Alexandria

Existe na cidade de Alexandria um Porto Interior. Fixa o Norte, de onde lhe veio o pai. Num dos seus extremos, alguém de novo ousou a Grande Biblioteca. Abundam livros e mulheres jovens. Pelo meio, sobre as praias, debruçam-se esplanadas, num excesso de mar. No outro extremo, passeia a desmesurada gente, talvez à espera do momento certo para voltar a pegar fogo a isto tudo.

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Já Marte sobre o fim da cidade se levanta, mas nem por isso os homens sossegam e olham de novo o mar antigo. Pela urbe persiste o ruído, o caos que pouco cintila ou alcança. A cidade deixa à estrela esse castigo. E ela olha do alto e pouco vê, nada procura. Onde estão os épicos fantasmas da minha literatura? Ficaram os homens impuros e as suas mulheres cercadas. E as ruas belas como rugas ou trapos pisados nas calçadas.

Na casa de Kavafis paira um odor a abandono. Apenas um refrão, sussurrado por um bigode. Escasseiam os livros e sobram as horas. Os versos lamentam a sorte rasa. Poemas dormem sem abrigo pelas ruas. Nada há para fazer, só para ver e os olhos humedecem da tristeza do que não é (talvez nunca tenha sido), a sentirem fundo a culpa de uma deslocada ambição.

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Nos versos de Kavafis expirava o último heleno e talvez uma cidade.

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Havia no lugar onde em 1902 foi construído o Hotel Metropole um obelisco de dois mil anos. Cleópatra impusera-o para celebrar Marco António. Agora existem sombras posteriores a marcar corredores, um elevador de três portas e as colunas solenes do átrio. — Ainda há onde respirar, rosno curto.
Kavafis frequentava o Hotel Metropole. Não sei se unicamente a entrada, de onde se disfruta a rua em poltronas altas; se subia ao primeiro andar, e deslizava pelos salões, entre brandys, golpes de estado, charutos e revoluções.
Provavelmente, pouco disso o interessava, como lhe deviam ser indiferentes os veludos e os pendentes adamascados. Imaginemos que, sem sabermos de quê, lhe interessava a possibilidade. Fantasiemos que esse quê poderia surgir, vindo da rua, sob a forma de um cavalo ou de um príncipe, ainda pingentes de suor de um galope ou de múltiplas defenestrações.
E o poeta esperava, naquele canto sóbrio, meio enternecido de sombra, raspado do passado, ainda que o hotel fosse então novo e pouco fizesse prever a glória a que o meu coração o consagra. Previra os bárbaros, é certo, mas não os previra assim.
O obelisco está algures em Nova Iorque. Central Park, creio.

in Anastasis

20 Jan 2022

Konstantinos Kavávis

Desçamos a Alexandria e nela tentemos focar a imagem do poeta, ao que se sabe, um homem bonito que na sua cidade foi compondo aquela obra de fronteira, tão universal, quanto cheia de Impérios e de areias, tão do corpo, do corpo tocado, da forma soprada, que Alexandria é como as lendas e Kaváfis um puro encantamento dentro dela.

Que nós, os mais naturais, pouco entendemos de fascínios e quase esquecemos a espionagem da Rota da Seda – a rota da Civilização – circuito onde toda a beleza e perigos algures se cruzaram. O poeta tinha no sangue todos estes caminhos desde a Pérsia, à Arménia, à Macedónia, Constantinopla pela herança helénica, e mesmo assim não vamos encontrar nele um ser histriónico, entusiasta, antes pelo contrário, foi um homem metódico, escrupuloso, secreto e burocrata, distinguindo muito bem os papéis do seu próprio destino. A sua obra também não foi prolífica – 154 poemas ao todo que passaram a livro póstumo e que durante a vida ele editara em panfletos, folhas soltas, num sistema de divulgação muito popular na Grécia, em neogrego, a língua do Oriente helenizado que Kaváfis faz brilhar na sua vertente linguística.

Mesmo em Alexandria poderemos dizer que não se encontra separado da sua geração no que respeita ao estilo da corrente Simbolista, mas ele não fará nenhuma alusão específica e foi ainda possível conhecer-lhe melhor os passos através do célebre «Quarteto de Alexandria», de Lawrence Durrel, que o retrata para o fim como um ancião cosmopolita avesso, no entanto, à luz eléctrica, gostando da penumbra e optando por luz de velas ou candeeiros a gasolina. Mas era a sua «noite iluminada», revestida de boémia, que o introduzia na saciedade dos corpos carregando a sua homossexualidade como um anátema social que não lhe roubara nenhum prazer saciável que tanto sentiu diante da beleza adónica.

