A Biologia do Amor

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] complexo sistema hormonal que cada um de nós possui alimenta as sensações amorosas do nosso corpo. Nós sabemos quando estamos com tesão, apaixonados ou enamorados porque interpretamos os sinais ao nosso redor, ao mesmo tempo que interpretamos os sinais do nosso próprio corpo e mente. Há quem vá ainda mais longe para perceber estes sistemas que nos sustentam, ao ponto de explorar estas normais palpitações corpóreas para um mapeamento mais fidedigno do amor – da sua biologia, fisiologia e anatomia.

Há neurocientistas por todo o planeta a perceber como é que o cérebro trabalha quando se apaixona ou quando se ama. Porque queremos perceber melhor estes processos? Porque assim podemos trabalhar com as melhores estratégias para garantir (escolher) um bom parceiro e assim investir num relacionamento duradouro e feliz. A investigação está tão avançada que já sabemos bastante acerca das zonas cerebrais que são activadas quando estamos apaixonados; conseguimos explorar o comportamento sexual e as suas bases inatas – ou as suas tendências evolutivas – e tenta-se perceber porque é que o amor acontece, se não é o cupido a lançar umas setas pr’áli e pr’acolá, que raio se passa então? Todas estas tentativas de desmanchar estes mecanismos poderiam desfazer a magia do amor romântico mas, lá por sabermos a receita do melhor bolo de chocolate do mundo, não quer dizer que vamos deixar de ter prazer em comê-lo.

Contudo, esta visão atomista do amor – que é feita de mecanismos e processos cerebrais – mostra-nos uma realidade descontextualizada do mundo vivido. Por isso é que uma das mais conhecidas investigadoras na área do amor e das neurociências, Helen Fisher, é uma optimista acerca da história do amor e do seu futuro. Eu cá aconselho muita cautela nestas interpretações. Não só porque sou uma pessimista, mas porque não conseguiria funcionar sem uma representação do mundo complicado em que vivemos.

Será que o amor se manteve o mesmo ao longo de tantos de existência da nossa espécie? Que são entre 200.000 e 100.000 anos? Eu diria que não. O amor, que é uma forma tão inata de ser, de estar e de cuidar, por mais natural que possa parecer, não é totalmente reproduzida de geração em geração. O sexo, que também é daquelas necessidades biológicas básicas das nossas vidas, também não se manteve o mesmo na nossa espécie. Estas necessidades levam uma roupagem cultural e social que lhe conferem variabilidade e imensa criatividade – que é trabalhada e transformada em conjunto.

Por exemplo, quando alguém me vem dizer que o amor em nada se alterará mesmo que as nossas artes de sedução se tenham alterado drasticamente (e aqui estou a pensar nos auxiliares tecnológicos), porque os mecanismos do amor (no cérebro) são sempre os mesmos… Eu pergunto-me: exactamente como? Quando é que nos limitamos a sentir o corpo como um ditador de funções e não ouvimos as nossas complicadas cabecinhas acerca de quem somos, onde estamos, para onde queremos ir ou do que é que estamos rodeados?

Por mais que se queira reduzir o amor a um processo neuro-cognitivo eu não deixo de pensar no conteúdo deste processo que é muitas vezes ignorado (e dado como redundante) nestas perspectivas mais neurológicas. Não estou de todo a julgar o ser humano como umas tabulas rasas do sexo e do amor e a pensar-nos totalmente permeáveis a tudo o que acontece à nossa volta. Nada disso! O amor há-de ter uma essência semi-universal para a forma como nos relacionamos e criamos laços vinculativos com os nossos parceiros românticos e amantes. Mas que as formas de expressão são mais que muitas, disso não tenho dúvidas nenhumas. O sexo transforma-se não só naquilo que precisamos, mas naquilo que desejamos que o sexo seja – e o amor também.

12 Jul 2017

Sexo a longo-prazo

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando um casal já tem muitos anos de convivência, o sexo vai sofrendo algumas alterações. Se no início da relação o sexo é gozado durante horas e com frequência, quando uma relação já tem uns anos, é normal que a frequência sexual se reduza. São nestes momentos que comuns mortais tendem a debruçar-se acerca do segredo para um relacionamento duradouro e uma vida sexual feliz. Há livros, filmes e conversas que tentam auxiliar na (re)descoberta do sexo quando o casamento já tem mais do que 30 anos.

A reflexão pode ser geracional, social, relacional ou familiar: há várias formas de olharmos este caleidoscópio dos relacionamentos duradouros e do sexo. Podem pensar no envelhecimento, e na tendência de se julgar que o sexo deve ser gozado por um grupo etário somente. Podem pensar nas dinâmicas familiares e na vinda de uma criança, que afecta o estilo de vida e a disponibilidade para nos sentirmos sexy e querermos mais e bom sexo.

A Esther Perel, no seu livro que se intitula ‘Mating in Captivity’ – versão Brasileira ‘Sexo no Cativeiro’/versão Portuguesa ‘Amor e Desejo na Relação Conjugal’ – tenta ir mais além ao explorar o paradoxo do amor e do sexo. A proposta vai contra a forma que normalmente achamos que o amor e o sexo se relacionam. O amor e o sexo não são necessariamente duas faces da mesma moeda, são duas necessidades relacionais, sim, que apesar de estarem interligadas, precisam de um equilíbrio que tem que ser trabalhado – como um malabarista. Se o amor vive da intimidade e da familiaridade, o sexo vive da descoberta, do entusiasmo e do imprevisível. A proposta para manter um relacionamento saudável é de manter vivo o paradoxo de que a intimidade e a paixão não são resolúveis, e que fazem parte de uma aventura que tem que ser abraçada.

Aviso-vos de antemão que o erotismo e a intimidade não conseguem sobreviver com base em ‘prescrições’. Ou seja: a razão pela qual não é possível arranjar soluções fáceis e práticas para o paradoxo intimidade/erotismo é porque nem uma, nem outra, pode ser facilmente resolvida. A intimidade não se desenvolve porque se tem uma conversa sobre isso, nem o erotismo é fabricado. Não que queira desvalorizar o nossos esforços de manter uma relação íntima e erótica, porque eles são válidos (e.g. fazer jantares românticos semanais, falar sobre fantasias sexuais e tentar concretizá-las, etc.), mas um relacionamento é feito a dois, com as nossas emoções, desejos e dificuldades, que complica a dinâmica. O que precisamos de ter em mente é que a aventura tem que ser tida como uma aventura, e não como um problema a ser eficazmente resolvido. Isto sugere que o modus operandi de qualquer relacionamento é exactamente este – tentar lidar/articular ideias e desejos totalmente opostos.

Mas a Esther, no livro supracitado, sugere uma forma de abordar a questão. Visto que temos dois valores em conflito, a familiaridade/intimidade versus o desconhecido/excitante, ela sugere que por mais próximos que nos sintamos com o nosso parceiro, temos que manter algo (um estado de ser) que também seja só nosso. O casal não pode ser uma amalgama sobreposta e única. Em culturas mais individualizadas, diz a Esther, é preciso criar limites do ‘nós’, do ‘eu’ e do ‘tu’ para que o casal funcione. O que é que isto quer dizer na prática é muito mais complexo do que isso, mas é assim explicado no abstracto: para que o sexo e os sentimentos eróticos ainda estejam a ‘bombar’ após 30 anos de convivência é preciso manter um estado descomplicado individual, para além do casal. Assim o sexo é alimentado pelo nosso sentido de mistério/individualidade e melhorado pela nossa proximidade como casal.

Não consigo fazer justiça aos conceitos e ideias explorados pela Esther Perel em tão curto espaço de escrita, mas queria convidar o leitor a reflectir sobre esta dinâmica da relação conjugal  e a procurar maior teorização acerca do que somos como pessoas e como parelha (ou família poliamorosa, como quiserem). A sujeita também tem muitas palestras online para melhor reflectir acerca do relacionamento – e de que formas podemos redefini-lo e entendê-lo. Mas também sugiro cautela, porque quando opinamos sobre determinado tópico, fazemo-lo com base num registo/referência sócio-cultural que não se aplica a todos. Mas no que toca ao amor e ao prazer do sexo, do que custa reflectir?

20 Jun 2017

Mais Amor

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á não é a primeira vez que me debruço sobre a temática do amor, e muito provavelmente não será a última. O amor sustenta as complicadas relações humanas, não fossem estas necessárias para a nossa sobrevivência. Digo isto porque nós, seres humanos, para além de dotados de uma cognição individual, somos parte de um colectivo material e imaginário que cria e recria os nossos significados e conteúdos que mantêm a nossa espécie – graças às nossas capacidades relacionais. Por seu turno, o amor romântico é a tentativa supra-relevadora de levar os nossos significados, facilidades ou dificuldades a uma interacção a dois. Imaginem-se a dançar um tango em contexto de competição sem nunca sequer ter tido aulas de dança! Acho que os relacionamentos românticos podem partilhar um misto de excitação e de nervoso miudinho, ao mesmo tempo que percebemos que não sabemos o que raio estamos a fazer, nem com o amor, nem com as pessoas que amamos. Mas quando percebemos e começamos a afinar algumas das aprendizagens… então aí o amor consegue transportar os relacionamentos humanos ainda mais além do espaço e do tempo, e de uma forma ainda mais intensa.

Uma coisa que já reparei é que ninguém ensina ninguém sobre o amor e sobre o quão difícil os relacionamentos podem ser. Por isso é que esta semana me disponho a tomar essa posição explícita: o amor não é fácil. Não é fácil de encontrar e também não é fácil de ser mantido no tempo, com as mesmas formas e características. O amor está sempre em mutação, seja porque é uma representação social (da sociedade) sempre sujeita a vectores discursivos ou seja porque cada um vive (percebe) o amor à sua maneira e depois tenta fazer sentido em conjunto, com um parceiro. Talvez porque o amor é daquelas invenções humanas que nunca esteve destinado a ficar-se por um estado estático e aborrecido.

Iniciado o mote, gostaria de alertar que o objectivo não é assustar ninguém acerca da exequibilidade do relacionamento amoroso, porque disso não tenho dúvidas que seja possível. Contudo, acredito para que de facto isso aconteça é preciso trabalho, trabalho, disponibilidade, disponibilidade, este mantra sucessivo, esta lenga-lenga interna de que são necessários alguns cuidados para que as coisas possam funcionar.

Tudo o resto nos diz que o amor é mágico, maravilhoso e fácil. As pessoas conhecem-se, dão-se muito bem, querem-se muito ou precisam-se muito e embarcam numa aventura amorosa et voilá! Mas temos que reforçar que nem mesmo um perfeito fit inicial pode ser um preditor de um relacionamento para a vida… Vão sempre acontecer percalços, que serão mais do que supérfluos, vão ser profundos. Ao relacionamento trazemos as nossas características positivas, mas também levamos a nossa bagagem emocional, fruto de experiências pouco agradáveis, mas que tentam  formatar as nossas cabeças para lidar com os outros. O amor nasce, por isso, de uma aprendizagem pela intimidade e cumplicidade que se acompanha dos nossos medos. Estas são dificuldades relacionais e emocionais que todo o mundo tem. Garanto-vos que não há homo sapiens neste planeta que esteja limpo de problemazinhos que afecta a forma como nos vemos e vemos os outros.

Eu gostava que me tivessem dito isso, que os nossos problemas e complicações voltam sempre, mesmo que tenhamos conhecido o parceiro das nossas vidas.  E que aprender a lidar com estas coisas faz simplesmente parte do processo e não há mal nenhum nisso. Mas é preciso que as expectativas em relação ao amor romântico estejam adequadas. O amor não nos salva de estarmos sozinhos, ou de todos os males que nos assolam, mas ensina-nos a estar em conjunto e em parelha.

Desde que consigam manter a lenga-lenga de que um relacionamento romântico e sério exige trabalho e suor, posso dar-me por satisfeita. Porque precisamos sempre de mais amor, o amor nunca está de menos. Mas saber lidar com ele é como domar uma fera que só conhece a excitação dos espectáculos de circo e que agora lida com o mundano, com o quotidiano, e com as dificuldades emocionais de cada um. O amor que nos traz o êxtase, também nos traz insegurança e é esse o desafio que temos que aprender a ultrapassar. Precisamos sempre de mais amor, e depende de ti adicioná-lo. Aqui e ali, e no mundo.

6 Jun 2017

Maria Helena do Carmo, escritora: “São todas histórias de ‘filhas’ minhas”

Maria Helena do Carmo está em Macau para apresentar o seu sétimo livro. “Estórias de Amor em Macau” reúne doze contos sobre mulheres e percorre quatro séculos de história do território. Ao HM falou do trajecto até à escrita de romances históricos e do livro que vai ser apresentado a 18 de Abril no Instituto Internacional de Macau

Começou por trabalhar em rádio. Como foi o trajecto até chegar à literatura?

Foi a própria evolução da vida. Fui para a rádio quando estava em Goa. Era estudante e tive um convite para participar num programa porque o meu português não tinha sotaque. Fiquei a participar em programas infantis porque só tinha 15 anos. Depois entrei como locutora, a tempo inteiro, na emissora oficial de Goa aos 18 anos. Saí quando teve de ser, refugiada como todas as senhoras em Dezembro de 1961. Continuei esse trabalho em Angola até que resolvi continuar a estudar. As minhas habilitações literárias tinham ficado em Goa e não tinha nada que comprovasse os meus créditos literários. Comecei a fazer o 7º ano por disciplinas e acabei por continuar os estudos. Fui locutora até ao meu segundo casamento e, a partir daí é que enveredei pelo ensino de história.  A vida de locutora em que não se tem horários não se coadunava com a vida familiar. Acabei no ensino que está ligado à comunicação. Um professor também é um actor num palco e fui professora até à reforma. Depois tinha de continuar a comunicar e a forma que encontrei para o fazer foi através da escrita.

Porquê o romance histórico?

Porque são factos verídicos. Prefiro sempre situações da vida real do que a ficção e o romance histórico tem um fundo verdadeiro, apesar de, por vezes, ser ficcionado, mas é sempre baseado numa história que existiu.

Depois de Goa, Angola e mesmo Moçambique, como é que apareceu Macau?

O meu marido veio para cá trabalhar e as mulheres vão sempre atrás dos maridos. Ainda hoje não são elas que dizem que vão trabalhar para fora. Nessa altura já a lei permitia que as mulheres que viessem e tivessem o seu emprego poderiam continuara  trabalhar aqui. Fui professora de história, mas como não preenchia o horário tinha de dar desenvolvimento pessoal e social. Considero-me uma cidadã do mundo. Nasci na Madeira, fui para o continente muito pequena, aos doze anos fui para a Índia, fui para Angola, Moçambique e regressei a Angola. Todos eles me agradaram e por minha vontade teria ficado em cada um deles para sempre. No fundo, fui obrigada pelas circunstâncias, pela política e pelas guerras a ter de mudar de vida e a ter de me adaptar a novas situações.

A escrita acerca de Macau começou com a tese de mestrado, “Os Interesses dos Portugueses em Macau na primeira Metade do Século XVIII”. A partir daí, e já no romance, Macau continuou a ser o cenário. Alguma razão especial?

Quando vim para Macau consegui aqui fazer muita pesquisa. Ia muitas tardes para o arquivo histórico e com os documentos que recolhia fui tendo pistas para trabalhos futuros. Também gostei sempre do oriente e ao estudar a história de Macau fiquei fascinada com determinadas situações e incongruências. Há gestos e atitudes que têm uma grande diferença entre o ocidente e o oriente. Senti-me bem em Macau e tinha material para escrever. O primeiro livro que fiz foi a partir do projecto para a universidade. Verifiquei que o trabalho tinha alguns erros, por ter sido influenciada por autores que não estavam correctos, e quando fui aos documentos é que os verifiquei. Foi quando escrevia o meu primeiro romance, “Uma Aristocrata Portuguesa no Macau do Século XVII – Nhónha Catarina de Noronha”. Escolhi esta personagem por se destacar. Naquela altura, não era fácil para uma mulher viajar. Viajavam as escravas porque não eram ninguém. O facto de ela ter ido para Timor e ter regressado sozinha com a filha foi uma atitude que me encheu de admiração e por isso tentei aprofundar a sua vida. Foi assim que nasceu o livro.

Todos os seus livros se debruçam sobre uma personagem histórica. No “Estórias de Amor em Macau” temos doze. Porquê esta opção?

Foi por acaso. Já me tinham dito que deveria escrever contos por serem mais sucintos e interessantes. Nunca fui muito por aí porque quando pego numa personagem tenho tanta coisa para dizer que não estava a ver reduzida uma história a um conto. Uma vez, em conversa com o meu ex-orientador, ele sugeriu-me que pegasse no Tomé Pires e fazer a história da filha dele, Inês de Leiria, que o Fernão Mendes Pinto encontrou na China. Eu concordei e recordei que quando li a peregrinação também achei o facto curioso. Fiz um conto porque achei que a matéria não dava para fazer um romance. Depois de fazer um, surgiram outros. A seguir apareceu um conto a pedido do Instituto Internacional de Macau para uma revista. Havia uma história de uma menina, a “Menina Mulher”, deste livro, que me impressionou. Era uma menina de 15 anos que morreu a dar à luz. Já tinha dois contos, porque não fazer um terceiro? Numa vinda a Macau visitei o Museu da Santa Casa da Misericórdia. Vi o retrato da Marta  Merop e fui ler o livro. Sintetizei a história e fiz um conto, o “Serva, Senhora”. Trata-se de uma menina que foi posta à porta da igreja de S, Domingos. Foi recolhida por uma madre que a levou para o colégio. Teve uma história atribulada mas acabou por ser amada e por ser tornar  a mulher mais rica de Macau na altura.

Que histórias salienta?

Para mim são todas histórias de “filhas” minhas. Umas escolhi pela época em que viveram e outras por se terem salientado.

São só mulheres. Uma forma de as tirar da sombra?

São mulheres com os respectivos amores. A descriminação aqui na China ainda é mais evidente. Os pais gostam todos de ter meninos mais do que meninas e, até há pouco tempo, eram mesmo rejeitadas. Depois a mulher sempre esteve, de facto, em segundo plano. Aliás, logo no início deste livro tenho este verso feito por mim: “Na China permanece o velho ditado: as mulheres sustentam metade do céu. Os homens brilham no espaço estrelado. Elas ocupam o negro desse extenso véu”. Geralmente os homens é que brilham e as mulheres estão sempre delegadas para um outro plano. Sinto desde miúda que o homem é a pessoa importante, é ele o chefe de família. A mulher dependia da sorte: do marido que tinha ou do pai.

É também um livro que acompanha cerca de quatro séculos da história local. 

Sim. Começa desde o tempo de Tomé Pires e vai até à transferência de administração. Acompanha a evolução de Macau nos aspectos económico, político e social. O social foi, sempre o mais difícil até ao século XX. O sector económico começou a registar mudanças quando o território deixou de viver só do comércio para passar a viver de outras actividades com o aparecimento de fábricas como a de panchões, de vestuário e de brinquedos. Acompanha ainda a própria orgânica política. No início, era o capitão das viagens que mandava até termos um governador. Este livro tem um conto do séc. XVI, dois do XVII, três do XVIII, três do XIX e três do XX. Abarca a evolução do território ao longo destes quatro séculos, do espaço físico e das suas gentes. De uma forma sucinta temos o evoluir de uma cidade e foi isso que mais me entusiasmou.

Como é que é este processo de ficcionar a história?

Se não vivemos na época e não conhecemos a vida da pessoa, temos de a imaginar. Isso acontece de acordo com o quadro em que se vivia. Temos de imaginar a mentalidade e os costumes e descrevê-los de acordo com o que terá acontecido a uma ou outra pessoa. Estou a pensar por exemplo, na Harriett Low, uma americana que chegou a Macau no principio do séc. XIX. Solteira e livre mas era mulher e, por isso, teve os seus problemas. Sofreu da maledicência de muitas pessoas que a criticavam e foi uma figura também importante. Teve um amor não correspondido apesar de ser uma pessoa de quem se gostava por ser invulgar. Mas neste livro também temos o amor ao próximo. Sobretudo o da madre Teresinha. Esteve cá numa época em que existiam muitos casos de cólera e de febre tifóide, numa economia em mudança. Já havia liceu e algum progresso em determinados aspectos mas a acção social ainda era muito precária. Não existia assistência às crianças e aos inválidos. A madre Teresinha teve uma acção tão importante que tem uma rua com o seu nome. Mereceu ser destacada nesse amor ao próximo.

Tem tido livros publicados em Portugal. Considera que a literatura com ligação a Macau chega ao público português? 

Consegue chegar a um determinado público. A maioria da população, hoje em dia, não é de leituras. A televisão veio roubar muito o hábito da leitura, à noite, na mesa de cabeceira. A televisão apoderou-se de um espaço e de um tempo que era dedicado à leitura. Por outro lado, os jovens gostam mais de brincar com aparelhos electrónicos e a literatura não os entusiasma muito. Se não há publico para as coisas do oriente também não há para as outras. Acho mesmo que o facto de existirem livros que tratam do oriente atrai muita gente porque é diferente e exótico. Fiz dois livros com a Chiado Editora e o facto de não serem muito vendidos, além de a época ter sido economicamente difícil, teve muito que ver com a falta de promoção. Mas acho que esse não é um problema da Chiado, mas sim de uma situação transversal a todas as editoras que depois se reflecte nas vendas.

Vamos ter mais livros sobre o território?

Macau é uma possibilidade  de voltar a ser o cenário de mais livros. Já fiz o séc. XVII, XVIII e XIX. Falta me o XX.

13 Abr 2017

O namoro dos solteiros

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e uma coluna dedicada ao sexo se esquece de escrever sobre o namoro em plena semana de dia de namorados… dá que desiludir. Em vez de reflectir sobre o namoro, saiu-me sobre a prostituição! Não deixa de ser um tema relevante para o dia dos namorados também, mas algo irónico que tenha sido publicado no dia dos amores  uma perspectiva sobre a instrumentalização sexual. O amor vem depois.

Claro que o dia dos namorados pode dizer mais a uns que outros, depende da vossa propensão para celebrar festividades que justificam a compra de prendas ou organização  de pequenas surpresas. O Natal é todos os dias, o dia dos namorados é todos os dias, já bem sabemos. Mas parece que há uma tendência para haver cada vez mais dias mundiais de qualquer coisa para, enfim, pensarmos em certos produtos, práticas ou desgraças. O namoro foi no dia 14, por isso, pronto, ok, tudo bem, vou pensar nisso! Não fosse o dia dos namorados (por mais céptica que fosse) um dia um tanto ao quanto causador de ansiedade durante a minha adolescência. Não, eu não recebia milhares de cartas de amor, nem me eram entregues poemas de admiradores anónimos, muito menos tinha milhares de namorados por onde escolher. O dia dos namorados era vivido como uma desgraça social e uma conquista pessoal por estar ‘parcialmente’ nas tintas.

Na minha adorável adolescência (note-se que adorável está carregada de puro sarcasmo, nenhuma adolescência é adorável) eu construi uma ideia de namoro que permitia tornar séria a ideia de compromisso. Se se gostava ‘mais ou menos’ de pessoas, o namoro parecia a última escolha possível. As outras opções são amizades coloridas, as curtes ou as brincadeiras sem compromissos. O namoro, na minha cabecinha pré-adulta era uma coisa séria, nada tinha que ver com corações e rosas a serem oferecidas no dia 14 de Fevereiro. Muito maduro da minha parte, não é? À primeira vista, até parece que sim, mas era muito fácil cair em assumpções de que a seriedade nada tinha que ver com nada. Pois, na verdade, era a minha impossibilidade de conseguir um namorado que justificava a ausência de companhia amorosa, e pronto.

Será que isto vos soa familiar? O dilema amoroso que vagueia entre ‘a pessoa ideal ainda não apareceu’ e ‘a culpa é minha se eu não consigo encontrar ninguém’? A verdade é que a procura amorosa vive deste equilíbrio mesmo (nunca das extremidades), entre ter a sorte de encontrar alguém e estar disponível para receber alguém. Contudo, e infelizmente, vivemos numa sociedade que de alguma forma ou de outra nos pressiona a sermos não-solteiros. Não ter um namorado, uma esposa, uma companhia para o agora (já nem digo para a vida, porque bem sabemos que nada é para a sempre) é problematizado, como se tivéssemos uma deficiência relacional qualquer. Pois guess what? Não vivemos numa sociedade muito cooperante de qualquer forma, cada vez somos mais individualistas e senhores do nosso umbigo (ai que tragédia que é sermos responsáveis por outros seres humanos!). Por isso é muito natural que ter um relacionamento não seja a prioridade número 1 de muitas gentes por esse mundo fora.

Acontece que o dia dos namorados relembra-nos que estamos/somos solteiros e isso aparentemente pode ser mau, mas não se apoquentem. As iniciativas por uma vida solteira com dignidade são mais que muitas. E existem soluções provisórias para não nos termos que nos preocupar com as desnecessárias pressões para arranjar uma cara metade, por alguma razão que há agora namorados de aluguer para enganar os pais no ano novo chinês. Ou existem websites onde procuramos desde o amor até alguém com quem possamos divertirmo-nos. O amor, o desamor e a solteirice acontece todos os dias de formas diversas e complexas. Corajoso de quem vive a sua intimidade e preferência, mesmo no dia dos namorados.

21 Fev 2017

À procura de refúgio

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ada um de nós, em alguma altura das nossas vidas, precisou de refúgio. O pedido de asilo – o pedido de ajuda – seja por razões socio-políticas, geográficas ou simplesmente emocionais, é um acto de coragem por si só, porque ninguém gosta muito de se mostrar vulnerável. O refúgio dá-nos casa, conforto e segurança, onde podemos ser aquilo que queremos ser – aquilo que verdadeiramente somos.

Nestas coisas do sexo, o refúgio é um lugar importante para as múltiplas identidades sexuais. Vivemos em sociedades de conservadorismo sexual com alguns laivos de progresso e onde identidades e práticas ‘diferentes’ são vistas de lado. Se procurarem em humansexmap.com vão ver como cada um de nós tem grupos de pertença de acordo com aquilo que gosta (por mais estranha a actividade vos pareça), criando então um mundo de fantasias onde há espaço para todas e todos, com todas as suas manias.

Se no sexo há espaço para tudo, no mundo também deveria haver espaço para todos. A questão dos refugiados que está neste momento tão em voga pode não ter que ver directamente com sexo, mas certamente que tem implicações. Fala-se sobre questões de direitos humanos, de protecção, de cuidado dos que mais necessitam, misturando variáveis como religião, género ou idade. Se a crise dos refugiados que a Europa agora enfrenta (sobre a qual se comporta vergonhosamente) parece um assunto distante e incompreensível, tentem pensar nas vossas vidas, nas vossas necessidades diárias de amor, carinho, sexo ou simplesmente, condições de higiene básicas. Fazem falta a todos. Pior será perceber que esta crise tem alimentado esquemas de tráfico humano que exploram as mulheres e crianças que vieram à procura de um lugar sem guerra – um refúgio. Os testemunhos de quem passou por campos de refugiados contam histórias de mulheres a serem violadas, de partos mal acompanhados ou de cesarianas onde o período de pós-operatório é no chão, ali mesmo, onde têm que dormir todos os dias acompanhadas de terra e às vezes lama.

A procura por um refúgio é um direito universal, ainda que teoricamente. Temos uma história onde (em retrospectiva) aprendemos que temos que salvar os justos e castigar os monstros e o refúgio é um lugar de direito, onde algo como a solidariedade pode ser praticada (esse raro acto de altruísmo!). Mas se for verdade o que um grande amigo e professor sugeriu, o sexo é um reflexo de quem verdadeiramente somos. Assim podemos perceber se somos altruístas, possessivos, brincalhões, sérios ou simplesmente aborrecidos em pleno acto, revelando a nossa ‘essência’. Para além do coito ter o potencial de ser um puro acto de amor e o amor estar inerente à condição humana. A ausência do amor, contudo, em assuntos como este, de alta preocupação internacional, continua a deixar-me perplexa (muito porque eu sou o fruto de manias hippies nascidas há 60 anos atrás). Falta amor no dia-a-dia.

Decidi, por isso, que esta verborreia semanal teria que vir a exigir um refúgio, pelos refugiados de anos e anos que precisam de espaços de segurança e que insistem em não aparecer. Precisava deste exercício de vocalização pela insatisfação ao mundo, pela ignorância do sexo, pela ignorância do que é experiência do outro e pelo contínuo desentendimento do que é solidariedade ou amor. Um refúgio, caramba, será assim tão difícil de o criar? Refúgios que não sejam tendas encafuadas sem condições, mas um porto seguro de gentes hospitaleiras.

Mas nem sempre é claro saber o que podemos nós fazer. Eu vivo no verdadeiro tormento de não perceber como. Contudo, se formos relembrados que as fronteiras são ténues e que quem as reforça somos nós, até pelo comum mortal que vai para o trabalho todos os dias e que se sente despojado de qualquer capacidade de controlo. Sim, somos nós que criamos as fronteiras do sexo, que criamos pré-conceitos sobre o outro e que os confirmamos, cegamente, com as notícias, com o que se fala no café, com o que se fala entre amigos. Temos direito a um refúgio e o dever de o criá-lo.

18 Out 2016

Ensaio sobre o lugar

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste seria o momento em que, à luz daquela estética dos salões do século dezanove, os cavalheiros se retiravam com os seus conhaques e os seus whiskies, para falar dos assuntos sérios da cousa pública, deixando as senhoras libertas, para repôr um pouco de pó de arroz no rosto, e partilhar a dimensão do comezinho da via privada. Os desconfortos dos dias difíceis do mês ou os mistérios da mudança de idade. Receitas da vida e também da dos outros. Os assuntos domésticos e os do amor. Tudo muito filtrado, muito metafórico, muito cheio de alusões e reticências, e muito púdico, a fazer medrar nas mais jovens neste ambiente de gineceu, aquela curiosa qualidade mítica para muitos, atávica, senão mesmo estruturalmente ancorada no código genético, que é a intuição. Feminina. Mas este seria um outro tópico de conversa.

Do amor, poderia dizer que é como um hotel de cinco estrelas. É preciso um bom lugar, mas também bons costumers. Como juntar matérias inflamáveis e uma boa dose de piromania. E pega fogo em combustão espontânea. Mas, diria antes: é como um hotel de charme. Actores, cenários e palco, produção atenta, uma realização sensível. Para além de uma espécie de moral estética que induziria no erro de se esperar a teatralização do sentir, há o fascínio real do estar. Gostar de estar, indissociável do gostar de se ver estar. Não, no meu ponto de vista como atitude narcísica, mas como reflexo de estar no lugar certo do mundo. No amor há o fenómeno do espelho. Há a necessidade de identificação com o caracter desenhado no olhar do outro. Com o lugar. Os actores gostam de se ver no papel, ou não. Um bom amante seria então simultaneamente um bom lugar e um bom hóspede.

Descer a rua. Uma rua das muitas que levam ao rio. Lugar, antigamente de chegadas e partidas. De marinheiros. Ao lado direito, antes de desembocar na margem, e um pouco desnivelado aquele toldo com nuvens a sombrear o pavimento em mosaicos de arabescos azuis, evocativos de um médio oriente onde a sabedoria ainda protege do calor tórrido sem recursos contra a natureza das estações. Um desvão, pequeno e sombrio relativamente à rua, tanto quanto o sol ainda a escaldar, faz desejar um abrigo. Mesas redondas num amarelado de fórmica debruada a latão, e cadeiras que arredondam nas costas, convidativas ao repouso de toda a coluna em paz. O entrançado numa matéria colorida e variados matizes, como se nelas, entretecidos nas cores, se misturassem tempos, memórias e paradigmas apetecidos. Tudo de um outro tempo, de facto. E é aí que quero estar. Mas primeiro à beira- rio, amigos esperam-me num lugar mais juvenil, impessoal, amplo. Deixei para trás aquele vislumbre de interiores voluptuosos e entorpecentes, para além das janelas de guilhotina, mistura de cores aveludadas e tactilmente apetecíveis, veludos azuis ou tintos como o vinho, sedas ocre dourado, um barroco aconchegante, em contrastes semi-exóticos. Objectos confortáveis do passado, sofás e poltronas macias, quebra-luzes époque, imagens e esculturas românticas. Pensei. Tenho um encontro para mais tarde. Marquei-o ali mesmo. Por agora, esperam-me mais abaixo.

Depois volto a subir a rua. Do outro lado da estrada, a memória de um enorme grafismo rigoroso, meses atrás, no prédio devoluto, que dizia: ± SILÊNCIO ±. Como se a cidade falasse comigo por enigmas. O céu de um azul prússia, intenso embora já a escurecer, naquele dilema entre uma luminosidade feérica e fortemente colorida, e a noite quase, quase a instalar-se de vez. Mas é, perto do rio, um momento que se prolonga num resplendor estóico, resistindo às luzes da cidade ainda, e competindo com elas. Espreito de novo aquele cenário em desvão, os mosaicos, as três mesas e as cadeiras coloridas e, surpreendentemente, uma única ocupada por um grupo. Desço, contente com o inesperado sossego em contraponto ao exterior, para o meu encontro e sento-me na mais distante. Um pouco mais tarde uma rapariga tão silenciosa como eu sentou-se na do meio. E, abalado o grupo conversador, um homem ocupou a primeira mesa. Ficou tudo certo, sereno e bem. Os três em linha, quietos, silenciosos e ensimesmados. A música, no volume certo, entre um estilo pop de fusão, aquelas coisas difíceis de situar, uns blues a ressoar talvez a Nova Orleães, e outras fusões um pouco lounge que não reconheço. Entendi contudo uma mão de mestre na articulação progressiva de sons, numa espécie de viajem nas horas…

A mesa para dois, livre. E pareceu-me perfeito. Sentei-me só, e pensei na importância daquela outra cadeira ali, precisamente para lembrar que não era uma cadeira com o vazio de alguém mas uma simples cadeira em si. Um lugar. Não o espaço preenchido de uma ausência. Uma espécie de nada por oposição ao vazio. Um lugar, é isso. E, como qualquer lugar, uma entidade suficiente em si. Sem a necessidade de ser validado como lugar de algo ou alguém. O lugar puro. E eu nunca trago para um encontro destes alguém à revelia da sua vontade ou consciência. Tento. Nem memórias nem sonhos. Sequer os meus anjos têm lugar nestes encontros. Comigo só, mas inteiramente só em mim e não, como relativamente à cadeira, só, pela ausência de alguém. Só pela natural solidão imanente da matéria. Só, naturalmente e sem a veemente ausência de outrem. Esta é uma disposição que me ajuda a situar, mesmo para me lembrar de que, tal como não sou uma daquelas pessoas que preferem os bichos às pessoas – eu que os adoro – não finjo que não gosto da sua presença. Ou prefiro, às vezes. Mas tento não transportar a sua falta. O problema das pessoas, é serem afectadas. Literalmente. Afectadas pela vida, as inseguranças, as megalomanias, as mágoas, as frustrações. E sobretudo os medos. E que se deixam envelhecer mais do que os bichos e sobretudo, que se deixam estragar mais do que eles. Transcendendo em muito os incontornáveis limites da biologia.

Nunca falho estes encontros. Já falhei outros, embora nunca pela acção voluntária da minha vontade, passe a redundância. Este é também um dos verdadeiros encontros a dois. O de uma pessoa, com a não ausência da outra. De uma certa forma, uma ausência a que se nega a imperatividade e a extensão. A que não se permite a presença. Sim. Há encontros perfeitos. Aqueles que preenchem de uma forma densa e sem margens ou folgas um pedaço, seja de que dimensão fôr, de existência. Não porque nos façam felizes, mas porque são absolutamente justos, verdadeiros e confortáveis. O que é bom. Verdadeiros mas talvez não reais. Vistos de outro ângulo.

Há outros encontros, esses realmente perfeitos. Com o outro, que não eu. Mas tão raros. Pode-se passar uma vida ao lado da possibilidade de um. Por falta de jeito, de charme, de segurança, de vista. E esperar. Que as probabilidades, no seu cálculo imperscrutável, não forjem o encontro no dia seguinte àquele em que já lá não estaríamos.

Encontros daqueles a que não se vê o fim. E o homem é raro na perfeição, por isso deve estar sempre em guarda. Circunscritos num pedaço de eternidade. Mesmo quando esta se desfaz logo a seguir. E a que não se admite a presença de terceiros. E, de entre os mais temíveis intrusos, o tempo, a distância, o esquecimento, ou o desencontro, é o medo aquele cuja manifestação se revela verdadeiramente terrível. E quando isso acontece, quase impossível de erradicar.

Suponho que é a esta hecatombe, que Alain Badiou se refere com o seu conceito de “encontro”, como uma grandiosa descoberta do outro e de si: “For it to be a genuine encounter, we must always be able to assume that it is the beginning of a possible adventure. You cannot demand an insurance contract with whomever it is that you have encountered. Since the encounter is incalculable, if you try to reduce this insecurity then you destroy the encounter itself, that is to say, accepting someone entering into your life as a complete person.”

Mergulhar nas revelações sem lei. A nudez das palavras à mistura com os beijos. Que são um extraordinário lugar físico para as palavras. O tempo anacrónico. E nunca o medo.

Mas é tão perigoso isso. Tive uma amizade durante dezassete anos, pessoa singularmente amoral, ou até imoral, com quem tinha uma média de largas horas semanais ao telefone. Em que trocámos bárbaras confidências. Um dia. Uma única palavra. E acabou subitamente. Ela ofendida com um disparate que transcendeu, ocultou ou ofuscou os milhares de outras palavras usadas durante todo aquele tempo. Sim. Falar é uma coisa perigosa. Mas gosto desse desafio. Despojar a alma de qualquer artifício – o limite é a dor, ou ir além do Bojador – sem ter que ver no outro uma flor frágil. E de ver a totalidade possível do outro. Guardar alguns segredos também, evitar alguns espinhos. Sem falsidade.

Eu tenho uma inconsolável nostalgia de ambientes do passado. Tão mais confortáveis e envolventes, quão desaparecidos ou em vias de extinção. Sem sequer serem substituídos por ambientes contemporâneos que consigam magicamente ter essa qualidade numa outra linguagem. Talvez afinal os objectos tenham uma alma que acumula referências e humanidade de momentos passados, de sentimentos que lhes transmitem algum calor, um acalento que a modernidade não consegue alcançar. Talvez precisem de amadurecer. Sempre gostei de ambientes vividos, objectos manuseados, marcas de vida. Das atmosferas pesadas de um luxo sensorial e decadente dos velhos cabarets. Os lugares dos espectáculos de burlesco, e dos episódios burlescos da vida. Nas zonas portuárias, com maior fascínio porque muitos estão de passagem. Vindos de longe e com destino incerto. Também eu encontrei um dia um marinheiro de águas profundas num cabaret decadente. Mas em outras longitudes. Curiosamente a primeira coisa que lhe vi foram os pés. Só depois dei com o rosto no topo de um corpo aprumado e uns ombros firmes. Um grande encontro face a tudo o que depois não teve sentido nenhum. Numa outra vida. Enfim.

Pensão Amor. O lugar de que falava. Não pensão, já. É um pastiche de outros tempos, mas feito com carinho. Lugar de imitação de outros imaginários que não de hoje, mas terno e generoso para acalento de nostalgias. Um nome que se não fosse absolutamente real seria poesia pura. Há um lugar. Natural, produzido ou forjado na fantasia. Poderia ter este nome, mas seria plágio. E não precisa dele. Basta a designação plena de lugar. Como na arte, um site-specific. Lugar natural de algo. Ou desencantado da miríade de todos os outros para envolver a estrutura, a forma a instalar. Mesmo pré-existente, conceptualmente escolhido e quase produzido em função de…De liberdade. Da superação do medo. Do encontro com um eu depurado, reflectido em olhar alheio. Intemporal, eterno, indelével. Mesmo que no momento seguinte todo o referencial pudesse mudar. Mas nesse lugar tão específico, as coisas formuladas e sentidas têm alguma escala. E são eternas enquanto duram. Só depois se lhes vê o fim. Mas essa é já uma outra história. Um outro lugar. Vago. Ou não. Simplesmente lugar.

14 Ago 2015

Sérgio Godinho – “Espalhem a Notícia”

“Espalhem a Notícia”

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
o ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher bonita

Sérgio Godinho

18 Jul 2015

Fontane Effi Briest, Rainer Werner Fassbinder, 1974

[dropcap type=”circle”]C[/dropcap]ausa alguma perplexidade que nesta página apenas existam quatro crónicas sobre Fassbinder. Este é um daqueles realizadores, como Imamura, Pasolini, Satyajiy Ray ou Bergman, cuja carreira é um paradigma, uma referência constante, pelas suas temáticas, pelo seu lugar na história e pela sua estética.

Não é possível passar-se sem o seu cinema pois este é um exercício imprescindível. Fassbinder fez filmes e encenou peças de teatro como quem respira, com uma urgência difícil de encontrar noutros autores, e a sua morte violenta só vem coroar, como se se tratasse de uma encenação, esta imensa e brutal performance artística que foi toda a sua vida.*

A propósito de Katerina Izmailova, de Mikhail Shapiro, que mostra uma história de aborrecimento, adultério e morte, lembrei-me de um dos seus filmes mais excêntricos, Fontane Effi Briest. É-o a vários títulos. Por ser a preto e branco, por ser um filme de época, por ter tido um período de rodagem anormalmente longo para o hábito de Fassbinder, por ter sido um enorme sucesso comercial já em 1974, porque tem uma voz inolvidável e uma linguagem própria.

Muito do cinema de Fassbinder é desconjuntado e brutal, resultado da sua enorme vontade de mostrar e de contar, vítima das suas grandes contradições pessoais e da avassaladora paixão que colocava em tudo o que fazia, nos seus filmes ou nas peças de teatro em cuja montagem (cerca de 30) se viu envolvido, e/ou, provavelmente – por muito que me custe incluir pormenores biográficos nestas considerações – como espelho das condições caóticas em que viveu durante os primeiros anos da sua vida.

Effi Briest tem, no entanto, um aspecto muito trabalhado, sem improvisos. Cada plano parece pensado com minúcia e não há um objecto (e há muitos objectos, esculturas provincianas) fora de lugar e gosto de pensar que Fassbinder terá dispendido um grande esforço para manter esta limpeza de aspecto e esta falta de naturalismo, uma falta que, mais tarde, de um modo muito diferente, encontraremos nos seus últimos filmes (incluindo Berlin Alexanderplatz).

O que teria sido a sua carreira após o estilizadíssimo Querelle?

Poucos têm o aspecto ritualístico e estático que Effi Briest, um que a existência de intertítulos que anunciam as suas várias partes mantém. Este filme sobre o livro de Fontane parece ir contra a ideia de que toda a sua obra é espontânea e física, e essa será uma das suas atracções.

É uma atracção que nasce da sua fidelidade ao livro de Theodor Fontane. Este é mais um livro em filme que um filme feito a partir de um livro e traz consigo uma curiosidade. O seu título vem acompanhado de um longo subtítulo. Em tradução minha, (Fontane Effi Briest) ou Muitos, que têm uma noção das suas possibilidades e necessidades e, no entanto, através dos seus comportamentos aceitam a ordem estabelecida e acabam assim por a fortalecer e defender.

A maneira como o realizador nos mostra a língua contribui muito para criar esta impressão dramática. Por vezes parece que as falas não vêm directamente das personagens mas que o seu corpo é um modelo para uma voz que vem de outro lugar, mais profundo e mais misterioso. Isto é porque as vozes de alguns dos actores foram dobradas e colocadas em cima de figuras diferentes. A voz de Irma Hermann, por exemplo, é a de Margit Carstensen, e a figura de Hark Bohm tem voz de Kurt Raab. Estas são, afinal, as vozes directas de Fontane.

Manoel de Oliveira fez coisas parecidas, com graus diferentes de sucesso, mas em 1972-74 ia ainda em Benilde ou a Virgem Mãe. Não escondo que o que mais me atrai em Effi Briest, como em muito cinema alemão, especialmente o de Werner Schroeter, pode ser a sua voz.

Este desfasamento (que é muito normal em Fassbinder a um outro nível, ao nível do desfasamento entre a música e a acção**) tem uma sedutora companhia no desfasamento – na desconstrução – que se faz através do uso de um outro costume seu, o da inclusão de jogos de espelhos e planos em que as personagens estão meio escondidas por portas ou outros lugares de passagem que as cortam ou apenas semi-revelam. Até na depurada cena do duelo entre Innstetten e Crampas se interpõe uma rede de pesca que a torna ainda mais inacessível. Em Effi Briest existe uma inacessibilidade às personagens que é contrária à violência expositiva de muitas de muitos dos seus filmes.

(Infelizmente, há muitos anos que não consigo ver um favorito filme feito para televisão em 1973, Nora Helmer, baseado em A Doll’s House, de Ibsen, em que, se me não falha a memória, se faz uso intenso destes artifícios especulares).

Outra atracção ainda de Effi Briest consistirá na tentação de pensar (mas a sua impossibilidade é dolorosa) que Fassbinder se afastara por um momento (lembremos que Nora Helmer, um filme de época feito para televisão é de 1974) da exposição das profundas feridas da sociedade alemã do pós-guerra que percorrem grande parte da sua obra.

Os seus filmes, sendo extremamente humanos e muito intensos emocionalmente, obrigam o espectador a pensar na técnica, na montagem, nas imensas escolhas que é preciso fazer a nível da montagem (ou não), da iluminação ou da direcção de actores, obrigam a pensar na construção e no tempo. No fundo, obrigam a pensar no cinema.

Fontane Effi Briest é um dos seus filmes de mulheres, como Die bitteren Tränen der Petra von Kant, Lola, Die Ehe der Maria Braun, Die Sehnsucht der Veronica Voss, Martha, Nora Helmer, Mutter Küsters fahrt zum Himmel, Lili Marleen, para citar apenas aqueles em que no título figura um nome de mulher. Outros há em que o título não trai esta importância. Só um perfeito bruto poderá continuar a pensar que Fassbinder tratou mal, nos seus filmes, as imensas mulheres com que trabalhou quando é claríssimo que elas são neles muito mais importantes e interessantes que os homens.

No livro de Christian Braad Thomsen, Fassbinder, the life and work of a provocative genius, este agrupa, num capítulo chamado “Filmes de Mulheres”, Martha, o incómodo Angst Essen seele auf/O medo come a alma e Fontane Effi Briest.

Neste demonstra-se o poder da imagem do amor e a necessidade de rejeitar as convenções sociais. No entanto, o que permanece, no fim, é um lodo de que é difícil sair-se, a resignação doentia e fraca que o longo título anuncia e cuja ideia a mãe (que é interpretada pela mãe de Fassbinder) ajuda a perpetuar mais do que qualquer outra personagem: a de que vida em sociedade obriga ao cumprimento de reparações que pouco têm que ver como amor.

É interessante que as cenas dedicadas ao adultério, ou ao encantamento da bela Effi, são quase inexistentes, ao contrário das considerações do Barão Geert von Innstetten sobre as consequências da sua revelação – o formidável diálogo com Wüllersdorf em que se mostra, paralelamente, uma acção cujo desenlace funesto se torna mais evidente de minuto a minuto.

Nele se inscreve outro movimento circular, alucinante e a que não se pode fugir, o da necessidade de denunciar os podres de uma sociedade onde, no entanto, se busca um constante reconhecimento – uma das doenças do seu autor total Fontane/Fassbinder.

Não se deve esquecer que Fassbinder foi um realizador de mulheres mas também um realizador (e encenador) de actrizes de muitos tipos: Schygulla, Sukowa, Zech (que constam de uma crónica anterior, apenas a elas dedicada), Irm Hermann, Ingrid Caven, Margit Carstensen ou a sua mãe, Liselotte Eder.

Nelas ele encontra um misto difícil de reproduzir entre a naturalidade (por vezes distanciamento) e um glamour do cinema que reproduz o modo como a sua actividade profissional e a sua vida privada estavam intimamente ligadas. Como ao mesmo tempo as suas actrizes são banais e estrelas de cinema é um acontecimento que se dá a cada momento.

*São 33 longas metragens para cinema e televisão, 4 séries de televisão e 4 vídeos longas metragens num espaço de 13 anos. Junte-se-lhe o teatro, 30 peças para palco e 4 para a rádio. Foi actor em muitos dos seus filmes e em 13 filmes de outros autores. Também produziu filmes próprios e de outros e montou vários dos seus. Foi até operador de câmara de um dos seus filmes (cf. o livro de Braad Thomsen pág. 8).

Um dos filmes, Ich will doch mur, dass Ihr mich liebt/I Only Want You to Love Me, fala sobre a sua obsessão com o trabalho.

** cf. especialmente o capítulo 2 (Fassbinder e a música de Peer Raben) mas também 5 e 6 de 2004, Flinn, Caryl, The New German Cinema. Music, History, and the Matter of Style.

23 Jun 2015