseiros, comezinhos… O que há a dizer é que a frase se me alojou na memória, como um grande verso de um bom poema, perdido na deslembrança. Tudo isto, para vos confiar que há pelo mundo vidas, frases, que parecem versos. O contrário é também verdade.

Não vos impacienteis, meu secretário, que não vos retenho para vos falar da honesta poesia do dia-a-dia, nem para vos dizer, como o disse Pimenta (eu sei, que me estou a requentar) que há tanta poesia «numa rosa como numa chouriça.». Só mesmo para vos dar conta, a despropósito, que saiu a obra reunida de Rui Caeiro, pela editora Maldoror. Chamaram-lhe «O Sangue a Ranger nas Curvas Apertadas do Coração», verso resgatado do livro «Sobre a Nossa Morte Bem Muito Obrigado», um dos tantos escrito num «tecido em carne viva — única coisa em que verdadeiramente dá gosto escrever»

Agora está aí tudo à mão de semear, sem precisão de andar à cata de edições perdidas, para as repescar a custo: a obra toda disponível, como um naco de vida a ser desfrutado de uma assentada. Numa golfada: a sofreguidão dos dias todos juntos, mas sem a temporalidade arrastada que se exigia das plaquettes e pequenos livros, esparsos, um a um, com a calma dos anos passando, dos tempos que se seguia ao tempo. Toda a poesia, todos os escritos, todas as histórias, todos os textos. Num volume só, esta modéstia da gramática, a contenção serena, claro irónica, de quem vigia os maneirismos de estilo, dando-lhe rédea curta, refreando-o, alcançando, como poucos, aquele fundo de genuinidade de quem traz as palavras coladas ao corpo: versos, frases, palavras, pensamentos, diálogos (pequenas histórias: e que histórias!) ao virar da esquina da página; esta maneira de escrever não como quem escreve, mas como quem pensa, repara, desconfia e, principalmente, conversa. Como se a cada momento (num encolher de ombros, que a literatura é como a vida, levá-la a sério não é levá-la a peito, mesmo ainda ao peito), se dissesse: estou aqui e reparo, penso-o, e digo-o, como quem escreve, discorrendo, discutindo. A poesia mostra-se como se escrevendo a vida, esta vida que todos temos presa por um fio («Um fio que te prende à vida. Que faz o seu trabalho, que faz o seu possível».). Em pequenas edições de pequenas editoras ou mesmo em edições de autor; livros com pessoas, vivências, presenças lá por dentro, e com destinatários, tantas vezes, à conta: por genuína vontade, é certo, de se manter à margem de fogos de artifício literários, mas também por descobrir a poesia como outra coisa: acto de reparar, de saber, de pensar, de conhecer (de nos sabermos sempre no presente anões aos ombros de gigantes, mas nem por isso maiores), mas principalmente ser capaz de fazer da sua poesia uma dádiva a amigos, dilectos leitores, uma espécie de prolongamento do acto de dialogar, conversar. Aliás, nada de especial, ou de excepcional, que

«falando da vida dos poetas, não esquecer talvez o principal, que é tantas vezes o mais comezinho: algures assim como que o ruído de uma torneira que não deixava nunca de pingar– mas isso também não era coisa que metesse cobiça, ou era?».

Escrever como quem vai tertuliando dúvidas, perplexidades: os achados de quem tanto «leu, que tresleu», como lhe diria a Tia Carolina, naquele arremedo de prefácio, ou lá o que é, no livro «Baba de Caracol», organizado em três partes, «qual delas a mais monosprezível.». Já nesse livro, as palavras não eram só coisa que se dissesse, mas um lastro que se colava à pele, provocando, claro, comichão na vida:

«Todos os dias logo pela manhã/as palavras// a cansada surpresa de estar vivo/ as palavras» e depois, às vezes, acertar: «aproximar do papel em branco, igual à criança que não conhece da vida, senão o que mal ouviu dizer e tudo o resto adivinha– e acerta»

Vem-nos a certeza de que dizer e viver se encontram, não em equilíbrio (isso é por demais frequente: as palavras equilibrando o mundo como podem, com esforço e esmero, tantas vezes), mas no mesmo prato da balança, pendendo pois para o mesmo lado, uma acrescentando peso à outra: talvez por isso a poesia ajude a afogar tantas vidas.

Da morte, da vida, dos gatos, do gato, os amigos e outros bichos, da doença, das memórias, (a memória, mesmo a mais realmente biográfica, é sempre uma bela ficção), histórias e diálogos, das falripas de prosas, pouco de poesia e literatura ( os poetas, quando falam entre si não falam de literatura, antes de dinheiro), do amor «sem misticismos», e de novo da morte, de lugares e de não lugares, do corpo, de mamas ( não de seios), é sobre tudo isto que connosco conversam os livros que fazem este livro. E ainda de Deus. Muito se conversa sobre Deus, que é, no fundo, o fantasma obsessivo que assombra os ateus: é que não acreditar nele não lhe devia dar o direito de nos tramar a vida:

«Saber se morreste ou se nunca exististe é outra falsa questão. Pó é coisa que sempre houve, vá lá a gente adivinhar-lhe a origem»

Vinde, cá meu tão certo secretário, quero falar-vos ainda falar da sorte: muitos destes livros (metade? mais?) não os acolhera sequer em minha estante, até agora. Não me tinham sido destinados: resgato-os, de uma vez, ao lugar que lhes pertence. E sim, meu tão certo secretário, tendes razão… falta lembrar o prefácio tão justo e íntegro, admirável, que encabeça estes livros todos de uma vida, e também a capa, belíssima, e o grafismo exímio, tudo, à uma, da responsabilidade de Luís Henriques, mas não vou fazê-lo, meu secretário. Nem posso. Há o pudor que não deixa, em público, elogiar o trabalho dos amigos, principalmente daqueles que já vêm ainda doutras lides, mais antigas até que antigamente. Cito só o final do prefácio do Luís e fica cumprida a incontornável obrigação da referência:

«Para que raio serve uma conclusão no início do livro? Afinal de contas, estas linhas são uma antecâmara e a epígrafe há-de preparar melhor a leitura. Depois vem o rumor do tal fio. Dele, nosso. É dar-lhe ouvidos, para não entregarmos já tudo ao esquecimento.»

Pois claro, meu tão certo secretário, assim me calo, e já vou tarde: há que «usar o silêncio como generosa estratégia», como se diz na epígrafe, do Changuito, escolhida como um ante-prefácio que encabeça o livro, e que nos manda ouvir mais do que falar nestas conversas que os livros, neste livro, connosco travam.

Rui Caeiro, O Sangue a ranger nas curvas apertadas do coração, Lisboa, Maldoror
5 Ago 2019

A literatura não é um divertimento

[dropcap]U[/dropcap]m autor que se sobrevive é como se tivesse escrito a sua obra num tempo a que já não pertence”, escreveu Vergílio Ferreira no seu volume ‘Pensar’ (1992). É verdade que o tempo é cada um de nós a erguer o dia-a-dia, embora o dia-a-dia no-lo devolva através de uma síntese geralmente disfórica que não convida à identificação. O que construímos parece transformar-se numa simples gota de orvalho que se esvai no meio do temporal (o vórtice da duração).

Razão por que, quando se fala de literatura, é de erguer o tempo que deveria falar-se e não do eco massivo e passivo do mundo que se abate sobre nós. Colocar de lado todo esse manancial constituído por linguagens abrasivas (um caudal que se espalha via enxurrada de net e tv) é, ao mesmo tempo, olhar para o palco vazio e, de repente, sem circunspecções, observar a nudez que sobra.

Encaro essa nudez como um corpo no meio da rebentação das ondas e ainda assim de pé, hirto. Um corpo que não se revê no tempo, seja em que tempo for. Desse modo persistirá: num lugar em que é possível não pertencer a absolutamente nada. Tal como Mallarmé escreveu no seu poema ‘Salut’: “Uma embriaguez me faz arauto,/ Sem medo ao jogo do mar alto,/ Para erguer, de pé, este brinde”. Sem se suspenderem as conexões práticas e imediatas, ou seja, todo o discorrer em fluxo do que é emergente e momentâneo, creio que esse corpo se iria transformar de modo passivo na própria água do mar, isto é: limitar-se-ia a ecoar e repetir outras linguagens, perdendo esse ardil (próprio dos infinitésimos) chamado identidade.

Quem diz linguagem diz formas de poder, policiamento discursivo, repetição de esquemas, de matrizes, de palavras de ordem, reprodução social pura. Creio que a actividade literária começa no preciso momento em que temos a consciência de poder deter todo o oceano e de conseguirmos ser, na vertical, um corpo que se afirma, tentando rasgar e moldar a grande massa líquida da linguagem, de acordo com uma dada intencionalidade. Nem que seja por instantes (instantes em que deixamos de pertencer a essa malha de armadura que separa o que se diz ser realidade dos olhos que a contemplarão).

Deter o oceano é escrever e escrever não é apenas teclar e estar fora de todas as maratonas que outra coisa não fazem do que reproduzir-se sem qualquer novidade; escrever é sobretudo mergulhar em si e não limitar o esforço de olhar para onde nunca se olha, o esforço de escutar o que nunca se escuta, o esforço de tocar com a linguagem onde dificilmente ela tocará. Penetrar no inominável será escrever a primeira das letras.

É por isso que a literatura corresponde a uma parte ínfima da voragem de livros que hoje se escrevem e publicam. Para ser literatura, para além da poesia que é a pérola inicial (“tout brûle dans l´heure fauve”*), há duas categorias básicas: sulcar e reinventar a linguagem, por um lado, e, por outro, dizer o imprevisto, o incomparável, aquilo que salta inventivamente para um patamar em que o ser se altera, se redescobre e sobretudo problematiza. Sem estas duas categorias, que são categorias de esforço e não de facilitismo, não entendo que haja literatura (e nela, claro, consigo incluir o ensaio que herda do tempo dos irmãos Schlegel, especialmente de Friedrich, o epíteto de “desdobramento criativo”). Um livro aprazível, modelado com toda a gramaticalidade e com um enredo situado nos limites do provável, não é literatura; é divertimento. No meu caso, para me divertir prefiro desenhar cidades, circular pelos passeios, comer um bom caril ou saborear o lúpulo das cervejas Trevo da Caparica.

Vivemos hoje num mundo que substituiu o essencial da reflexão e do dever-ser (quer do que se levantava para as divindades pré-modernas, quer do que se levantava para os altares civis da esfera moderna) por um fluxo razoavelmente controlado de trilhos privados. Este sublimar generalizado – que todos vemos nas nossas cidades – fez o ‘ethos’ sair de cena em nome das grandes absorções individualistas: o consumo pelo consumo, o espectáculo pelo espectáculo, as viagens pelas viagens, a praia pela praia, o ginásio pelo ginásio, a rede pela rede, a informação pela informação, os festivais pelos festivais e o livro-divertimento pelo livro-divertimento.

Prezando muito um universo plural em que o conhecimento e o prazer podem ser uma escolha e não uma fatalidade cega, penso que a literatura e outras artes têm, hoje em dia, uma responsabilidade única: a de os sujeitos se conseguirem conectar consigo próprios, respeitando, por outro lado, aquilo que os legitima: a intersubjectividade. Precisamente o oposto de quem vive e respira colado à máquina, mortificado antes de tempo face a face ao iphone, deslizando num ‘deixa andar’ de melopeias e auriculares que rema a sós contra a turba, ou que se cinge a copiar gestos, a reiterar  sombras vazias e a purgar as infinitas azias de existir.

A literatura é um repto importante, mas não é uma vaca sagrada. Todavia, no seu nicho, que já não é felizmente um nicho de famosos (hoje circunscrito a fantasmas em estado de ‘zapping’ que aparecem e desaparecem nos media), estar de pé contra as ondas e levedar uma respiração singularizada torna-se num dever maior. É isso, afinal, que devia fazer a literatura ser o que ela na sua essência é.


‘Salut’ e ‘L´Aprés-Midi d´un faune’ em Mallarmé, S., Poésies, Bookking Internationale, Paris, 1993, pp. 13 e 48.

25 Jul 2019

Onde os sonhos vão para morrer

[dropcap]I[/dropcap]sto da escrita, é uma carreira ou um hobby?

A pergunta de um milhão de euros antes dos impostos. Aqui estamos, há quase duas horas, trocando histórias sobre uma coincidente ida a Moçambique em Maio: o entrevistador de férias, eu em trabalho: um festival literário. Tenho de listar características minhas, positivas e menos positivas. Falar do que gosto e do que não gosto. Declamar o meu percurso profissional não desde o início, que os currículos não devem ter tantas páginas, mas da última década; manter o contacto visual, sorrir muito. Tenho de concordar com os turnos e a frequência com que são alterados, mas parece que não estou a fazer um trabalho muito bom a convencê-lo e ele faz-mo saber. Esta empresa, sita na mesma rua que o meu antigo empregador, está à procura de colaboradores, e eu de emprego. Estou desempregada, pelos padrões normais, sem subsídio e, pelos vistos, sã da cabeça. Saio de lá sem ser seleccionada. Reencontro o anúncio vários dias depois.

