Plotino e a bibliotecária

Afirma Plotino, preto no branco, que nunca o olho lograria ver o sol se não contivesse, de certo modo, ele mesmo o sol. É um conceito mágico de identificação do sujeito e do objecto, de coincidentia oppositorum. A óptica confirmou este facto.

Mas, antes, a Grécia mitológica registou dois momentos em que, pelo contrário, se tramou um recuo do olhar em relação ao objecto, instaurando, uma disjunção, quer por encapsulamento onírico, quer como vinco naturalista.

O primeiro corte ocorre no episódio em que Hermes, com melífluos acordes de flauta, devolve ao sonho a última pálpebra de Argos. Argos é decapitado em virtude de a música ter produzido um curto-circuito entre a sua vontade (programada para tudo ver) e o desfrute contemplativo a que a melodia o arrastava – que, com notas e harmonias imprevistas, pregueava a suposta lisibilidade do visível. Argos não estava preparado para a abertura ao desejo, ao devaneio, e o seu olhar, enublado pelo apreço às volutas da música, começa a sentir como um estorvo a sua missão… e desata a querer descolar do que «vê» – reconduzidas as suas visões apriorísticas ao sonho.

O segundo caso teve lugar quando Perseu, pelo reflexo no escudo, surpreende Medusa de olhos fechados. Perseu, atónito por não ter sido imediatamente transformado em pedra teve um momento de dúvida e quase embarca no desvelo da promessa de harmonia que as pálpebras cerradas de Medusa desenhavam. Reagiu a tempo e antes que ela abrisse as pálpebras cortou-lhe a cabeça.

A Górgone não acolhia o olhar do outro – sem admitir o contágio, a afectação recíproca, tatuava de uma vez na retina alheia a sua cartografia para a memória. Górgone é o símbolo das imagens cristalizadas num repertório auto-centrado, imune a variações:

«Na face de Górgone opera-se um efeito de desdobramento. O voyeur é arrancado de si mesmo, destituído do seu próprio olhar, investido e como que invadido pelo da figura que o encara; (…) o que a máscara de Górgone nos permite ver, quando exerce sobre nós o seu fascínio, somos nós mesmos no além (…) a verdade do nosso próprio rosto» diz-nos Jean-Pierre Vernant. No além: no núcleo mesmo de uma radical ausência a si mesmo. Apelo da pedra, poder de morte.

Górgone representava a Hollywood do seu tempo, uma máquina de converter paisagens em moldes de produção e em receita.

Nos sonhos da Idade Média cabia ao corpo inteiro ser o próprio olho do Diabo, embora o optimista Pedro Damião acreditasse que em cada um dos cinco sentidos havia uma porta que o decoro e uma vontade férrea para rejeitar os impulsos hedonísticos podiam fechar (tempos infelizes, aqueles). Inúmeros são também os olhos que a mãe de Dante, com susto, atribui ao filho. Segundo um sonho de grávida, relatado por Boccacio, Bella vê o filho metamorfosear-se num pavão real e abrir a cauda com os seus mil olhos.

O Renascimento, ao invés, projecta-se como uma alba compadecida e avulsa, à parte de qualquer diabolização: o corpo devém senhor da imagem e a perspectiva espacial inscreve-se na medida (anatómica) do gesto. A partir daí o olho vê o que o corpo mede.

Essa transparência, na inocência que a neutralidade da perspectiva encena, anuncia o écran cinematográfico.
O século XX abriu uma nova fenda na visão pois começou por tratar a figura pelo excedente que a sua relação com outras figuras introduz. Um corpo isolado passa a ser um perjúrio. Era a reacção da pintura contra os moldes realistas e a imobilidade calcária da fotografia, atraída pelo enlace da narrativa e a inter-relação dos movimentos.

Entretanto, a “arte do raccord” reforçava a suspeita sobre a identidade unívoca das figuras, fazendo prevalecer sobre os gestos o intervalo rítmico entre eles: assim se capturaram, escondidas na ambivalência das imagens, algumas insuspeitas invariantes, uma intencionalidade não declarada.

Um filme de Tarkovski é uma rede que erra em busca do Peixe do Invisível e o tempo mana nele como as turbulências num rio ou as dobras nos panejamentos de Leonardo.

Por outro lado, a publicidade entreteve-se século XX adentro a alternar variações para a máscara de Baubó: um sexo dissimulado de rosto, ou, antes, um rosto reduzido ao gracejo de sexo, sem dar conta de que se ia favorecendo a ferocidade dos animais que se entredevoram e que com isso se aboliam as leis da hospitalidade.

Talvez se prenda aqui a razão para Blanchot nos prevenir de que todos os dias há uma coisa para não ver.
No visionamento de um filme catalão permeado pelo trabalho do luto ocorreu-me esta possibilidade: imaginemos um povo sem palavras, mas cujo olhar ritualístico, intencional, de cada geração por alguns objectos e totens, restitui, com a atenção que os seus progenitores já haviam escrutinado, a temperatura das coisas que permitem o apelo da memória, que o mundo se torne sustentável.

Só a plena vigência do olhar, confirmando o detalhe, a invisível pulsação das nervuras ou da sua geometria, na árvore ou nas pedras, as descongelaria do seu estreme esquecimento.

E, contudo, apesar de avisado, ceguei, logo ao primeiro encontro, nas badanas do labiríntico desejo da bibliotecária de olhos verdes a quem calhou ir perguntar que edições haveria de Plotino e em que línguas; grácil e voluptuosa bibliotecária que, nos meses seguintes, se revelou uma amante de um pródigo desregramento como talvez só da Cleópatro haja registo.

O meu olho está embutido na sua carne como o ar molda as vagas que se sucedem na oceânica pélvis de Deus. Coincidentia oppositorum. A óptica confirmou este facto.

27 Jan 2022

Um pioneiro chamado Blanchot

A ideia de fim – ou mesmo de fim último – fez uma alegre caminhada ao longo de milénios. Fosse nos “Livros” que se pretendiam revelatórios, fosse nos mais diversos domínios agnósticos. Na cultura contemporânea (divirto-me quando a intitulo por “mundo-pós-pós”), esse modelo linear, que liga as visões de uma origem única ao seu termo, parece hoje, no mínimo, encoberta por uma névoa bastante espessa.

Em primeiro lugar, porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede.

Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial.

A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano.

Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.

A reflexão de Blanchot é logo a seguir invadida por um vaticínio dramático, já que, com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” com a função de nos anunciar ‘a era da não palavra’ (“l´ère sans parole”). Este novo ruído passaria a ouvir-se para sempre, transformando-se num vazio que fala (“un vide qui parle”). Um vazio insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar os homens; capaz mesmo de separá-los de si mesmos e de os conduzir a labirintos ínvios e sem fim. Este “terrível” ruído, espécie de recriação da música com apelo disfórico, teria uma natureza estranha (“l´etrangeté de cette parole”) e basear-se-ia na mais pura simulação. Se parecia querer comunicar-nos qualquer coisa concreta, essa “palavra” estaria antes a convidar-nos ao nada, ou seja, ao paraíso da angústia pura, território desapossado de passado onde, como é natural, não há sequer lugar para um olhar melancólico.

Blanchot reviu nesta metáfora da ‘palavra-ruído’ algo que escaparia à intimidade e ao ânimo, como se tivesse sido criado expressamente para os operários-autómatos a que Fritz Lang deu corpo no seu magistral ‘Metropolis’. Uma “palavra” que, ao fim e ao cabo, subtrairia a humanidade ao essencial pois só sobreviveria se estivesse ligada a uma máquina. Uma “palavra” fantasmática e em forma de vírus – continuava Blanchot já no penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – que seria “essencialmente errante”, manipuladora e exterior (“toujours au-dehors”), ao contrário, por exemplo, do fulgor do monólogo interior que seria movido a partir de um centro irradiador.

Apesar de se poder hoje escarnecer desta metáfora de Blanchot, ela contém em si uma premonição interessantíssima do mundo da rede. Ao ‘actualizarmos por actualizar’, a todo o momento, removemos o que antes aconteceu e, a pouco e pouco, apagamos a memória sem sequer darmos por isso; ao entregarmo-nos minuto a minuto aos nossos terminais, prendemos a mente a esse gesto e o próprio rosto torna-se num diagrama que declina e que se assume em estado de dependência.

Relembro que este livro de Blanchot, baseado no mais puro questionamento metafórico-literário, saiu a público curiosamente na mesma altura em que, no campo da ciência, duas teorias – que viriam a ser importantes para uma história da internet – se tornaram conhecidas: a teoria dos grafos aleatórios de Paul Erdos e Alfréd Rényi e a teoria da interacção simbiótica homem-computador de Joseph Licklider. A coincidência fala por si.

Erdos, Paul e Rényi, Alfréd, ‘On Random Graphs’, Publicationes Mathematicae, Debrecen, N.6, pp. 290-297, 1959.
Licklider, Joseph, ‘Man-Computer Symbiosis’, IRE Transactions on Human Factors in Electronics, Piscataway – New Jersey, Vol.1 pp. 4-11, 1960.
11 Fev 2021

Exílios & Insílios

26/07/20

[dropcap]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; é lá a sua pátria, onde não é profeta», cunhou Blanchot em L’Écriture du désastre. Eu sublinharia: onde precisamente não é profeta. Pelo que exilados seremos todos, desde que comandados pelo devaneio e por esse incessante ofuscamento de uma cicatriz na luz. Há vezes que dolorosa, de outras encontrando uma fraternidade na fuga. Talvez seja isto a escrita: uma fraternidade na fuga. Mas há exílios e exílios.

Também o Ovídio, exilado em Tomis (na foz do Danúbio), encontrava um remédio para o seu mal-estar no sonambulismo da escrita. Trôpega, havia perdido o seu auditório e os Getas, junto dos quais estava exilado, não o compreendiam; ao cabo de uns anos sentiu que lhe encalhava o navio na língua, perdia a linguagem, secando-se-lhe a veia poética.

Os seus poucos correspondentes suspeitavam que ele exagerava nas suas lamúrias. Quando se está longe e isolado, é difícil explicar que a distância amplifica o silêncio e vai tornando irreais, migratórios, até os espaços físicos onde exercitamos a nossa ausência. A terra estrangeira, perguntava-se Robert Bolano, é ela uma realidade objectiva, geográfica, ou é antes de mais uma construção mental em movimento perpétuo?
E no entanto, soube-o Segalen como ninguém, a nossa personalidade alimenta-se de tudo o que é o seu antípoda: «É pela Diferença, e no seio do Diverso que se exalta a existência». É bem verdade, e senti que isso actuou em mim como um anzol que foi ao fundo de mim repescar a maiêutica. Contudo, que cansaço.

Neste meu afastamento intermitente tive o tempo e a oportunidade de ler textos magníficos sobre o exílio, o ensaio de Linda Lê, as observações de Edward Said, os Diários de Gombrowicz, o texto laminar de Joseph Brodsky, donde tiro este excerto certeiro:

«(…) se há algo de bom no exílio, é o facto de ensinar a humildade (…) o exílio é a lição suprema dessa virtude. E isso é especialmente precioso para um escritor porque lhe dá a perspectiva mais ampla possível.

“E avanças em humanidade”, como disse Keats. Perder-se na humanidade, na multidão – multidão? – entre bilhões; tornar-se uma agulha naquele famoso palheiro – mas uma agulha que é procurada por alguém: é disso que se trata quando falamos de exílio. (…) Mede-te não por teus pares escritores, mas pela infinidade humana: é quase tão terrível quanto a inumana. É a partir daí que deves falar e não a partir da tua inveja ou ambição.»

Chegaram-me estas notas por causa do livro que descobri hoje que o meu amigo Nazir Can havia lançado no Brasil sobre a literatura moçambicana e que se chama: O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio (Kapulana, 2020). Fiquei preso ao substantivo «insílio», cujo significado me instigava e resolvi averiguar, tendo descoberto que ganhou a armadura de um conceito muito explorado nos ensaios do sul-americano Mario Benedetti para identificar “a condição dos cidadãos que foram forçados por poderes coactivos a adotar uma atitude passiva e uma semi-impotência que os destitui de sua autonomia moral e de sua iniciativa psicológica”.

Para ter chamado a palavra à capa é porque Nazir encontrou em muitos textos essa característica, ao ponto de a desenvolver como chave e parece-me ser um achado para traduzir o indisfarçável mal-estar de grande parte da intelectualidade moçambicana, tal como aliás “a curiosa nostalgia do exílio em plena pátria” (Benedetti), muito presente no impasse que muito para além do Covid se faz sentir no quotidiano do país.

Nós não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau, dizia Mark Twain – e poderíamos citar um hábito como o medo.

Sem o ter lido, conhecendo-lhe a inteligência e a capacidade de análise suspeito que este livro estará para Moçambique como Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, esteve para Portugal, e espero que o livro se possa comprar em Maputo.

27/07/2000

A caixa com livros estava na varanda. Abria-a e o livro que estava por cima era A Festa de Babete, de Karen Blixen. Estava o frescor que acaricia as têmporas e lhes dá a agudez da atenção. Resolvi ler finalmente a História Imortal, por causa do Orson Welles (filme que nunca vi). Fui ao guarda-fato vestir um blusão e sentei-me na varanda a ler a pequena novela. Foi como visitar uma casa mobilada com biombos que o vento vai trocando de lugar. Depois disto só um iogurte de cerejas, coisa impossível de arranjar por estas bandas. Absolutamente devastador…

28/07/20

A cultura de massas é o resultado de uma arte combinatória de tudo o que já foi assimilado. As belíssimas orquestrações das canções dos Beatles ou do Elton John, em termos de linguagem da música, mais não fazem do que usar os padrões musicais conquistados pelos movimentos musicais do século XIX. Tiveram sucesso popular, depois de um século de acomodação a essa sensibilidade musical. Parecem agora simples: houve uma educação do gosto e da sensibilidade. Quem lembra hoje as resistências suscitadas pelas dissonâncias que o jazz introduzia na música?

Isto em si é normal. Grave é que para um filho da cultura de massas não exista o mundo antes de si, a memória da tradição cultural, e o presente não passe do pomar onde supostamente colhe os lucros. Daí que um destituído como Bolsonaro consiga ser presidente e possa dizer sem ser imediatamente electrocutado por raio divino que criar uma lei de combate às fake news é uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, por não entender que a liberdade não existe em abstracto e está irmanada com a responsabilidade. Não é sequer perversão ou maldade, ele não entende mesmo. Esta incapacidade de discernimento é comum a quem teve uma exclusiva educação ancorada nos “valores” da sociedade de massas, onde até o capital se converteu, antes de mais, “numa estética mercantilizada” que fez naufragar tudo numa terrível, irrevogável, indistinção.

30 Jul 2020