Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu – Quinto Estásimo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ORO DE MULHERES Temos no fim o que foi sempre! Teseu descobre um mal maior Que a força do Minotauro: Um amor não correspondido. CORIFEU Não era amor, como viu Teseu, Mas as flechas de Afrodite! E essa mulher não se opôs Como ela muito bem diz, Quase já na boca da morte. (entra a deusa Ártemis) ÁRTEMIS Vós vistes hoje aqui no palco O poder que a deusa tem Para destroçar um humano. Por mais que haja quem duvide, Afrodite é a sem rival, N’ arte de virar do avesso Os pobres mortais indefesos E arrogantes, a um tempo. Sou a única deusa sã, A única que não inveja O poder destruidor dela. Até Zeus teme o seu poder, Pois nem a seu pai ela poupou Da febre radical da paixão. Ela não tem nenhum descanso Da arte vil de enlouquecer Pelos olhos, mortais e deuses. Nada é pior que uma imagem Escavando uma vontade. Muito foram os seus amantes. E assim se comportem todos! Deseja ela ao mundo inteiro. Serenidade é uma afronta, No equilíbrio ela cospe. Afrodite só tem ódio. A sua vida é a carne, Não dá aos mortais um bem comum, Pois dela nunca vem encontro. Desata os olhos em quem quer, A ilusão de se ser livre. Faz correr para uma imagem E os pobre seres confundem Um exército de desejo Com a elevação do amor. E eu, que me chamo Ártemis, Digo com pesar a verdade. Reconheço previamente A minha derrota p’ra deusa Afrodite, traiçoeira, A filha de Zeus e minha irmã. E mesmo deusa, puta é puta. Nada tem valor, só a carne. Só tem olhos para três coisas: Corpo, rosto, boas erecções. (Ártemis sai e entra Teseu em cena) ÊXODO TESEU Como continuar? Fedra faz-me matar meu único filho, casto como a sua deusa, incapaz de ofender quem quer que fosse, depois mata-se e ainda me diz que, depois da verdade dita, posso continuar, como se me quisesse matar com as minhas próprias palavras, ou por causa dessas mesmas palavras. Como continuar vivo agora? Como carregar um dia até ao outro e até ao outro e perfazer uma semana, perfazer um mês, perfazer uma vida? Como lutar contra o que não existe mais, único inimigo que nos faz sofrer? AFRODITE Como estás enganado, filho de Egeu! Como estás enganado, pobre mortal! TESEU Afrodite, és tu? És mesmo tu, ou estou a delirar? AFRODITE Sou mesmo eu! Não estás a delirar. TESEU E porque dizes que estou enganado? AFRODITE Porque tudo isto é culpa de Hipólito, teu único filho! TESEU Culpa de Hipólito, como, deusa? AFRODITE Por me ter ofendido gravemente, Teseu! TESEU E como te ofendeu ele, Afrodite? AFRODITE Várias vezes, e até nas salas deste palácio. Ele me diminuiu aos olhos dos outros deuses; principalmente aos olhos de minha irmã, Ártemis. Teu filho foi o mortal mais prepotente que encontrei na minha imortalidade, filho de Egeu! A prepotência dele superava a tua força na horas de combate e de superar dificuldades, Teseu. TESEU Era apenas a juventude a falar por ele, deusa. Sabes como os jovens são fortes em demagogia, fortes em não saberem o que dizem. Que sabia ele da vida, Afrodite? AFRODITE Não sabia nada da vida, Teseu. Nisso, como em muitas coisas, tens toda a razão! Mas não é desculpa para ofender os deuses. Não se saber o que é a vida não concede a liberdade de procurar desenfreadamente a morte. Porque quem a procura, encontra-a. Só ele tem culpa na sua morte, Teseu. Mais ninguém! A arrogância com que ofendia os deuses que não fossem a minha irmã, Ártemis! Confesso que fui eu que tramei tudo, filho de Egeu, mas não julgues que a tua mão matou por mim o teu filho. Hipólito ofendeu outros deuses! Quem por ti matou Hipólito, posso dizê-lo agora, foi o pai de todos os deuses, Zeus. TESEU Zeus?!? AFRODITE Sim, Zeus, Teseu! Zeus estava cansado da ousadia de Hipólito, da soberba do jovem, que pensava, por ser o preferido de Ártemis, que era igual a ela. Hipólito era um mortal que não sabia qual o seu lugar, filho de Egeu! Ele morreu às tuas mãos, mas quem o matou foram os deuses. Quem o matou foi Zeus. Ele não aceitaria o exílio de Hipólito, Teseu. Hipólito nunca entendeu que não se pode venerar a um só deus. TESEU E Fedra? Fedra é culpada de quê, Afrodite? AFRODITE Fedra foi apenas uma pedra atirada contra Hipólito, uma pedra atirada contra esta casa, pela culpa ímpia de teu filho, a quem todos chamavam de casto, mas que, como já te disse, não passava de um arrogante que desprezava todos os deuses, exceptuando Ártemis. Fedra, se culpa tem, é a de não ter tido forças para afastar o desejo pelo corpo de Hipólito, que as minhas flechas incendiaram. TESEU E que culpa é a minha, para carregar tamanho castigo? AFRODITE Nenhuma, Teseu! Nada podes contra o rumo da vida. Hipólito não se tornou arrogante por tua culpa. Mas os deuses também não podiam desculpar-lhe a impiedade, somente por ser teu filho. No mundo, o que parece ser um grande bem não passa de uma grande miséria. E é fazendo o que não se quer que os deuses ajudam os mortais. Não és tu, Teseu, a maior prova disto que digo? Houve alguém mais posto à prova em sua vida, do que tu, logo desde o nascimento? E houve alguém que mais tenha atirado os males pela borda fora, de todas as embarcações ao longo da vida? És e serás sempre um exemplo para os mortais! A dor é apenas a tua sombra.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu (assim que a criada sai, vira-se para Fedra) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo explicas que nem a tua criada alguma vez tenha sequer ouvido falar de tal trama? Como explicas que ela sequer tenha sabido do teu desconforto, como dizias, acerca dos avanços de Hipólito? Queres convencer-me que se tal acontecesse, tu não abririas o teu coração, a tua preocupação com aquela que te viu crescer e que te ajudou a chegar com vida até aqui? FEDRA (como se algo a tomasse, como se não tivesse mão em si) Porque não confessas que nunca me amaste, como amaste Antíope, a grande amazona, mãe de Hipólito? Porque não acreditas nas minhas palavras, mesmo que os factos pareçam contrariá-las? Mas sabes porque é que não acreditas? Sabes porquê, Teseu, sabes? Porque não me amas e nem nunca me amaste, de verdade! Porque se me amasses, acreditarias sem pestanejar. Acreditarias em mim como se a minha própria voz fosse a voz de uma deusa. Mas não, tratas-me como a qualquer mortal, com justiça! Mas que justiça tem o amor, Teseu? Que justiça? Achas que é por justiça que estremeci em teus braços, com o teu peso sobre o meu frágil corpo? Não, não há um grama de justiça no amor, Teseu! TESEU Falas em não te dar ouvidos? Eu, que matei meu próprio filho, meu filho único, porque tomei por certas as tuas palavras? FEDRA Mas não foi por mim que o mataste, Teseu! Não te enganes a ti mesmo. Mataste Hipólito, porque como o homem mais forte da Hélade preferes matar teu filho por engano, e assim preservar a tua honra, do que, embora certo, não o matar e com isso manchares a tua honra por todos os gregos. Não te deixes enganar, Teseu, foi por orgulho que mataste teu filho! Não foi por amor, não foi por mim. E nem por justiça… talvez até tenhas morto por ódio, mas não por amor. TESEU Não foi por amor, dizes? Por ódio? Que ódio, mulher? Sou um guerreiro! Guerreiro algum traz ódio em seu coração, a não ser que procure a morte na lança ou na espada mais próxima. O ódio é o veneno que mata a concentração, que mata a atenção necessária no combate. Jamais cedi ao ódio, mulher! Jamais! Ódio é coisa de mulheres! FEDRA Por amor é que não foi! TESEU Não é de amor que falas quando dizes amor, Fedra! Aquilo de que falas é de paixão, falas das flechas de Afrodite, não das flechas de Eros. FEDRA Flechas são flechas, Teseu! Quando nos atingem fazem-nos doer. TESEU É verdade, Fedra! Mas as flechas de Afrodite são venenosas. Atingem o corpo, mas arruínam todo o senso de uma pessoa. Cegam-nos para a vida! Assim como me parece que tu estás, Fedra! FEDRA Cega para a vida, eu? TESEU Sim, Fedra! As tuas palavras não são tuas. As tuas palavras nascem do veneno das flechas de Afrodite! Já vi esse veneno a espalhar-se pelo corpo e pelo juízo de muitos, sei identificá-lo quando o vejo. As palavras não mentem. FEDRA As palavras não mentem, dizes? (e ri-se como louca) As palavras não mentem, diz o senhor todo poderoso, o rei de Atenas, o mais forte e corajoso dos homens! (e volta a rir-se novamente) TESEU O conteúdo delas mente, Fedra! Sou guerreiro, mas os juízos e pensamentos nunca me foram estranhos, como bem sabes. Aquilo que elas dizem ou querem dizer são ou podem ser mentira, mas não o modo como elas são pronunciadas. E o descontrolo com que falas mostra o veneno de Afrodite a percorrer-te as veias, a minar-te o juízo, a arruinar-te a vontade. Vejo-o agora claramente! E como lamento não o ter visto antes. (silêncio) Responde-me, por favor: Hipólito também estava apaixonado por ti, ou só tu foste atingida pelas flechas de Afrodite? FEDRA E isso muda alguma coisa, Teseu? Qual seja a minha resposta vai insuflar vida naquele corpo que arrefece neste palácio? TESEU Nenhuma vida volta da morte sem que os deuses o queiram. Mas uma vida para continuar tem de saber a verdade, tem de saber o que aconteceu. Nenhuma vida segue o seu caminho nas mãos da Dúvida! FEDRA Pois então deixa-me dizer-te que irás continuar a tua vida sem continuar, rei de Atenas! Desta boca não sai nenhuma verdade. TESEU Que te aconteceu, Fedra, para te tornares uma tão vil criatura? FEDRA O que me aconteceu, amado, foi o corpo de Hipólito! A imagem dele em mim, aqueles braços de pequenas árvores, aquele peito de alegria pura, a barriga de escudo de Esparta, as pernas que costumavas usar quando me conheceste. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Todos os dias vê-lo, e vê-lo através da tua ausência, e vê-lo através de nenhuma palavra atirada à minha vaidade. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Não sou apenas a tua mulher, homem! Sou uma mulher! Sim, é verdade, primeiro sou tua mulher e só depois sou mulher. Mas as tuas constantes ausências fizeram com que se invertesse a ordem das coisas. (pausa) Ou tu julgas que Afrodite não sabe a quem disparar as suas flechas? Julgas que Afrodite seria capaz de disparar flechas a Hipólito? Julgas que seja capaz de disparar flechas a quem não tem uma falha na existência? Julgas que Afrodite seria capaz de vergar Hipólito, à força de flechas, Teseu? Julgas isso mesmo? Julgas que os deuses têm esse poder todo? Há os deuses e há as nossas falhas, meu amado! Ninguém fortalecido seria derrubado pelas flechas de Afrodite. Julgas que, anos atrás, Afrodite teria poder de me vergar a outro homem? Nem com milhares de flechas, Teseu! A culpa não é só da deusa. A culpa é de todos. Da deusa, minha, tua e até de Hipólito. Sim, de Hipólito, pois embora ele seja imune à paixão, deveria conter-se na sua apresentação, pois a maioria não é como ele. Sem querer, ele mesmo instigou a flechas de Afrodite. E a sua ignorância não o perdoa de nada. Não sabia do que era capaz de despertar numa mulher? Soubesse, pois tinha idade e corpo para isso. (junto a Teseu, quase cara com cara) Não sou vil, Teseu, sou mal amada. (desembainha a espada de Teseu e afasta-se, com ela na direcção dele, para que não se aproxime) Não venhas ter comigo, Teseu. Há muito que te afastaste. Não venhas agora. Agora é tarde. Dói-me mais a morte de Hipólito do que a minha ou do que a possibilidade da tua. Sim, desejei vê-lo morto por não me querer! Mas a morte dele é um absoluto não. (silêncio, Fedra dá-se conta do que disse) Pronto, já podes continuar, homem vivo! Já sabes que ele não me desejou, que ele me recusou, que ele dizia a verdade, naquela sala onde lhe derramaste a vida no chão, pelos intestinos. Sabes tudo, meu amado! Agora sabes tudo e poderás continuar. E não irás carregar nem a culpa, nem a justiça da minha morte Teseu. Pois prefiro matar-me, a ser morto pelo pai daquele a quem amei. E que me importa que não seja amor? Que me importa que não seja amor o que sinto, o que senti por aquele corpo? Importa-me que tenha sido paixão? Importa-me que