Começa sempre da mesma maneira: perguntamos a toda a gente se sabem de alguma coisa. Ponderamos trabalho remoto e, dos trabalhos anteriores, a quais poderíamos voltar sem grande sacrifício. Repetimos baixinho: já estive aqui antes, vai correr tudo bem. Mas também dizemos a nós mesmos que o melhor é não escolher tanto porque podemos acabar sem nada. O tempo está a passar. Aceita, resigna-te, afinal essa é a norma. Essas vozes destrutivas por vezes soam mais alto do que deveriam. Descobrimos novos sites. Olhamos para o LinkedIn e prometemos que é desta que vamos criar um perfil. Passamos horas a actualizar o currículo e procrastinamos quando se trata da versão inglesa. Onde está o Herbert Richers quando precisamos dele?

― Faz tanta coisa ― pergunta ela ― como é que vai ter tempo de trabalhar connosco?

Respondo que sou muito organizada. Ri-se. Mas não deveria esta ser uma pergunta retórica? A maioria das pessoas trabalha porque precisa. Trabalha para pagar as contas. E depois morre. Quando entro numa outra sala e tenho quatro rostos a avaliarem-me, e me perguntam onde me vejo daqui a cinco anos, não é só o facto de ainda se fazerem estas perguntas ou as dinâmicas de grupo e os testes online e os testes de lógica que me faz abanar a cabeça internamente. É a violência de ter de me comprometer a ficar para sempre ali, de prometer que nunca vou querer tornar um sonho em mais do que um hobby, que sou igual a quem me entrevista; que acordo, vou trabalhar, volto para casa, vejo televisão e repito tudo nos dias seguintes. Que a sexta-feira é o momento mais desejado da semana, que no fim-de-semana é que é, que odeio segundas.

Por cada cinquenta respostas a anúncios, dez entram em contacto. Mas há assim tantos anúncios, ou estamos a ver anúncios iguais repetidos até à exaustão? Por vezes, quando finalmente ligam, já nem nos lembramos de nos termos candidatado, quanto mais de qual era a vaga. O ordenado mínimo foi feito para jovens que vivem em casa dos pais sem terem de contribuir para as despesas e, no entanto, nas entrevistas de grupo, essa bela invenção, as pessoas assinam primeiro e pensam depois, se é que o fazem. Eu já estive assim tão desesperada, provavelmente até mais. Facilmente se colocam filtros no que nos causa ansiedade, aumentos/perdas de peso, doença, stress, infelicidade. O glitter eventualmente sai, até da memória, e ficam só o alcatrão e as escoriações. Valem as amizades.

Há aquelas empresas de que nunca obtemos resposta, outras mandam um email automático de rejeição. Há aquelas cujos critérios ninguém entende, quando pessoas com percursos profissionais distintos se candidatam para a mesma oferta e nenhuma é sequer chamada para uma entrevista. Serão anúncios só porque sim, e os candidatos escolhidos antes interna e secretamente? Acontece sermos seleccionados, informarem que a formação foi adiada, passar uma semana e não termos um mail, telefonema, pombo correio. Acontece ficarmos especados três dias à espera de uma entrevista por vídeo chamada (nós que odiamos vídeo chamada) e haver uma boa samaritana que salva a coisa à última hora. Coisas que jamais seriam permitidas aos candidatos são praticadas abusivamente pelas empresas. Horas nocturnas já “incluídas” no vencimento base, ou seja, inexistentes, e subsídios de turno iguais para todos, quer trabalhem de dia ou de noite. Não basta sorrir: é preciso entrar, sentar, ouvir, calar, não fazer muitas perguntas, aliás apenas duas: onde é que eu assino e quando é que começamos? Não podemos pensar e muito menos alto, Deus não permita perceberem que somos seres pensantes e que os detalhes são importantes porque tudo faz diferença. É a nossa vida, afinal.

Lembro-me de, em conversa com o Miguel Somsen, ele comentar que a arte é a nova gravidez. O que os recrutadores acham interessante é o que os assusta. Aos candidatos, assustam a restauração e os horários repartidos. As lojas de roupa e as folgas a cada sete dias. As vendas porta a porta. O call center ou, como lhe chamo, o lugar onde os sonhos vão para morrer.

25 Jul 2019

O peso da leveza

Mymosa, Lisboa, 8 Julho

[dropcap]O[/dropcap] filho-da-puta (mesmo quando ainda o não sabe), vive de um modo geral preocupado, vive tanto mais preocupado quanto mais filho-da-puta é, vive preocupado com as suas ocupações e com a despreocupação dos outros, vive em permanente inquietação, mesmo quando aparenta calma, tudo o que é novo o perturba, é para ele causa de tormentos e temores.

Mas quanto mais teme e se atormenta, maior é a sua necessidade de continuar a fazer, de fazer cada vez mais, ou então de continuar a não deixar fazer, de deixar fazer cada vez menos. E quanto mais faz, ou quanto menos deixa fazer, maior é o seu receio: o receio de não poder continuar indefinidamente a fazer o que faz ou então a não deixar fazer o que não deixa fazer, receio do futuro e do presente e quase sempre até do passado. (…) O filho-da-puta sente que devia estar permanentemente desperto, atento, sempre a zelar pelos seus lugares e pela sua mais-valia, sempre atento à despreocupação dos outros e ao seu significado; o filho-da-puta sente que é um perigo «perder tempo» a dormir, «perder tempo» a defecar, e é por isso que o filho-da-puta dorme mal, é por isso que retém as fezes; e é por isso que o lugar das fezes do filho-da-puta é dentro do filho-da-puta e não fora do filho-da-puta.» Descobri há dias (no Bernardo [Trindade], pois claro) uma terceira edição do sempre actual «Discurso sobre o Filho-da-puta», do Alberto Pimenta (enriquecido com o recorte da recensão do Francisco [Belard], no Expresso dos idos 1981). Coincidência, logo leu o gordo. No molde esculpido a canivete encaixam com facilidade certos vigilantes que agora se multiplicam como varejeiras. Devemos ser o país com mais malditos por metro quadrado. O mais triste do fenómeno está na leviandade com que vai sendo encarado. Na vez de distâncias higiénicas, muitos acham «giro por ser do contra» e, portanto, não o contrariam, dão-lhe trela. O que podia ser polémica, acaba em pirotecnia no lodo, que não há azul nem alto para o filho-da-puta. Em nome da amizade, ainda gasto tempo em explicações, mas acabo constatando a inutilidade. Quando o cão raivoso morder quem agora o acaricia, talvez se retire alguma lição. Temo que não.

Horta Seca, Lisboa, 10 Julho

Espelho e traço. O rosto como tema, como chão, como horizonte. Busca incessante do que somos no que parecemos, mas saberemos quem foi o pintor Gaëtan (1944-2019)? Reflexo na imagem movediça, muitos retratos, como se de herói tranquilo se tratasse, com sinais que transcendiam, que atravessavam o banal, as rugas na testa, os olhos, os cabelos esparsos. Para que coordenada era a fuga desta arte maior (algures na página)? Saravá, Gaëtan.

Horta Seca, Lisboa, 17 Julho

Merecia, mas não conheço ainda nome para esta formação que nos brindou com concerto de Natal em pleno Verão. Os manos [José] Anjos e [Carlos] Barretto convidaram a Paula Cortes e o Vitor Alves da Silva para encherem de palavras certas melodias. Fim de tarde agradabilíssimo, com a sala a respirar as intensidades do que foi sendo atirado para o ar. Até a conversa habitual de rua perturbava, mas não muito. Acontecia cidade, dentro e fora. Estamos em nova fase deste movimento de leituras poéticas em voz alta, com cuidados crescentes, com a dicção e os ritmos, com reportórios a definirem-se, com o improviso a ceder o passo ao pensamento e preparação. Alguma coisa acontece no meu coração, quando cruzo a avenida da voz que diz palavra e estas melodias paisagísticas.

CCB, Lisboa, 18 Julho

Última edição, da temporada e neste formato, de Obra Aberta. Acolhemos conversa entre o cineasta e realizador, Fernando Vendrell, e o pensador e professor, José Pedro Serra. A conversa pegou quando o José Pedro explicou a enorme disseminação do trágico pelos nossos palcos com a morte de Deus. Desde que foi decretada, pelo menos o dos católicos, o homem tateia caminhos em extrema solidão. E procura heróis. Mas, diz aquele grande leitor dos gregos, o problema está em assistirmos a estas peças como se de entretenimento se tratasse. Saímos incólumes do desafio que a tragédia nos lança, o da transcendência. Temos a obrigação de sermos mais, a cada momento. De sermos épicos.

Escola Politécnica, Lisboa, 19 Julho

«Crónicas – Política e Cultura» (ed. Imprensa Nacional)

Tenho dito: justifica-se ainda o lançamento? Neste caso, menos ainda, pois o prefácio do António [Mega Ferreira] já enquadra o essencial, coadjuvado pela organizadora Margarida [Lages], que organiza primorosamente este pequeno e valioso volume da «Biblioteca Eduardo Prado Coelho», dedicado às «Crónicas – Política e Cultura». Quis praticar uma graça, a partir de coincidência.

Chegar atrasado por ter andado à procura da magnífica edição de «O Homem da Viola Azul», ilustrada por David Hockney (oferta do Bernardo, quem mais?), que me tem feito companhia por estes dias cinza cor-de-burro-quando-foge, e cujo poema de Wallace Stevens é citado logo no primeiro e desafiante texto que abre assim: «Sentado em frente do mar, levanto os olhos para continuar a ler. As palavras rompem como palavras de água. O mundo faz-se gota a gota, no infinito de um oceano em que os barcos traçam caminhos, sulcos, traços marítimos e inscrições de alto mar. Estranha emoção a de ficar transparente às palavras que reforçam a minha transparência. Toda a leitura nos faz crianças, e nos constrói na energia da areia.»

Os primeiros textos espraiam-se pela leitura, com momentos de grande fulgor: «ler, no verdadeiro sentido do termo, na acepção da apaixonada que temos de lhe dar, só pode ser uma actividade desmedida, insensata e irracional, feita de rituais, cerimónias íntimas, gestos destinados, cumplicidades incendiárias».

Que poderia, pois, acrescentar eu sobre alguém que sabia com exactidão o que colocar de bagagem em cada a crónica para poder voar, para nos fazer partir? Ele mesmo explica que teve por coração a literatura, na sua relação com todas as artes, com a cultura e desta com a política, lugar primordial da utopia. Improvisei e atrapalhei-me, mas tinha que ser este o jogo, com pitada q.b. de sedução. Eduardo foi um dos últimos intelectuais com peso na esfera pública, esbanjando verve e atenção aos mais variados temas, da lingerie ao telemóvel, da identidade à Europa. E os seus textos mantêm vibrante actualidade e colorido. «A cor como um pensamento que cresce», diz Stevens e o Eduardo continua dizendo que não falamos aqui de ideias, mas de «uma realidade sempre inesperada em que se vai até ao caos para criar o cosmos e o percurso exige uma reflexão obstinada». Eduardo Prado Coelho era dono de uma reflexão obstinada, sempre em permuta universal.

Horta Seca, Lisboa, 21 Julho

A recordação-reconstrução constrói nestes tons a noite da António Enes, portanto foi. A família em frente à televisão-armário, todos a preto e branco e pouco nítidos. Até o Sidónio da parede abriu os olhos e deixou os bigodes encaracolar mais perante o feito do astronauta entre passinhos de homem e passos de humanidade na Lua. Ao puto teria sido permitido ficar às quatro da matina a ver o lento bailado? Pouco importa, tantas vezes as viu, de milhentas maneiras, na ficção de Verne, no fotograma zarolho de Méliès, na linha clara de um Tintin a pescar Haddock no negro vazio, e nas fotografias, uma após outra, forrando as paredes da adolescência, as do satélite brilhando em suas fases, mas sobretudo a da pegada, cujo postal juntava a um outro de pé solto de estátua grega. O par fazia de tal modo sentido que insistiu até muito tarde que por ali andava vocação: saltitar na Lua. Estava enganado. A aterragem falhou, Houston, ligar sistemas de suporte de vida.

24 Jul 2019

Bruno Vieira Amaral, escritor: “O nosso destino é o esquecimento”

Bruno Vieira Amaral integrou a comitiva portuguesa que participou no II Fórum Literário China-Portugal, em Pequim. Sem romances na calha, o autor, um dos novos nomes da literatura portuguesa contemporânea, está a escrever a biografia de José Cardoso Pires. Além disso, assume que Macau poderia ser um lugar de difusão de autores portugueses e chineses

[dropcap]E[/dropcap]m 2017 o escritor Bruno Vieira Amaral conheceu um pedaço da China ao visitar Macau, no âmbito do festival literário Rota das Letras. Contudo, faltava-lhe conhecer o país de que todos falam. A experiência aconteceu este ano, ao integrar a comitiva da ministra da Cultura em Portugal, Graça Fonseca, juntamente com os escritores Isabela Figueiredo e José Luís Peixoto.

