Maria Helena do Carmo, escritora: “São todas histórias de ‘filhas’ minhas”

Maria Helena do Carmo está em Macau para apresentar o seu sétimo livro. “Estórias de Amor em Macau” reúne doze contos sobre mulheres e percorre quatro séculos de história do território. Ao HM falou do trajecto até à escrita de romances históricos e do livro que vai ser apresentado a 18 de Abril no Instituto Internacional de Macau

Começou por trabalhar em rádio. Como foi o trajecto até chegar à literatura?

Foi a própria evolução da vida. Fui para a rádio quando estava em Goa. Era estudante e tive um convite para participar num programa porque o meu português não tinha sotaque. Fiquei a participar em programas infantis porque só tinha 15 anos. Depois entrei como locutora, a tempo inteiro, na emissora oficial de Goa aos 18 anos. Saí quando teve de ser, refugiada como todas as senhoras em Dezembro de 1961. Continuei esse trabalho em Angola até que resolvi continuar a estudar. As minhas habilitações literárias tinham ficado em Goa e não tinha nada que comprovasse os meus créditos literários. Comecei a fazer o 7º ano por disciplinas e acabei por continuar os estudos. Fui locutora até ao meu segundo casamento e, a partir daí é que enveredei pelo ensino de história.  A vida de locutora em que não se tem horários não se coadunava com a vida familiar. Acabei no ensino que está ligado à comunicação. Um professor também é um actor num palco e fui professora até à reforma. Depois tinha de continuar a comunicar e a forma que encontrei para o fazer foi através da escrita.

Porquê o romance histórico?

Porque são factos verídicos. Prefiro sempre situações da vida real do que a ficção e o romance histórico tem um fundo verdadeiro, apesar de, por vezes, ser ficcionado, mas é sempre baseado numa história que existiu.

Depois de Goa, Angola e mesmo Moçambique, como é que apareceu Macau?

O meu marido veio para cá trabalhar e as mulheres vão sempre atrás dos maridos. Ainda hoje não são elas que dizem que vão trabalhar para fora. Nessa altura já a lei permitia que as mulheres que viessem e tivessem o seu emprego poderiam continuara  trabalhar aqui. Fui professora de história, mas como não preenchia o horário tinha de dar desenvolvimento pessoal e social. Considero-me uma cidadã do mundo. Nasci na Madeira, fui para o continente muito pequena, aos doze anos fui para a Índia, fui para Angola, Moçambique e regressei a Angola. Todos eles me agradaram e por minha vontade teria ficado em cada um deles para sempre. No fundo, fui obrigada pelas circunstâncias, pela política e pelas guerras a ter de mudar de vida e a ter de me adaptar a novas situações.

A escrita acerca de Macau começou com a tese de mestrado, “Os Interesses dos Portugueses em Macau na primeira Metade do Século XVIII”. A partir daí, e já no romance, Macau continuou a ser o cenário. Alguma razão especial?

Quando vim para Macau consegui aqui fazer muita pesquisa. Ia muitas tardes para o arquivo histórico e com os documentos que recolhia fui tendo pistas para trabalhos futuros. Também gostei sempre do oriente e ao estudar a história de Macau fiquei fascinada com determinadas situações e incongruências. Há gestos e atitudes que têm uma grande diferença entre o ocidente e o oriente. Senti-me bem em Macau e tinha material para escrever. O primeiro livro que fiz foi a partir do projecto para a universidade. Verifiquei que o trabalho tinha alguns erros, por ter sido influenciada por autores que não estavam correctos, e quando fui aos documentos é que os verifiquei. Foi quando escrevia o meu primeiro romance, “Uma Aristocrata Portuguesa no Macau do Século XVII – Nhónha Catarina de Noronha”. Escolhi esta personagem por se destacar. Naquela altura, não era fácil para uma mulher viajar. Viajavam as escravas porque não eram ninguém. O facto de ela ter ido para Timor e ter regressado sozinha com a filha foi uma atitude que me encheu de admiração e por isso tentei aprofundar a sua vida. Foi assim que nasceu o livro.

Todos os seus livros se debruçam sobre uma personagem histórica. No “Estórias de Amor em Macau” temos doze. Porquê esta opção?