É que Kaváfis era um esteta e nenhum moralismo lhe tiraria as forças e de tal forma um ser erótico que soube dizer como jamais escutámos no poema esta conjugação de aspectos: «esforça-te, poeta, por retê-las todas (as imagens) embora sejam poucas as que se detêm/ as fantasias do teu erotismo põe-nas semiocultas, em meio às tuas frases» esta reserva, este sentido do oculto sem no entanto anular a carga da mensagem, conferem-lhe pleno poder de concisão e vigilância que lhe permite estar atento ao dolo intranquilo de todo o prazer que não é selado. Talvez que a sua própria vida lhe desse a conhecer o limite da beleza enquanto acto transgressivo, e que nela, no pico mais alto, se correm os maiores perigos que contribuem para elevar essa busca ardente.

O poeta viajou mas é como se nada disso o tivesse impressionado. Ele era da sua cidade o amante dilecto, «aquela em que nunca chegou pois nunca partiu» e sabe-se que gostava de palmilhar a pé quotidianamente os seus bairros, falando de forma casual para quem o quisesse ouvir da sua poesia, onde fumava demoradamente uma longa piteira e se foi constituindo assim um ser sem grande propensão para outras demoras. Havia uma certa antipatia nos centros das esferas literárias que não entreteve com querelas e criticismo vão, para além de nunca lhe ter sido sensível o factor político ou social. O “bas-fond” da cidade deu-lhe as imagens mais representativas e talvez no limite se sentisse por elas subjugado por sua própria natureza poética, que não raro toca o desespero e o vazio de viver, e talvez aí a sua comoção fosse para além do instante e encontrasse matéria para os temas transformados na maravilhosa narrativa que foi afinal a rescrição continua dos seus poemas.

Aqui vemos o perfeccionista, o homem que se demora a contemplar e a corrigir exaustivamente a sua obra, sem tempo para continuar a outra que o reino da quantidade gosta de esvaziar nos incautos bloqueados. O seu tom confessional nunca fraquejou embora não nos demonstre jamais o seu martírio, será talvez esta sobriedade que mais o coloca na senda aristocrática de um sangue grego antigo de que descendia. E quando, e quanto ao corpo, há um estremecimento nessa forma tão bonita de o mencionar ao dizer: «Lembra corpo, não só o quanto foste amado, não só os leitos onde repousaste/mas também os desejos que brilharam por ti em outros olhos claramente/agora que tudo isso se perdeu no passado, é quase como se a tais desejos te entregaras/e como brilhavam, lembra, nos olhos que te olhavam/ e por ti na voz tremiam, lembra corpo».

Por ele embarcámos para Ítaca numa viagem de coragem e de amor, aprendemos a não apressar o passo e a refrear as ambições, fez-nos ainda predestinados e atentos através da ilha que é a sua alma velando por nós todos à escala humana, alertou-nos para o perigo das construções que podem ser maléficas sempre que as invocamos mal na nossa mente, olhámos ainda a beleza do altivo espírito do pensamento e a importância maior de não abrigarmos espectros. Fez-nos esperar pelos Bárbaros (que contemplam aqueles que a Europa hoje deixa a morrer no Mediterrânio) com alegria e satisfação logrando serem a única solução, sabendo que vinham das tribos festivas do mundo onde se compunham os orais poemas da sua virtude. Conseguiu remeter o fio do tempo para ciclos antropológicos que ninguém consegue ver o que abrigam de riqueza e oportunidade, causou-nos a maior abertura para vermos que padecemos de um desconhecido medo e que os ciclos históricos são como as vagas dos oceanos, navegamos por eles. Lembrou-nos os Oráculos no «Prazo de Nero» e a sua geometria do destino talvez apontasse também ela para uma certa predestinação, nascido a 29 de Abril de 1863, nesse mesmo dia morreria em 1933. Não foram os Idos de Março, esse temor antigo de que fora afinal um célebre guardião.

Não me deixei prender. Libertei-me e fui em busca de volúpias
Que em parte eram reais,
Em parte haviam sido forjadas por meu cérebro;
Fui em busca da noite iluminada.

29 Dez 2020