Em entrevista ao HM, Bruno Vieira Amaral assegura que ficou a conhecer muito pouco de Pequim, cidade onde esteve apenas quatro dias. “Não tenho muito para dizer de uma experiência que consistiu na presença num painel em que falamos sobre visão e imaginação. Creio que correu bem. Teve, se calhar, uma maior participação do público do que aquilo que estaríamos à espera, porque na verdade era um encontro mais formal para potenciar o intercâmbio entre os dois países na área da literatura. Talvez tenha sido essa a surpresa, a da participação do público.”

No encontro “houve alguma dose de formalidade” e, ao contrário de Isabela Figueiredo, o autor não notou a presença da auto-censura. “Acho que isso terá mais a ver com a forma como nos posicionamos à partida e às ideias que temos formadas em relação ao país. Não posso dizer que os escritores fugiram ao tema, pois era muito abrangente. Nem todas as pessoas tem intervenções políticas, e diria que uma minoria de escritores tem uma intervenção marcadamente política. Teria ficado surpreendido se alguém falasse abertamente de política, mas não sei se houve auto-censura.”

Nesse sentido, Bruno Vieira Amaral, que também escreve crónicas em jornais, assegura que ninguém, nem mesmo os escritores, são obrigados a ter posições políticas.

“A mundividência de um escritor espelha-se em tudo aquilo que ele escreve. Tudo o que escrevemos tem uma leitura política e representa, acima de tudo, uma mundividência que vai além dos aspectos estritamente políticos. Um escritor não tem de assumir uma posição, nem um canalizador. Tudo o que escrevemos acaba por representar a forma como vemos o mundo.”

Levar histórias aos outros

Sem projectos para ser traduzido e publicado na China, Bruno Vieira Amaral assegura, contudo, que publicar na China seria um teste à abrangência da sua obra. “Ficaria muito contente se os meus livros fossem lá publicados. Quando publiquei o meu primeiro livro, ‘As primeiras coisas’, diziam-me que era sobre uma realidade muito específica e havia uma série de referências particulares que poderiam nem chegar a muitos leitores em Portugal. Nunca me preocupei com isso, e sempre me preocupei com o funcionamento interno do romance. Penso que como leitores temos de tentar ultrapassar os nossos próprios limites e ir à procura do universo que nos está a ser apresentado.”

As experiências de tradução em países como a Macedónia ou a Sérvia mostraram ao escritor que “As primeiras coisas” tinha “uma série de referências que, afinal, são universais e mais abrangentes”. “Se os livros fossem publicados na China e aí encontrasse leitores, seria, uma vez mais, uma forma de testar a universalidade do livro”, acrescentou.

A vida de Cardoso Pires

Bruno Vieira Amaral é um dos nomes mais sonantes da nova vaga de escritores portugueses e ficou conhecido do grande público em 2013, quando publicou “As Primeiras Coisas”. O ano passado foi lançado “Manobras de Guerrilha” e, actualmente, o autor não tem ideias para outros romances, uma vez que está a trabalhar na biografia do escritor José Cardoso Pires.

“Não era um dos escritores de eleição, mas tenho uma enorme admiração pelos livros. Tem estado relativamente esquecido, mas tem sido reeditado pela Relógio D’Água. Mas sabe que o destino da maior parte dos escritores é mesmo o esquecimento. Os artistas, as pessoas. O nosso destino é o esquecimento. Se pensarmos nos escritores contemporâneos do Cardoso Pires, serão poucos os que não estão mais esquecidos do que ele.”

Com este trabalho, Bruno Vieira Amaral espera “trazer leitores novos para a obra do Cardoso Pires”. Sobre o esquecimento de si como escritor por parte do público, Bruno Vieira Amaral assegura que nada pode fazer.

“O que podemos fazer? (Risos). Eu realizo-me a escrever, gosto daquilo que faço. Se for esquecido, ou se os livros não tiverem a atenção que os anteriores tiveram, não posso fazer nada em relação a isso. Não vou inverter o rumo da escrita porque isso são coisas posteriores ao processo da escrita. A única preocupação que tenho quando me sento a escrever é fazê-lo o melhor que sei.”

O autor orgulha-se de sentir os livros como seus por inteiro. “Os romances que publiquei até agora eram aqueles que queria escrever, esses livros são meus, de uma ponta à outra. Não há nada que retirasse, mesmo os defeitos.”

19 Jul 2019

A história da caverna negra

[dropcap]A[/dropcap] 6 de Dezembro de 1947, Jorge Luís Borges deu em Harvard uma conferência no contexto das “Palestras Norton”, intitulada “Contar o conto”. A passagem mais significativa do texto compara a épica com a tradição moderna do romance. Referia o autor que a diferença não se situa “entre verso e prosa”, nem “entre cantar uma coisa e dizer uma coisa”.

A diferença de fundo era outra. Cito: “O que é importante no poema épico é um herói – um homem que sirva de modelo a todos os homens. Ao passo que a essência da maior parte dos romances está na falência de um homem, na degenerescência do carácter. Hoje, quando as pessoas pensam em final feliz, pensam-no como concessão ao público ou pensam-no como estratagema comercial. Contudo, durante séculos os homens puderam muito sinceramente acreditar na felicidade e na vitória, embora sentissem a dignidade essencial da derrota.”

Pode resumir-se esta duplicidade, aliás já bastante estudada, do seguinte modo: ao imaginar-se o homem a dialogar e a respirar no meio dos deuses, é natural que os relatos tendam a elevá-lo quase a deus. Por seu turno, ao imaginar-se o homem livre e capaz de tomar conta de si próprio, é natural que os relatos tendam a dar conta da sua queda. As histórias de Ulisses, Jesus, Gilgamesh, Alexandre ou Sindbad nada têm que ver com as personagens presentes nos enredos criados por Kafka, Poe, Roth, Rubem Fonseca ou Houellebecq. O mundo antigo e o mundo moderno chocam, de facto, neste ponto seminal.

O caso fez-me relembrar um romance de Ernesto Sabato, O Túnel, escrito quase na mesma altura em que Borges esteve em Harvard (1948).

O livro começa por anunciar do que trata logo no início: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne”. Aparentemente, o leitor é imediatamente lançado contra a parede. Nas páginas que se seguem, a ficção abre-se ao jeito de um desdobrável, dando conta da inauguração de uma exposição de pintura (o Salão da Primavera de Buenos Aires de 1946) em que uma mulher, Maria Iribarne, se apaixona por um pequeníssimo detalhe de um dos quadros expostos (uma janela de milímetros inscrita no fundo de um óleo onde contracenam uma mãe e um filho).

Este facto viria a mudar a vida do pintor Castel. Apesar de ter observado a mulher verdadeiramente extasiada apenas durante alguns minutos, nos meses que se seguiriam – cito – “só pensei nela, na possibilidade de a voltar a ver. E de certo modo só a pintei a ela. Foi como se a pequena cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha obra”.

O ponto de viragem é habilmente explorado por Sabato, pois dá origem a uma série de contingências mais ou menos inesperadas que conduz ao encontro dos dois e à sua inevitável (e fatal) atracção. Há cartas, telefonemas, idas de comboio a uma casa de campo, ciúme e toda uma encenação fantasmática que transformará a aventura em tragédia.

No final, a regra cumpre-se. Diz o protagonista: “Quando me entreguei, na esquadra, eram quase seis horas. Através da janelita do meu calabouço, vi como nascia um novo dia, como um céu sem nuvens. Pensei que muitos homens e mulheres começariam a acordar e logo tomariam o pequeno-almoço e leriam o jornal e iriam ao emprego, ou dariam de comer aos filhos e ao gato, ou comentariam o filme da noite anterior. Senti que uma caverna negra ia aumentando dentro do meu corpo”.

Percebe-se que a literatura visa uma simples brecha ou um lapso premeditado. Talvez nos queira só ensinar a morrer, nobre tarefa que enche toda a história da filosofia. A janela de Maria Iribane terá sido o simples pretexto para que um ponto de viragem pudesse dar acesso à “caverna negra”, ou à queda, que tanto atraiu os modernos e que tanto continua a cativar os contemporâneos.

Borges fez o diagnóstico elementar e Sabato cumpriu-o com um plot inventivo. A Argentina é um país maravilhoso, claro está. Mas estávamos ainda no plano dos livros, objectos que se abrem e fecham, quando viajamos de comboio no primeiro dia de verão, sabendo que antes contaram com editores, críticos, leitores devotados, filtros qb.

Há quatro anos, neste mesmo mês de Junho, Umberto Eco esteve em Turim para um doutoramento ‘honoris causa’ e testemunhou o desígnio da actual “caverna negra” com as seguintes palavras: “No nosso tempo, as redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas (mesmo com romances debaixo dos braço), apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade”.

Se os humanos nunca se habituaram a viver fora de mediações razoavelmente restritivas, fossem elas proféticas, épicas, jornalísticas, científicas ou literárias, o actual cenário parece estar a recuar para um tempo pré-mitológico, dir-se-ia mesmo primitivo, e, portanto, anterior à noção de herói, configurando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. Mas este recuo alia-se ao poder da tecnologia, o que significa que o seu impacto poderá ser letal.

Sem alardes de pessimismo, parece claro que a “falência do homem” e a “degenerescência do carácter”, realçadas por Borges, estão prestes ou, pelo menos, caminham no sentido de atingir uma espécie de cume. Esperemos, contudo, que seja um cume de Sísifo.

27 Jun 2019

O feirante acidental

Galeria do 11, Setúbal, 1 Junho

 
[dropcap]C[/dropcap]ontinua por fazer uma história da ilustração portuguesa. Os contributos do Jorge [Silva] acabarão, tenho esperança, por erguer esse pano de fundo. E nele quantas figuras, de súbito, brilharão como Manuel Lapa (1914-1979), que tem nesta a sua primeira exposição? Que sabemos nós dele, sem uma única entrevista, depoimento, enfim, nada mais que vestígios?

Saberes instáveis e disciplinas discretas, como a ilustração, prestam-se a passarem entre os pingos de chuva da nossa comum atenção, mas convenhamos: tratamos mal a nossa memória. E perdemos com isso. Este autor, ainda assim notado como pintor, assina um enorme contributo para a nossa história visual, pela quantidade do trabalho, muito dele ao serviço das várias vertentes, educativas e outras, da propaganda do Estado Novo, mas sobretudo por um expressionismo riquíssimo em meios e assente no combate «Da Luz e das Sombras». As dicotomias sobre as quais o Jorge desenhou a exposição prolongam essa ideia revelando os vários rostos do artista, do livro ao cenário, das revistas às tapeçarias, do folclore à santidade, da espada à lebre: das sombras do mundo, do sal da terra, do sonho e da ilusão, do riso e das lágrimas, do céu e do inferno, da espada e do trono, da presa e do caçador (algures na página momento muito meu, assinado por Manuel Lapa). Acontece bastante cor, ainda que em tons baços, mas a força essencial exprime-se a preto e branco. Mesmo nos retratos, algo parece estar a acontecer, só o movimento nos traz o real perseguido. As massas servem de contraste para a figura, anunciam a peripécia, sugerem ambientes. E tantas nuvens passam por estes céus, estas decorativas, aquelas significantes, outras apenas correndo ininterruptamente. São sinal da elegância que habita este lugar. O equilíbrio entre originais, publicações e reproduções faz ainda desta exposição caso exemplar. E contém até o pormenor de um caderno de desenhos que não escapou incólume aos acidentes do tempo. Parece vociferar, no meio do dinamismo e da celebração de uma obra, que o comum descuido tem um preço: arde e até a água queima.

Largo José Saramago, Lisboa, 4 Junho

Ninguém pergunta: qual o gesto mais comum na vida de um editor? Talvez por se dar por adquirido que a óbvia resposta seria a leitura. Não: carregar com livros, eis o que mais fazemos.

Fui, portanto, carregado de exemplares, que queria exemplares, para a conversa com a Carla Oliveira, da Orfeu Negro, a convite do Jorge [Silva], no âmbito do «Faz-me Um Livro», ciclo dedicado ao design, edição e ilustração, comissariado pela Silvadesigners para a Fundação José Saramago. Tal como com outros deveres, estou atrasadíssimo com o primeiro catálogo da casa, com o qual pretendo fazer avaliação, mapa movediço do que foi sendo feito, aventando meia dúzia de porquês, enumerando episódios, falando dos modos, assumindo falhas e colhendo logotipos desta horta de abysmos, tão rica já. Estou atrasado, ia dizer, por carregar livros, o que não deixa de ser verdade. Dá muito trabalho sobreviver, nem sempre roubamos o tempo que nos permita pensar. E o catálogo há-de resultar de pensamento. E de tempo. Apesar das diferenças, reconhecemo-nos, a Carla e eu, em muitas das dificuldades da profissão neste momento concreto.

Não vos cansarei com a enumeração, mas os livros que levei eram dos que nos são devolvidos cansados e maltratados pelas livrarias. Apenas um sinal da irracionalidade deste processo que faz com que um livro não vendido possa acabar massacrado pelo hábito de o (mal)tratar como mercadoria. E não será? A mística arreigada ao objecto afirma que não, que se trata de um mudador de vidas, um abridor de horizontes, um «amigo». Fomos, espero, muito para além do fado habitual, dissemos das ânsias e desejos dos autores, da interferência do editor no processo criativo e da importância dos títulos e das capas. Acabámos falando, antes do mais, da paixão de continuar a esticar o objecto-livro em todas as direcções. Falámos sempre de livro na mão.

Feira do Livro, Lisboa, 8 Junho

Temo tê-lo repetido de mais: estreámo-nos na Feira do Livro com pavilhão próprio, partilhado com a Livros do Meio, editora que mora em assoalhada destas páginas. Havíamos participado antes de modos diferentes, sem grande intensidade, estou em crer que por não arranjarmos maneira de nos relacionarmos com o modelo. O ano passado tivemos até resposta entre o absurdo e o irritante a propostas solicitadas de animação, que nos permitiu anotar o interesse mínimo, para dizer o mínimo, que os organizadores devotam à poesia. A Feira evoluiu afastando-se do livro e da cultura em direcção ao comércio e entretenimento de massas. Passa pelo Parque muita gente, mas a pensar mais no passeio do que nos livros. Estes merecem a atenção de um olhar se os preços se agacharem tanto que rastejem pelos cêntimos, dando razões aos génios do marquetingue que dizem ser tudo igual, desde que com capa e páginas. Toda a lógica sopra a favor das grandes superfícies, digo, grupos editoriais que aqui copiam as ditas, com a sua lógica suicidária de descontos e neutralização. A programação da Feira não consegue apresentar-se com uma ideia forte, integrada e assente no essencial: o livro, o autor, a literatura. No concreto, o investimento revelou-se imenso, nos maravedis e no trabalho, sobretudo com o que se estraga e desperdiça. Ainda assim, pela primeira vez expusemos ao vento, à chuva e ao calor, mas também a alguns olhares interessados, o catálogo completo. A localização que nos calhou em azar afastou-nos das rotas, mas ainda assim demos um ar da nossa graça.

Horta Seca, Lisboa, 10 Junho

Um dos melhores jornais do mundo, The New York Times, cedeu à sanha moralista que envenena a opinião pública e, na sequência de críticas a um desenho de opinião do António [Antunes], que se “atrevia” a criticar as relações caninas entre a política norte-americana e israelita, anunciou o fim dos cartoons políticos. O principal visado, Chappatte, escreveu um texto que desafia os editores a não baixarem os braços. Só um sábio coquetel de resistência e inteligência nos poderá trazer oxigénio a estes tempos em que os gases das massas em fúria cega nos impedem de respirar horizontes. E também Martin Rowson, no The Guardian, disse o óbvio, lembrando as ameaças crescentes aos canários dos fundos da mina: «the New York Times’ decision is particularly irksome in its intoxicating combination of cowardice, pomposity, over-reaction and hypocrisy. » O NYT ofendeu-nos muito e merece castigo.

Feira do Livro, Lisboa, 13 Junho

Ficará da experiência adulta no Parque duas dezenas de páginas de certa edição especial que se atreveu a pensar, através do poema, do ensaio, do desenho e da pintura, que sentidos se colecionam nas massas difusas do etéreo em movimento. O jornal «Nuvens» teve, à sombra do pavilhão nefelibata, singelo lançamento, regado a duas versões da Trevo, a mais literária das cervejas do burgo. Foi um ar que se lhe deu, um corpus nubilum nascido de cadáver esquisito. «E se fosse a terra um modo movediço, reflexo chão do movimento acima? Como assentar escada na canção? Nuvem feita canção, verso que foge, cão.”

26 Jun 2019

Segredos

[dropcap]D[/dropcap]e vez em quando pensamos que estamos preparados para tudo. São momentos raros e, com sorte, não duram mais do que um nanossegundo. Mas não foi um desses momentos que me aconteceu quando há dias a enigmática menina Marina – a sábia do bairro – avançou inexpugnável e sem medo disparou: «Já sei que escreve uns artigos semanais num jornal de Macau». Tal foi a surpresa que nem sequer me interessou saber como o teria descoberto, eu que não sou dado a proclamar seja o que for em público ou em privado. Mas prosseguiu: «E todas as semanas um tema diferente… Isso é difícil. Qual é o seu segredo?». Por exemplo alguém fazer uma pergunta como essa e sem o saber estar a fornecer aquilo sobre o que poderei vir a escrever.

Naturalmente não foi isto que respondi e refugiei-me numas amenidades de circunstância. Mas outra vez a menina Marina tinha acabado de ser providencial.

A verdade é que o segredo é necessário a uma vida saudável. Não este que a pergunta referia, que terá mais a ver com um making of que pouca ou nenhuma importância tem para quem o detém e menos ainda para quem o quiser saber. Mais relevantes serão aqueles que pela sua ocultação podem afectar terceiros, individuais ou colectivos. A necessidade de escrutinar os nossos governantes ou quem possui poderes de decisão é uma das bases da democracia e de um estado de direito. Mesmo assim, em situações extremas, como conflitos bélicos, o segredo tem sempre um papel central.

Mas aqui neste canto do jornal o leitor sabe com o que conta, que são os dias, os passos dentro do nosso pequeno mundo. E até aí o segredo é essencial: pensemos o que seria da humanidade se toda a gente revelasse o que sabe do outro ou de si próprio sem filtros nem conveniências.

Não, o que aqui falamos é outra coisa. Não é o segredo malicioso, que prejudica. Mas aquele que é nosso, território desconhecido para o resto do universo. Um canto da nossa sala de estar mais íntima, um sentimento, um dia, uma hora. Se o revelamos, deixamos de ter uma relação real com os outros. Todos os temos, todos haveremos de morrer com alguns. O segredo, de certa forma, é essencial para a verdade e um bem a conservar e a não desperdiçar. António Vieira, que sabe mais e escreveu melhor, não hesitou em proclamá-lo num dos Sermões: «Nenhum segredo é segredo perfeito, senão o que passa a ser ignorância; porque o segredo que se sabe, pode-se dizer, o que se ignora, não se pode manifestar. »

Ter segredos só nossos é preservar a alma. E muitas vezes, mesmo nas mais apaixonadas e perenes relações, serve para preservar a união e a harmonia. Lembro-me dos versos de Four Flights Up, de Lloyd Cole: «Must you tell me all your secrets when it’s hard enough to love you knowing nothing?». Isso: de que serve uma obsessão pela “verdade” e pela “transparência” quando parte de amar e ser amado é justamente esconder o que nos incomoda em quem amamos no dia a dia?

O segredo nosso e que ninguém há-de saber é o que importa. Permite a convivência e o amor. E no limite, irá sempre garantir o mais importante de tudo: a nossa liberdade.

26 Jun 2019

Quando da metáfora se faz sinapse

[dropcap]S[/dropcap]empre essa vontade amarga de me fugirdes à mão, de vos esquivardes à intimidade com que busco acolher-vos mansamente. A má vontade de quem, em correndo uma brisa, débil que seja, voejaria para longe, onde o gesto fortuito dos meus dedos não vos pudessse alcançar. Sou eu que vos peço, com brandura: Vinde cá, meu tão certo secretário. Pois que dizeis?

Que não ides a lado algum e estais sereno, esperando-me, e que só vos entedio nesta bajulação melosa, lisonja sabuja de quem vende o amor próprio, por um cílio de atenção, em esperança vã?

Pois que não é lisonja, nem adulação galante; retórica bem mal ataviada, talvez: leve captatio benevolentia de pacotilha, porque vos quero deixar, com violência escrita, de rajada e sem pedir licença, o registo de uma poeta das que causam espanto; daquelas cuja poesia se escusa à percepção, e, que, ainda assim, e só por isso (será esta a definição da poesia que ainda nos surpreende à esquina do verso), não nos cansamos de mirar, franzindo os olhos à leitura: Andreia C. Faria.

O livro Alegria para o fim do Mundo contém quatro dos livros da autora, publicados de 2013 a 2017. É esta uma poesia que surpreende pela permanência de uma tensão, um confronto pelejado com a linguagem. Vacilamos ao aceitar reconhecer a língua do poema como a nossa própria língua; lendo poesia, apesar das gradações, modulações, diferentes, nela reconhecemos, apesar de tudo, uma gramática quase nossa, quase comum, quase partilhada. Mas, nos poemas mais conseguidos, até esse pacto é quebrado, para que na intimidade de leitura se instaure uma comunicação restrita e particular, não partilhável: oaristo, em código, do coração da página ao nervo do leitor. Um poema/epígrafe do livro Um pouco acima do lugar onde se ouve o coração (2015), incluído neste volume, evidencia bem, não tanto o impulso de escrita, como se sugere, mas o próprio recebimento, pelo leitor, desta poesia: «Escrevo com nervo e impaciência/com uma lâmina que se sabe/ela mesmo excrescência».

Estes são, então, poemas que se lêem com o mesmo nervo e impaciência com que se dizem escritos: a impaciência com que se cavalga as imagens e se passa além da metáfora improvável, para exercitar o nervo, fintando sempre o óbvio, a piada certeira, ou o trocadilho ligeiro, facilitista.

Muito forte a tensão, em cada poema, e não só pelas alusões ou pelas referências irónicas, ou pelo peso das ambiências sugeridas, mas por esta capacidade geral de nos retirar o chão à linguagem. Ora vede, meu tão certo secretário: acolhei este poema e vede como se coloca a língua em tensão, estabelecendo novos eixos e ligações, exibindo novas regras da lógica da língua; como a mesma gramática, a mesma sintaxe, inauguram outra semântica:

Penso no cavalo que transporta o sangue até ao coração
no sopro que o devolve
inteligível às extremidades.

Penso em chamá-lo a suaves mortes como a flauta do pastor,
enterrá-lo numa leira herdada de alegria.

O puro-sangue que repousa
no pasto de um homem pobre-
vejo-o ao espelho, um clarão de rins desfeitos
sob a etérea camisa de noite. É um laço de vida
a linha que me cose
com a agulha do cansaço, da má colheita, da humilhação.
É a promessa de uma morte calibrada
pela veia espúria, o vernáculo
do antepenúltimo, o antepassado.
[…]

É nova, até, esta capacidade de desdobrar o seu próprio vocabulário (todo o poeta, sim, meu tão certo secretário, tem um vocabulário muito seu, que domina e que vai descarnando como pode, até ao osso, nesse áspero processo da poesia que desfamiliariza a língua). Por outro lado, é densa e ampla a tensão metafórica e a amplitude das sinapses, das relações que a cada poema se convoca, exibindo essa escrita nervosa e impaciente, essa espada em excesso que descasca as palavras e exibe a poesia como um acto de violência que intenta contra o próprio pacto de linguagem. Sim, meu tão certo secretário, sabemo-lo desde Colerige: A literatura, o romance, obrigam à suspensão da descrença, a este estranho movimento que nos faz esquecer do nosso real e crer na lógica interna dos textos: são as perfeitas construções de palavras, que nos afastam da realidade, oferecendo-nos outra, em contrapartida.

Mas o que dizer da poesia, meu tão certo secretário? Desta poesia, por exemplo, cujo vocabulário em inquietante metaforização parece insinuar ao leitor, a cada momento:« — esquece, pois, que até agora falavas a tua língua». Escrever poesia é ludibriar: sujeitar-nos à descrença, que não suspendemos, sem que no entanto consigamos desviar o olhar desta estranheza que nos causa espanto: a metáfora torna-se sinapse, estímulo de afinidades e correspondências, intuições sensoriais que se experimentam, quando nesta poesia se faz uso da palavra.

Mas, que faço, meu tão certo secretário? Todo o comentário a um livro de poesia, a um poema, sabemo-lo, é um acto similar a cobrir-se com lençóis brancos os móveis de uma casa que se vai abandonar: protege-se do pó a mobília, é certo, mas desfigura-se-lhes as formas; desolada imagem que se forma, ao conceder-se-lhe o último olhar da despedida. Mais vale o esforço de, tempos a tempos, ir revisitando a casa, de pano em punho, lendo, instalando-nos confortavelmente e limitarmo-nos a limpar-lhe o pó que, às vezes, se acumula nas esquinas das palavras.

Há uma história antiga, meu tão certo secretário, recontada por Jean-Claude Carière que nos fala de um «mestre espiritual [que] tinha vários discípulos e que todo o dia lhes falava da poesia, da natureza, da bondade, da beleza e do amor. Uma manhã, quando se preparava para falar, um pássaro pousou no parapeito da janela e pôs-se a cantar. O pássaro cantou por algum tempo e depois desapareceu. O mestre levantou-se e disse: «Terminou a lição desta manhã:»»

Sim, meu tão certo secretário, será uma parábola forçada, que não me apresto para mestre (e que discípulos teria…), e por lição, só este arremesso de crónica sempre mal alinhavada, que não lhe faz as vezes. Não tenho quase nada da história de Carrière. Só tenho o pássaro. Aqui fica ele, para vosso proveito:

Admiro a pele dos homens
o couro moreno, bem lavrado, com que se recobrem
tem, ao relento, o calor de um animal esparso.

Pontua, respirando, os veios e os poros
a macia constelação das escamas
o sensorial rebanho que a matança multiplica

Lembra certos utensílios, o rufar tenso dos tambores
ou a espessa luz dos candeeiros

Transpirada, escurecida pelo uso, lembra as malas silentes
que as mulheres sempre carregam

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo, Lisboa, Coolbooks/Porto editora, 2019
24 Jun 2019

Genet e as flores

[dropcap]N[/dropcap]ossa Senhora das Flores» é o título de um livro marcante de Jean Genet, um desfolhar de costumes em áreas fechadas num despir de convenções que faz fronteira com a “boa sociedade”. Chamou-lhe então a catedral magnífica para a trindade do Macho, da Bicha e do Herói. A natureza dessa senhora de branco tem muitos contornos e fixa sem dúvida a história de vida de cada um de nós. Nem toda a boa Humanidade tem acesso ao que se passa nos limites da incompreensível, e quantas vezes assassina outra Humanidade. Vivem fechados nas suas boas coisas como empalhados do nada, em labiríntico esforço das suas ternas intenções, mas faltando-lhes a inocência daqueles que nada sabem desses segredos e berços macios. E por isso, é bem possível que Genet tenha reinventado a sua própria vida pela perspectiva de alguém que não tem conhecimento do que trata a tão maravilhosa visão dos outros.

Genet, é uma espécie de Peter Pan, só que neste caso ele representa também o pirata. Não teve mãe, não teve pai, andou de Instituição em Instituição, até que viu no crime uma santidade mais para a sua virgindade de afectos, e é tão lindo que desejou amar o próprio assassino do seu amante para partilhar ainda aquela réstia de ternura que o sangue faz misturar aos corpos que tanto se deram.

Era a sua inocência, a sua força, a sua própria transcendência de grande escritor que já se manifestava à revelia das ficções de mau gosto dos contos negros de cada um. Genet é o tal Anjo da beleza terrível de que nos falou Rilke. «O sorriso do anjo», uma entrevista feita a Genet que ofende os sérios propósitos dos milhões de legítimos desonestos. De facto, Genet não precisou da família para nada, nem tão pouco recriou a sua. Homossexual, solitário, bandido a um tempo, sobrevivente a todas as ameaças, é ele no fim quem dita as condições e faz calar pela beleza os que gemem de raiva contra ele. Nem sequer gostava de Nabokov nem de Henry Miller, entendia então, que a virilidade era a capacidade de saber proteger uma mulher, e não esse aproveitamento de palavreado a mais. Ele que, pelos vistos, nem de mãe, nem de mulher propriamente dita, sabia o que era, mas esta posição distingui-o automaticamente.

É bem claro que estamos num mês mariânico e se sucedem as rimas frouxas dos amores das mães, dos maiores amores dos filhos, e por aí fora, num estendal que chega a ser nesta visão uma realidade incompreensível e como os incompreendidos são minorias a mais, destes nada se fala porque destoam do coro da vitória (pensam eles) da vida sobre a morte; mas aí é que está! Estas pessoas existem, elas souberam articular a fonte ao ser, e nasceram de si mesmas como os cavalos do vento: havia uma lenda que dizia que as éguas da Península Ibérica emprenhavam por ele, não sendo um hispânico, podem ter subido os ventos lá mais para cima… e dado um tão exemplar filho de ninguém! E até podemos imaginar que Jesus Cristo fosse filho de uma destas rajadas de oxigénio, a ver pelo desplante com que tratou a progenitora, que agora é de todos, mas para ele, e no dizer Pessoano, não passava de uma mala.

«O condenado à morte» de Genet (e nada nesta vida parece tão redentor) aliás, na sua execrável obscenidade em que raiou sempre um par de asas sublime, que aflige a moral como uma lâmina de guilhotina, nos parece mais próximo de uma vida que se liberta e se fez voz libertadora. Estes nasceres são capazes de coisas tais que não os imaginamos no cardápio das ideias puras. Estar preso é um derrame absoluto de sémen contido, e fechar os improváveis pode conter descargas de conhecimento transversal que obrigue os filhos, as mães, os pais, os tios e os primos, a suicidarem-se de vez, face a certas e improváveis vitórias da vida.

Quero deixar claro o meu amor por estas gentes, por Genet em particular, e pela lembrança sem rosto que jamais se debruçou na sua rota, onde o tempo legislou leis outras, nem seguir esquecendo a manobra trágica do amor que nos menoriza face aos gigantes indefesos, e para sempre os únicos inocentes. A consequência das coisas nunca é a que esperávamos, e, inconsequentemente se elabora o melhor que a vida tem. Genet pode ser o mais perto que há de um santo, mas não é, nem bom, nem esclarecido, tornou-se assim divino, porque agarrou nas palavras pelo lado que ninguém sabe alcançar, e a tudo isso acresce o carinho do saber titular e a grande energia amorosa da criação que dá a cada ser o nascituro de si mesmo.

Ó almas dos meus assassinados! Matai-me!
Queimai-me! Como um extenuado Miguel Ângelo
Eu esculpi na vida; mas a beleza, Senhor, sempre a servi
Com o ventre, os joelhos, as mãos rosadas de emoção.

17 Jun 2019

A Pegada de Sísifo A Foz em Delta, de Manuel Gusmão

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos quero falar de atrito e gravidade. Porque se de mecânica vive a literatura, que dizer da poesia, essa tão desajeitada engenhoca da linguagem. Pois ouvide e aprendei sobre a física e os mecanismos da linguagem que se regem por medidas outras, mais labirínticas e intricadas que as leis naturais. Que dizeis? Lembrais, contrafeito, que o meu compromisso é confidenciar-te poemas e poetas e não prelecções avulsas de uma ciência mal sabida? Pois não digais tal, meu sempre certíssimo secretário. A poesia não é só da ordem das letras! É, sim, mecânica pura movendo a engrenagem do mundo e suas linguagens; e para bem compreendermos um poema, sua dinâmica, a sua velocidade e aceleração rumo à razão, às ideias, ao coração, à emoção, há que descobrir a fórmula que se sustenta o movimento.

Falo-vos do livro de Manuel Gusmão, «A Foz em Delta», título, ele mesmo, metáfora de poesia: a torrente do rio que antes de alcançar o mar se propaga em percursos múltiplos, rasgando a terra em diferentes sulcos, inventado caminhos, descobrindo-lhes sinuosidades itinerantes. A foz em delta é bem o paradigma de uma particular resistência à passagem de água, que se embrenha na terra, antes ainda de mergulhar no oceano, criando pequenas ilhas, areais instáveis, resistindo, por porfia, ao deslize das águas. Ouvide, pois, secretário, aprendendo: «A corrente do rio arrasta consigo a terra que as raízes das árvores têm presa. O rio continua avançando e traz para o meio da foz pequenas ilhas terrestres. Ergue à altura de uma copa de pinheiro manso as imagens dessas ilhas incompletas.»

A resistência do falar poético nasce desta simbiose improvável entre terra firme e a força das águas. Nem uma nem outra se vencem: mantém-se um vínculo inusitado, em que água e terra se penetram. Assim é a poesia a desaguar no mundo; mas tal como a terra se distingue dos dedos de rio «arrepanhando as águas», também o poema e a ideologia, a poesia e pensamento político, a poesia e mundo; interpenetrando-se, sempre, nunca se confundindo.

Sim, meu tão certo e caro secretário, por isso vos falava do atrito, da resistência. Tantas forças no mundo, conjugando-se para encalhar no poema, abrandá-lo; mas o poema reage, firme e provoca atrito também ao mundo, e atrasa, sim, por pouco que seja o seu movimento. Tal como o atrito, a gravidade. Que dizeis, meu secretário? Que uma pedra caindo pouca influência de atracção tem sobre a terra. Pois sim, não mata, nem mossa causa. Mas alguma coisa há-de moer. E isto que vos digo, o diz magistralmente o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, num gesto de um só verso, que vale toda uma poética : « O mundo supõe a poesia para se poder dizer». E, imediatamente, antes, já o poeta explicara essa espécie de atrito, força que poesia exerce face ao mundo. Vinde cá, e aprendei, meu secretário: «A poesia é uma palavra tão carregada de sentido que vibra/ dar outra vez o nome às coisas/ dar outro nome às coisas mostra-as/ a uma luz e segundo uma música diferente.». Onde ides? Continuai, pois, a ler. É com os mestres que se aprende. Reparai que «este dar nome às coisas/faz parte da nossa experiência sensível. «A terra é azul como uma laranja». [Paul Eluard]»

A poesia será um modo de criar atrito no mundo, ao mesmo tempo que este exerce também uma força no poema; jogo de esforço e resistência que um e outro se oferecem; o rio a fuçar a terra, rasgando-a em delta, portanto, antes ainda de atingir o mar. O discurso poético, todo ele, desdobra-se como esse discurso de resistência, de per se, e isto independentemente da lógica e da verbalização directamente política, literalmente militante («o comunismo que vem connosco/e para além de nós recomeça») que este livro assume, a moer (rebentando-a tão só aparentemente) a distinção entre poesia e ideologia. Aliás, Foz em Delta acaba por ser (e isso implica uma fundamentação teórica que lhe está implícita, aduzindo-lhe, uma outra noção de atrito, que é a resistência à leitura, pelo confronto desta obra com os livros de poesia anteriores de Manuel Gusmão e o seu ensaísmo) um enraizamento na memória: a memória histórica, que não deixa de ser pessoal (com a convocação da luta de classes; os poemas dedicados a Álvaro Cunhal, um deles «Elogio da terceira coisa», mas também uma historicidade íntima , com o poemas dedicado ao pai e toda uma secção dedicada às filhas e netas. A poesia, vá por que caminhos for, desague na foz, por que ramificações, transforma-se, sobretudo (e também por isso resistência) em memória, assente na consciência histórica; e pouco importa o quão longe se vai no reconhecimento concreto, político, pessoal ou biográfico, quando a palavra instaurada no discurso poético é aquela «carregada do sentido que vibra» , que renomeia as coisas. O mundo, repitamo-lo em sincronia, meu secretário e não o esqueçamos mais, supõe «a poesia para se poder dizer». Por isso, Foz em Delta é poesia e ensaio, em simultâneo, reflexão e desfocamento poético, que coloca mais uma pedra na engrenagem da poesia, e reduzindo, sempre, com a sua força de resistência, atrito, a velocidade do mundo que avança selvagem, capitalista, acelerando.

Numa das secções do livro intitulada «Definição de um Território» (o da poesia, meu tão certo secretário?), há um conjunto de parágrafos, subordinados, exactamente, ao título «poesia e resistência». Aí se lê:

«A poesia pode ser uma forma de resistência. Pode sê-lo. Sempre, por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais. Hoje em alguns dos lugares em que a história da modernidade de longa duração continua a vir e a inscrever-se nos tempos, alguma poesia continua a resistir. Ela resiste à quantidade de barbárie em que cada tempo insiste. (…) Dizer que a poesia resiste é afirmar que ela é uma específica resistência à sua completa apropriação pela mente ou pelo espírito. […] . Como forma de vida, a poesia é um fazer e um acontecimento de linguagem que a tem por palco, co-move os sentidos e o corpo & alma dos cidadãos, mobiliza, atravessa e convoca o conhecimento, a ética, e a estética.».

Também por isto, os poemas, estes que se exibem como lastro ideológico, político, partidário e militante até, e expressamente, é resistência, sim, uma força de atrito, que influi na cinética do mundo, abrandando-o, mas não, nunca, ideologia, que, a poesia desfoca a linguagem com que aponta, no entanto ao mundo: «A fonte fria/na manhã clara/é de qualquer modo/o foco de luz/que te chega aos olhos.» Diz Silvina Rodrigues Lopes num artigo dedicado a «poesia e ideologia» do livro «Literatura, Defesa do Atrito» (pois é claro, meu tão certo secretário, bem vos dizia, ao início, que as leis da mecânica e da física são, pois, próprias da poesia) que «a nossa vontade de domínio segrega o desejo de plenitude e com ele a ideologia que retira às palavras o seu enigma: transforma a verdade e o desejo que a habita em vontade de verdade, força reactiva ao serviço de uma ordem, uma asfixia. Sem a poesia, que salvaguarda o enigma ao oferecer-se como um gesto ou acto necessário (…) as palavras estariam gastas. Não haveria como responder.»

Pois, é verdade, meu tão certo secretário, a linguagem, bem o sabemos, nós dois, é, para o homem, a única unidade de medida do mundo; e poesia é o que impede a erosão das palavras, à possibilidade de renomear o mundo, pondo-o em movimento. Assim, faz-se em simultâneo atrito e caminho, resistência e impulso: é, ao mesmo tempo, a pedra às costas de Sísifo, a montanha que ele repetidamente percorre e, até, o próprio Sísifo, ele mesmo. Repetidamente, deixando a sua pegada no caminho.

Manuel Gusmão, A Foz em Delta, Lisboa, Edições Avante, 2018

3 Jun 2019

Ainda não acabei

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Maio

[dropcap]T[/dropcap]rouxe-o comigo do lançamento d’ A Imortal da Graça, que as livrarias cobram-me sempre portagem. Por coincidência, as governam as boas vidas, vi depois anunciada a tradução deste «Sabrina», de um desconhecido Nick Drnaso (ed. Granta). Aliás, o meu desconhecimento do que se vai fazendo hoje na banda desenhada alastra, tristeza tão minha, como nódoa de petróleo. Esta notável novela gráfica, na linhagem do minimalismo de Chris Ware, diz-nos do presente andando sobre vidro partido. Com golpes narrativos de certeira subtileza, entramos de mansinho na vida das personagens, sem muito aprofundar, uma quase banalidade, todavia poética. As solidões só na aparência se tocam, limitam-se a conviver. Apesar do drama. A vida faz-se toda presa nas redes, sendo a opinião dos outros, talvez próximos, apenas mais um fio.

Somos fantasmas, figuras de papel à mercê de vandalismos vários: recortes, recomposições, rasgões, furos, amarrotamentos. Apenas brincadeiras. Apenas para que meter cada figurinha, nós, mas desatados, na fábula infantilóide de determinada perspectiva de mundo. Perturbador, com dose de intensidade e mistério que fere. Tive, algures, crónica onde defendia que os livros só nos tocam se lidos no momento exacto. Eis um caso.

Horta Seca, Lisboa, 4 Maio

Andávamos para o fazer há meses. Coincidindo com momento que pedia serenidade, recebemos o Mû [Mbana] para dedilhar cordas que prendem destinos. Convocou a Sandra [Martins] e o José [Anjos], além de outros amigos, que com ele cantaram, disseram, tocaram. Acolher um pedaço da Guiné-Bissau nesta casa invoca raízes e tempos que me parecem de outras vidas, não sendo, vejo agora. Nada tocando, para amarga e íntima tristeza, navego estas frustres articulações separadas por vírgulas. Por vezes, a busca de mudança significa meter as mãos na terra. Toquei em África raízes impressionantes. Sentia-lhes uma pulsação que logo rimava com coração e pulmão e o resto do corpo que lhes obedece, às vezes. A voz de Mû desenhada com os dedos nas cordas constrói centro, um nó de origens e tempos e histórias e vertigens, entretecendo tapete de possibilidades que são de transcendência. Estamos p’ra aqui em busca do rasgo no quotidiano, que permita a entrada da luz, que abra a própria luz e feche o seu núcleo em âmbar, em raiz de cola. Desatentos, custa-nos perceber que os diamantes estão onde menos o esperamos. Hoje, na horta seca, estendeu-se um chão possível.

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio

A dedicatória deste «Vida Nova» (ed. Turbina) contém os desejos de uma vida boa. Entre nova e boa, hesito. Melhorou qualquer coisa ouvindo este regressado Manel [Cruz], que não é apenas álbum, mas excelso volume de capa branca e amiga do toque, com título desalinhado e com corte. Sinais que se prolongam em série de pinturas do artista, letras inscritas em texturas ricas e variadas, sortido fino da ruína. (Exemplo algures na página). Este lugar faz-se de tessituras sem fim, ligando a letra à pele, o verso ao som, a crueza ao ritmo. Acresce a pujança das canções, feridas e irónicas, cansadas apesar de enérgicas, quase todas grito. Melancólico? O manifesto começa em tom confessional, o artista à procura de gesto que o traga ao momento, contra o tempo e a favor da infância, homem de novo a inventar-se em outra vida. Pode haver outro tema?

O cabaret de fim de século, adolescente como tudo o que renasce, abre a porta para deixar entrar corrente de ar de inteligência e ironia. E perda, como convém. Sento-me. «Eu desta vez vou conseguir/ Desta vez vou largar/ Eu não estou farto, eu cansei-me/ De que apenas parece/ Eu não sei se eu sou forte/ Só que tenho este grito/ Não contem comigo». Oiço uma e outra vez. E outra, sem pensar muito no nó dos sentidos. Vou ali passar as mãos nas paredes, em certa casa de Sintra, longe, tão longe, no tempo. «Desta vez eu desisto// De lutar contra a merda/ Eu sou feito de perda/ É mais do que um desabafo/ É uma voz que desperta/ Um consolo de abutre/ No direito à vivência/ Do pacote completo/

Não lamento palavras/ São o meu alimento». Lamento muito. Muito, mas. «Porque não pões um fim nessa vida sofrida?/ A resposta tem graça/ É que eu adoro esta vida!» esta vida sofrida tem graça. «Ainda não acabei!/ Vamos embora chorar, vamos embora sorrir/ Vamos embora sair, vamos embora ficar/ Vamos embora cair, vamos embora voltar/ Vamos embora ou não, são tudo coisas do chão».

Horta Seca, Lisboa, 9 Maio

Despois de «Anastasis», lanço, em breve, «Anastática». Pura coincidência, juro, fácil de comprovar nos longos atrasos a que me submeto. Imagino agora a confusão que fará na distribuidora, nas livrarias, nos incautos. Pelo inusitado dos vocábulos, arranhando a incompreensão dos poucos que não sabem googlar, e pelo inesperado dos que, visitando dicionários e memórias, descobrirão modos de renascer. Assim saiba eu ler o que ambos contêm de explosivo saber, sentido, sonho.

Horta Seca, Lisboa, 12 Maio

Em pleno caos e desatino, estou à mesa com Tóssan, o dos desenhos, sim, mas sobretudo o das palavras. Estou p’ra ver em papel o que, por enquanto, só brilha nos ecrãs: visões e revisões de três generosos volumes em caixa, casa de acolher uma daquelas obras que tendem a viajar sob os radares. E noto: «Desengane-se quem espere encontrar apenas motivo de riso. Anda por aqui «um algeiroz sofrendo da telha», a morte apresentando-se nas suas vestes de tédio, o tempo a discorrer, um olhar parado, perdido na linha de um qualquer horizonte. Estamos em pleno território do nonsense, esta ideia de que na arrumação dos dias, algo se desalinha. Algo animal que despenteia, até os dentes do pente. A máquina que nos faz avançar outra não é se não o trocadilho, esse modo de tornar elástica a língua, de a atirar a paisagens outras, de fornecer uma interpretação diversa. Está mais transparente nos poemas, ainda que os contos também se deixem contaminar por este olhar penetrante que entra nas palavras para nelas descobrir outras por pura convivência, com a conivência dos sons, mais o que perdura de uns nos outros.»

Se aqui o absurdo vira refrigério, ali somos parados por um verso, uma agudeza lógica, uma quase melancolia. «É no tempo que passa/ que recordamos o tempo que passa./ E é neste encontro que vamos/ criar saudade do reencontro.// A fome come o homem/ a ambição também o come/ como um abraço optimista/ a repetir o nome./ É como fazer as coisas/ sem as ter feito/ de emoção a emoção/ caminha no presente/ mas o futuro é solidão.» Na solidão do meu presente, procuro a custo devorar a fome que me come.

22 Mai 2019

Escritos ântumos, postumamente

[dropcap]M[/dropcap]as… onde ides? Assim tão lampeiro, ligeiro, com esse riso solto e casquinado, de quem segue adiante, sem lançar, para trás, sequer um olhar de remorsa despedida. Pois, vinde cá, meu tão certo secretário, de que foges? É do bico da pena, das cócegas inquietas, que te escusas, zombeteiro? Mas se já nem é com a pena que vos escrevo. E disso, sim, na verdade tenho pena. Vá, ouvide só, este manso martelar, sincopado, do computador: há tanto que perdesteis a pena leve do voar.

Cansado de ser leito de lágrimas, com que os poetas sempre a pena desafogam os queixumes, querendo deixar cair as penas do lamentos, contornais a enfastiada pena do escrever e arriba, galgando, pondes-te à fresca, em busca de penas com que voar. Tendes razão! Quem não preferiria planar para outros mundos, em que nascer é cousa chocalheira e não o trânsito funéreo da materna sepultura para o surdo destino das sem razões. Sendo assim, vinde, meu secretário: vinde sem medos, que, de uma penada te tiro as penas: hoje acolhereis José Sesisnando, poeta da leveza, cujo pensamento sempre sobe aos mais altos lugares; escritor avesso a pesos e lamentos.

José Sesinando Palla e Carmo, José Sesinando, só, para os leitores cúmplices de humores de galhardia, é um autor, poeta, brincador de línguas, o que lhe quiserdes chamar. É um escritor capaz de depenar a língua, a crítica, a própria linguagem e seus sentidos, para nosso gaúdio, que ali ficamos a admirar o ridículo do bicho, assim, a nu. Garanto-vos que, se penas houverdes, desta vez, será somente a pena não vos ser mostrado tudo o que esta «Obra Perfeitamente Incompleta», ora publicada pela «Tinta da China», na colecção humorística de Ricardo Araújo Pereira, com edição de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, responsável pelo prefácio, que bem faz jus ao livro.

No livro reúne-se a já esgotadíssima «Obra Ântuma», publicada, em 1986, pela «Edições Europa-América» e duas edições de autor: uma com 50 versões do «Soneto já Antigo», de Fernando Pessoa, e outra, composta por 65 variações sobre o poema «Autopsicografia». Nesta secção, aliás, o poeta passa a ser, à vez, um «roedor», um «pecador», um «pescador», um «cobertor», tão só um «senhor», ou um «péssimo actor», uma «estação», um «sabão» ou um «irmão», ou mesmo um malabarista, quando o pastiche vai além da sonoridade e ganha a liberdade acrobática que Sesinando lhe que quer emprestar.

A editora e, ainda bem, comete na edição a prudência da antítese, quase da paraprosdokian, bem explicada por Barros Baptista, no prefácio: E, assim, podemos louvar à «Tinta da China», finalmente, a publicação póstuma da obra ântuma de Sesinando.

O livro, no seu conjunto, é um completo tratado de humor. A primeira parte, «Prolegómenos», inclui uma «Nótula de Abertura», do próprio Sesinando, «Pallavras Prévias», desta feita, da responsabilidade de José Palla e Carmo, além de uma «Advertência» e um «Prefácio», de Archimbaldo Th. Leonardes e a Leonardes Júnior, respectivamente. Este último, aliás, é bastante elucidativo quanto às qualidades de Sesinando: «Serei breve, mas indeciso. José Sesinando parece-me constituir um daqueles raríssimos casos, em Portugal, de autêntico génio.», remetendo de seguida para uma nota de rodapé corroborando a informação prestada: «Cf. Saraiva (não nos recordamos qual deles), O Génio em Portugal, desde as Origens até ao Século XII, Lisboa, sem data, p.9 e última.»

A segunda parte da «Obra Ântuma», «O texto: Prosa» dá conta de verdadeiros tratados reflexivos sobre coisa nenhuma, mas em que se descasca a língua mesmo até ao caroço. Leia-se parte da «erudita comunicação», intitulada «To ser or not to estar», para se compreender, como na medula de um povo, está a sua própria língua:

«[…] Com efeito, como nem toda a gente – muito pelo contrário- consegue ser, os outros devem contentar-se com estar. Nisto (…), a língua portuguesa serve bem o nosso condicionalismo, já que nas outras linguagens — tais a teutónica, angla e a franca – o mesmo verso exprime as duas situações.

Disso decorre que, nessas outras nações, quem está é, e quem é está. Quando alguém bate à porta, a pergunta que vem do interior soa-lhe não «Quem é?», mas sim «Quem está?». Ao telefone, não se pergunta estupidamente: «Está?» (ou «Está lá»); diz-se: «É?» (ou «É lá?», ou ainda, com inflexão caucionante, «Eh, lá».

Por sua vez( e diga-se entre parênteses que estas investigações histórico-linguísticas são apaixonantes – e podemos dizê-lo sem qualquer pejo entre parênteses, já que não é por isso que nos caem os parênteses na lama), o uso do «É lá» em vez do está lá» motivou que, em vez da palavra e do conceito de raiz portuguesa estalagem ( está-lá-gem, que por sua vez era a contracção de está- lá-gente), se fala nessas outras áreas idiomáticas de elagem ( é-la-gem ou he-lá-gem, de é-la-gem, de é-lá-gem ou eh-lá, gente!). Nessas outras paragens, portanto, o estalajadeiro, ou melhor, o eladeiro, vai para a porta saudar as gentes passantes para as angariar como hóspedes; não vai estalá-las, como entre nós, mas sim éla-las – em francês héler, em inglês to hail, em alemão heilen, em brasileiro alô.»