Foi por acaso. Já me tinham dito que deveria escrever contos por serem mais sucintos e interessantes. Nunca fui muito por aí porque quando pego numa personagem tenho tanta coisa para dizer que não estava a ver reduzida uma história a um conto. Uma vez, em conversa com o meu ex-orientador, ele sugeriu-me que pegasse no Tomé Pires e fazer a história da filha dele, Inês de Leiria, que o Fernão Mendes Pinto encontrou na China. Eu concordei e recordei que quando li a peregrinação também achei o facto curioso. Fiz um conto porque achei que a matéria não dava para fazer um romance. Depois de fazer um, surgiram outros. A seguir apareceu um conto a pedido do Instituto Internacional de Macau para uma revista. Havia uma história de uma menina, a “Menina Mulher”, deste livro, que me impressionou. Era uma menina de 15 anos que morreu a dar à luz. Já tinha dois contos, porque não fazer um terceiro? Numa vinda a Macau visitei o Museu da Santa Casa da Misericórdia. Vi o retrato da Marta  Merop e fui ler o livro. Sintetizei a história e fiz um conto, o “Serva, Senhora”. Trata-se de uma menina que foi posta à porta da igreja de S, Domingos. Foi recolhida por uma madre que a levou para o colégio. Teve uma história atribulada mas acabou por ser amada e por ser tornar  a mulher mais rica de Macau na altura.

Que histórias salienta?

Para mim são todas histórias de “filhas” minhas. Umas escolhi pela época em que viveram e outras por se terem salientado.

São só mulheres. Uma forma de as tirar da sombra?

São mulheres com os respectivos amores. A descriminação aqui na China ainda é mais evidente. Os pais gostam todos de ter meninos mais do que meninas e, até há pouco tempo, eram mesmo rejeitadas. Depois a mulher sempre esteve, de facto, em segundo plano. Aliás, logo no início deste livro tenho este verso feito por mim: “Na China permanece o velho ditado: as mulheres sustentam metade do céu. Os homens brilham no espaço estrelado. Elas ocupam o negro desse extenso véu”. Geralmente os homens é que brilham e as mulheres estão sempre delegadas para um outro plano. Sinto desde miúda que o homem é a pessoa importante, é ele o chefe de família. A mulher dependia da sorte: do marido que tinha ou do pai.

É também um livro que acompanha cerca de quatro séculos da história local. 

Sim. Começa desde o tempo de Tomé Pires e vai até à transferência de administração. Acompanha a evolução de Macau nos aspectos económico, político e social. O social foi, sempre o mais difícil até ao século XX. O sector económico começou a registar mudanças quando o território deixou de viver só do comércio para passar a viver de outras actividades com o aparecimento de fábricas como a de panchões, de vestuário e de brinquedos. Acompanha ainda a própria orgânica política. No início, era o capitão das viagens que mandava até termos um governador. Este livro tem um conto do séc. XVI, dois do XVII, três do XVIII, três do XIX e três do XX. Abarca a evolução do território ao longo destes quatro séculos, do espaço físico e das suas gentes. De uma forma sucinta temos o evoluir de uma cidade e foi isso que mais me entusiasmou.

Como é que é este processo de ficcionar a história?

Se não vivemos na época e não conhecemos a vida da pessoa, temos de a imaginar. Isso acontece de acordo com o quadro em que se vivia. Temos de imaginar a mentalidade e os costumes e descrevê-los de acordo com o que terá acontecido a uma ou outra pessoa. Estou a pensar por exemplo, na Harriett Low, uma americana que chegou a Macau no principio do séc. XIX. Solteira e livre mas era mulher e, por isso, teve os seus problemas. Sofreu da maledicência de muitas pessoas que a criticavam e foi uma figura também importante. Teve um amor não correspondido apesar de ser uma pessoa de quem se gostava por ser invulgar. Mas neste livro também temos o amor ao próximo. Sobretudo o da madre Teresinha. Esteve cá numa época em que existiam muitos casos de cólera e de febre tifóide, numa economia em mudança. Já havia liceu e algum progresso em determinados aspectos mas a acção social ainda era muito precária. Não existia assistência às crianças e aos inválidos. A madre Teresinha teve uma acção tão importante que tem uma rua com o seu nome. Mereceu ser destacada nesse amor ao próximo.

Tem tido livros publicados em Portugal. Considera que a literatura com ligação a Macau chega ao público português? 

Consegue chegar a um determinado público. A maioria da população, hoje em dia, não é de leituras. A televisão veio roubar muito o hábito da leitura, à noite, na mesa de cabeceira. A televisão apoderou-se de um espaço e de um tempo que era dedicado à leitura. Por outro lado, os jovens gostam mais de brincar com aparelhos electrónicos e a literatura não os entusiasma muito. Se não há publico para as coisas do oriente também não há para as outras. Acho mesmo que o facto de existirem livros que tratam do oriente atrai muita gente porque é diferente e exótico. Fiz dois livros com a Chiado Editora e o facto de não serem muito vendidos, além de a época ter sido economicamente difícil, teve muito que ver com a falta de promoção. Mas acho que esse não é um problema da Chiado, mas sim de uma situação transversal a todas as editoras que depois se reflecte nas vendas.

Vamos ter mais livros sobre o território?

Macau é uma possibilidade  de voltar a ser o cenário de mais livros. Já fiz o séc. XVII, XVIII e XIX. Falta me o XX.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários