Crime | Esfaqueamento no Cotai resultou num morto e três feridos

Uma vítima mortal e três feridos foi o resultado do esfaqueamento que ocorreu na noite de sábado no exterior do Hotel Four Seasons no Cotai. Dois dos feridos tiveram ontem alta e foram reencaminhados para a PJ para serem ouvidos

[dropcap]E[/dropcap]ram cerca de nove horas da noite de sábado quando a Polícia Judiciária (PJ) recebeu uma notificação da Polícia de Segurança Pública a dar conta de um esfaqueamento ocorrido as imediações do Hotel Four Seasons na Taipa, que havia vitimizado quatro homens oriundos do Interior da China.

Um dos indivíduos, com 40 anos de idade, deu entrada no Hospital Kiang Wu e acabou por morrer. Os restantes três, com idades entre os 19 e os 29 anos, foram admitidos no Hospital Conde de São Januário. De entre estes feridos, um teve de ser submetido a uma cirurgia de urgência. Os restantes dois não apresentavam ferimentos graves, como tal receberam alta médica e foram encaminhados para as instalações da PJ para serem ouvidos pelas autoridades.

De acordo com a PJ, a morte está classificada como homicídio, embora a causa esteja pendente de exame forense. Para já, as autoridades dizem não estarem na posse de elementos probatórios que indiquem que o caso esteja relacionado com agiotagem ou jogo.

Até ao fecho da edição não havia informação sobre o autor do ataque, desconhecendo-se se estava entre os feridos ou em fuga.

Violência em alta

Recorde-se que na passada quinta-feira foram divulgados os números da criminalidade relativos aos primeiros três meses do ano. O destaque dos dados revelados foi precisamente para o aumento dos crimes violentos, que registaram um crescimento de 8,3 por cento durante os primeiros três meses do ano face ao período homólogo do ano transacto, com um total de 157 casos contra 145.

Segundo os dados apresentados pelo secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, os maiores aumentos no tipo de crimes violentos aconteceram ao nível dos sequestros e violações.

Relativamente aos homicídios, destacou-se no primeiro trimestre de 2019, o caso de um cidadão do Interior da China morto por outro com a mesma origem num hotel do Cotai. Em causa esteve uma operação de “troca ilegal de dinheiro”. Cinco dias depois do crime, com a cooperação das autoridades do Interior, o homem foi detido e enviado para Macau.

20 Mai 2019

TJB | Admitidos 15 casos de violência doméstica desde 2016

[dropcap]D[/dropcap]esde a entrada em vigor, a 5 de Outubro de 2016, da Lei de prevenção e combate à violência doméstica, o Tribunal Judicial de Base (TJB) admitiu 15 casos. Em comunicado, divulgado ontem, o TJB refere que todos os ofendidos eram cônjuges do sexo feminino ou filhos. Do total, foram proferidos acórdãos em oito casos, não havendo registo de condenações a pena de prisão efectiva.

Em quatro casos em que foram proferidos acórdãos, os arguidos foram condenados a penas de um a três anos de prisão, com suspensão de sua execução por dois a três anos (em dois dos casos, os arguidos ficaram inibidos de contactar, importunar ou seguir os ofendidos, por três anos). Já em três casos os arguidos foram condenados antes pelo crime de ofensa simples à integridade física a penas entre 10 meses e um ano de prisão, com suspensão da sua execução por dois anos. Já no caso remanescente, dado que a ofendida se recusou a prestar depoimento e não ficou provada a maioria dos factos, o TJB absolveu o arguido.

Os remanescentes sete processos já têm datas de audiência de julgamento marcadas, segundo o TJB.

19 Mar 2019

Tratado de extradição II

[dropcap]A[/dropcap]semana passada começámos a analisar a proposta do Gabinete de Segurança do Governo de Hong Kong ao Conselho Legislativo, no sentido de ser criada uma emenda à Ordenança de Assistência Mútua para Assuntos Criminais e também à legislação que regula a situação de criminosos internacionais em fuga. Estas medidas foram desencadeadas pelo homicídio cometido em Taiwan. As emendas são necessárias porque, sem base legal, Hong Kong não pode negociar a extradição em caso de crimes fora das suas fronteiras.

Como a Ordenança de Assistência Mútua para Assuntos Criminais e a Ordenança para Criminosos em Fuga não são aplicáveis na China continental, nem em Macau ou Taiwan, o suspeito da morte da jovem Pan Xiaoying não pôde ser extraditado para ser julgado em Taiwan. As emendas propostas sugerem que o Chefe do Executivo pode vir a emitir um certificado que autorize o pedido de detenção provisória. Seguidamente será solicitada ao Tribunal a emissão de um mandato de prisão preventiva. O Tribunal terá de realizar uma audiência e depois tomará a decisão final. O certificado serve apenas para iniciar o processo, mas não tem poder de extradição. O pedido de extradição terá de ser feito pelo Tribunal. O juiz terá de rever o caso cuidadosamente e verificar se todos os requisitos estão presentes. Se as emendas propostas pelo Gabinete de Segurança passarem no Conselho Legislativo, entrará em vigor a assistência mútua e a ordenança para criminosos em fuga entre Hong Kong, a China continental, Macau e Taiwan. Esta medida estará de acordo com o espírito do artigo 95 da Lei Básica de Hong Kong.

 

Ainda não se sabe quando é que a revisão da lei entrará em vigor, mas é necessário fazê-lo o mais rapidamente possível. O suspeito da morte da jovem Pan Xiaoying foi acusado de roubo e de lavagem de dinheiro em Hong Kong. Se for condenado por estes crimes, receberá uma pena de três anos, no máximo. Como já está em prisão preventiva há cerca de um ano, sairá pouco depois do julgamento. Se esta emenda não entrar em vigor ainda este ano, vai ser mais difícil detê-lo depois de ter sido libertado.

 

Esta revisão da lei não se vai reflectir apenas em Hong Kong, também vai ter impacto em Macau e Taiwan. Taiwan aprovou a Lei de Assistência Jurídica Mútua Internacional em 2018, que prevê a colaboração jurídica entre Taiwan, China, Hong Kong, Macau e a comunidade internacional. Contudo, esta assistência mútua limita-se à troca de provas, não incluí a extradição de suspeitos. Se a revisão da lei for bem sucedida, Hong Kong e Taiwan podem extraditar entre si suspeitos em fuga e condenados. Se Taiwan também proceder à revisão da sua lei, os criminosos em fuga deixarão de poder esconder-se quer num lado quer noutro.

 

Estamos apenas no início deste processo. Os conteúdos propostos para revisão vão ser debatidos e, possivelmente alterados, no Conselho Legislativo. Até agora, tem existido um vazio ao nível da cooperação judicial entre Hong Kong e Taiwan, na verdade, muitos suspeitos à espera de julgamento ou já condenados em Hong Kong, fugiram para Taiwan. É possível que o Conselho Legislativo venha a solicitar que as emendas tenham efeito retroactivo. Se isso vier a acontecer, a lei não terá apenas efeito em casos futuros, mas também em casos passados. Os criminosos que fugiram para Taiwan poderão vir a ser extraditados para Hong Kong.

 

Ao abrigo do mesmo protocolo, o Governo de Macau pode emitir pedidos de extradição de suspeitos que aguardem julgamento no território, ou de condenados, que tenham fugido para Hong Kong, após a entrada em vigor da revisão da lei. Uma das bases legais para os pedidos de extradição é o artigo 93 da Lei Básica de Macau:

 

“A Região Administrativa Especial de Macau pode, após consulta dos órgãos legais de outras partes do país, conduzir contactos judiciais e prestar assistência mútua de acordo com a lei.”

 

O Artigo 93 da Lei Básica de Macau é uma das bases legais para o pedido de extradição de criminosos fugidos para Hong Kong. É também a base legal para a promulgação de leis de extradição e a base legal da extradição em si mesma.

 

Se as emendas propostas pelo Gabinete de Segurança passarem no Conselho Legislativo, quem tenha cometido crimes em Taiwan e na China, já não pode fugir para Hong Kong. A China, Hong Kong, Macau e Taiwan deixarão de ser paraísos para criminosos que tentam fugir às suas responsabilidades, o que até aqui era possível devido a leis diferentes e diferentes sistemas jurídicos.

 

26 Fev 2019

Um crime quase perfeito (II)

[dropcap]A[/dropcap]semana passada, começámos a analisar o caso da morte da mulher e da filha de Xu Jinshan. A polícia encontrou as duas vítimas dentro do carro, um Mini Cooper. As mortes foram causadas por envenenamento com monóxido de carbono, mas a viatura estava em perfeitas condições. Em 2014 foi enviado um email para a empresa que fornece o gás a indagar o preço. O endereço de email, que continha a palavra “khaw”, pertencia provavelmente a Xu Jinshan. O monóxido de carbono foi encontrado no laboratório e Xu Jinshan utilizou-o em algumas experiências.