A «Obra Ântuma», além da prosa inclui outra secção, «Texto: Poesia», com poemas «inexperimentais», poéticas pastiches ou de desfrute jubiloso, jogos, esquemas, «palavras escruzadas». Não, meu certo secretário, não são escusadas nunca, que, como diz Abel Barros Baptista, no prefácio que introduz o livro: o leitor daqui «pode colher a lição máxima e muito compensadora, ao aprender que a razão fundamental para compor escritos assim é a própria e também fundamental possibilidade de compor escritos assim: trata-se muito radicalmente de um exercício de liberdade.» A paródia com a língua é, então, uma necessidade, uma inevitabilidade, porque, lá está, a poesia e as suas palavras põem-se a jeito e toda a gente vê que estavam mesmo a pedi-las.

Entre estas duas secções, existe um «interfácio», porque afinal esta obra é de poesia, de prosa, mas também, de teoria literária, crítica, análise linguística e textual, e mais o que se quiser que a língua consiga prever e conter, porque não há uso da linguagem que não esteja à partida armadilhado. De seguida, completa-se a obra com um posfácio e variadíssimos «A-Nexos», com testes, entrevistas, notas, opiniões da crítica, que constituem um relevante e fundamental paratexto, em torno da escrita de Sesinando e da complexidade da sua obra. Neste ponto fundamental, fica o leitor a saber algo sobre os «ascendentes literários portugueses de José Sesinando»: «Quanto a influências portuguesas, são visíveis as de Almada, Castelo Branco, Chaves.», além de considerações críticas acerca da sua obra: ««Cadência fortemente sugestiva, encadeamento complexo das imagens, autêntico sortilégio verbal, riqueza expressiva reveladora de uma vincada personalidade de creador — nada disso, infelizmente, se encontra na obra de José Sesinando.»» Resumindo, se queremos saber o que é a crítica, a poesia, a literatura e as tretas que as letras nos pregam, é ler, de lápis na mão, os escritos que nos deixou Sesinando e o seu heterónimo José Palla e Carmo ou vice versa.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Vindes agradecer-me por não depositar aqui as consabidas e costumeiras penas do lamento? Que te sentis já com as penas do voar, pelos trechos de José Sesinando que vos fui confiando? Mas, que cenho é esse carregado com que me olhais? Que preferíeis que só aqui tivesse só alinhavado citações, sem que me pusesse eu, também, tão sem graça, com piscadelas de olho à chalaça e ao trocadilho. Olha, que quereis que vos diga… Pois temos pena.

José Sesinando, Obra Perfeitamente Incompleta, Lisboa, Tinta da China, 2018</strong
20 Mai 2019

Dilema do dentista culto

[dropcap]N[/dropcap]ão faço teatro para dentistas!” Terá exclamado o mercurial, mas não menos genial Peter Stein.

À frente da companhia teatral berlinense Schaubühne, embora se considerasse um mero primus inter pares, Stein havia cometido o prodígio de harmonizar erudição e kritik (ou seja a discussão dos fundamentos, termo que demonstra cabalmente como a banalização acarreta degradação), de articular o classicismo com a vanguarda e de conjugar insurreição com racionalidade.

Ao capturar as bandeiras até aí brandidas pelos conservadores, resgatando a tradição e a identidade, Stein – assim como outros bravos da sua geração do pós-guerra – logrou o feito admirável de extirpar o mal que pairava sobre a cultura alemã como uma maldição.

De impolutas credencias em virtude da sinceridade e da integridade política da sua obra e cabalmente ratificado nos círculos idóneos Peter Stein estava no caminho certo. Contudo não lhe escapou que as plateias que pressurosamente acorriam ao Schaubühne, quem se encantava e deslumbrava com as suas encenações, quem por estas era persuadido a compenetrar-se no exercício de reflectir sobre a ordem do mundo desde a perspectiva esclarecida e emancipada desbravada pelo seu teatro, que o seu público, enfim, era a burguesia urbana.

Viviam-se os anos 60 e 70. Doutro modo apelidada de classe média esta variante da vetusta burguesia alcançava um trem de vida confortável apenas pelo trabalho, sobretudo na área dos serviços, por conseguinte desligados da produção de mais-valias intensivas exploradas pelo capital, actividade essa que rapidamente se tornou maioritária nas cadeias de produção europeias.

O determinismo das ideologias que não previram esta evolução reprimiu-as de reconhecerem a factualidade da classe média. Isto operou um curto-circuito entre a existência e a consciência.

Ninguém mais do que a classe média detesta a classe média. Por um curioso efeito de negação individual muitos elementos da classe média têm a firme convicção de que na classe média se integram outros que não ele e essoutros é que assimilaram os valores da classe média. Mas dada a recorrência deste fenómeno é viável tomar tal repúdio como um traço distintivo da classe média. Decidida a obliterar a sua própria condição de classe, esta nova burguesia investiu com idêntico e voraz apetite tanto no consumo material como no consumo cultural. Aí estavam os famigerados “dentistas” verberados por Peter Stein, que percebeu bem o dilema.

Num determinado estado de coisas político não é invulgar na história encontrarem-se no seio daqueles que mais dele beneficiam os que mais se lhe opõem. É escusado fazer profissão de fé na dialéctica para assentir que todos os regimes encerram os seus próprios paradoxos. O que será inédito e paradoxal é que esta modalidade chamada de “democracia liberal” não só se congratule, como pareça alimentar-se desse paradoxo.

A classe média que se auto-renega está metida num labirinto fazendo por ignorar que nele vive o devorador Minotauro. Por exemplo, não falta na classe média quem pretenda qualificar-se exibindo repugnância pelo consumo de massas. Mais reitera do que atenua este tique de Maria Antonieta a noção de que semelhante forma de elitismo no consumo em vez de se consignar à proeminência financeira se meça por uma espécie de acumulação de capital moral. Atitude que proporciona quadros burlescos. Como a classe média pretensamente conscienciosa se leva muito a sério ela tende a desperceber que o marketing, esperto como um alho, transforma em paródia os seus preconceitos ciente de que venderá melhor um shampô se o carimbar de “sustentável.”

Ao fim e ao cabo a má-fé ou a alienação assomam como o traço predominante da classe média que se julga culta. Tinha razão Peter Stein – os dentistas são insuportáveis.

17 Mai 2019

Afrodite, Sena e o ipiranga do corpo

[dropcap]H[/dropcap]á alturas em que é preciso bater no fundo, deixar o mar recuar de vez e observar o que sempre esteve lá por baixo. Por vezes, é preciso despovoar a história, reduzir a zero o inventário da felicidade imaginária e os ovos moles do tempo. Jorge de Sena fê-lo na sua época contra tudo e contra todos. O testemunho de Marcello Duarte Mathias, no segundo dos cinco volumes do seu diário, fala por si quando se refere a Sena como “praguejante e gesticulatório despovoando tudo e todos à sua volta da mesma santíssima fúria homicida: o Brasil, e os Estados Unidos, o Estado Novo e o 25 de Abril, os intelectuais e os que o não são, incluindo o próprio Pessoa que também não escapa à sua ira redentora (coitado, não há maneira de o deixarem em paz!) – ninguém e coisa nenhuma merece graça aos seus olhos.”. Diga-se o que se disser, o país – qualquer país – precisa, de tempos a tempos, de seres abrasivos e lancinantes, que originem depois estes prantos e queixumes tão tardios quanto inúteis.

Lembro-me de Eugénio Lisboa me ter dito, há muitos anos, em Londres, que as grandes transformações da língua literária portuguesa tinham tido lugar nas diásporas. O filão ligava entre outros, Camões a Padre António Vieira, Francisco Manuel de Melo a Garrett e, naturalmente, Pessoa a Sena. Não é altura de me precipitar numa análise à escrita do autor, pois, nesta circunstância, dele interessa-me bem mais o vulcão insaciado, a personagem acrobata e inconformada e a figura do guerreiro, por vezes cego, que fez da contenda um móbil constante de afirmação, apesar do ‘mau jeito’ que causou a muitos dos seus solícitos contemporâneos.

Há quase seis décadas, mais propriamente no dia 7 de Agosto de 1959, Sena chegava ao Brasil dando início a um exílio voluntário. O autor, então com 39 anos, viveria logo a seguir uma fase de escrita particularmente fértil. São da sua lavra, na altura, muitos dos poemas de Metamorfoses, parte dos poemas de Arte de Música, praticamente todo o romance Sinais de Fogo (que viria se ser publicado postumamente), O Físico Prodigioso e ainda alguns ensaios sobre Camões.

Recuemos até esse longínquo ano de 1959 para ver o estado do rectângulozinho a que Sena escapara. Logo no início do ano, Humberto Delgado refugiou-se na Embaixada do Brasil em Lisboa e pediu asilo político. Em Março, um movimento revolucionário contra o regime salazarista em que Sena se envolveu, denominado “Revolta da Sé”, acabaria por ser desmantelado pela PIDE.

Dois meses depois, o Cristo-Rei em Almada, projecto quadrado de Francisco Franco, era inaugurado, enquanto Henrique Galvão partia para a Argentina na qualidade de exilado político.

Nos primeiros dias de Agosto, teve lugar o massacre de Pidjiguiti na Guiné (uma greve dos estivadores do porto de Bissau que acabaria selvaticamente com mais de cinquenta mortos). No Outono desse ano em que surgiu Aparição de Vergílio Ferreira, um outro romance, Quando os lobos uivam de Aquilino Ribeiro, era apreendido e, depois, viria mesmo a ser alvo de um processo judicial.

Enquanto esta miserável melopeia avançava em Portugal e a guerra colonial estava prestes a iniciar-se, Jorge de Sena soube distanciar-se do pântano e construiu mundo. Talvez o sinal mais simbólico dessa viragem radical (ou desse corte umbilical) se encontre nos famosos quatro sonetos a Afrodite Anadiómena que foram publicados em 1961 na revista Invenção de São Paulo, sendo posteriormente inseridos em Metamorfoses. O próprio poeta explicou o sentido desta escrita única: “O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem.” (…) “creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo.”.

Para gáudio dos leitores, deixo aqui em baixo transcritos os dois primeiros desses quatro sonetos. Eles representam, não apenas a ruptura total com a sofreguidão lusitana da época, mas também, tal como se referiu no início desta breve crónica, a postura de quem sabe que é urgente bater no fundo e fazer reaparecer o que é de todos: o corpo, o corpo livre, o corpo desamarrado com que, mais tarde, as Novas Cartas Portuguesas viriam a selar este longuíssimo ipiranga, gritado contra a moralidade da pátria salazarenga (que persiste ainda em muitos e inauditos lugares do nosso tempo).

Cruz, Gastão. Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou a arte de ser moderno em Portugal. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.
Mathias, Marcello Duarte. Os Dias e os Anos – Diário 1970-1993, D. Quixote, Lisboa, 2010, p.379.
Sena, Jorge, Quatro sonetos a Afrodite. Last Updated: Setembro 21 de Março, 2008. Disponível em http://antoniocicero.blogspot.com/2008/03/jorge-de-sena-quatro-sonetos-afrodite.html [Consul. 28 Abr. 2019].

 

I

PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
Lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.

II

ANÓSIA

Que marinais sob tão pora luva
de esbanforida pel retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai, que estamineta cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinais dulcífima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!…
Que marinais, tão pora luva, todo…

9 Mai 2019

O lugar de que sou é estar aqui

Rivoli, Porto, 10 de Abril

[dropcap]V[/dropcap]iagem -relâmpago para outra manifestação em torno das «Constituições» atribuídas a Aristóteles, na versão do António [de Castro Caeiro]. O Rui [Spranger] emprestou a voz cava para dar corpo aos fragmentos e José Meirinhos propôs um detalhado e muito cuidado enquadramento do percurso destes textos até chegarem à mão do tradutor, que, como bem assinalou, atreve-se a contribuir com inúmeros neologismos. A nossa língua não tinha ainda acomodado medidas e moedas e demais peças de um quotidiano perdido no tempo (e na fantasia). Pena terem sido poucos os que se atreveram à viagem.

CCB, Lisboa, 11 de Abril

Poucos conseguem falar de livros como o Jorge [Silva Melo]. Há um saber que se esconde nas calorosas definições das personagens, no respigar do detalhe biográfico do autor que interessa para estender da história como toalha tombando sobre a mesa. Falou-se de teatro, e muito, neste Obra Aberta. E de língua, que o Duarte [Azinheira] trouxe como pretexto um utilíssimo «Novo Atlas da Língua Portuguesa», de José Paulo Esperança, Luís Reto e Fernando Luís Machado (ed. INCM).

Casa da Cultura, Setúbal, 12 de Abril

Acaba sempre sendo viagem, a conversa desta «Filosofia a Pés Juntos». Lá fomos às raízes para perceber que a alma ensopa o corpo e que demorámos séculos até perceber de que massa somos feitos. O órgão do tempo demorou a descobrir o coração como centro. Até então, o esterno era o lugar da consciência de si: quando apontamos para nós próprios, o cerne fica mesmo ali. Depois, em fundo de boca, fica-me o sentido de sarcófago como comedor de carne.