tenha sido desvario? Importa-me alguma coisa, filho de Egeu? Não me importa nada! Nada. Talvez morta possa ainda encontrar e viver naquele corpo! Aquele corpo era a razão de ser desta minha vida. A razão de ser deste meu desprezo por ti, Teseu. Nenhum homem, nem o Minotauro te derrotou, mas foste derrotado pela imagem do teu filho. Aqui, aqui (e bate no ventre) arde uma vontade pelo homem a quem deste o seu ser! Não foi daqui que ele veio, como o fizeste vir de Antíope. Era para aqui que eu queria que ele viesse, como um dia tu mesmo vinhas! Aqui, Teseu, (e bate no ventre), aqui! Lembras-te? Esta terra, na minha vontade, hoje e para sempre será sempre de Hipólito. (e cai sobre a espada de Teseu ao encontro da morte; entra o coro de mulheres)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu TESEU [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara ser justo com os deuses Tenho também de matar Fedra, Pois as palavras dela mentem Tanto ou mais que as de Hipólito. Lembro bem que ela exigiu Que meu filho trouxesse provas De que Teseu estava morto. Mas dessa prova nunca falou E só de palavras fabricou A ciência da verdade. CORO DE MULHERES E Teseu tem agora poder Para decidir por si mesmo? Não basta ter morto seu filho, Matará ainda a mulher? E nesta decisão quem faz O gesto final com as mãos, Ele ou algum deus perverso? CORIFEU Só a verdade aqui decide! A verdade do que é certo É património de Dikê, Honrada deusa da justiça. CORO DE MULHERES Uma deusa é uma deusa! Sempre há-de fazer de nós Aquilo que bem ela quer! Se é Fedra que é culpada, Também agora será Teseu! Inocente só Hipólito. E o coitado está morto. (Teseu entra nos aposentos de Fedra) QUINTO EPISÓDIO TESEU Podes dizer-me, Fedra, qual foi a prova da minha morte, que Hipólito trouxe à tua exigência, aquando da sua chegada, que não perfaz ainda uma volta do sol à Terra? FEDRA Que dizes, meu amado? (surpresa e amável) TESEU Pergunto-te pela prova exigida, onde está essa prova? FEDRA De que prova falas, meu marido? TESEU Aquela que exigiste como comprovação da minha morte e que levaria Hipólito à tua alcova. FEDRA Dei à minha criada para destruir, Teseu. TESEU Mas viste, antes de lhe dares a prova para destruir. Que prova era essa? FEDRA Era uma das tuas sandálias, Teseu! Pelo menos pareciam. Ele mesmo se esforçou por mostrar isso mesmo, que era uma das tuas. Disse tê-la encontrado junto a um corpo em decomposição, impossível de identificar, que ele mesmo, com seu criado, enterrou. A sandália tinha aquela marca junto ao calcanhar, que tu sempre fazias, sempre fazes, logo que o artificie tas entrega. TESEU (gritando para fora dos aposentos) Guardas! Guardas! FEDRA (assustada) Que foi, meu marido? TESEU Nada com que tenhas de te preocupar, Fedra. (entra o chefe dos guardas, com mais dois atrás dele) CHEFE DOS GUARDAS Que deseja destes seus servos, meu rei? TESEU Ide buscar imediatamente a criada de Fedra e tragam-na aqui! FEDRA Para que queres a minha criada aqui? Não confias nas palavras que te digo? TESEU Tenho o dever de escutar todos os envolvidos nesta trama. Meu filho, meu único filho jaz morto neste palácio, devido a esta trama. Para não enlouquecer completamente tenho o dever e a obrigação, para com ele, para comigo e para com a Hélade, de escutar a tua criada. Espero que entendas, Fedra! FEDRA Compreendo, meu amor. Mas que pode uma criada dizer? (entra a criada) CRIADA Vós mandaste-me chamar? TESEU Eu mandei, mulher! Quero fazer-te umas perguntas. (ao ver a criada tentando encontrar os olhos de Fedra, diz) TESEU Olha para mim, mulher! Para mim! Antes de me responderes, é como se Fedra estivesse morta, não existisse mais. Quando Hipólito chegou de Atenas, que objecto Fedra te entregou, para que lhe desses um fim eterno? CRIADA (sem saber o que fazer, mas depois de algum desconfortável silêncio) Não sei, senhor! Minha senhora deu-me algo, sim, mas embrulhado num pano, e não desembrulhei para ver do que se tratava. Ela disse-me apenas para me livrar disso, lhe dar um fim eterno. TESEU Queimaste o que Fedra te deu, foi? CRIADA Sim, meu senhor, dei-lhe um fim eterno! TESEU Estou a ver, mulher. Responde-me então a mais uma coisa. E isso foi antes ou depois da tua senhora se deitar com Hipólito? E não olhes para Fedra, se queres continuar viva! CRIADA (muito atrapalhada e balbuciando) Mas, mas… eu não sei nada sobre isso, senhor! Nunca soube de minha senhora ter-se deitado com Hipólito… TESEU Nunca deste conta sequer de que Hipólito se insinuasse a Fedra ou mesmo a tenha tentado seduzir? CRIADA (atrapalhada, mas após um curto silêncio, desenvolta) Meu senhor, é possível que isso tenha acontecido, sim. Fedra continua uma bela mulher. E, Hipólito, pensado talvez que o senhor tivesse morrido… Não sei, pode ter afectado a cabeça dele. TESEU Já escutei o que precisava escutar, mulher. Podes ir embora. Sai!
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo] [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]IPÓLITO Muito obrigado, Teseu! Decidiste justamente. TESEU Continuo a acreditar em Fedra, Hipólito! Mas estás certo quando referes os diferentes comprimentos do fio de espada. Aguardemos que Fedra chegue. (algum silêncio e Fedra entra em cena) FEDRA Que desejas de mim, meu marido? (vê Hipólito e fica surpresa e contrariada) Que faz ele aqui, meu amor? TESEU Fedra, Hipólito lembrou-me os ensinamentos que eu mesmo lhe dei: podemos ajuizar erradamente, mas não podemos ajuizar negligentemente. Por isso, quero exigir de ambos o mesmo comprimento de espada: factos e palavras. Já sei da tua parte do relato, quero agora escutar a de Hipólito e que estejas presente, para contrariar com factos, se possível, ou argumentando acerca da mentira das palavras dele. FEDRA Minha parte? Agora aquilo que digo é a minha parte e não a verdade? Desde quando a minha palavra ficou no mesmo chão de um cão sem dono? TESEU Por muito que me custe, Fedra, este é o preceito, este é o modo justo de proceder em relação a algo tão grave. FEDRA (furiosa) Não me vou prestar a isto! E se queres saber, Teseu, não me importa se acreditas ou não em mim. Se preferes acreditar nele, acredita, e toma as providências necessárias a essa decisão, mas eu não vou ficar aqui, vou embora. (e sai) HIPÓLITO Não achas este comportamento estranho, Teseu? TESEU Deixemo-nos de hermenêuticas estéreis. Já escutei a parte dela, conta-me então agora a tua! HIPÓLITO Como tentei dizer-te antes, ainda nem o sol deu uma volta completa à Terra e Fedra estava no pequeno jardim do palácio tentando seduzir-me. Acabou mesmo por me dar um beijo na boca. Empurrei-a e fugi. Envergonhado com tudo. TESEU Envergonhado com o quê? HIPÓLITO Envergonhado com isso ter acontecido. Envergonhado por tudo. Por ti, por mim, por ela, por esta casa… TESEU Se o que dizes é verdade, então porque razão Fedra inventaria outra história, em que ela mesma sai prejudicada? HIPÓLITO Não vês, Teseu, que ainda que ela saia prejudicada, eu fico muito pior, nessa história que ela conta? Ela pode até acabar com o vosso casamento, mas acaba também com a minha vida. TESEU E por que razão ela quereria acabar com a tua vida, se tivesse acontecido aquilo que me contas? Por tê-la empurrado? Por tê-la rejeitado? HIPÓLITO Que sei eu do que pensa uma mulher, Teseu? TESEU Mas para quem não sabe, adiantas muitas conjecturas… HIPÓLITO Não são conjecturas, mas pura dedução. TESEU Pura dedução, disseste? Pura dedução? Pura dedução, Hipólito? (desembainha a espada e rasga os intestinos de Hipólito; entra o coro de mulheres) QUARTO ESTÁSIMO CORO DE MULHERES Pobre desgraçado, Hipólito! Julgava estar protegido Pela devoção a Ártemis, Mas ninguém tem mais artimanhas Do que a deusa Afrodite. Contra ela nenhuma razão Um dia irá ter efeito. A intempérie duma paixão Arrasará até amores; De qualquer pai pelos seus filhos Ou dum marido pela mulher. Que mortal pode se defender Deste tão poderoso ataque, Se não arrancar os seus olhos? É sempre por uma imagem Que a história começa. Também se conta que escutar Pode ser mal de Afrodite. Pois há palavras que não são Nem neste mundo nem em outro, Apenas mentira, ilusão. Com uma palavra se morre, Se Afrodite assim quiser. CORIFEU Como vós estais enganadas! Fedra, a única culpada, É bem pior do q’ Afrodite. Digo: foi ela e só ela Que destruiu a sua casa! A deusa acendeu-lhe o corpo, Mas não acende a todos nós? E destes todos, quantos cedem À tentação de continuar Até que não haja mais volta? Nenhum deus tem esse poder De sem nossa ajuda nos matar.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo] (entra o coro de mulheres) CORIFEU Fedra é pior que víbora! Fedra é pior que víbora! CORO DE MULHERES Que culpa tem, se Afrodite Teceu o destino da paixão? Ninguém se dá a sua vida, Ninguém escolhe a sua morte. CORIFEU Mas vede como sofre Teseu! (Teseu entra em cena e fala consigo mesmo) TESEU Um pai responde por um filho? De que adianta tudo o que se faz, Se os filhos serão sempre o que os deuses quiserem? Para quê fazer filhos, Se nos serão sempre menos que a nossa própria sombra? Quem fará chegar o mal a um coração E porquê, porquê? E existirá maior mal do que um pai assistir à sua vida cair na lama Pela acção de um filho? Os tempos passados foram iluminados por desastres E os futuros não serão melhores. Porque teimamos ainda em prolongar a vida, Através de novas gerações? Com que forças hei-de agora mandar prender meu filho, Condená-lo ao exílio, Para se arrastar por terras desconhecidas sem nada E sem ser nada entre essas gentes? O exílio é pior que a morte! É morrer todos os dias E saber que se vai morrer sempre mais no dia seguinte. Mas não matar um filho que merece a morte, Concede-nos sempre um horizonte de espera que o mundo mude. O mundo não muda, mas enquanto se espera pode mudar. Mando Hipólito para mil mortes, Mas fico com o coração nas amuradas da espera de que algo mude, De que nada seja como tem sido. Estas vãs mãos mortais, Que nada podem fazer de verdadeiramente importante! (entram guardas em cena) CHEFE DOS GUARDAS Mandaste-nos chamar, rei? TESEU Mandei, sim! Vão nos aposentos de Hipólito e prendam-no! E tragam-mo aqui, feito já prisioneiro. (Hipólito entra em cena, com os guardas, e confronta-se com Teseu) QUARTO EPISÓDIO HIPÓLITO Meu pai, que loucura vem a ser esta? Porque me fizeste prisioneiro em nossa própria casa? TESEU Ainda te atreves a perguntar porquê, miserável? Nem coragem tens para assumir perante mim aquilo que fizeste? HIPÓLITO Mas que fiz eu, meu pai? Que mal fiz, para ser tratado como um cão que morde o dono? TESEU Não escolheste bem a comparação, Hipólito! Um cão que morde o dono é ainda digno de pena, mas tu não! Tu és aquele que ataca no escuro da noite e pelas costas a parte fraca de quem te deu a vida. HIPÓLITO Não estou a entender o que minha mãe tem a ver com isto… TESEU Não é a tua mãe, mas a minha mulher. HIPÓLITO Fedra? Falas de Fedra? TESEU Sim, Fedra! Falo de Fedra, minha mulher, tua madrasta, tua rainha… HIPÓLITO Mas que mal fiz eu a Fedra? Ártemis é minha testemunha! TESEU Nenhuma deusa protegerá um homem como tu! HIPÓLITO Mas que fiz eu, meu pai? TESEU Não te atrevas a chamar-me de pai mais vez nenhuma, ou serei eu mesmo a acabar com a tua vida, trespassando-te aqui com o fio da minha espada! HIPÓLITO (sorrindo de espanto) Não acredito! Não acredito que aquela bruxa conspirou contra mim e que meu pai acreditou nas suas palavras! TESEU (desembainhando a espada) Cala-te, ímpio! Cala-te ou teus intestinos irão feder esta sala, agora mesmo! HIPÓLITO (cala-se e depois volta a falar com moderação) Teseu, escuta primeiro as minhas palavras, por favor! Nunca foste parco de justiça, não comeces agora. (perante o silêncio de Teseu, Hipólito inicia a sua defesa) Ainda nem o sol rodou um dia à volta da Terra, e Fedra tentou seduzir-me, Teseu! (este joga a mão à espada, novamente, e Hipólito estende a mão, pede) Espera, Teseu! Espera, por favor. Escuta tudo até ao fim, mesmo que te custe, pois essa é a tarefa de um juiz. Talvez pela ausência de notícias tuas, não sei, ela… TESEU És capaz de me dizer que não foste procurar-me em Atenas? HIPÓLITO Fui procurar-te, sim. Não era só eu que estava preocupado, mas também Fedra. Fi-lo para lhe dar descanso. TESEU Não é então verdade que quiseste tê-la como mulher e foste a Atenas em busca da prova da minha morte, de modo a que ela se entregasse a ti, como te tinha prometido se se confirmasse a minha morte, Hipólito? HIPÓLITO O quê? Que loucura é essa, meu… Teseu? Que loucura é essa? Que renegue a Ártemis se tal enredo aconteceu de verdade! As palavras são capazes de tudo, Teseu. Meu pai sabe bem disso! Mas quererá isso dizer que seja verdade? Agora, aqui mesmo, posso dizer que matei Fedra. E as minhas palavras fazem disso verdade? Está por acaso Fedra morta? TESEU Deixa-te de palavreado, Hipólito! Quero factos! Factos! HIPÓLITO E exigistes factos a Fedra, quando a escutaste? Exigiste, Teseu? Ou só os exiges a mim? (Teseu fica um pouco confuso e Hipólito aproveita para continuar) Porque não chamas Fedra agora, aqui? E exiges de ambos factos. E escutas de ambos as palavras. Um frente ao outro, Teseu. Assim continuarás a ser o bom juiz que sempre foste. Não dês mais valor às palavras de um que às de outro. Ela é tua mulher e eu sou teu filho. Mas ainda que não fôssemos para ti senão estranhos, ou só um de nós o fosse, terias de escutar ambos com o mesmo comprimento de espada. Não te parece que tenho razão, que estou certo? Não foi assim que me ensinaste, desde cedo na vida? TESEU (para o chefe dos guardas) Envia alguém aos aposentos de Fedra, e que ela venha imediatamente ao seu rei, que é urgente. (o chefe dos guardas dá sinal a um dos guardas e ele parte)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu SEGUNDO ESTÁSIMO CORO DE MULHERES Ai que desgraça vem aí! E Fedra arde de desejo. É Afrodite e não Eros, Quem a desvia do seu rumo. Não tem mão em si, tudo fará, Para vingar a sua carne Que arde no sal da desfeita. CORIFEU Fedra mentiu sem escrúpulos, Para seduzir Hipólito. Não ponham as culpas na deusa. Mulher com desejo é bicho, Não respeita nem a si própria. CORO DE MULHERES Quem faz o que os deuses não querem? Quem sabe o que é uma mulher? Nem o tempo que tudo tem Nos pode ajudar nestas questões. Que pudemos saber da vida? De quem é que somos migalhas, De nós próprios ou dos deuses? Fará alguma diferença De onde nos chega não saber? O que é mulher, que é homem? Nem Fedra sabe dela mesma! (Fedra volta à cena) FEDRA Que estou a fazer da minha vida? Porque a arrasto para o lodo? Que mal me liga àquele corpo? (Fedra cala-se e anda como louca) Mas Hipólito tem de pagar! Mas Hipólito tem de pagar! Mas Hipólito tem de pagar! (novo silêncio e põe as mãos sobre o rosto) Deuses, ajudem-me, por favor! Que loucura esta que digo. Que culpa tens tu, Hipólito? De onde vem esta vontade De castigar-te, Hipólito? A virtude é a tua culpa. (cai de novo no silêncio) Esta demanda não tem razão, Só o sangue pode acalmar-me, Derramado em qualquer lado. Nem que o universo rua! (nova pausa, leva de novo as mãos ao rosto) Tudo por causa de um corpo! (Fedra sai de cena; a cena agora representa a chegada de Teseu ao palácio) TERCEIRO EPISÓDIO TESEU (gritando) Onde está a minha mulher? Onde está Fedra? Alguém a pode avisar da minha chegada? FEDRA (entrando em cena e sorrindo) Estou aqui, meu senhor! (estende-lhe os braços, abraçam-se e beijam-se) Quantas saudades, Teseu! Quanta saudade! (volta a abraçar Teseu e depois pergunta) Mas que aconteceu, porque tanta demora e nenhuma notícia? TESEU Contra-tempos, Fedra, contra-tempos! Depois conto-te tudo com mais detalhes. Deixa-me agora olhar bem pra ti! Como estás bela, Fedra! Como estás bela, minha rainha! FEDRA (sorri envergonhada e faz notar alguma preocupação) Obrigado, meu marido! Mas já não sou a flor da Primavera, que por ti era colhida. TESEU Serás para mim sempre a mais radiosa Primavera! E acredita quando te digo que não sou só eu que vejo isso, Fedra! Qualquer homem daria um dos seus braços para estar aqui no meu lugar… FEDRA Daria, sim, porque nesse caso seria rei. (e riu-se) TESEU (dando as mãos ao riso de Fedra) Sempre com resposta pronta! Sempre fugindo dos elogios como uma serpente foge do falcão. Mas o que te digo é a mais cristalina água da nascente da montanha. Mas deixa-me perguntar àquele belo jovem que chega, e verás quão certo estou. (Hipólito entra em palco) É verdade ou não, meu filho, que Fedra é tão bela como qualquer rapariga do palácio? HIPÓLITO (algo embaraçado) Meu pai, não sou homem para adocicar palavras! Tão pouco homem para reparar na beleza dos corpos. Mas como você está? Que lhe aconteceu? FEDRA (com ar irónico) Hipólito realmente tem mais o que fazer do que reparar na beleza dos corpos, Teseu! Muito mais. (Teseu parece intrigado, mas nada diz, olhando um e olhando outro; Hipólito mantém-se calado, olhando o pai) TESEU Meu filho nada de importante se passou! Apenas contra-tempos, como já disse a Fedra, mas amanhã contarei tudo com detalhes, ainda que não tenha nada de interessante ou misterioso para partilhar. HIPÓLITO Sendo assim, meu pai, dêem-me licença, vou retirar-me e deixar-vos a sós. TESEU Vai, sim, filho, falaremos depois. Agora tenho saudades desta beleza que não vês. (e abraça Fedra, com um dos braços) (Hipólito sai de cena e Fedra e Teseu ficam sós; Teseu tenciona beijar Fedra, mas ela esquiva-se) TESEU Algum problema, Fedra? FEDRA (mostrando-se preocupada, como se algo a atormentasse) Nada, Teseu! Não se passa nada. Estou cansada. TESEU Cansada? Cansada de quê? FEDRA Cansada de esperar, meu marido! Cansada de esperar. De pensar no que poderia ter-te acontecido, o que estarias a fazer… TESEU Cansada de esperar, Fedra? Não é a primeira vez que me ausento tanto… FEDRA Mas assim tanto tempo sem notícias, é. Até mandei Hipólito ir até Atenas ver se sabia de ti… TESEU Mandaste Hipólito à minha procura? Mas qual a necessidade, a urgência de tal decisão, mulher? (silêncio, Fedra não responde, tenta desviar o assunto) FEDRA O que importa é que estás bem! Que nada te aconteceu e regressaste na mesma alegria com que partiste. TESEU Infelizmente parece que sou o único com alegria nesta casa! Que se passou Fedra? Que aconteceu na minha ausência? FEDRA Já te disse que não aconteceu nada. TESEU Fedra, conheço-te como conheço o fio da minha espada! Sei bem quando algo te preocupa, quando escondes algum acontecimento que possa perturbar-me. (segurando agora Fedra, pelos ombros) Diz-me, por favor, que aconteceu? FEDRA (depois de algum silêncio) O que aconteceu, meu marido? O que aconteceu? O que aconteceu é que foste desrespeitado! E em tua própria casa. E por aquele a quem te deve o seu ser. Foi isto que aconteceu. TESEU (afastando-se de Fedra e encarando-a estupefacto) Que dizes? Que dizes, mulher? FEDRA (encarando-o friamente) Isso mesmo que pensas, meu marido! Isso mesmo! TESEU Meu filho tomou-te mulher, Fedra? FEDRA Inicialmente só se insinuava, Teseu. Mas rapidamente se tornou muito inconveniente. Foi quando tive a ideia… ai como vejo agora ter sido uma tão péssima ideia, meu marido!!! TESEU Mas que ideia foi essa? FEDRA Não sabíamos de ti há quase cinco meses e já não suportava as investidas de teu filho. Disse-lhe, Hipólito, se teu pai estiver realmente morto, serei tua, mas terás de trazer-me a comprovação da sua morte. Pois não poderei ser tua com Teseu viva. Pensei em ganhar tempo, e que entretanto tu chegasses, Teseu, entendes? (e agarra os braços de Teseu) Entendes, meu amor, entendes? (o rosto de Teseu endurece) Quando regressou, disse que estavas morto e exigiu de mim a promessa que lhe fizera. Este corpo ainda nem arrefeceu do corpo dele, Teseu. (tapa o rosto) Que vergonha, meu marido, que vergonha! (o silêncio ocupa a cena por algum tempo) Entendes agora a minha preocupação, meu marido? Que devo fazer, meu amor, que devo fazer, dizes-me? TESEU (que parece ter vindo da longínqua terra dos mortos, de Hades) É Hipólito que tem de se retratar, não tu! FEDRA (violenta) Retratar, Teseu? Retratar? Pedindo desculpas, talvez, não? TESEU (segurando-a e tentando acalmá-la) Calma, mulher! Calma. Este crime pede exílio ou morte, como retratação.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu [dropcap style≠'circle'](A[/dropcap] cena representa o jardim do palácio de Trezena; Fedra e Hipólito acabaram de jantar e estão sentados num pequeno jardim privado do palácio) (SEGUNDO EPISÓDIO) FEDRA Parece que recuperaste do cansaço da viagem, Hipólito! Pelo menos, é isso que aparentas. Estou certa? HIPÓLITO Está certa, sim, Fedra. As palavras que disse acerca das más e das boas notícias acabaram por me dar algum ânimo. FEDRA Fico contente por ter ajudado. Nesta tua viagem aconteceu alguma coisa de diferente? HIPÓLITO Como assim, de diferente, Fedra? FEDRA Uma experiência nova. Um olhar novo acerca do mundo. HIPÓLITO Continuo sem entender, Fedra. Que experiência nova poderia acontecer numa viagem? FEDRA Hipólito, meu querido, tanta coisa pode acontecer numa viagem! E para alguém jovem e belo como tu, não é somente tanta; tudo pode acontecer. Vives precisamente o tempo de todas as possibilidades, o tempo do infinito que habita os mortais por um período determinado. És hoje esse infinito determinado dos mortais, Hipólito. Que pode acontecer numa viagem, perguntas tu! É como se perguntasses, o que pode acontecer numa vida? Pode acontecer tudo, querido Hipólito. HIPÓLITO Parece-me que estou a entender o que diz, minha madrasta, mas isso não se aplica a mim. FEDRA Não se aplica a ti, porquê, Hipólito? Por acaso és um deus, aos quais as leis que regem os mortais não se aplicam? HIPÓLITO (um pouco embaraçado) Não sou um deus, Fedra, mas sou um devoto obstinado da melhor das deusas, Ártemis. E isso, só por si, faz com que onde quer que eu ande, ou com quem quer que ande, não haja senão a mesma possibilidade de devoção a ela e à sua castidade. FEDRA E por que dizes que Ártemis é a melhor das deusas, Hipólito? Conheces todas as deusas, todos os deuses para te pronunciares dessa maneira tão peremptória, tão pouco conveniente a um mortal? HIPÓLITO Não, Fedra, não conheço. Mas do mesmo modo que não preciso de conhecer tudo o que existe, para saber aquilo que me convém, também não preciso de conhecer todas as deusas e deuses para saber aquela que me convém, e que é para mim a melhor. FEDRA Entendo-te, Hipólito! Mas não podemos julgar os deuses pela nossa medida. O que é um bem pode ser um mal e um mal pode ser um bem, vindo dos deuses e aos nosso olhos. Não achas que o amor entre um homem e uma mulher possa ser um bem, um grande bem? HIPÓLITO Se for um amor carnal, não. Nenhum amor carnal pode ser entendido como algo superior. Por isso te digo, sem quaisquer dúvidas acerca deste assunto, Afrodite nunca poderá igualar-se a Ártemis; ser-lhe-á sempre inferior. FEDRA Cuidado com as palavras, Hipólito, os deuses são-nos superiores, mas também padecem de paixões. E não te parece que sem Afrodite, nós mortais, não poderíamos procriar, e assim perpetuar-nos pelo tempo? Não te parece que a nossa imortalidade, ao contrário da dos deuses, passa através do corpo, da união dos corpos? HIPÓLITO Fedra, minha madrasta, não quero ofender nenhuma deusa, mas não posso deixar de pensar o que penso e assim dizê-lo, se mo pedirem. Esses são os ensinamentos de Ártemis. Quanto à união dos corpos, não vejo nisso nenhuma elevação. Vejo antes uma maldição que nos concederam, aos sermos obrigados a descer ao corpo, para fazermos de deuses e originarmos um filho. Na realidade vejo isso como um grande embuste, Fedra. Os deuses concederam-nos uma pequena imitação deles mesmos, a um preço muito elevado: o de termos de não ser somente alma e espírito. Termos de descer ao corpo para procriar é uma rocha presa ao pé, que não nos deixa voar. Trocava facilmente essa imitação dos deuses por mais uma dívida aos deuses, Fedra. (fica com o olhar longe) FEDRA E que dívida é essa, que querias contrair com os deuses, em troca da procriação, Hipólito, posso saber? HIPÓLITO (regressando desse olhar longe e fixando agora Fedra nos olhos) Que os deuses, eles mesmos, nos dessem os filhos, sem que precisássemos de nos deitar com uma mulher. (faz-se silêncio) FEDRA Hipólito, tens assim uma imagem tão terrível do amor? HIPÓLITO Do amor, não, Fedra. Do amor carnal! Do amor que Afrodite semeia nos mortais, necessário até para o nascimento dos filhos, mesmo que não exista qualquer elevação entre os pares que se juntam para a concepção dos mesmos. O nascimento dos filhos, hoje, tanto pode ser entre as piores pessoas quanto entre as melhores. E pode até ser entre ambos cruzados, um bom e outro mau. Um filho, Fedra, por si só, não prova nada. Até, ao que parece, nos deuses há os bons e os maus. Olha o exemplo de Zeus que fez uma filha de excelência, Ártemis, e outra… (Fedra tapa-lhe a boca, com furor) FEDRA Por favor, querido, não digas mais nada! (ficam por momentos nos olhos um do outro e a mão de Fedra entre eles; por fim, Fedra recua um pouco e continua a falar) Há amor carnal, Hipólito, que é realmente como tu pensas que é todo o amor carnal; mas há amor carnal que é elevado, meu querido. Vê o caso de Eros, filho de Afrodite! Não te parece que ele promove verdadeiros encontros, que o amor que nasce de suas flechas é elevado, apesar de despertar um desejo avassalador entre os amantes? Não há um verdadeiro encontro entre dois mortais sem uma atracção fulminante pelo finito e infinito de cada um, Hipólito; uma atracção pelo corpo e pela alma. Este é o amor de Eros! Este é o amor que sinto, Hipólito! (cala-se, de repente, fica ainda um pouco a fixar os olhos de Hipólito, que também a fixa, mas depois desvia-os e vira-se de costas) HIPÓLITO (depois de algum silêncio) Mas como pode o desejo ser bom, Fedra? Explica-me isso, por favor! Como, se ele mesmo é um alheamento de nós próprios? FEDRA (voltando-se para Hipólito, sorrindo um pouco) Meu querido, tudo neste mundo pode ser bom e mau, dependendo de nós e do uso que fazemos do que sentimos. Não direi tudo, Hipólito, mas quase tudo. Para ti, nesta vida, o mundo todo é terra ou água, céu ou fogo. Mas devo dizer-te que poucas coisas são assim tão completamente estanques na vida, meu querido. E porque para ti não há nada senão os opostos, como se o mundo não passasse de uma eterna guerra, não consegues ver que o amor carnal de que falas é a paixão sem medida, a paixão sem nada em comum, que não seja o corpo. E que o verdadeiro amor carnal, o amor que nasce das flechas de Eros, é o fim da guerra, a paz entre os opostos; o reconhecimento por parte do corpo de que o desejo só existe mesmo, só existe com tamanha intensidade, porque o corpo viu a alma fora de si, e a alma reconheceu nesse corpo que não é o seu, a imagem perdida com que sempre sonhou. HIPÓLITO Dito assim, Fedra, parece bonito. Parece até que é verdade, e até dá vontade de senti-lo… FEDRA (aproxima-se de Hipólito, toca-lhe no rosto, olha-o, fala) E é verdade, querido! É tão verdade como estarmos agora aqui os dois, sozinhos, e sentindo tudo isto, como se o sentimento fosse as asas das palavras que vamos dizendo um ao outro; olhos que falam, meu querido! O que sinto por ti, Hipólito, é amor, é verdade. (e beija o enteado na boca; o beijo dura algum tempo, até que Hipólito empurra Fedra, que se desequilibra) HIPÓLITO Que vergonha! Que vergonha! (acaba a cena e entra o coro de mulheres)
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu [dropcap style≠’circle’](P[/dropcap]RIMEIRO EPISÓDIO) FEDRA (para si mesma) Por Zeus, mulher, não voltes a pensar nisso! (entra a sua criada) CRIADA Que diz a minha senhora? A que fantasmas se dirige? FEDRA Não são fantasmas, são tristezas. Ainda não se sabe de Teseu. CRIADA Já lá vão quantos meses? FEDRA Sete meses! CRIADA Não haverá mulher nessa história, minha senhora? FEDRA Que mulher, mulher? Que mulher? O rei já passou a idade. Afrodite gosta de jovens mortais e de deuses, não iria agora perder o seu tempo e a sua arte com Teseu. Já lá vai o tempo em que Teseu, através de Afrodite, ardia. CRIADA Desculpai-me! A minha senhora é rainha e sabe mais do que eu, mas, e que a deusa não nos oiça, ela é muito traiçoeira. Não podemos confiar que a idade seja um escudo capaz de proteger das flechas de Afrodite. E a rainha reparou como o príncipe se parece cada vez mais com o pai, quando Teseu era novo? FEDRA (disfarçando, como se estivesse distraída) Quem?… Ah, o príncipe! Não, não reparei. Mas se assim for, não é de estranhar, é a ordem natural das coisas. CRIADA Será que Hipólito tem muitas amantes, como seu pai tinha, antes de conhecer a senhora? FEDRA Pelo que oiço falar, é devoto da deusa Ártemis. Casto como uma jovem virgem de Esparta, e muito virtuoso. CRIADA Que a deusa Ártemis ou Hipólito não provoquem a ira de Afrodite, com tamanha desdenha em relação ao poder do corpo! FEDRA Porque dizes isso? CRIADA Minha senhora, o mundo está cheio de histórias que se contam, e nenhuma delas boas… FEDRA Mas que poderia correr mal, mulher? O príncipe é casto. E é seguramente um jovem equilibrado e dedicado, não iria cometer a imprudência de ofender deuses ou deusas. CRIADA Se a minha senhora o diz… Mas que ele é um bonito homem, é. E Afrodite não gosta de perder homens desses para a sua irmã, Ártemis. FEDRA A beleza dele só dá mais valor à sua devoção! Virtude e caça perfazem o todo da sua vida. Que mal poderia uma deusa desejar a um homem assim? Ele pode ser muito igual a Teseu, fisicamente, mas no resto todo ele é diferente. CRIADA Mas não deixa de ser triste, ver um homem tão belo e pormo-nos a imaginar que nunca fará alguém feliz no leito, que nunca dirá palavras sussurradas ao ouvido de uma mulher, como aquelas que a senhora me contou que Teseu lhe disse, um ano após o vosso primeiro encontro: “Em todas as mulheres belas te vejo, em todas as mulheres feias o medo de te perder.” FEDRA Não invoques fantasmas, mulher! CRIADA Teseu ainda não foi dado como morto, senhora, ainda não é fantasma. FEDRA O fantasma da minha juventude. O fantasma das palavras que os homens me diziam e dos beijos que empurravam embarcações. Há quanto tempo não vivo isso! tanto tempo passou, que já morreu. É um fantasma. CRIADA Mas atormentam a senhora, essas lembranças? FEDRA Não são lembranças, são fantasmas! E a vida dos fantasmas, outra não é, senão atormentar aqueles a quem aparecem. (pausa) Julgas que é possível alguém mudar completamente de vida por outra pessoa? CRIADA Completamente, como, senhora? FEDRA Completamente. Abandonar as suas crenças; deixar o seu lar, ignorar o seu sangue… CRIADA Neste mundo, minha senhora, o que não faltam são misérias e dores. Que ninguém nos oiça, mas se aquilo a que se refere é aquilo que eu penso ser, não falta aí nada para a desgraça. E desgraça, minha senhora, é o que é mais possível de acontecer. Fosse eu a minha senhora, e desejaria antes que o impossível, neste caso, se sobrepusesse ao possível. FEDRA E que possível é esse, mulher? CRIADA As coisas correrem bem. Ninguém mudar de vida. Pois esta, como está, é mais do que os deuses podem prover. FEDRA Vamos preparar-nos para o jantar. CRIADA Vamos, sim, minha senhora. Há muito que aprendi que aquilo que os deuses querem, os mortais não contrariam. (saem de cena; entra o coro de mulheres) (PRIMEIRO ESTÁSIMO) CORO DE MULHERES A vida não importa nada. Um deus destrói a cidade, Dois arrasam o mundo todo E a paixão é muitos deuses. Vejam como Fedra caminha Para a sua perdição total. A imagem é uma prisão. Escravos que somos para nós. A beleza de Hipólito Lembrou um tempo que não viveu Senão em seus belos sonhos. O tão desejado amado, E não passa de uma imagem, Que em nós temos desde sempre. E não adianta perguntar Porque é este e não outro, Pois outro é sempre o mesmo. A matriz inscrita na alma Como um brasão nos diz o corpo, E o resto que perseguimos, Quando um homem nos faz derreter. Hipólito é o mais belo, Se em ti isso está inscrito; Não o nome, a imagem. CORIFEU Mulheres, não falai crispado, Como o mar em dias de chuva! Fedra resistirá se quiser. Por mais forte que seja a deusa, A vontade é mais que tudo. E ninguém pode desculpar-se Dizendo que foi pelo vinho Ou por arte de Afrodite. CORO DE MULHERES Como os homens desconhecem A força da deusa Afrodite! Facilmente destroem vidas, Mas não escapam da sua sorte. Como sobreviver à vida, Se ela é em nós imagem Corpo ideal nunca visto, Uma figura para sempre, Pela qual se morre, se vive? Enlouquece-se por tão pouco E tão pouco é quase tudo. Há mulheres enlouquecidas Por um verso ou uma frase, Que são outras formas de corpo. Pois muito sofrem as mulheres, Até para nascerem homens.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu (1) PERSONAGENS Afrodite Ártemis Chefe dos Guardas Corifeu Coro de mulheres Criada de Fedra Criado de Hipólito Fedra Hipólito Teseu (A acção passa-se nos limites da floresta, junto à cidade de Trezena, no Peloponeso) CRIADO A rainha Fedra, mulher de seu pai, o rei Teseu, aguarda-nos. Que dirá ela por regressarmos a Trezena sem ele, meu príncipe? HIPÓLITO Que posso dizer, senão a verdade? Tenho obrigação de dizer a verdade, assim me ajude a minha deusa de devoção, Ártemis. CRIADO Sei bem, senhor, das suas enormes virtudes, pois acompanho-o desde criança. Mas neste caso, o que é a verdade? HIPÓLITO A verdade, aqui neste caso como em qualquer outro, é ser conforme aos factos, se falamos do que é exterior, ou conforme à pureza do coração, sem mancha de egoísmo, de desejo, de interesse, de maldade, se falamos do que é interior. Por isso, e com a ajuda da mais virtuosa da deusas, direi à rainha que meu pai, o seu rei e marido, continua desaparecido. Que infelizmente, e após meses de procura, continuamos sem resposta ao que lhe terá sucedido. Não o podemos dar nem como vivo nem como morto. Pois aquele que está ausente, e sem dar notícias por si próprio ou que cheguem relatos por outrem, está refém da mais poderosa das deusas e a mais vil: a Dúvida. CRIADO E que pena tenho, meu príncipe, que em todos estes meses pela Hélade, não tenha encontrado amor! Nenhuma mulher virtuosa… HIPÓLITO Sabes bem que não há e nem pode haver mulher nenhuma em minha vida. Pois sirvo apenas à deusa Ártemis, que me instiga à castidade, às purezas das acções e do coração. Nenhuma mulher irá mudar esta minha genuína afeição, este meu modo de vida. E que poderia uma mulher fazer, senão levar-me a esbanjar o tempo em futilidades, em prazeres mundanos, por muito virtuosa que fosse? Procura o amor se queres perder-te; mantém-te casto se queres encontrar-te. (Hipólito e o criado saem de cena e entra o coro de mulheres) (PÁRODO) CORO DE MULHERES Ai como a juventude é senil! Diz saber o que é a vida E nem sequer do amor sabe. E muito pior que o amor É sem dúvida uma paixão. Tragam-nos um jovem sábio E nós fá-lo-emos imortal. Porque não aprendem os jovens A humildade e o recato Já que nada sabem da vida? Julga Hipólito que está salvo Pela devoção a Ártemis? Esta mesma teme sua irmã E agora também por ele. Hipólito nem se dá conta Que essa palavras provocam A pior de todas as deusas. Não se pode ofender o poder A quem varre existências. Afrodite toca os cabelos E faz cair um exército. (saem de cena; agora a cena passa-se na sala do trono; chega Hipólito e ajoelha-se perante Fedra) FEDRA Levanta-te e dá-me notícias de Teseu! HIPÓLITO Minha rainha, o rei, meu pai e seu marido, não deu sinal de vida. Nem de vida e nem de morte; a sua vida está refém da deusa Dúvida. FEDRA (levanta-se e dirige-se ao jovem príncipe, com olhos de quem é escrava de uma imagem, e toca-lhe num dos ombros) Hipólito, não esmoreças. Teu pai é forte e capaz. Não haver notícias é boa notícia. Os males sempre arranjam maneira de saírem do claustro do anonimato, de aparecerem onde menos se esperam, e na sua aparição intempestiva são sempre mais rápidos que os cavalos de Zeus; é o bem que se esconde ou dificilmente se deixa ver. (Hipólito anui, um pouco por resignação, um pouco por cansaço, e Fedra pede que ele se refresque, que descanse duas horas antes de ser servido o jantar. Fedra suspira ao ver o jovem afastar-se)