Xu Jinshan admitiu que tinha usado duas bolas insufláveis para guardar o gás e que as tinha levado para casa. Não existem indícios que provem que ele tenha colocado uma das bolas na parte de trás do Mini Cooper, e que tenha arranjado forma de libertar o monóxido de carbono com intenção de matar a mulher e a filha.

Durante o julgamento, o juiz dirigiu-se ao júri para salientar que, segundo as declarações do réu, só ele e a filha mais nova sabiam que a bola insuflável continha o gás letal. Xu Jinshan e a mulher eram os únicos a possuir as chaves do Mini Cooper. Perante este facto o júri poderia ser levado a pensar que Xu Jinshan seria a única pessoa que poderia ter posto a bola na mala do carro.

A direcção que o juiz deu ao julgamento parece ter sido razoável. Como ninguém viu Xu Jinshan pôr a bola insuflável na mala do Mini Cooper, esta poderia ter sido colocada por outra pessoa. No entanto, como só ele e a mulher tinham as chaves do carro, o júri inferiu que foi ele que o fez, por não ter sido estabelecida nenhuma dúvida razoável.

Após sete horas de deliberação, o júri considerou Xu Jinshan culpado dos dois homicídios. Foi condenado a prisão perpétua.

Algumas pessoas perguntam-se se Xu Jinshan pode herdar os bens da mulher? Segundo a Lei Comum, os criminosos não podem lucrar com os seus crimes.

Para além dos princípios da Lei Comum, os estatutos têm a mesma disposição. A secção 25 da Lei da Emenda e Reforma da Ordenança (Consolidação) estipula que se o assassino for o herdeiro da vítima, seja por: ser beneficiáro por testamento, por ter legalmente requerido a herança, por ser administrador dos bens do falecido, ou por doação, o Tribunal tem o poder de impedir que a receba. O propósito da secção 25 é, óbviamente, impedir que os homícidas possam beneficiar dos seus crimes.

A secção 33 da Ordenança da Administração e Inventário de Propriedades estipula que se o Tribunal considerar que a administração dos bens não está a ser adequada, pode emitir uma ordem para corrigir a situação.

Os homícidas também não podem beneficiar dos seguros feitos em seu nome pelas vítimas.

Em Macau existem disposições legais semelhantes. O artigo 1874 do Código Civil estabelece precisamente o mesmo. Os assassinos não podem herdar das suas vítimas.

Votando ao caso de Xu Jinshan, é sabido que o casal poderia facilmente ter-se divorciado. Só não o fizeram por terem considerado preferível continuar a viver juntos, para educarem os filhos. Segundo declarações do réu, a família sabia que ele tinha uma amante, por isso não se percebe porque é que recorreu ao homicídio. Seja como for, acabou por ser uma tragédia familiar.

Era muito pouco provável que uma bola insuflável esvaziada tivesse chamado a atenção da polícia. Era difícil imaginar que tivesse sido o recipiente do monóxido de carbono. Temos de agradecer à polícia pelo seu empenho em procurar a solução deste mistério. Mas, acima de tudo, como reza o ditado chinês, “A abóboda celeste foi refeita, já não verte.”

16 Out 2018

Um crime quase perfeito (I)

[dropcap style≠’circle’]X[/dropcap]u Jinshan, Professor Associado do Departamento de Anestesia e Terapias Intensivas, da Faculdade de Medicina da Universidade Chinesa de Hong Kong, foi condenado pelo homicídio da mulher e da filha. Devido às dificuldades com que os investigadores se depararam, quase que este chegou a ser um crime perfeito. Mas a polícia trabalhou com afinco, sem nunca desistir, e a verdade acabou por vir ao de cima.

As vítimas foram Huang Xiufen, a mulher de 47 anos de idade e a filha Lily, de apenas 16. Foram encontradas inconscientes no carro, um Mini Cooper, no dia 22 de Maio de 2015. Morreram a caminho do hospital. A autópsia revelou que a causa da morte foi envenanamento por inalação de monóxido de carbono.

E donde terá vindo este monóxido de carbono? Esta foi a pergunta chave colocada pelos investigadores. Inicialmente, os agentes inspeccionaram o Mini Cooper, mas não encontraram indícios de qualquer mau funcionamento, até porque Huang Xiufen o tinha levado há pouco tempo para a revisão e o carro estava em perfeitas condições.

A origem deste gás passou a ser uma dor de cabeça para os investigadores. Seis meses depois, em Novembro de 2015, a polícia seguiu outra linha de investigação. Descobriram que na parte de trás do carro estava uma bola insuflável vazia. Pensaram que a bola poderia ter contido o monóxido de carbono, que se teria eventualmente libertado. A bola foi para análise mas infelizmente não acusou vestígios do gás.

O passo seguinte foi a identificação de todos os fornecedores de monóxido de carbono. Descobriram que, a 8 de Abril de 2015, tinha sido entregue no Hospital Prince of Wales, local de trabalho de Xu Jinshan, uma quantidade de monóxido de carbono, 99.9% puro. A nota de recepção do gás não tinha sido assinada por Xu Jinshan, mas sim pelo seu colega Zhou Yiqiao. Os registos demonstraram que em Outubro de 2014, a Hong Kong Oxygen Co., Ltd. tinha recebido um email a perguntar o preço do monóxido de carbono. O endereço deste email continha a palavra “khaw”, que é o equivalente Malaio de “Xu”.

A polícia submeteu Zhou Xiaoqiao a um interrogatório. Zhou afirmou que tinha pedido o gás para experiências hospitalares, mas que não estava a par dos pormenores dessas experiências. Investigações posteriores apuraram que Xu Jinshan tinha realizado dois ensaios com o monóxido de carbono e que a sua amante Shara Lee também tinha participado nesses estudos. Nessa altura os investigadores confrontaram Zhou com uma pergunta chave, quem é que tinha tirado o gás do laboratório? Zhou respondeu que tinha visto Xu Jinshan levar o monóxido de carbono dentro de duas bolas insufláveis, dois dias antes das mortes. Quando Zhou perguntou a Xu Jinshan porque é que estava a levar o gás do laboratório, este respondeu-lhe que a amiga precisava de verificar o seu grau de concentração.

Até esse momento, a polícia já tinha apurado que duas pessoas tinham morrido dentro do carro, devido a envenenamento por inalação de monóxido de carbono, e que o veículo estava em boas condições. Xu Jinshan, era marido de uma das vítimas e pai da outra. Em 2014 tinha sido enviado um email para a empresa que fornece o gás a indagar o preço. O endereço de email contendo a palavra “khaw” pertencia provavelmente a Xu Jinshan. O monóxido de carbono foi levado para o laboratório e Xu Jinshan usou-o numa experiência. Levou ainda duas bolas insufláveis para colocar o gás. A partir destas provas, a polícia só precisava de saber como é que Xu tinha colocado a bola nas traseiras do carro e como é que tinha feito para que o gás se libertasse.

A 12 de Maio de 2016, a polícia prendeu Xu Jinshan por suspeita de homicídio. O réu prestou esclarecimentos de livre vontade. Começou por contar que tinha transportado as duas bolas insufláveis e um detector de gás no seu próprio veículo, uma carrinha Toyota de sete lugares. Nesse noite dormiu em casa de Shara Lee. No dia seguinte, Xu Jinshan foi directamente para o Hospital. Quando chegou ao trabalho, percebeu que o detector estava a dar sinal, porque uma das bolas estava a deixar escapar gás. Como não havia nada a fazer, deixou o gás sair e foi para casa buscar o o Mini Cooper, onde colocou a outra bola, e voltou à Universidade para ir jogar ténis.

Na manhã do incidente, Huang Xiufen foi no Mini Cooper levar as crianças à escola, onde deveriam estar às 7.30. Como Lily tinha feriado, ficou em casa. Quando regressou, Huang Xiufen esteve no jardim e na sala até às 10.00 e depois foi descansar para o quarto. Por volta das 14.00, Huang Xiufen e Lily sairam no Mini Cooper. Xu Jinshan foi para a Universidade, para assistir a apresentações de alunos e a seguir dirigiu-se ao Hospital. Às 14.25, um condutor de autocarro viu um carro particular estacionado numa paragem. Esta paragem ficava apenas a 1,6 km de distância da casa de Xu Jinshan. Às 15.35, uma transeunte reparou no Mini Cooper e pensou que as duas ocupantes estivessem a dormir. Por volta das 16.15, a mesma transeunte voltou a passar no local e, estranhando a situação, alertou a polícia.

Regra geral, se uma pessoa permanecer num local fechado com uma concentração de 6400 ppm de monóxido de carbono no ar, passado 1 a 2 minutos, começa a sentir dores de cabeça e tonturas, e morrerá num intervalo de 10 a 15 minutos.

Durante o julgamento, o advogado de defesa começou por salientar que Xu Jinshan não tinha qualquer intenção de matar a mulher. Embora tivesse uma relação com a sua assistente, Shara Lee, e se desse mal com a esposa, este relacionamento era do conhecimento da família. O divórcio chegou a ser considerado, mas acabaram por acordar que seria melhor ficarem juntos para acabar de criar os filhos. Ou seja, não haveria motivo para Xu Jinshan matar a mulher.

Seguidamente, o advogado de defesa argumentou que as provas recolhidas pela polícia não evidenciavam que Xu Jinshan tenha colocado a bola fatal nas traseiras do Mini Cooper, para que o gás propositadamente se volatizasse. O elemento “causa/efeito”, ou seja “devido aos actos do réu as vítimas morreram” não se pode provar neste caso.

(continua na próxima semana)

9 Out 2018

Crimes, escapadelas e computadores (II)

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]semana passada analisámos um caso ocorrido numa escola básica. Quatro professoras divulgaram as perguntas de um teste para admissão de alunos e foram acusadas de “aceder a computadores com intenção criminosa ou desonesta” ao abrigo da alínea 161(1)(c) do Código Penal de Hong Kong. Esta alínea cobre este género de delitos e ainda as infracções por recolha e divulgação de imagens intímas.

Relacionado com a esta última infracção, destacamos um caso que deu muito que falar. Atlex Chow Lik-sing, um motorista de taxi de 50 anos, alegou inocência após ter sido acusado de fotografar uma passageira que amamentava o seu bebé, e de ter colocado as imagens no Facebook, em Dezembro de 2016. A juiza Ada Yim Shun-yee recusou-se a adiar o julgamento e quis saber porque é que os advogados de acusação, que estavam sempre a pedir adiamentos, tinha optado pela acusação de uso de computador com intenção criminosa ou desonesta, e não tinham escolhido outra mais apropriada.

Basicamente, a alínea 161(1)(c) é um saco onde cabe quase tudo. Se for usado um computador em qualquer fase da preparação de um crime, pode recorrer-se à alínea 161(1)(c) para adicionar mais uma acusação de fraude ou até de corrupção. Após o smart phone ter sido equiparado a um “computador”, a alínea 161(1)(c) pode ser amplamente aplicada. É válida para casos de fuga de informação de testes escolares, como para o registo de imagens de mulheres a amamentar ou ainda para divulgação de imagens intímas. Sem este enquadramento legal, seria difícil acusar os responsáveis. No entanto, o caso das professoras revelou uma interpretação diferente da alínea 161(1)(c), e por isso é provável que agora, nestas situações, a acusação tenha algum cuidado até se ficar a saber a decisão do Tribunal de Recurso.

Para que a legalidade prevaleça, em certos casos devem aplicar-se outras leis para “substituir” a alínea 161 (1) (c). A divulgação de imagens intímas pode constituir um problema. Considera-se captação de imagens intímas, quando são feitas fotografias ou videos, num certo ângulo e de forma sub-reptícia, de forma a revelar a anatomia feminina por baixo dos vestidos. Aos olhos da lei de Hong Kong ainda não é considerado crime sexual. Desta forma, o réu só pode ser acusado de ociosidade ou de crime contra a honra. É por este motivo que a decisão do juiz de absolver as professoras que divulgaram as perguntas dos testes resultou num desastre legal.

Vejamos agora, porque é que o Tribunal de Primeira Instância recusou condená-las. Durante a audiência, o juiz Pang colocou uma questão fundamental: seriam apropriadas as acusações que lhes eram imputadas? Por outras palavras, os actos que praticaram ao “aceder a computadores” poderiam ser considerados infracções ao abrigo da alínea 161(1)(c) do Código Penal? Esta pergunta causou surpresa a ambas as partes, porque nunca tinha sido feita numa sala de audiências.

Pang adiantou ainda que “obter acesso a um computador” com intenções criminosas ou desonestas, não é o mesmo que “usar um computador” com esses intuitos. Se a infracção era baseada no uso do computador, tinha um largo espectro e seria incompatível com o precedente “caso Li Man Wai”. Este caso demonstrou que a lei não castiga por igual todas as formas de acesso a computadores, só proibe a extracção e o uso, não autorizado e desonesto, de informação.

Mas este caso ainda não está encerrado pois aguarda a decisão final do Supremo Tribunal de Hong Kong. No entanto, a julgar pelas palavras do juiz, podemos verificar a importância da interpretação legal. As palavras “acesso” e “uso” são semelhantes, mas acabam por ter significados diferentes. O juiz tem o dever de assegurar que o seu uso é correcto. Em casos do foro do direito penal é crucial, sobretudo para o réu, que a lei seja interpretada à letra. E a interpretação de um juiz pode vir a ser usada por outros no futuro. É por este motivo que devemos encarar a lei com toda a seriedade. Se todos compreenderem a importância do cumprimento da lei, o estado de direito será alcançado.

Talvez esteja na altura de o Governo de Hong Kong fazer algumas emendas às leis. O registo de imagens íntimas é disso exemplo. Se o Supremo Tribunal aceitar a argumentação do juiz Pang, as mulheres de Hong Kong vão precisar de uma lei de protecção.

Para concluir, divulgar as perguntas dos testes com antecedência é obviamente uma conduta imprópria e condenável. Nenhum professor o deverá fazer, sem qualquer sombra de dúvida.

 

11 Set 2018

Crimes, escapadelas e telemóveis (I)

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguma vez poderíamos imaginar que a professora que fotografou as perguntas de um questionário e as enviou do telemóvel através do “Whatsapp” não seria condenada em Tribunal? Pois acreditem que aconteceu e o caso está a chocar Hong Kong.

No dia 10 de Agosto, o Tribunal de Primeira Instância de Hong Kong recusou-se a anular a decisão do Tribunal de Magistrados, que tinha deliberado que as quatro professoras que usaram os telemóveis e os portáteis para divulgarem as perguntas de um questionário de selecção, não são culpadas de “aceder a computadores com intenção desonesta ou criminosa”.

Este caso conta-se em poucas palavras. Envolveu quatro rés, todas professoras do ensino básico. Três delas ensinavam na mesma escola. A quarta leccionava noutra escola, mas tinha sido colega de uma das outras.

A ocorrência deu-se em 2014. Como o número de vagas para a admissão de novos alunos no ano lectivo 2014 – 2015, na referida escola, era limitado, os candidatos tinham de ser seleccionados através de uma entrevista. As entrevistas tiveram lugar no dia 14 de Junho. Na véspera, o professor responsável pelas admissões dirigiu uma reunião preparatória. Na reunião, foi entregue a cada professor uma pasta de plástico contendo um conjunto de perguntas e de esquemas. As pastas foram devolvidas no final da reunião. As três rés que trabalhavam nesta escola estavam presentes na reunião.

Durante a reunião, uma delas fotografou com o telemóvel os conteúdos com as perguntas e enviou-os através do Whatsapp à colega que trabalhava na outra escola.

A segunda ré fotografou também este material e enviou as fotos à terceira, que estava atrasada para a reunião. Esta, depois de receber as imagens, utilizou o computador da sala de professores e introduziu num ficheiro Word as perguntas que, de seguida, reenviou por email às outras duas, nesse mesmo dia.

A quarta ré, que trabalhava fora desta escola, recebeu as perguntas no ficheiro Word por email. Em seguida fotografou o ficheiro com o telemóvel e enviou-o às amigas.

Foram todas acusadas de terem acedido a computadores com intenções criminosas ou desonestas, com o objectivo de obter lucros para si ou para terceiros. Este crime está inscrito na secção 161 (c) da Lei Criminal.

Os Magistrados não aceitaram a confidencialidades das perguntas das entrevistas, porque:

A primeira tirou as fotos antes de começar a reunião de preparação das entrevistas. A sua conduta não pode ser tratada como “desonesta”.

A segunda colocou os formulários na mesa e fotografou-os à vista de todos. À semelhança da primeira, a sua conduta não pode ser tratada como “desonesta”.

A terceira usou o computador da escola para introduzir o formulário num ficheiro Word. Pode tê-lo feito para proveito ilícito de terceiros, mas não para seu proveito pessoal. Contudo, usar o computador da escola não é ilegal.
A quarta quis ajudar a amiga e não conhecia o ficheiro com a cópia dos formulários.

Baseados nestes dados, é fácil de imaginar que o recurso para o Tribunal de Primeira Instância fosse dificilmente defensável. A acusação sublinhou o carácter confidencial dos questionários. O senso comum diz-nos que este material não deve ser sujeito a fugas, nem chegar ao conhecimento dos candidatos antes do momento próprio. E isto é verdade, independentemente de ter sido feito, ou não, um aviso sobre a confidencialidade dos materiais, antes da reunião preparatória.

Antes de discutirmos a decisão do Tribunal, é preciso lembrar que nos últimos anos, vários naturais de Hong Kong foram acusados ao abrigo da secção 161(1)(c), por um vasto leque de condutas ilegais. O caso mais conhecido foi a acusação contra Weslie Siao Chi-yung feita pela ICAC, Agência Anti-Corrupção de Hong Kong, a propósito da fuga de informação incluída nos questionários de exame do Ensino Secundário. Kris Lau Koon-wah, outro professor, foi igualmente acusado pelos mesmos motivos.

Tirar fotografias pornográficas constitui também crime ao abrigo da secção 161(1)(c). O agente Chu Ho, um polícia de Hong Kong, admitiu ter tirado fotografias pornográficas em 311 diferentes ocasiões, incluindo várias de uma colega, no interior da esquadra de Yau Ma Tei. Os investigadores encontraram 1.628 fotos e 290 vídeos de várias mulheres no smartphone de Chu Ho, em 2016.

A sentença de Chu deverá ser ouvida no próximo dia 13 de Dezembro, após o Vice-Magistrado Lau Suk-han ter concedido à acusação um tempo suplementar para fundamentar o processo.

Continua na próxima semana
4 Set 2018

AIPIM pede convenção internacional de segurança dos jornalistas

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) juntou-se ao apelo da Federação Internacional de Jornalistas para a criação de uma convenção internacional para a segurança e independência dos profissionais da comunicação social.

“Neste Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, 3 de Maio, chamamos a atenção para o recente aumento substancial da violência atingindo jornalistas em certos países – em vários casos com consequências fatais”, declarou a direcção da AIPIM, em comunicado.

A AIPIM defendeu ainda que “não pode haver liberdade de imprensa quando os jornalistas vivem e trabalham num clima de medo e intimidação”. A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) divulgou ontem um comunicado em que denunciou a morte de 32 jornalistas ou profissionais de comunicação social, em 2018, “uma média de dois jornalistas mortos a cada semana”.

Por essa razão a IFJ urgiu para a necessidade da criação de uma convenção internacional para a segurança e independência dos jornalistas e profissionais da comunicação social que estabeleça “normas vinculativas que criem salvaguardas especificamente para jornalistas e trabalhadores dos media”.

“Não podemos celebrar o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa sem apelarmos aos governos que assumam a responsabilidade de garantir a segurança de nossos colegas”, apelou o presidente da IJF, Philippe Leruth, em comunicado.

4 Mai 2018

Amnistia denuncia papel da Shell em crimes cometidos na Nigéria

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Amnistia Internacional instou ontem a Nigéria, o Reino Unido e a Holanda a investigarem o envolvimento da gigante petrolífera Shell em assassínios, violações e tortura cometidos pelo regime militar nigeriano na região de Ogoniland, na década de 1990. Num relatório ontem divulgado, intitulado “Uma Iniciativa Criminosa – O envolvimento da Shell na violação de direitos humanos na Nigéria dos anos 1990” e assente em documentos internos da empresa anglo-holandesa, a Amnistia Internacional (AI) sustenta que essas e outras provas apontam para “a cumplicidade da Shell numa vaga de crimes atrozes cometidos pelo Governo militar nigeriano nos anos 1990”.

O relatório da organização não-governamental de defesa dos direitos humanos inclui não só uma análise sem precedentes de milhares de páginas de documentos internos da companhia petrolífera e de depoimentos de testemunhas, como o próprio arquivo da AI correspondente a esse período.

Segundo a Amnistia, a campanha levada a cabo pelo regime militar da Nigéria para silenciar os protestos dos Ogonis contra a poluição causada pela Shell levou a “graves e generalizadas violações dos direitos humanos, constituindo muitas delas crimes”. “As provas que vimos mostram que a Shell repetidamente encorajou o exército nigeriano a arranjar uma solução para os protestos da comunidade, mesmo sabendo o horror a que isso conduziria – massacres ilegais, violações, tortura, o incêndio de aldeias”, declarou a diretora de Assuntos Globais da AI, Audrey Gaughran.

Segundo a responsável, “durante essa brutal ofensiva, a Shell até forneceu aos militares apoio material, incluindo transporte, e pelo menos num caso pagou a um comandante militar conhecido por violar os direitos humanos”. “Que a empresa nunca tenha respondido por isso é escandaloso, [porque] é inquestionável que a Shell desempenhou um papel fundamental nos devastadores acontecimentos ocorridos em Ogoniland nos anos 1990 – mas agora acreditamos que há matéria para uma investigação criminal”, defendeu. A Shell sempre negou qualquer envolvimento nas violações de direitos humanos, mas nunca houve uma investigação sobre essas acusações.

29 Nov 2017

Crimes sexuais | Abolição de género e outras alterações são “passo importante” na revisão do CP

A proposta de revisão do Código Penal, prevendo três novos tipos de crimes sexuais e abolindo a distinção de género, é recebida de braços abertos por agentes sociais. Uma “adaptação à realidade” e um “passo muito importante” são alguns dos elogios atribuídos

[dropcap style=circle’]A[/dropcap]“eliminação da diferenciação de género nos crimes sexuais” é uma das propostas na revisão que o Governo propõe para o Código Penal. Actualmente em consulta pública, que termina em Fevereiro, a proposta está a agradar a analistas e agentes sociais, que defendem que estas alterações são um passo em frente.
Actualmente, por exemplo, só as mulheres estão contempladas no artigo 157º do Código Penal, na secção dos crimes contra a liberdade sexual, relativamente à violação sexual. Cenário que poderá ser alterado caso a revisão da Código Penal se concretize com base nesta sugestão do Governo.
“Isto é realismo. Puro realismo, quantos são os casos de homens violados por mulheres, ou até por outros homens? Isto existe, portanto acho muito bem”, começa por defender o advogado Miguel de Senna Fernandes, quando questionado pelo HM.
O estatuto patente em Macau de “homem que é homem não sofre de violência”, presente nos “códigos sociais em vigor” e na cultura do território, diz, camuflam “a realidade”.
Questionar a existência desta realidade é perda de tempo, defende o advogado, porque é um cenário visível a qualquer pessoa. “Claro que [os homens] sofrem de abusos, claro que sim, só não vê quem não quer”, apontou, frisando que muitos casos existem “há muito tempo”.
“Esta não é uma realidade de agora, existem inúmeros casos em que a mulher tem um [comportamento] ascendente sobre o homem mas que isso não transparece nas relações com terceiros. Há homens que são espancados, que sofrem privações em casa e tantas outras coisas”, registou.

Uma porta aberta

Para o advogado, a proposta do Governo é uma clara posição de “abertura” e por isso uma atitude de “louvar”. “Esta é uma abertura realista, absolutamente realista. Está a olhar-se para o crime, o facto em si, sem ter outros considerandos ligados ao género, classes e outras coisas”, acrescentou, frisando “ainda bem que isto está a acontecer”.
Em concordância está também Jason Chao, que falou ao HM como porta voz da Associação Arco-íris, que defende os direitos da comunidade LBGT e que tem lutado pela inclusão dos casais homossexuais na Lei de Violência Doméstica.
“Nos casos de violação a lei actual nunca iria reconhecer o homem como vítima, portanto isto é um óptimo desenvolvimento”, afirmou ao HM.
“Um grande passo” para Macau, que irá reconhecer as vítimas como isso mesmo. É assim que o activista olha para esta sugestão do Governo. “É que na realidade há vítimas de violação que não dependem do género”, rematou.
O activista vai ainda mais longe e defende que o Governo, tal como na região vizinha de Hong Kong, deveria legislar a recusa do uso de preservativo nas relações sexuais.
No documento de consulta estão ainda contempladas outras orientações, tais como o “coito oral” e o “acto sexual com penetração”, como “comportamentos sexuais, sendo-lhes atribuída uma punição intensificada”.
Pretende-se ainda, com esta revisão, “dar resposta às exigências da população em relação à revisão dos crimes sexuais”, o “cumprimento de determinadas obrigações impostas pelo Direito Internacional” e “ainda estabelecer o “reforço da protecção de menores”.
Orientações aplaudidas por Miguel de Senna Fernandes e Jason Chao, sem deixar de referir a importância de definir violência doméstica como crime público, já que, defende, em alguns casos esta implica também violência sexual.

29 Dez 2015

Crime | Jovens menores cometem mais crimes. PJ prepara prevenção

Os números de jovens que cometem crimes estão a aumentar e alguns deles acontecem por mera brincadeira. A polícia decidiu, por isso, aumentar a prevenção e até criar uma página no Facebook para atingir os mais novos

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]preciso reforçar a prevenção face ao crime cometido por jovens, avançou ontem a Polícia Judiciária, depois dos números de crimes cometidos pelos mais novos estarem a subir.
Dados ontem apresentados pelas autoridades mostram que os crimes que envolvem jovens com idade inferior a 18 anos chegaram aos cerca de 60 de Janeiro a Setembro. Números semelhantes aos do ano passado, que aumentaram para 57, depois de em 2013 terem sido registados menos dois. Em 2014 e 2015, de Janeiro a Setembro, o número de pessoas que não atingiam a idade de imputabilidade criminal, envolvidas em crimes, foi de 43, números superiores ao mesmo período dos anos anteriores, que se ficaram pelas duas dezenas.
Os crimes mais comuns que envolvem jovens são o roubo, furto, fogo posto, dano, abuso sexual e droga e a PJ diz que é preciso fazer mais, até porque não é só por necessidade que os crimes acontecem.
“É nossa opinião que os jovens cometem crimes devido à falta de dinheiro, por ganância ou brincadeira, ou por influência dos amigos”, indica a PJ.

Educar pela net

Em comunicado, as autoridades explicam que é preciso mais colaboração com o sector educativo e anuncia que vai tentar chegar aos jovens através de uma nova página do Núcleo de Acompanhamento de Menores no Facebook, devido à sua popularidade.
“Pretende-se melhorar o conhecimento jurídico que os estudantes têm bem como explicar-lhes a responsabilidade criminal em que podem incorrer se violarem a lei. Para se chegar à camada de estudantes do ensino superior a comunicação e a apresentação das campanhas de prevenção criminal serão feitas através dos meios mais apreciados pelos jovens. Neste momento, oito instituições do ensino superior aderiram ao projecto. Estamos na era da internet, as pessoas estão em comunicação umas com as outras de forma constante. As redes sociais são a via mais usada pelos jovens para partilharem a sua vida ou os seus sentimentos com os amigos. Um dos meios mais populares para os jovens é o Facebook, pelo que a PJ criou uma página no Facebook do Núcleo de Acompanhamento de Menores”, remata a PJ.

29 Out 2015

EI | Grupo arrasa símbolos da cidade. Memória exterminada

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Edição de 28 de Agosto de 2015
[dropcap style=’circle]F[/dropcap]oi em meados de Maio passado que o Estado Islâmico (EI) primeiramente ocupou Palmira, começando com uma vaga de homicídios e repetidas ameaças da destruição do local, classificado pela UNESCO como Património Mundial. De acordo com a Reuters, foram mortas cerca de 400 pessoas nos primeiros quatro dias de ocupação do EI em Palmira, há três meses. Dias depois, foi a vez das forças do presidente sírio Bashar al-Assad atacarem o local então liderado pelo EI. Este foi, segundo o director do Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR, na sigla inglesa), Rami Abdel Rahman, um dos ataques mais intensos desde a semana anterior, quando o controlo da cidade teve lugar. “Desde esta manhã [dia 25 de Maio], aeronaves do governo executaram pelo menos 15 ataques aéreos a Palmira e arredores”, disse Rahman. Uma fonte militar síria confirmou ao website DW que tiveram ainda lugar várias outras acções militares nessa altura. “Operações militares, inclusive ataques aéreos, estão em curso na área ao redor de al-Sujna, Palmira, Arak e nos campos de gás de al-Hail, bem como nas estradas que levam a Palmira”, afirmou uma fonte não identificada ao website.

Erradicar fundamentalismos

Francisco Leandro é um professor na Universidade de São José doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais que esteve em Palmira e outras zonas do Médio Oriente em 2009. Em declarações ao HM, sugere, como vários especialistas, a erradicação do fundamentalismo para cessar os avanços do EI. “O potencial destruidor dos crimes de guerra, em especial dos crimes de género em conflitos armados, é incomparável com outros tipos de crime”, começou por dizer. “Infelizmente, os líderes do ISIS cedo compreenderam esta minha afirmação e infelizmente praticam-na na perfeição: travar este flagelo implica erradicar os fundamentalismos”, acrescentou.

O académico apontou que um património daquele valor é irrecuperável. “Uma destruição destas pode ser minimizada, mas nada voltará a ser como era. Aquando da minha estada na Síria, tive oportunidade de observar o esforço imenso da comunidade internacional, designadamente de Itália, nos trabalhos de recuperação, classificação e preservação do património histórico da Síria”, começou por dizer Francisco Leandro. A isto, o professor acrescentou que a presente perda “acarreta também a perda” de um esforço com o qual o governo sírio sempre contou. “Este é um dano civilizacional irreparável”, colmatou. Questionado sobre as formas de parar os avanços do EI, Francisco Leandro considera que se trata de uma guerra que vai beber aos ideais e usa a manipulação psicológica, sendo por isso, mais complexa de travar.

O califado da discórdia

Embora também em Junho e Julho se tenha assistido à destruição de estátuas e outros artefactos icónicos – como a peça do leão de al-Lat, que data do século II e foi descoberta em 1975 –, o anúncio da explosão do templo Baal-Shamin surgiu no início desta semana, com um especialista em antiguidades sírio, Maamoun Abdulkarim, a apontar que o sucedido tenha tido lugar no passado dia 23. “Temos dito vezes sem conta que eles iriam primeiro aterrorizar as pessoas, e depois, quando tivessem tempo, começariam a destruir os templos”, disse à agência Reuters Abdulkarim. “Palmira está a ser destruída perante os meus olhos. Que Deus nos ajude”, lamentou o especialista.

No entanto, parece não haver consenso na data da destruição, já que o SOHR refere que o desmantelamento aconteceu há cerca de um mês. Seguindo as contas de Abulkarim, a destruição aconteceu apenas dias depois da facção radical ter decapitado o antigo responsável pelos museus e antiguidades de Palmira, Khaled al-Assad, de 82 anos. Actualmente, cumpria funções como consultor do local e a sua execução aconteceu, de acordo com o Observatório, porque o responsável se recusou a revelar o local secreto onde foram escondidas algumas das estátuas antes da chegada do EI a Palmira. Além deste homicídio, o EI publicou ainda notícias sobre um massacre de “infiéis” no anfiteatro de Palmira, há dias.

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Graeme Wood escreveu, na edição de Março da revista britânica The Atlantic, um artigo denominado “O que o EI [Estado Islâmico] realmente quer”, onde explica as intenções e a filosofia interna do grupo. Wood começa por dizer que poucas forças internacionais conhecem realmente os contornos da lógica que move o EI, referindo que há profundas diferenças entre o actual regime comandado por Abu Bakr al-Baghdadi e o de Bin Laden, a Al Qaeda. “Bin Laden perspectivava o seu terrorismo enquanto prólogo de um califado que não seria formado durante a sua geração. A sua organização era flexível, operando uma rede geograficamente difusa de células autónomas. Em contraste, o EI só se legitima através da conquista de território e é composto por uma estrutura hierárquica”, esclarece Wood.

As estátuas dos infiéis

De acordo com notícia do periódico The Week, o templo de Baal já havia sofrido um ataque com morteiros em 2013 e acredita-se que este tenha sido perpetrado por milícias sírias. Contra este movimento em crescimento acelerado estão vozes internacionais, às quais se juntam poderosos líderes do mundo árabe, que sendo muçulmanos, censuram as atitudes do EI e afastam qualquer relação com esta facção. Também Irina Bokova, directora da UNESCO, condenou a destruição dos artefactos como um “crime de guerra”, dos piores da história. A grande pergunta, no entanto, é “porque razão está o EI a destruir património mundial”? A destruição de Palmira consta, de acordo com vídeos publicados pelo próprio EI, do plano de conquista deste grupo radical muçulmano. O jornal New York Times (NYT) escreveu mesmo que o ataque a Palmira serviu para obliterar todas as restantes culturas e religiões do califado desta facção radical. O NYT citava os vídeos da destruição: “Os monumentos que vêem por trás de mim não são mais do que estátuas e ícones de pessoas de séculos anteriores, usados para a adoração em vez de Deus”. No ecrã, lia-se ainda “aquelas estátuas não são do tempo do Profeta e dos seus companheiros. Foram criados por Satânicos”.

Verdadeiramente religiosos

O artigo do The Atlantic refere que o que inicialmente parece um velado apoio ao Estado Islâmico é, na verdade, um esclarecimento para perceber como combater esta força. Para Wood, este é o grupo religioso que mais pura e radicalmente cumpre a doutrina de tempos antigos. “Quase todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo EI seguem criteriosamente a ‘Metodologia Profética’, seja nos seus media, placards, matrículas ou moedas”, escreve o autor. Wood refere o óbvio: “quase todos os muçulmanos recusam o EI”, mas isso não faz com que as acções do grupo não sejam o espelho da profecia escrita há milénios.

A revolta do EI

O mundo começou a ter – uma pequena – percepção da força do Estado Islâmico ainda em 2002, quando o presidente dos EUA George W. Bush declarou a inclusão do Iraque no ‘Eixo do Mal’, lista de países ‘non-grata’ para o governo norte-americano. Em 2003 o conflito intensificou-se e Bush prometeu usar força bélica caso necessário, justificando, através de comunicações públicas, que o Iraque escondia e possuía “algumas das mais letais armas jamais inventadas”. A existência deste tipo de artilharia nunca foi oficialmente provada. As tropas da aliança com os EUA acabaram por abandonar o Iraque, mas não sem antes capturarem Saddam Hussein, um dos maiores ditadores modernos. Foi por volta desta altura que o EI começou a ganhar relevância enquanto proclamador de um regresso aos tempos em que o mundo estava dividido em califados.

De Mosul a Palmira

Segundo o mapa do califado do EI, criado pelo Instituto de Estudos Bélicos em Janeiro, a facção controla uma linha de terra que vai desde a cidade síria de Aleppo até perto de Ramadi, no Iraque. Há ainda outras zonas, como são parte da fronteira da Síria com a Turquia. O mesmo mapa define zonas de ataque, onde a facção se encontra em guerra. Estas ocupam Fallujah – igualmente importante durante a invasão norte-americana –, e Bagdad. Outra grande parte do documento está pintada de cor-de-rosa, simbolizando zonas de apoio ao governo de Baghdadi. Estas compõem um espaço triangular desde perto de Damasco, passando por Aleppo, Mosul, Bagdad e Ramadi.

Em Fevereiro teve lugar um outro ataque igualmente grave ao património mundial. Foi a vez de militantes do EI destruírem artefactos em Mosul, com direito a imagens dos momentos. Nos vídeos captados, ouvem-se palavras semelhantes àquelas proferidas em Palmira. “Este ataque é muito mais do que uma tragédia cultural – também é um assunto de segurança, porque alimenta o sectarismo, o extremismo violento e o conflito no Iraque”, afirmou na altura a directora da UNESCO, Irina Bokova.

Reacção semelhante teve a direcção do Museu nova-iorquino Metropolitan, que descreveu o ataque como “catastrófico” num dos museus “mais importantes do Médio Oriente”. No dia anterior, os radicais haviam feito explodir um mesquita no centro da cidade. O arquitecto Ihsan Fethi lamentou uma “perda terrível” e justificou o acto por dentro da mesquita estar um túmulo que serve de objecto de adoração para os fundamentalistas. Já em Fevereiro, o ministro iraquiano do Turismo e Artefactos, Adel Fahad al-Shirshab tinha censurado a conduta do EI. “Este genocídio cultural contra a humanidade iraquiana tem que ser imediatamente travado antes que o EI destrua tudo o que resta”, disse.

28 Ago 2015

Para que serve a ONU?

[dropcap style=’circle]A[/dropcap] propósito da recente destruição do templo de Bel, em Palmyra, e do assassínio de Khaled Assad, eminente arqueólogo sírio de 82 anos, muito se tem discutido sobre o que vale mais: as pessoas ou as pedras. Ou: trocar-se-ia a vida de uma pessoa pelas obras completas de Shakespeare? Estas perguntas são estúpidas e mal intencionadas. E isto porque se trata de uma e da mesma coisa. A vida de nada vale sem a memória e a memória é a vida de milhares de pessoas, o que delas resta e nos sustenta como humanos durante as nossas vidas. Nós não existimos sem a memória e a memória também não existe sem nós. Somos uma e a mesma coisa, por isso ambas têm de ser defendidas a todo o custo.

Será que é assim que acontece? Não. Inúmeras vidas e património universal da humanidade são diariamente destruídas perante os olhos impassíveis dos que neste mundo detêm o poder. As perguntas que se impõem perante a escravatura e abuso de crianças, execuções em série de inocentes, limpeza étnica, destruição de artefactos de valor histórico-cultural incalculável e insubstituível é: Por que razão não intervém a ONU de modo a pôr cobro às atrocidade do ISIS? Que empecilhos existem à formação de uma força internacional que extirpe de vez esta raiz? Que outras atrocidades ou eventuais acções justificarão então a existência da ONU?

Nunca, desde a II Guerra Mundial, ou seja, desde a sua criação, que a ONU não desempenha um papel tão ridículo e tão ineficaz, como no actual conflito no Médio Oriente. Parece claro que nenhuma nação no mundo apoia a ideologia que o ISIS quer implantar no mundo, nem as práticas desenvolvidas para o conseguir. No entanto, as grandes potências, com assento no Conselho de Segurança, assistem imperturbáveis a crimes que se acreditavam impossíveis no século XXI. Se assim é, no limite, para que serve a ONU?

28 Ago 2015

Palmyra | Crónica de uma morte abominada

[dropcap style=’circle]A[/dropcap] leste de Aleppo fica o grande lago Assad, um reservatório artificial que recolhe as escassas águas da região. Para sul, fica o deserto. Foi por ele que nos embrenhámos, ainda de manhã, para chegarmos a Resafa pela hora de almoço. Bastaram alguns quilómetros para que a vegetação começasse a rarear e na estrada alcatroada deparássemos com episódios de areia, enxotada pelo vento. A promessa era que estaríamos em Palmyra, “a noiva do deserto”, antes do pôr-do-sol.

Ali mesmo, em frente ao restaurante, ficavam as ruínas de uma antiga cidade romana. Muhammad olhou descrente o meu interesse. “Já passa do meio-dia. Está muito calor. C’est fou”. E era. Fui despejando água pela cabeça, enquanto visitei Sergiopolis, também denominada por um breve tempo Anastasiopolis, uma cidade construída pelos romanos, como posto avançado do exército, muito perto do império persa, com quem os césares partilhavam a glória de dominarem o mundo conhecido. Com algum custo sobrevivi e foi bom. São ruínas magníficas, exiladas no deserto, onde abunda o alabastro, a pedra que adquire as intonações do céu. O sol pregava-me ao chão. A água secava em menos de um minuto. Pensei como deveria ser belo aquele lugar à noite, iluminado pela lua do deserto. Mas algures, no meio daquela terra devastada, esperava-me Palmyra e as suas belezas prometidas. Era tempo de nos metermos ao caminho.

Dizem os vestígios arqueológicos que a mais antiga referência a Palmyra data de dois mil anos antes da data à qual se atribui geralmente o nascimento de Cristo. Foi descoberta na Capadócia. A sua existência deve-se, fundamentalmente, a uma fonte que ali miraculosamente surgiu no meio daquele nada. São 80 litros de água sulfurosa por segundo, a uma temperatura constante de 33 graus centígrados, que continuamente brotam da inesperada nascente, verdejando o mundo à sua volta. Chama-se Afqa e é tida por um milagre pelas mais diversas crenças e religiões.

Quando os gregos de Alexandre e os romanos de Pompeu por ali passaram, depararam com um oásis fértil e habitado principalmente por comerciantes, que distribuíam mercadorias dos quatro pontos cardeais e dos poderes neles instituídos. O balançar suave das palmeiras, que por ali predominavam, levaram-nos a crismá-la de Palmyra e a sua fama ressoou pelos impérios do Ocidente. Marco António pretendeu oferecê-la como presa fácil aos seus cavaleiros mas os comerciantes avisados transferiram atempadamente todas as suas riquezas para o outro lado o rio Eufrates, provocando o riso dos persas que, à época, tinham péssimas relações com os homens do Tibre.

Anos mais tarde, com o fortalecer do império romano na região, Palmyra reconheceu o domínio mas, segundo os historiadores, este nunca foi factual, ou seja, os comerciantes de Palmyra, enquanto entreposto entre dois impérios inimigos, conseguiam manter a equidistância e fazer valer a necessidade da sua existência, à parte das guerras que então grassavam.

A partir do século II, Palmyra torna-se num emirato árabe, estreitamente relacionado com Roma, o que lhe permitiu, também sob o pretexto de proteger o comércio, formar um poderoso exército, cuja acção ajudava os romanos, por exemplo, contra os judeus. “Felizes os que assistirem ao fim de Palmyra…”, diz no Talmude e tal não é por acaso. Depois da visita do imperador Adriano, no ano 129, a cidade foi considerada “livre” e deixou de pagar impostos aos romanos. Curiosamente, a atitude do imperador, ao invés de afastar os habitantes da cidade, fez com que as suas relações se tornassem cada vez mais estreitas, sobretudo a nível cultural e pessoal. A cidade conheceu um extraordinário desenvolvimento, o que é patente nos vestígios arqueológicos, que testemunham uma civilização híbrida, com um fundo greco-romano muito forte, mas influências diversas e bem visíveis, na escultura, na pintura, no vestuário e na arquitectura.

É penoso viajar no deserto, mesmo numa carrinha com ar condicionado. Pelo caminho, cruzámos diversos grupos de nómadas, dispostos em acampamentos de autocaravanas. Antenas montadas no exterior garantem-lhes a televisão. Não há camelos. “São coisa para turistas”, diz Muhammad. Também não há tendas. O nomadismo já não é como dantes. As casas sim, surgem antigas, na sua simplicidade de cubos brancos ou chaminés-de-fada, para proteger da canícula. Emergem do deserto, não muito longe da estrada, entre ondas de calor que se evolam da terra crestada e inútil, tornando grosso o ar. Há nelas a irrealidade do edifício da kaaba. Como imaginar os quotidianos que à sua sombra se desfiam?

Finalmente, uma planta, algo verde, vacilante é certo, mas verde, não muito longe da estrada. Mais adiante, um outro tufo, que me faz crer na proximidade da cidade, do celebrado oásis da fonte Afqa, na cidade tomada por Alexandre, depois pelos generais romanos, cujas construções a imortalizaram. Eis palmeiras, a ladear ruas, eis Palmyra, eis a noiva do deserto, a desolação que eu trago ainda nos olhos e nos lábios ressequidos. Percebo como os beijos da tua água restituem a vida.

E, já refeito, vocifero a Muhammad: “É tempo de subirmos ao castelo, antes que sol se esconda”. E lá vamos colina acima, donde ele nos olha sobranceiro, fitando do outro lado uma imensidade de areias e rochas, sobre a qual um sol moribundo se espreguiçava. Subi à torre e olhei entre as ameias. Escrevi : “Ainda antes de o sol se esvair no horizonte, uma bruma cobre de ouro antigo as coisas, o vento ergue uma poeira diáfana e sentimental.” Fazia calor e soprava um suão forte, amarelado. Era um belo castelo árabe, construído depois da expansão da fé. Cá em baixo, estendia-se a cidade, não muito grande, polvilhada de ruínas em quase toda a sua extensão. O resto são pequenas casas, um pequeno comércio, muito distante do seu esplendor de outrora. Gentes gentis. De má catadura, sorriso cortês e bom trato.

Já no século III, reinou em Palmyra uma mulher célebre, a rainha Zenobia, cuja lenda se confunde com uma realidade recentemente mais assertiva pela descoberta de documentos ainda desconhecidos. Contudo, a sua fama não se prende tanto com o tempo que esteve no poder (apenas cinco anos), mas com a sua beleza e personalidade. Zenobia, esposa de um dos mais poderosos líderes de Palmyra, emulava as grandes rainhas do passado: Semiramis, Dido e Cleópatra. O aparecimento do império sassânida, que substituíra os partos no mundo persa, trouxera focos de dissidência e conflito, facto aproveitado por Zenobia para aumentar e fortalecer o seu próprio reino. E, de facto, por um breve período, Palmyra atingiu o seu apogeu. Cercada pelos exércitos de Aureliano e com poucas hipóteses de resistência, escreveu ao imperador: “Pedes-me para me render, mas não sabes que Cleópatra preferiu morrer a viver humilhada?”

Já nas décadas anteriores, fruto das boas relações com Roma e com a chegada ao poder do líbio Septimo Severo, Palmyra conhecera o surto de construção, que constitui a maior parte das ruínas que chegaram aos nossos dias. Zenobia herda uma cidade magnífica, onde existe uma forte tradição romana, mas onde é bem nítida a influência oriental. Algumas das construções que sobreviveram são as torres funerárias, onde as famílias com mais posses sepultavam os seus mortos, dotando os túmulos com estátuas dos defuntos, o que nos arrasta numa viagem indescritível pelas faces e pelas expressões santificadas na pedra das pessoas que pisaramesta terra mil e tal anos antes de nós.

É em nome deles, do Muhammad e daqueles jovens com partilhei um cibercafé em Palmyra, que me horrorizam os acontecimentos recentes. Este texto é escrito graças ao livro do arqueólogo Khaled Assad, assassinado pelo ISIS, aos 82 anos, por não querer revelar o paradeiro de valiosos artefactos, escondidos antes da chegada dos bárbaros. Presumo que tenha morrido de consciência tranquila, na defesa da sua cidade, a quem realmente entregou a vida.

Saí de Palmyra com a sensação de ter estado num dos sítios mais especiais deste planeta, num local miraculoso, cravado no centro do deserto. É verdade que a umas centenas de quilómetros moureja o Eufrates, o rio mítico da minha infância, cuja fonte se encontra no Paraíso. Tinha-o contemplado de uma ponte, em estesia pela semelhança daquela visão com o que eu sempre imaginara: um curso de água delicado, pontilhado de ilhotas apalmeiradas e de barcos delgados, a soletrar o rio. Na tradição sufi, a palavra “palmeira” encerra uma série de significados escondidos. Não sei quantos mais sentidos Palmyra encerra, porque estes são sempre caminhos que viagem alguma esgotam.

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Escreveria mais tarde:

“Que noivo esperas, Palmyra, assim queda e muda, na porta do deserto? Que cavaleiro tarda em vir, que ramo te prepararam, que frutos secos definham nas bandejas de preces antigas? Que homem te abandonou, que promessas ele quebrou, naquela noite ázima em que o vento subitamente deixou de soprar e velhas armaduras se ergueram da terra árida? Não há dia em que o vento não sopre os seus lamentos e talvez por isso não te queixes de tanta solidão, da aflição, da promessa quebrada. Ele não voltará e tu quedar-te-ás assim para sempre: os olhos cegos de areia, como se loucura fosse a espera mas nela se desvendassem os segredos do mundo.”

28 Ago 2015

A morte saiu à rua num dia assim

Federico Garcia Lorca
(5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936)

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim.

Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores.

Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante.

Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia.

Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador.

Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém.

O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes.

19 de Agosto de 2015

Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão.

Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam».

“Do Oriente ao Ocidente
Levo tua luz redonda.
Tua grande luz que sustém
Minha alma, em tensão aguda.
Do Oriente ao Ocidente.
Que trabalho me dá.
Levar-te com teus pássaros.
E teus braços de vento!”

25 Ago 2015

Importação paralela III

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m artigos anteriores, temos vindo a discutir os recentes casos de importação paralela verificados em Hong Kong, e hoje vou discutir o mais recente desenvolvimento desta polémica.

Nos últimos dias de Julho, a “Magistrate Court” de Tuen Mun foi palco de um processo referente à importação paralela de bens da China para a RAEHK, região especial em que se utiliza um sistema legal diferente do de Macau, registando-se semelhanças apenas no que toca à organização dos tribunais. Neste caso, o julgamento teve lugar numa “Magistrate Court”, os tribunais onde todos os casos-crime se iniciam ou onde se julgam os crimes menos severos, equivalentes ao Tribunal de Primeira Instância da RAEM.

Neste caso em particular, quatro suspeitos foram considerados culpados das acusações contra si apresentadas, estando os detalhes dos mesmos contidos na tabela abaixo:

Réu Crime Sentença
 Ng Lai-Ying  Assaltar agente da autoridade  3 meses e ½ de prisão
 Kwong Chun-lung  Obstrucção de justiça Centro de formação *
 Poon Tsz-hang  Obstrucção de justiça 5 meses e 1 semana de prisão
 Identidade não revelada Assaltar agente da autoridade Centro de reabilitação por ser menor de idade (14 anos) **

* Centro onde os infractores recebem formação profissional para facilitar a sua reinserção na sociedade após o cumprimento da pena ** Centro onde são albergados os indivíduos que não tenham ainda completado 18 anos de idade

Todos os réus foram libertados mediante o pagamento de uma fiança, para aguardar em liberdade o resultado dos apelos à sentença que foram solicitados pelos seus advogados. Quando questionado pela imprensa sobre os motivos que o levaram a permitir esta liberdade provisória, o juiz Michael Chan Pik-kiu defendeu que a apresentação destes apelos era na realidade uma perda de tempo, pois quando estes viessem a ser ouvidos por um tribunal superior, a sentença dos arguidos já teria sido quase comprida na totalidade. Assim, o magistrado achou que seria mais justo o pagamento de uma fiança em troca da redução da pena de prisão em favor de liberdade provisória.

Durante a leitura da sentença, o juiz argumentou ainda que “necessito, no caso em questão, de aplicar uma pena severa para que possa servir de dissuasor para outros no futuro, de modo a que não pensem que agredir um agente da autoridade seja um acto trivial, nem mesmo durante a realização de protestos”. Ao mesmo tempo, o magistrado revelou ainda estar a “temer pela sua segurança”, visto ter recebido ameaças à sua integridade física de parte desconhecida, mas que estas não haviam influenciado a sua decisão, nem tendo sequer chegado a conseguir perturbar o seu estado de espírito.

Desta forma, o magistrado cumpriu com rigor os requisitos da sua profissão, limitando-se a exercer o seu papel e a analisar as provas apresentadas sem pressões políticas e livre de quaisquer ameaças.

Mas que ameaças terão sido a si dirigidas? Sobre esta questão, o site “news.theheadline.com” publicou no dia 31 do mesmo mês uma peça com mais pormenores, onde ficou demonstrado o conteúdo do prenúncio, conforme abaixo descrito:

– linguagem grosseira e abusiva
– ameaças de um acidente envolvendo o mesmo
– possibilidade de danos corporais contra a sua família

Até mesmo durante a realização do julgamento, a audiência foi interrompida por alguém que manifestava o seu desagrado em voz alta, do lado de fora da sala, com palavrões contra o magistrado, que solicitou imediatamente a detenção do prevaricador pelos agentes da polícia, que todavia não tiveram sucesso na detenção. Mesmo assim, o insólito foi o suficiente para justificar a intervenção do Departamento de Justiça de Hong Kong, que prometeu numa notificação pública abrir uma investigação sobre este caso.

Torna-se assim impossível negar o grave impacto social que este tipo de actividade económica tem tido sobre a RAEHK. Entre as reclamações mais frequentes, encontram-se os engarrafamentos frequentes, a deterioração da higiene pública e ainda o aumento em flecha das rendas nos locais onde os mesmos se concentram, por exemplo. Na maioria dos casos, as áreas afectadas estão concentradas junto à fronteira entre Hong Kong e a China, onde uma grande parte dos residentes não hesita em manifestar o seu desagrado para com estas novas agravantes. Tudo isto culminou em negociações entre os responsáveis da RAEHK e os seus colegas de Shenzhen, onde foi decidido mudar os vistos concedidos aos visitantes do continente. Onde no passado os mesmos podiam gozar do “Multiple Entry Visa” (ou vistos de entrada múltipla), estes agora podiam apenas solicitar vistos segundo o “Individual Visit Scheme”, ou vistos de visita individual, permitindo os mesmos apenas uma visita ao território por semana. Mas tiveram estas restrições algum sucesso em impedir a importação paralela de bens? A resposta não é, até ao momento, fácil de fornecer, mas esperamos que as novas medidas consigam solucionar eficientemente os problemas correntes.

Se estas novas políticas de imigração forem suficientes para reduzir o grau de insatisfação manifestado pela população da RAEHK, considero então que o Governo agiu de forma correcta, tendo este encontrado a melhor fórmula para resolver o problema. Mas a questão debatida neste artigo não se limita à importação clandestina empreendida entre a China e Hong Kong, vai mais além e inclui ainda as ameaças feitas contra um juiz da RAEHK, assim como os distúrbios verificados fora da sala de audiências e os palavrões dirigidos a este oficial de justiça.

Se o leitor se colocar na pessoa de Michael Chan, e se imaginar como a pessoa encarregada de presidir sobre este julgamento, estaria preocupado com a sua integridade física, como ainda a da sua família? Se sim, teria demonstrado a mesma integridade pessoal, continuando a desempenhar as suas funções, chegando mesmo a considerar os quatro suspeitos presentes a julgamento como culpados do crime de que tinham sido acusados?

Não é difícil imaginar que, caso o juiz tivesse ficado assustado com esta ameaça, a sentença poderia ter sido diferente e os mesmos arguidos poderiam mesmo ter sido considerados inocentes. Mas caso assim fosse, os residentes desta região especial ficariam com a impressão que obstruir ou mesmo assaltar um agente da autoridade não constitui uma ofensa séria, não passando este acto de uma trivialidade banal. Pior ainda, os mesmos poderiam no futuro vir a assumir que a sentença de qualquer caso-crime pode ser influenciada através de ameaças dirigidas aos magistrados em causa. Agora, podiam estes desenvolvimentos ser aceites numa sociedade que se diz justa e obediente?

A resposta para esta questão é óbvia, e não requer mais nenhuma explicação. Não nos podemos esquecer que todos temos a obrigação de apoiar e defender qualquer juiz que se encontre a desempenhar as suas funções de acordo com a lei. Isto é o mesmo que dizer que o estado de direito (rule of law) tem de estar sempre presente nas nossas mentes, pois todos temos a obrigação de cumprir a lei e não perturbar a ordem pública. Todos desejamos que os magistrados possam desempenhar o seu papel sem pressões externas, e para que isto aconteça é necessário garantir que o sistema jurídico tenha poderes suficientes para garantir a protecção efectiva dos agentes de justiça, sem a qual não seria possível garantir o cumprimento da lei por parte da população.

O estado de direito é uma componente fundamental de qualquer sistema legal, quer se trate de um caso julgado em Macau como num que tenha ocorrido na RAEHK, e no caso em que este não seja defendido, o território ou localidade em questão virá invariavelmente a ser afectado.

3 Ago 2015

Extremismo, o combate que falta

Três raparigas foram atacadas a caminho da escola, no Afeganistão, por dois homens numa motorizada que lhes atiraram ácido à cara. Duas delas estão em estado crítico

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]autoproclamado Estado Islâmico divulgou imagens de um massacre de 25 soldados sírios perpetrado por crianças e adolescentes, que terá ocorrido no anfiteatro romano de Palmira, na Síria. Segundo o jornal Público, o vídeo de quase 10 minutos mostra os prisioneiros a serem conduzidos, por extremistas adultos, para o palco do anfiteatro romano e feitos ajoelhar, mãos atadas atrás das costas. Os jihadistas dão então lugar a um grupo de jovens, aparentemente com idades entre os 10 a 15 anos. Estão armados com pistolas e a cada um é atribuído um dos 25 prisioneiros, que serão depois executados.

Neste fim-de-semana, o extremismo revelou, uma vez mais, como leva à prática de actos absolutamente hediondos. Faltam adjectivos para classificar este grau de loucura.

Do lado dos que tentam fazer frente aos extremismos, há um tema que parece unir alguns especialistas em terrorismo que se dedicam a opinar sobre o que é que os Estados – particularmente os ocidentais – devem fazer para travar ameaças como as que colocam o Estado Islâmico: o combate ideológico.

O combate ideológico não está a ser feito pelas principais potências – as que têm capacidade para travar militarmente o avanço do Estado Islâmico, por exemplo, ou de outros extremismos – escuta-se. A frase é catchy (diriam os anglo-saxónicos) e os especialistas repetem-na com preocupação.

A necessidade de se travar o combate ideológico – o terrorismo não é apenas alimentado pelo dinheiro de alguns financiadores, mas também, ou sobretudo, pelas ideias que o motivam – leva alguns autores a proporem campanhas suportadas pelas máquinas administrativas dos Estados – campanhas na comunicação social, apoio financeiro a muçulmanos que se opõem à Sharia e à osmose entre Estado e religião. É verdade que a crueldade das imagens que o Estado Islâmico vai colocando na internet potencia uma qualquer campanha contra os extremistas. A morte banalizada – sem qualquer conteúdo – não consegue justificar uma qualquer luta. Mas as palavras também contam. E nesta guerra das ideias, as mensagens contam muito. Bem como quem as tenta fazer passar.

Esta necessidade de combater a ideologia extremista fez capa, por exemplo, há quatro anos na The Economist. ‘Now, kill his dream’ (agora matem o seu sonho) escreveu a revista londrina na edição a seguir à morte de Osama Bin Laden. Mais do que a eliminação física de Bin Laden, era essencial aniquilar as ideias que a Al Qaeda parece defender.

No seguimento destas ideias, Ayaan Hirsi Ali, uma antiga deputada holandesa, escreve na mais recente edição da Foreign Affairs (Julho-Agosto 2015), que, à imagem do apoio financeiro, material e moral que Washington deu aos desalinhados do antigo bloco soviético, seria necessário uma estratégia semelhante de apoio aos muçulmanos – líderes religiosos, intelectuais – que procuram reformar o Islão por dentro. Hirsi Ali sabe do que fala. Nasceu na Somália e foi, ao longo dos anos, perdendo a fé na religião muçulmana. O Estado holandês concedeu-lhe asilo para fugir a um casamento arranjado, em 1992. Vive agora nos Estados Unidos onde expressa frequentemente as suas opiniões contra a mutilação genital feminina e o Islão. Ela parte da ideia – expressa por outros especialistas – de que falta acontecer ao Islão o processo de reforma religiosa que ocorreu na Europa, no Século XVII, e que opôs católicos e protestantes e que contribuiu para a separação formal da religião do Estado.

É difícil imaginar – como escreve aliás William McCants, antigo assessor do Departamento de Estado norte-americano na área do combate ao extremismo violento, numa resposta ao programa anti-terrorismo proposto por Hirsi Ali – que os Estados Unidos alinhem num combate que os colocará numa posição ainda mais difícil no mundo árabe. Por outro lado, o envolvimento de agentes associados a Washington no apoio a dissidentes – estudiosos do Islão ou religiosos moderados – que surjam na comunicação social propondo uma narrativa pró-ocidental pode ter consequências devastadoras para a imagem dos Estados Unidos, que seriam vistos como um Estado tomando parte numa guerra religiosa. Algo que a administração norte-americana não estará de todo inclinada a aceitar.

Independentemente das considerações geopolíticas e de um eventual envolvimento dos Estados Unidos – assuntos que pouco ou nada dizem às raparigas do Afeganistão ou às famílias dos soldados xiitas e alauitas que combatiam no exército de Bashar al-Assad –, o combate ideológico é, pois, uma necessidade crescente. Hirsi Ali teve o mérito de o procurar elevar a política de Estado.

7 Jul 2015