Povo, Lisboa, 15 de Abril

Sessão marcada por avarias e desencontros, esta dedicada à poesia de José-Emílio Nelson, que terá para mim sempre o caracter de «Beleza Tocada», de fruto que o toque encaminha para a maturação, talvez o apodrecimento. O Henrique de-tantos-nomes Fialho ficou na estrada, traído pelo motor. O Filipe [de Homem Fonseca] foi travado e não podemos ver as suas mãos dançar no ar que o teremim respira. Mas o Pedro [Proença] desenhou com a voz, a Rita [Taborda Duarte] abriu caminhos, que o Luís [Carmelo] e eu seguimos diligentemente. Mas esta poesia é ruim de se dizer, despega-se dos olhos, faz-se agreste e desassossegada, com ela todo o caminho se faz sobre gelo fino. Peculiar, portanto, o encontro.

Coura, sem paredes, 26 de Abril

De súbito, na esplanada, talvez em resposta ao Trakl que o António [de Castro Caeiro] acabava de ler, o Miguel [Martins] diz de cor o «soneto presente», do Ary dos Santos. Na rua onde pulsa o coração desta terra inscrevo na pele o meu hino para estes dias. «Não me digam mais nada senão morro/ aqui neste lugar dentro de mim/ a terra de onde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui.// Não me digam mais nada senão falo/ e eu não posso dizer eu estou de pé./ De pé como um poeta ou um cavalo/ de pé como quem deve estar quem é.// Aqui ninguém me diz quando me vendo/ a não ser os que eu amo os que eu entendo/ os que podem ser tanto como eu.// Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/ a força do lugar que for o meu.» As gaiolas também se rasgam, grita o cartaz do «REALIZAR:poesia» (algures na página), assinado pelo António Pinto.

Biblioteca Aquilino Ribeiro, Coura, 27 de Abril

Por agora, uma certa ideia totalitária de cânone enquanto regulador do gosto vai fazendo escola, suscitando aqui e ali boas traduções, mas acompanhado de retóricas castigadoras, sem se afastar de miserável proselitismo. O momento, portanto, não será o melhor para entender que alguns livros possam nascer de gestos de amor, na crença de que o humano possui grandeza única. E que merece ser celebrada. O António Cabrita e o Miguel [Martins] escolheram guiar-nos através da esparsa produção do Levi [Condinho] com este «Pequeno Roteiro Cego». Trata-se de um tributo afectivo, um reconhecimento da importância que o autor teve no concreto de algumas vidas, tornando-se ainda testemunho de um certo tempo. A poesia ilumina e muito para além desta circunstância, apesar da tocante simplicidade que parece praticar. E depois Levi Condinho trata deus por tu, chama-o para inúmeras conversas, de braço dado, de olhos nos olhos. O autor não quis subir, não se dá com viagens, mas foi devidamente descrito enquanto paisagem pelo Miguel. Por causa da música que soa ininterruptamente em pano de fundo, a Luísa [Pires Barreto] glosou na capa um certo modo das cores se arrumarem para dizer jazz, como foi com certas editoras que, no seu tempo, não recusaram esta luxúria.

«A sensibilidade do miolo miúdo do poema/ não concebe o grito do pregador/ nem o sarcasmo dos castrados da intempérie// o homem vai no transporte da sua vida/ e a escrita faz-se no andar do transporte/ quem entende apenas o exterior parado/ nada vê – por isso o abandono é tanto// e o pudor de uma flor discreta comove/ como o grito das aves na montanha árida// voltar ao grito e ao silêncio/ mas não da forma tão visível como quereis/ eis a ciência do azul de dentro// canto/ mas os cães mijam/ nos postes de silêncio/ do meu canto.»

Retiro do Taboão, Coura, 28 de Abril

O sol esbatia, impiedoso, cada contorno. O rio parecia quedo, concentrado na tarefa de espelhar o céu. Os carvalhos receberam as palavras com soberana indiferença. E, no entanto, os versos de Georg Trakl, vertido pelo António para o cadinho do português, parecem resultar de golpes de canivete em um qualquer tronco. Lá nos explicámos o melhor que pudemos este volume de «Poemas», mas foram sobretudo as leituras em voz alta que me parece que impuseram uns laivos de magia. Não vejo melhor lugar para fazer soar esta melancolia escaldante, este «Sussurro ao Meio Dia». «Sol outonal, delgado e hesitante,/ E a fruta cai das árvores./ O silêncio habita espaços azuis,/ Onde um meio-dia se alonga.// Sons de metal, de moribundos;/ E um animal branco precipita-se./ Canções roucas de meninas morenas/ São levadas como as folhas em queda.// De Deus, a fronte sonha cores,/ Adivinha as suaves asas da loucura./ Sombras movem-se na colina,/ Envolvidas pelo negro da podridão.// Crepúsculo sereno cheio de vinho;/ Fluem tristes as guitarras./ E tu entras na terna lâmpada/ Como se de um sonho te tratasses.» Indistinto na folhagem pareceu-me ver o autor tal qual aparece, tão bem apanhado pelo Manuel [San Payo], na capa. Mantinha o corpo trocado pelo sobretudo de traços, de vestígios. E pareceu-me sorrir, mas ao longe podia ser apenas um esgar.

Algures entre Coura e Braga, 28 de Abril

Esta estrada sinuosa presta-se a devaneios meditabundos. À ida, tive por companhia uma série magnífica de nuvens a pintalgar um azul de espanto. Na descida, o assunto foram árvores, sobretudo os carvalhos e as oliveiras. Anda por aqui uma estranha moda de podar as oliveiras arredondando-as e achatando-as que nem pneu. Mas o que tenho que registar (para prova futura) é a revelação desta espécie que me era desconhecida: limão caviar. O fruto contém pequenas nuvens.

8 Mai 2019

«Um Chouriço é tão Poético como uma Rosa»

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, e de mansinho, aconchegado, acolhei estoutros versos que são teus; é que, se tudo vai sendo feito de mudança, tomando-se sempre de novas qualidades, se se converte, é certo, em choro, o doce canto, e a neve, como previsto, se sobrepõe ao verde manto; a bem da verdade, mesmo que tudo se transmude, sim, como soía, essa mudança, faz-se, ‘inda assim, de maior espanto.

Debaixo do mesmo sol, a metamorfose é regra, não novidade: a crosta, sabemo-lo, altera-se mutante, encerrando no imo a mesma matéria. A pedra fóssil recobre o bicho antigo; o âmbar sobrepõe-se à resina; e é próprio da pérola ter o empedernido coração de um grão de areia.

Assim corre a vida, também a poesia. A poesia está aí, no mundo, e mutatis mutandis, se rege pelas mesmas regras, mesma ciência: como ele, é cíclica, sim, em mutação, mas, no fundo, a mesma, sempre girando em torno da palavra, como a terra à roda do sol. Retoma novos atributos, sem perder os antigos. Tantas vezes, à poesia, então, não lhe basta por isso ser lida; há que ser manuseada, mas usando o corpo todo e os sentidos, para que lê-la seja literalmente testar-lhe as formas, os contornos e alterá-la, sim. A poesia, por vezes não se conforma à língua (um absurdo: o mesmo é que o dia não se queira sujeitar ao sol…). Mas o certo é que alguns leitores lhe adivinham o incorformismo; procuram, mansamente, satisfazer-lhe os desejos. Meu tão certo secretário, perguntais, já: «A que vem isto agora?». Que não? Que não perguntastes nada, que pensáveis até noutra coisa, distraído?… Pois tende paciência, e prestai atenção, que ainda assim te respondo:

Tudo isto vem propósito de Alberto Pimenta, para quem «uma rosa é tão poética como um chouriço», tal como, para o outro, o binómio de Newton ganhava aos pontos à Vénus de Milo…

Alberto Pimenta foi por estes dias duas vezes lido, duas vezes metamorfoseado, tomando-se sempre de novas qualidades, sem deixar, no entanto, de se mostrar como soía. A sua poética foi por duas vezes tomada e tornada corpo de performance. Dois modos distintos de a ler, mas mantidos num elo triangular, que fazem da poesia de Pimenta massa de modelar: poesia em processo de mutação e metamorfose; formas de leitura que actuam performativamente, poeticamente, até, nos seus próprios textos: em primeiro lugar, o filme (que não documentário) de Edgar Pêra (com argumento do próprio Pêra e de Manuel Rodrigues), a que foi dado o título «O Homem-Pykante- Diálogos Kom Pimenta», e que estreou no «Indie», 2018 e que teve, agora, a sua estreia comercial. Esta leitura da sua obra transmutada em filme é uma poesia-performance em movimento, em que o acto de montagem se transfigura no procedimento de montagem/colagem da própria linguagem poética de Alberto Pimenta. Tratar-se-á da sua poesia feita corpo-em-movimento, sempre dando conta da incomodidade da língua, em que a poesia vive. Sim, há sempre que fazer sentir o peso da língua; este grilhão de que o poeta não se livra. Alberto Pimenta bem foi escrevendo, avisado, que «não há opressão maior/e mais infame que a da língua.».

Mas outra leitura-metamorfoseada foi lançada também por estes dias: a publicação de «Anastática para Alberto Pimenta», antologia poética de Manuel Rodrigues (Abysmo, 2019) e dedicada a Pimenta, com prefácio e selecção de Edgar Pêra. Estes poemas, assim dispostos, \assumem novamente um corpo performativo, de duplo efeito; por um lado, são lidos inevitavelmente com a voz espectral de Pimenta a assombrá-los; por outro, obrigam, em simultâneo, a reler a sua poesia, através do eco de Manuel Rodrigues. E, ao assumir-se Pimenta e a sua poética múltipla, prenhe de estilos, como o destinatário único de cada poema, ergue-se, audivelmente, do livro, um diálogo, a que o leitor assiste como espectador de uma cena dramática que se liberta das páginas. Poemas, portanto, que se tornam cena em acto, como se a língua não se bastasse a si mesma e se procurasse no texto o espectro de um corpo-destinatário:

«Para Tal te Evitar»

se eu pudesse morreria ao escrever
um pintor que poderia desejar senão
uma morte d’óleo diante à tela
pianista o piano e cigala em cantante
amador a mando que ama a valer

_que quererão para boa morte_
esses povos sob mitos de recitar?
ora, diz-me lá tu, que leste mais
como crês que preferirão morrer
os exércitos de guerreiros ávidos
com tanta guerrilha ainda a devir?
eu, se pudesse, escreveria sempre»

(Manuel Rodrigues, Anastática, Abysmo, 2019)

Bem o sabemos, desde Lavoisier, que nada é novo e tudo se transforma; mas que fazer, se nós, leitores e habitantes do mundo, todos à uma, vamos vivendo como se a vida e a poesia fora coisa nova, exultando-as, em plena liberdade do espírito: Assumimos o mesmo exacto espanto perante um poema (escrito, claro está, com a mesma massa da língua que nos oprime), assim como perante o sol nascente por cima de cada manhã, gratos pela beleza que mais não é, afinal, do que a prova do tempo a morder-nos as canelas..«[…]/Pois é: sempre o mesmo e/ sempre desencontrado, o tempo/com o tempo.//Ele destrói tudo./Destrói tudo./Destrói tudo.// Como não havia de destruir-se a si mesmo? Levantar paredes/e deitá-las abaixo, /para poder levantar de novo…// – Não é o princípio/das estações do ano?/De que te queixas? » (Alberto Pimenta, Nove fabulo, o mea vox/De novo falo a meia voz, Pianola, 2016).

A previsibilidade do sol, consabido, requentado, a pontuar de laranja o fundo do horizonte traz a mesmíssima novidade de um poema. Atrás de um, a angústia do tempo passando, atrás de outro, as grilhetas da língua, asfixiando: e perante esse espectáculo triste, nós leitores e habitantes do mundo, celebramos o espanto, ainda assim. Por isso, estas insistências, absurdas, mas tão essenciais, em transformar a obra em metamorfoses, oferendas, tributos, palimpsestos, como se pretendesse alongar o efeito do nascer do sol. Na sua lição de sapiência, na Universidade Nova de Lisboa, Pimenta explica, a dada altura, que os poetas seriam importantes para exprimirem o indizível: se fosse para dizer, tão só, o dizível, explicava, então, «não seriam necessários poetas, bastar-nos-ia a prosa.» Mas, atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, talvez Alberto Pimenta não tivesse razão: os poetas não procuram sequer dizer o indizível. Pelo contrário, procuram criá-lo e fazer crer ao mundo a sua existência. Na verdade, todos sabemos que, provavelmente, no princípio não estava sequer o verbo. Mas quem sabe se estará no fim? Por isso, só por isso, não basta ler os poetas: às vezes é preciso transformá-los, continuá-los, para que o ciclo não se acabe, nunca.

6 Mai 2019