A Grande Dama do Chá

[dropcap]S[/dropcap]em José Prazeres da Costa, o “Bambu Vermelho” parecia vazio. Marina Kaplan estava lá. Luc Lefranc continuava a aliviar os bolsos dos jogadores que se atreviam a desafiá-lo na mesa de póquer.

Os chineses permaneciam, ruidosos, concentrados em diferentes jogos. De vez em quando alguém passava para as salas reservadas de ópio ou procurava uma rapariga especial. A luz das lanternas, dava uma cor avermelhada ao ambiente, que se cruzava com nuvens de fumo que esvoaçavam ao ritmo das ventoinhas colocadas no tecto e que se arrastavam muito devagar. Mas faltava o jogador que apostava tudo ou, mesmo, o dobro de nada. Em Macau era noite, mas ali ninguém tinha a noção de que horas eram. Vivia-se a eternidade. Sentado, Cândido Vilaça observava o ambiente, que se parecia com o dos filmes a preto e branco que vira em Xangai. As raparigas aproximavam-se, sorridentes, dos clientes, apesar de todos saberem que não existiam finais felizes. Vivia-se uma espécie de tristeza sem salvação. Em tempos de guerra era-se obrigado a ser feliz. O jogo, o dinheiro, o sexo ou o poder escondiam a infelicidade. Os portugueses que apareciam por ali falavam da solidão da vida no mar, aquilo a que chamavam saudade. Mas como podemos chamar à solidão da vida numa cidade como Macau, perguntava-lhes. Também seria uma forma de saudade?

Ninguém queria falar sobre isso.

Marina Kaplan aproximou-se e sentou-se defronte de Cândido. Trazia dois copos cheios de vodka e estendeu-lhe um. Este agarrou-o, como se ali estivesse a água que lhe permitia não morrer sedento. Bebeu um pouco.
– Obrigado.
– Eu vi que precisavas. Estás triste.
– Isto não é tristeza. É saber o que se vai passar.
Ela deu uma gargalhada.
– Sabes? Precisamos de um vidente em Macau. Cândido, sê realista. Qualquer um pode perder-se na noite. O importante é que esteja de regresso ao amanhecer.

Ele olhou com ar intrigado para ela, antes de dizer:
– Jin vai embora. E eu não sei o que vou fazer.
– Podes ajudar-me aqui. A Grande Dama do Chá vai embora, mas a loja não vai fechar. Eu vou ficar a geri-la. Podes continuar a tocar jazz. Ou, se preferires, a trabalhar com o Ezequiel. Ele fez-te uma proposta muito tentadora. Não podes dizer que te faltam oportunidades.
– Alguém me disse uma vez que um marinheiro só se faz enfrentando uma tempestade no mar.
– Tinha razão. Já deverias ter percebido isso em Xangai. Aqui vai acontecer o mesmo. Precisamos de homens e mulheres fortes para o que aí vem.

Calaram-se. Jin Shixin acabava de entrar na pequena sala, de onde nessa noite se via parte do “Bambu Vermelho”, porque não tinha o biombo de bambu a protegê-la. O seu sorriso era tentador e vinha vestida com um dos mais belos cheongsam que Cândido já vira. Na despedida, a chinesa queria deixar uma imagem inesquecível. Deparou com os olhos tristes de Cândido. Sentou-se ao lado dele e passou-lhe a mão pelo cabelo. Assim esteve durante uns segundos, perante o ar indiferente de Marina.

– Sabes que tenho uma missão, Cândido. Nada me afasta dela. Nem o meu amor por ti. Não é uma escolha entre ti e Du Yuesheng. Entre Macau e a China. É entre o que tenho de fazer e o que é importante, mas não é fundamental. Sei que isto te dói. Mas é melhor sentires uma dor aguda agora do que mais tarde.
– O teu coração é, às vezes, demasiado de pedra para se comover.
– Já o sabia, querido Cândido. Nunca te escondi o que sentia e pensava. As guerras ou se ganham ou se perdem. E nós não podemos perder esta. Acredita, eu voltarei.

Nessa tarde Cândido estivera a ouvir a rádio de Hong Kong. Falava-se de um terrível ataque em Nanquim efectuado pelos soldados japoneses. Com muitos mortos. Que continuava, segundo alguns padres que tinham conseguido chegar à colónia britânica. Em Macau os europeus preparavam-se para comemorar a chegada de 1938, perante a indiferença do chineses, cujo Ano Novo só se iniciaria numa noite de Lua nova, a 31 de Janeiro. Seria o ano do Tigre. Jin virou-se para Marina:
– Macau está cheia de conspiradores. Mais virão para aqui. Tenham cuidado.
– E Du Yuesheng?
– Está em Hong Kong.
– Tu vais ter com ele e depois partes para a China?

Jin refugiou-se no silêncio. Olhando-a, Cândido pensou na morte de Prazeres da Costa. Com Nomura morto não sabia se tinha sido ele a assassiná-lo. E se os assassinos fossem outros? Os homens de Du Yuesheng não eram santos. Em Xangai tinham feito verdadeiros massacres. Sabia que alguns membros do Bando Verde estavam a trabalhar para os japoneses em Xangai. Outros tinham vindo para Macau e tanto poderiam estar sob as ordens de Jin como de Nomura. Uns detestavam Chiang Kai-shek. Muitos, os comunistas. Outros só gostavam de dinheiro. Todos tinham argumentos, mesmo que falsos, para matar Prazeres da Costa. Jin talvez soubesse o que se passara, mas nada lhe diria. A sua lealdade a Du ultrapassava tudo. Luc LeFranc poderia saber. Seria um segredo impossível de desvendar. Jin sentia o ambiente pesado e o olhar inquisitivo de

Cândido. Acabou por dizer:

– Escravo é quem renuncia ao presente para sonhar com o que o futuro diz que lhe reserva. Mesmo que seja um aterrador castigo pelo que não fez. É igual. Renunciar ao presente é ser derrotado. E o que acontece a estes? Nenhuma piedade para eles. Nem os vossos mestres gregos acreditavam na piedade.
– Como sabes?
– Em Xangai também apareciam filósofos europeus, perdidos nas suas dúvidas. Encontravam na noite dos pecados um sentido para a sua vida.

Marina olhava para os dois. Esta era uma batalha que nenhum ganharia. Cândido ficaria. Jin partiria para junto do seu guia, Du Yuesheng e talvez fosse para a China morrer por ele. Combatendo japoneses e os inimigos chineses. As armas de Jin e Cândido eram as palavras. Feriam-se, neste jogo que nenhum queria vencer ou perder. Nenhum deles iria fazer cedências. O amor não vencia aquela batalha. Estavam só a destruir o que era belo. Jin acabou com o silêncio.

– Há homens que parecem estar sempre de partida. Tu és um deles, Cândido. Também tu partirás de Macau. És um marinheiro errante dum mundo sem fronteiras. Sabes que é cada vez mais difícil dizeres a que país pertences. Não queiras substituir uma pátria por um coração, só para te enganares. O amor que dizes sentir por mim, e pelo qual pedes que fique e abdique da minha missão, é uma desculpa. Isso é melancolia. Podemos ser livres, ou não. Podemos ser tudo, ou nada. Eu quero ser tudo.
– Faz-me então um favor. Fica viva por mim.
– Ficarei.

Jin agarrou num anel de jade verde que tinha no dedo anelar e colocou-o no dedo de Cândido.
– Com o tempo memórias e objectos são a mesma coisa. Com este anel verás sempre a minha face. As minhas faces, melhor dizendo. Uma virada para o nosso passado comum. E outra para o futuro que não sabemos o que será.
– Tens os olhos puros.
– Ninguém tem, Cândido.

Marina Kaplan fez um sorriso.
– Macau é bela e sem saída. Sejam sempre bem-vindos a esta cidade. Para jogar, para fugir do passado, para encontrarem o futuro. Assim continuará a ser.

A vida é um jogo violento de luzes e de sombras, como mostravam Jin e Cândido. Marina Kaplan não quis dizer que Jin procurava o tufão pois só na tempestade encontraria o seu destino. Não queria ser como o imperador que queria ser um intermediário entra a Terra e o Céu. Não conciliava. Desaparecia. Já o tinha feito outras vezes, em Xangai. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. E, assim, ela corria para o único sítio onde encontrava a paz: a guerra.

A noite estava a acabar, mas o amanhecer estava sombrio. Os relâmpagos e os trovões criavam um cenário medonho. Na porta do “Bambu Vermelho”, Cândido e Marina ficaram a ver Jin Shixin caminhar para o automóvel que Potapoff estacionara. Esperaram em vão. Ela não olhou para trás. Nem para dizer adeus. FIM

29 Nov 2019

A Grande Dama do Chá

[dropcap]O[/dropcap]s relâmpagos sobre as águas iluminavam o horizonte. A chuva caía, persistente, e o vento soprava, cada vez com mais força. Dentro do Chevrolet Confederate, estacionado perto do Cais 16, Jin Shixin e Cândido Vilaça tentavam ver a azáfama em que se tornara a descarga das caixas que tinham chegado a Macau. Lá fora, Patapoff, como sempre muito direito, dava ordens, apesar da chuva que ensopava os corpos de todos os que não estavam abrigados. Era um trabalho duro, ainda mais porque todos tinham de estar alerta. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Não havia sinais de Toshio Nomura ou dos seus homens. Deveriam estar à espera deles junto do armazém, ou no caminho, para fazer uma emboscada. Ou poderiam mesmo estar ali, à espera do momento ideal para atacar.

Jin Shixin abriu a porta do automóvel e saiu. Dirigiu-se num passo seguro para Patapoff e, quando parou junto dele, começou a dizer algo, que Cândido não entendeu. Também ele decidiu deixar o conforto do Chevrolet e deu um par de passos no chão molhado. Jin voltou-se para para ele e começou a gritar algo. Não acabou a frase. Ouviram-se tiros e Cândido só viu Patafff atirar Jin para o chão e tirar uma pistola do bolso. Muitos dos carregadores correram e foram em busca das suas armas. Vindos das sombras muitos homens aproximaram-se a disparar. Eram, por certo, os homens de Nomura. Não tinham esperado. O ataque era agora. Viu alguns corpos a cair no chão, ceifados pelas balas. Mas outros entrincheiraram-se e os tiros aumentaram de frequência. Nesse momento um pequeno orofício do tamanho de uma moeda de pataca apareceu-lhe no ombro.

Ajoelhou-se, tossiu com a dor, e caiu com a cara no chão. Ouviu gritos e mais tiros, mas tudo deixou de ser nítido. Sabia o que ia acontecer. Jin tinha muitos homens escondidos, à espera do ataque de Nomura. Agora eles iriam surgir por detrás, tapando o caminho à fuga dos japoneses e dos seus aliados. E estes ficariam cercados, entre dois fogos. Ele tinha sido o isco. E Nomura, sem ter medido bem as consequências da sua decisão, caíra no logro.

Muitas memórias que atropelavam-se agora umas nas outras, mas todas sem sentido. Abriu os olhos e só viu pés a mover-se. Tentou soerguer-se, mas não conseguiu. O sangue saía do ombro e tentou estancá-lo com um lenço. Pediu auxílio, mas ninguém o ouviu. Viu um carro a estacionar perto de onde estava caído. O motorista abriu a porta e fugiu. Talvez já o tivesse feito outras vezes. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. Ouviu mais tiros e viu o corpo do homem a cair no chão, ficando como uma sombra imóvel fustigada pela chva. O boné de motorista caiu da cabeça e foi afastado pelo vento. A seguir o silêncio impôs-se. Deixara de ouvir.

Voltou a fechar os olhos. Não sabia o que se estava a passar. Viu-se no meio de um clube em Xangai, empurrado por homens e mulheres que se riam na sua cara. Todos tinham máscaras, bigodes muito grandes e lábios muito pintados. A seu lado estava uma jovem chinesa, assustada. Gritava, para não escutar os risos. Na mão tinha uma pistola. Parecia pertencer a uma geração enganada pelos seus sonhos, enganada pelas suas fantasias, enganada pelos serviços secretos de todos os que mandavam num pedaço de Xangai, enganada pelos amigos e pelos inimigos, aniquilada moral e fisicamente, sacrificada a interesses que nunca iria conhecer. Era só um peão, num jogo sem regras. Alguém dava um tiro nela e ria, por detrás da máscara. Às vezes a moral e a lei excluem-se. É isso a condição humana. Os gregos chamavam a isso tragédia. E dela não há saída. Quando entrávamos no mundo perdíamos toda a esperança. Por isso um homem livre tem de atender à verdade. Cândido não sabia se sonhava, se delirava.

Voltou a abrir os olhos. A chuva continuava a cair com força e ia limpando a rua de sangue que tinha saído dos corpos caídos. Depois, voltou a perder os sentidos. Quando acordou, demorou um pouco a descobrir onde estava. Tudo à sua volta estava enovoado. Percebeu que estava deitado e procurou os cigarros. Só depois reparou que Jin estava ali. Sorriu e deslizou da cama, com cuidado. Sentiu tonturas e teve de colocar as mãos sobre o colchão. A chinesa, que estava defronte dele, agarrou-lhe nos ombros e disse:

– Deixa-te estar sossegado. A ferida não é grave, mas perdeste muito sangue.
– O que aconteceu?
– O que se estava à espera. Os homens de Nomura emboscaram-nos no cais, julgando que atacavam de surpresa. Mas tínhamos tudo previsto. Ficaram cercados e lutaram para sobreviver.
Cândido fechou os olhos e depois voltou a abri-los para ver se focava melhor a imagem.
– E Nomura?
– Tentou fugir. Mas não podíamos ter a mínima piedade por ele. Morreram muitos dos nossos.
– Os japoneses vão enviar alguém para o substituir. Esta luta não terá fim.

Jin fungou e encolheu os ombros. Os seus olhos estavam frios como gelo. Disse, num tom áspero:
– Esta guerra não se restringe a Macau, Cândido. Não é só este canteiro que conta. Não está isolado do resto. Todo o jardim está em chamas.
– E agora?
– Agora vamos continuar a guerra. Não há tempo a perder. Nem dúvidas. Sabes, Cândido, os grandes mestres sempre nos disseram que há quem oculte a sua debilidade por detrás da máscara da fortaleza e, outros, a sua fortaleza por detrás da máscara da fraqueza. Continua a ser assim, como sempre foi. Mas sabemos que a máscara da fortaleza trunfa sobre a da debilidade. Aí radica o poder. Temos de usar a máscara da fortaleza para garantirmos a vitória. Só assim nos seguirão.

Cândido olhou para Jin. Ela, no fundo, tinha de acreditar no que dizia. De outra forma, tudo se desmoronava. Não parecia crer que os opostos se uniam e que, muitas vezes, a debilidade não era mais do que a máscara de uma profunda fortaleza. Reparou que os olhos de Jin estavam agora tristes e inquietos.

– Que tens mais para me dizer?
– Uma coisa triste. A tempestade trouxe mais um corpo para a superfície. É o do teu amigo José Prazeres da Costa. Tal como a Amélia foi morto a tiro.
– Não me estás a mentir?
– Eu só minto o imprescindível.

Cândido levantou-se e abraçou-a. Entre o ombro e o pescoço dela encontrou o aroma de pele que o fazia perder a noção da realidade. Encheu os pulmões e deixou-se ficar assim durante algum tempo.

– Iam fugir, não é verdade?
– Parece que sim. Julgaram que era possível o amor. Mas, nestes dias, também ele é uma vítima de quem tem outros desígnios.

Cândido afastou-se dela e foi até à janela. As nuvens cinzentas estavam estacionadas no céu. Ia voltar a chover. Pensou que, para um crente, a fé na salvação, sem o travão da mão de Deus, pode fazer com que sacerdotes com outros intentos usem o único critério que resta para os desacordos: matar o inimigo. Era o que se estava a passar. Deixara de haver alguém que travasse a loucura que estava à solta na China. E agora, que fazer? Quando um homem tem medo e sente que não tem nada a perder pode fazer muitas coisas. Mas Cândido tinha uma fragilidade: amava. Virou-se e olhou para Jin. Depois voltou novamente a face para a janela. Chovia. Chineses corriam com embrulhos às costas, indiferentes à intempérie, mostrando que a vida continuava e era preciso sobreviver. Afinal, o que vale a pena salvar da pesada chuva que não escolhe amigos ou inimigos?

7 Nov 2019

A grande dama do chá

[dropcap]O[/dropcap] fumo criava desenhos estranhos nas salas do “Bambu Vermelho”, agitado pelas ventoinhas colocadas no tecto. Pareciam dragões ou grandes peixes que se moviam sem parar, como se fossem fantasmas que ora apareciam, ora desapareciam e se transformavam noutros seres. As mesas estavam repletas de chineses que, encostados uns contra os outros, fumavam e apostavam em todo o tipo de jogos. Muitos deles, refugiados da guerra, tinham muitas histórias, algumas inacreditáveis, para contar. Mas, de noite, escondiam-nas nas profundezas da alma e libertavam todos os outros sentimentos. De vez em quando sorriam, quando as raparigas que deambulavam pelas salas se encostavam a eles e lhes propunham outros jogos, mais físicos. A maioria recusava. Não estavam alegres nem tristes. As suas faces apenas denotavam uma falta de energia, a pouca que lhes restava, e um instinto de sobrevivência que os mantinha vivos. O jogo era uma transfusão de sangue. Luc LeFranc estava numa mesa discreta, longe daquelas onde se jogava mah-jong e outros jogos chineses, com outros três jogadores. O póquer era a sua vida naquela noite.

Numa pequena sala, resguardada por um biombo, Cândido Vilaça estava sentado com Marina Kaplan e Jin Shixin. O fumo torna a vista viciada, o que nem sempre nos permite perceber a realidade. Mas locais como aquele desejavam que a irrealidade absorvesse a nitidez. Para que todos se sentissem donos de uma felicidade aparente, aquela que todos buscavam mas era impossível de descobrir, pensou Cândido. Sentia-se destroçado pela fuga, sem explicações, de Prazeres da Costa. Marina olhava para ele e tentou confortá-lo. Mais fria, Jin explicou-lhe que, para fugir, ele precisava de cortar todos os laços emocionais. De outra forma, não poderia desaparecer sem deixar rasto.

– Meu querido Cândido, cada tempo cria as suas próprias ilusões. Muitas vezes prometem o céu e trazem apenas o inferno.
– Sempre sonhei que ia descobrir o paraíso.

Marina tocou com os dedos no braço dele, antes de dizer:
– Não foi isso que imaginámos todos?

Jin Shixin agarrou no seu copo de vodka e bebeu um pouco. Passou a língua pelos lábios, num gesto desafiador. O seu olhos estavam fixos em Cândido. Marina compreendeu, e sorriu. Jin disse:

– Tudo acaba mal na vida. Os finais felizes são uma invenção dos filmes, daqueles que às vezes iamos ver nos finais de tarde em Xangai, Marina.
– Nesses dias pensávamos que o mundo não ia acabar. Mas viviamos num equívoco. Ou melhor, eu vivia. A Jin sempre seguiu um caminho desenhado pelo seu mestre Du. Eu acomodava-me. Mas não era uma fiel, como ela.

Não era uma crítica. Era uma constatação. Jin fechou os olhos, numa secreta concordância.
– E Du, onde está ele, Jin? Em Hong Kong?
– Acredito que sim.

A sua voz era convincente. Mas Marina, que tinha outros meios de informação, sorriu. A intervenção de Luc LeFranc no caso da resolução da dívida de Prazeres da Costa não tinha tido só o dedo de Jin. Esta olhou para a russa e, compreendendo o que ela estava a pensar, disse:
– Isso é irrelevante. O que importa e que os japoneses não saibam onde ele está. Ninguém consegue voltar atrás, Marina. O mal que os homens fazem, persiste. Não há cura para que o que fazemos. Cada acção é absoluta e eterna a sua consequência. Nem o vosso Deus vos salva disso.
– Talvez não, Jin. Mas nós, que acreditamos mais ou menos em Deus, acreditamos na salvação final. E tu, Cândido?

– Eu sou um refugiado dum mundo mágico que não domino.
– Só quando tocas o teu saxofone e pões as pessoas a dançar consegues iludir o feitiço.
– Ou quando estou apaixonado.

Olhou para Jin. Esta desviou os olhos. Estava inquieta. Marina levantou-se e saiu da sala. Ia ver como estava o ambiente, incluindo nas salas reservadas, onde o ópio era servido aos clientes que se deitavam à espera de pacificarem os seus corpos e pensamentos. Luc LeFranc, por momentos, deixou de olhar para as cartas e para as faces dos outros jogadores e seguiu-a com o olhar. De repente Marina reviu Li Pao. A sua face estava envelhecida, mas era o mesmo fotógrafo que, em anos anteriores, era conhecido como aquele que transformava os corpos das raparigas de Xangai em motivos de desejo, através de calendários e postais muito coloridos e belos.

– Que fazes aqui, Li Pao?
Ele surpreendeu-se e depois fez um sorriso triste:
– Estou a repousar durante uns dias. Vou para as Filipinas. Por lá há paz.
– Por enquanto.- Achas que a guerra chegará lá? Eu apenas desejo fazer as minhas fotos.
– Ninguém é inocente num mundo de pecadores, Li Pao. E as raparigas ficaram em Xangai. Em Manila são menos inocentes.

Marina colocou-lhe a mão no ombro. Junto deles estava uma rapariga filipina que o levou para uma das salas de ópio. Li Pao parecia vergado ao peso das suas dúvidas. Nesse momento deparou-se com Popoff. O sempre glacial russo, parecia transtornado. Ele perguntou:

– A menina Jin está por cá?
– Está. Eu levo-te até ela.

Caminharam um pouco até chegarem ao reservado onde Jin e Cândido, de mãos dadas, falavam. A chinesa mostrou um ar surpreendido com a chegada do russo:
– O que aconteceu, Patapoff.
– Uma coisa muito estranha, menina Jin. Um grupo de pescadores chegou há pouco a Macau com um corpo que estava a boiar e que eles recolheram. Pelos vistos estava preso a algo pesado, mas as cordas desprenderam-se e veio à superfície. Como são nossos amigos chamaram-me antes de contactarem a polícia. Era o corpo de uma mulher branca. Tinha sido morta com um tiro junto ao coração.

Os olhos de Jin brilharam:
– Sabes quem era?
– Penso não me ter enganado. Mas acho que era o corpo da senhora Amélia, com quem o senhor Prazeres da Costa fugira, segundo me tinham contado.

Cândido sabia que fora Jin que informara Potapoff. Mas este acontecimento contradizia Nomura. Ou Prazeres da Costa fugira e matara, por uma razão desconhecida, Amélia. Ou ambos tinham sido mortos pelos japoneses. E só faltava encontrar o corpo do português. Olhou para Jin e, depois, para Marina. Ambos estavam a pensar o mesmo. Jin disse então:

– Agora sim, os dados estão lançados. Não há mais tempo para jogos nas sombras.
Virou-se para Potapoff e acrescentou:
– Vai informar quem deve saber de tudo isto. Depois, quando regressares, falaremos.
Potapoff fez uma ligeira vénia e saiu. Jin virou-se para Cândido:
– Tens medo, Cândido?
– Deixei de saber o que é isso.

Marina sentou-se junto a eles, depois de ter ido buscar uma garrafa de vodka. Despejou uma boa porção em três copos e agarrou num deles. Bbbeu o seu conteúdo de um trago. Virou-se para Cândido:

– Sabes, um dia conheci um padre jesuíta em Xangai. Definia-se como um marinheiro do Papa. E disse-me que que com eles tinha aprendido lógica, metodologia e sentido de justiça.
– É preciso que se faça justiça por Prazeres da Costa. Mesmo apesar dos seus erros.
– Sim, o que custa é morrer para nada.
Jin disse, numa voz firme:

– Neste caso poderemos perecer. Mas será por uma causa.
O olhar de Jin faiscava. Cândido nunca vira tanta certeza concentrada nas íris de uma mulher.
Horas mais tarde, quando Potapoff se foi embora da casa de Jin, esta veio ter com Cândido. Este estava deitado na cama. Ela voltou a despir-se e colocou-se em cima dele. Nas guerras não há empates. E, nessa noite, Jin derrotou-o. Só parou, quando ele lhe pediu para dormir.

25 Out 2019

A Grande Dama do Chá

[dropcap]O[/dropcap] restaurante chinês “Cam Seng”, no quinto andar do hotel Central era o local a que Toshio Nomura chamava o seu escritório à hora de almoço. Era um homem de hábitos às refeições, algo estranho para quem as rotinas podem ser perigosas. Sabia-se também que, às vezes, passava parte da noite no clube “Hou Heng”, no sexto andar, onde se encontravam muitos estrangeiros e alguns portugueses. Era um bom local para colher informações e, da varanda, tinha-se uma agradável vista da cidade. Nomura, que evitava ir aos locais onde a maioria dos presentes era chinesa, preferia, nos finais de tarde, ir ao Canídromo. Gostava de apostar nas corridas de cães. Depois ia até ao salão de dança do local, acompanhado quase sempre duma filipina, que apresentava como sua secretária, que muitos diziam ser a amante. O japonês mandara uma mensagem a Cândido Vilaça logo pela manhã para estar ali para almoçarem. Jin Shixin, que ainda estava em casa do português, sorrira, quase malevolamente.

Nomura estava sentado numa mesa colocada num canto, de onde se via toda a sala, e fumava um cigarro através de uma cigarrilha. Pareceu-lhe mais novo do que era. Talvez tivesse pouco mais de 40 anos. Assim que Cândido se sentou à sua frente, perguntou-lhe, no seu português com sotaque brasileiro:

– Bebe vinho? Aqui têm bom vinho tinto português?
– Aceito. Há muito tempo que não o bebo.
– Acho que sei a marca. Periquita?

Assim era. O empregado trouxe uma garrafa e antes de a abrir mostrou-a. Nomura confirmou a escolha.

– Para comer propunha uma garoupa frita. Aqui é excelente. Com arroz chao-chao.
– Parece-me uma excelente sugestão.

Nomura fixou os olhos em Cândido e pareceu estudá-lo com rigor. Era um homem habituado a ler os pensamentos dos outros.

– Parece-me um bom homem, Cândido. E tenho de lhe agradecer a informação que nos passou. Permitiu-nos saber onde é o armazém do Bando Verde.
Encomendaram a refeição e Nomuera disse:
– Só tenho pena de não terem aqui sake.
– Tem de pensar em importar. Se pensa ficar em Macau muito tempo…
– É uma boa ideia.
– Importar ou ficar em Macau?

Nomura deu uma gargalhada.
– Gosto do seu sentido de humor. Mas, aproveitando a boa disposição, deixe-me perguntar-lhe algo. Sabe do José Prazeres da Costa, o nosso comum amigo?
– Desde ontem à hora de almoço que não o veio. Estive no “Bambu Vermelho” à noite, mas ele não apareceu. O que foi estranho, porque tem andado com sorte ao jogo.
– Eu sei. Pagou-me tudo o que me devia. Bem, poderia dizer-lhe que não sei dele. Mas isso é uma mentira e depressa descobriria isso. E deixaria de confiar em mim.

Fez uma pausa, para apreciar o resultado das suas palavras. O olhar de Cândido manteve-se impassível.

– Pois bem, o nosso comum amigo embarcou esta manhã para Hong Kong. Ia acompanhado por uma senhora, Amélia de seu nome, segundo julgo saber. Acredito que vá a caminho de Portugal.

Deve ter conseguido ganhar algum dinheiro nas últimas semanas para conseguir fazer isto. Até há pouco tempo estava falido. Ele não lhe disse nada?

– O que está a dizer apanhou-me de surpresa, tal como julgo deve ter acontecido consigo. Mas deveria estar a preparar a fuga há vários dias.
– Só uma coisa estranho, porque estou habituado a que as pessoas tenham duas faces. Ou mais, ainda. Como é que ele ganhou tanto dinheiro em tão pouco tempo, tendo o suficiente para me pagar e, ainda mais, para fugir?

– A sorte do jogo também muda.
– Acha que muda sem uma mão invisível e interessada intervir?

Fixou o olhar em Cândido, que sentiu um leve arrepio. Sabia o que se tinha passado. A sorte foi que foram interrompidos pela chegada da comida. Nenhum deles reparou que, numa mesa próxima, se tinha sentado Luc LeFranc. O jogador olhou para eles, disfarçadamente e pediu algo para comer e beber. Trazia um exemplar do “South China Morning Post”, que foi lendo com interesse. Passado um par de minutos, Nomura voltou a falar:

– Diga-me honestamente, amigo Cândido. Agora que o José fugiu, estaria disposto a colaborar mais proximamente connosco?
– De que forma?
– Ajudando-nos no circuito de comunicações. Fazendo relatórios diários sobre o que ouve nos locais onde vai. Nós desejamos saber o que sentem as pessoas que vivem em Macau. E, claro, perceber quem são os nossos amigos. E os nossos inimigos.
– Eu sou apenas um músico.
– Os músicos têm os melhores ouvidos.

Dito isto, Nomura deu uma gargahada.
– Meu caro, nunca se tente mostrar que é mehor do que é. Nem pior do que acham que é.
– Não tento. Prometo ir pensar na sua oferta. Mas queria deixar-lhe uma informação. Sei que amanhã à noite, vai haver uma nova descarga no Porto 16. Sei apenas que desta vez é muito importante.

– Importante? Tem ouro?
– E não só. Heroína.
Nomura franziu os olhos.
– Heroína. Os chineses não costumam traficar essa droga. É um monopólio nosso.
Foi a vez de Cândido mostrar-se surpreendido:
– Vocês traficam heroína?
Nomura fez um ar enfadado.
– Só o suficiente para pagarmos as nossas acções. Não é um negócio como o do Bando Verde. Mas agradeço a sua preciosa informação. De resto trago-lhe uma lembrança.

Dito isto, tirou de um bolso do casaco um envelope, que colocou defronte de Cândido. Este agarrou-o e viu o seu conteúdo. Tinha uma quantidade interessante de dólares americanos e de patacas.
– Não posso aceitar, meu caro Nomura.
– Pode e vai fazer isso. Porque é uma forma de selar a sua lealdade connosco.

O seu olhar era agora agressivamente fixo. Cândido cedeu. Agarrou no envelope e guardou-o. Nomura sorriu:
– Meu caro amigo, você é sincero e isso torna-o um alvo fácil. Já eu vivo entre a espada e a parede. Estes são tempos difíceis. Seremos sempre julgados depois, pelos nossos companheiros. Para o bem e para o mal.

Parou um pouco para beber um pouco de vinho. Os seus olhos brilhavam:
– Para mim quem não sabe distinguir entre o bem e o mal, entre o correcto e o errado, não merece a nossa atenção. Há coisas essenciais, a lealdade, o sentido de dever e o valor. Sabe, Cândido, sempre fui um guerreiro, nas mais diferentes tarefas que exerci. Aprendi uma coisa: a maior preocupação de um guerreiro é como se comporta defronte da morte. A vida faz parte da morte da mesma forma que a morte inclui a vida, diz um nosso provérbio.
– Mas a guerra destrói toda a lucidez, não?
– Os homens fizeram barbaridades mais cruéis que as que cometeram, invocando o Bem, enquanto cortavam cabeças aos inimigos? Em qualquer caso, quando te esqueces da morte e te distrais, perdes a prudência. Mas já viu o suficiente disso em Xangai, não foi? Ninguém deseja que isso aconteça em Macau. É uma cidade tão pacata.

Cândido ficou calado. Nomura tinha uma missão. Que chocava com a de Jin. Um deles sairia vitorioso. O outro seria derrotado. Não havia meio termo. E ele, sentiu, já escolhera o seu lado. Ouviu ainda Nomura dizer:
– Lembre-se, quando se caminha de noite por caminhos iluminados, deve-se andar pela sombra. Devemos ocultar o rosto. Mas eu sei quem são os meus amigos em Macau. E o Cândido é um deles.

Nomura não confiava totalmente nele. Mas, naquele momento, era-lhe útil. Estiveram mais algum tempo a conversar, e depois de terem bebido o chá, se levantaram. Luc LeFranc deixou-os sair. Du Yuesheng iria ficar contente ao saber que tudo corria como esperado.

18 Out 2019

A grande dama do chá

[dropcap]O[/dropcap] escritório de Ezequiel de Campos ficava em frente do edifício do Leal Senado. Dali via-se o poder. Ou, se alguém quisesse pensar de forma mais conspiradora, o local de onde o homem de poder, que escolhia trabalhar nas sombras, observava e esperava o momento certo para conseguir o que queria. Cândido Vilaça, olhando da janela do escritório para o largo em frente, pensou que se os chineses gostavam de jogar, Ezequiel aprendera com eles. Mas era um outro tipo de jogador. Analisava com antecedência as hipóteses de vitórias ou derrotas. Sabia que só a eficiência vencia. Virou-se para ele quando Ezequiel lhe perguntou:

– Quer um vodka? Ou prefere um uísque? Eu vou por este.

Cândido acenou com a cabeça e depois sentou-se na cadeira que estava defronte da secretária do português. Reparou que atrás desta estavam quadros com pinturas antigas. Ezequiel sorriu, depois de colocar os dois copos na mesa.

– Está curioso? São os retratos de dois homens que foram muito importantes a história de Macau.

Marcaram a vida política e comercial da cidade. Miguel de Arriaga, que foi Ouvidor no início do século XIX. E José Carlos da Maia, que foi Governador no início do século XX. Repare na vida que há nos seus olhos. Sobressaem nas pinturas. Os olhos, sempre o achei, são as luzes da alma. Percebe-se por eles se alguém tem algo que os move. Ou se a sua vida é inútil.

Falava com uma ponta de orgulho, como se se sentisse um sucessor de ambos. Cândido nunca tinha ouvido falar deles, mas os rostos dos retratados impressionavam, pela força de carácter.

Talvez Ezequiel fosse assim. Marina Kaplan tinha-lhe confidenciado que aquele que era agora o seu amante dormia pouco de noite. Era, para ele, um tempo de pesadelos. Sonhava com a noite em que os pais tinham sido mortos, numa rixa inexplicável à porta de um restaurante situado no Porto Interior. Quando acordava, desejoso de vingança, confrontava a escuridão da sua alma de uma simples maneira: aumentando o seu poder e riqueza. Isto era o que fazia com que a sua vida fizesse sentido. Cândido olhou para ele. Marina contara-lhe ainda que ele fora um homem que, primeiro, perdera tudo, quando os pais morreram. Depois ganhou tudo. E depois perdeu tudo.

Até aprender. Para ele a vida tornara-se uma competição. Vivia para ganhar.

– O que é que vai fazer em Macau, Cândido? Vai ser músico toda a vida?
– Não sei. A minha vida sempre foi feita de acasos.
– Eu sei. A minha também o foi. Mas, depois, encontrei um caminho.

Cândido sorriu.

– Aproximam-se tempos difíceis, mas empolgantes. O Cândido poderia ser um colaborador muito útil para mim.
– Para quem não sou?
– É verdade. Os japoneses acham que é útil a eles. Jin Shixin pensa o mesmo. E, já agora, o Cândido consegue ser útil a si próprio?

– Tento sobreviver no meio disso tudo. Mas, sabe, o amor mostra-me que caminho devo seguir.
– Acha mesmo que Jin Shixin vai ficar aqui em Macau, consigo, enquanto a sua China vai continuar em guerra nos próximos anos? Desculpe que lhe diga: você não é um jogador. É um sonhador que está num trapézio sem rede por baixo. Vai aleijar-se.
– Acha que Jin deixará Macau? Ela aqui é a Grande Dama do Chá. O que será na China, no meio de uma guerra sem fim?

– Uma guerreira com uma missão, não acha? Desiluda-se Cândido. Ela pode amá-lo, mas ama mais a China. E o seu mentor, Du Yuesheng. E este tem outros planos para ela.

Fez-se um silêncio desconfortável. Depois, Ezequiel, após beber um gole de uísque, disse:

– Navegamos num mar de inimigos. Lisboa não nos virá salvar. E os ingleses vão ter mais problemas do que julgam agora. Xangai caíu nas mãos dos japoneses. Nanquim está por horas.

Chiang Kai-shek não conseguiu que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha avançassem para sanções efectivas aos japoneses. E estes ficaram com liberdade para avançar na China. Nós vamos fiar-nos na neutralidade. O problema é que os chineses e os japoneses desconfiam de nós e qualquer movimento não equilibrado da nossa parte é claro e suspeito. Estamos entre as forças navais japonesas e a China.

– E onde é que isso nos leva?
– A nenhuma forma de divertimento. A nada que o jazz, apesar da sua beleza, consiga resolver.

Macau não tem recursos, víveres. É uma praça comercial. Compra e vende. Se for cortada a ligação ao sul, comeremos o quê? O ópio que aqui temos? Precisamos de arroz. E de carne e peixe. Nos próximos anos quem controlar isso, controlará a vida, mas também a política. Assim, quem vai vencer, Cândido?

– Não sei. Mas temos de alinhar por algum lado.
– Temos? Acha que os portugueses sobreviveram em Macau porque, ao longo de séculos, tomaram decisões radicais? Quando o fizémos, saiu asneira. O inimigo de hoje pode ser o aliado de amanhã, nunca o esqueçamos. Deveríamos aprender com os chineses a arte da caligrafia.

Como nos devemos conter de forma a controlarmos o pincel. Temos de aprender a controlar o corpo e a mão. É tudo uma questão de prática e repetição. E de vislumbrarmos o futuro.

Cândido olhou com atenção para Ezequiel de Campos. Estava no apogeu do seu poder e da sua capacidade sedutora. Os olhos azuis eram poderosos e combinavam perfeitamente com o ar maduro que lhe davam os cabelos brancos. Comjugava perfeitamente a gestão da advogacia e dos seus interesses comerciais. Não deixou de voltar a notar a cicatriz que lhe marcava o rosto entre a orelha esquerda e o pescoço. De vez em quando levava a mão lá para a acariciar. Para recordar. Ezequiel devolveu-lhe, por momentos, o olhar fixo.

– Não teme os japoneses, Ezequiel? A Marina contou-me que eles querem conquistar a noite de

Macau. Produzem heroína. E querem substituir o ópio por ela. Domesticando o povo. Esta cidade pode ficar sem parte da sua vida. E sem qualquer futuro.
– E quem vai chorar? Será tudo uma questão de quem ganhar dinheiro com isso. E quem tem dinheiro? Foge para a Indochina? É pouco. A guerra vai lá chegar. Repare, Cândido, cada um joga o seu jogo, com corpos a amontoarem-se à sua volta. E com a guerra de guerrilhas os comunistas sonham com a sua futura vitória. Não sejamos ingénuos. Cada um só pode contar consigo. Sabes, os ocidentais olham para um tanque e buscam o peixe que lidera. Os orientais vêem toda a cena. Temos de compreender que estamos na China. O ocidente é individualista. A antiga China era colectivista, onde se pertencia a uma larga comunidade agrícola. Sobreviver dependia mais do grupo do que do individual. Os ocidentais preocupam-se mais com a glória individual. Lembra-te dos Jogos Olímpicos. Há neles um ideal individualista de honra e glória. A competição individual. Isso ficou no sangue do Ocidente.

Ezequiel levantou-se e aproximou-se da janela. Tinha um charuto entre os dedos por acender. Depois de alguns momentos de silêncio, disse:

– É por isso que te estou a perguntar se queres trabalhar comigo. Vai haver muito para fazer nos próximos anos. E podes continuar a tocar, nas horas vagas. Mas pensa no futuro. E não apenas no amor. Sabes o que vejo daqui? Cavaleiros pálidos aproximam-se de Macau. Vão chegar assim que o vento começar a uivar.

Toda a suavidade desaparecera dele. Nas linhas do seu rosto, nas tensões do seu corpo, havia uma decisão letal. Ezequiel sabia qual o seu destino.

14 Out 2019

A Grande Dama do Chá

[dropcap]A[/dropcap]s chávenas e os bules de chá que existiam na loja “O Jardim Celestial” de Jin Shixin eram da dinastia Qing e estavam decoradas com requinte. Compreendia-se: Jin era a Grande Dama do Chá. Não deixava nada ao acaso, ela que criara a mais afamada loja de chá de Macau. Enquanto ela atendia uma cliente portuguesa, Marina Kaplan ia passando os dedos pela fina porcelana das chávenas que estavam num móvel de madeira de cerejeira. Depois sentou-se e inspirou o aroma do chá verde de Anhui que tinha defronte dela. Levou a chávena aos lábios e deu um pequeno gole. Era maravilhoso. Como os chineses Han, Jin não se convertera ao gosto do chá preto que a dinastia Qing, manchu, preferia. Não por acaso, na Cidade Proibida, existiam duas cozinhas para preparar a bebida. Uma para fazer o chá preto com leite para a corte manchu e outra para o chá verde preferido pelos Han. Esse mundo dividido ao meio pelo chá acabara com a chegada da República.

Marina sentiu que Jin, impecavelmente vestida num cheongsam verde bordado com uma flor de lótus, se aproximava. Levantou a cabeça e esboçou um sorriso. A pose de Jin era exemplar. O seu sorriso era convidativo e o olhar doce. Qualquer cliente era seduzida por ele. Os seus olhos cintilavam. Sentou-se defronte da russa e perguntou:

– O chá está ao teu gosto?
– Está maravilhoso.

Jin sentou-se e agarrou no bule, despejando um pouco de chá para a chávena que estava à sua frente.

– O Cândido este ontem à noite no Bambu Vermelho?
– Chegou lá muito abalado.
– Imagino. Viu o corpo do russo morto à porta do restaurante.
– Como sabes?

Jin fez um sorriso enigmático, que Marina compreendeu. Desde que chegara a Macau, Jin criara uma vasta teia de contactos. Sabia o que se passava nas ruas e nos becos e, nalguns casos, no meio da administração portuguesa. Muitas das suas clientes eram casadas com funcionários públicos portugueses. Falavam de coisas triviais. E de outras mais importantes. Jin sabia ouvir.

– Cândido percebeu agora onde tu o colocaste. Ele ama-te. Mas ontem ficou na dúvida se não o estás apenas a utilizar para teu benefício. Porque voltou a ver a morte defronte dos olhos.
– Ele terá pensado no que sucedeu à sua namorada em Xangai, a Qin Xuan?
Marina franziu a testa, como se estivesse a tentar recordar o passado, antes de dizer:

– Acho que sim. Lembras-te do que sucedeu? Foi logo a seguir ao suicídio daquela actriz famosa, a Ruan Lingyu. Era tão nova! Mas a Qin foi morta. Num daqueles ajustes de contas entre bandos. Ela estava perto do homem que queriam matar e também foi baleada. Vinha a sair dos estúdios da estação de rádio que tinha o Lucky Strike Radio Hour e que passava jazz. Cigarros e dançar eram a mistura perfeita, diziam eles. E ela, que vendia cigarros no Canídromo, tinha ido lá levar maços de tabaco para os locutores. Uma gentileza que lhe saiu cara demais. Cândido demorou tempo a recuperar, como sabes. Passou a tocar e a beber para esquecer. E viciou-se no ópio. Ainda bem que veio para Macau.

Jin tentou parecer imperturbável.
– Ela alguma vez soube quem disparou?
– Nunca lhe disse. É bom que fique na ignorância. Sabe apenas que algo correu mal e que a polícia nunca conseguiu averiguar nada.

Os olhos de Marina denotaram alguma nostalgia.
– Nunca mais vai haver uma Xangai assim. Com corridas de cães no Canídromo e cabarets, homens a apostar nos cães como se estivessem a jogar a sua própria vida, noites loucas a dançar cheias de homens e mulheres desejáveis, sem ninguém saber que horas eram. Com todo o tempo do mundo para viver. Para mim, que vinha fugida da Rússia, esse era o paraíso.

Jin sussurrou e disse, mordaz:
– Fumavas Lucky Strike ou Da Ying?
– Os verdadeiros cigarros americanos. Em tempos de perdição, para quê escolher cigarros que fingiam ser chineses e eram também americanos, como os Da Ying? Mas, diz-me, Jin, que queres fazer com Cândido?

– Dar-lhe apenas uma missão que faça com que se sinta vivo. E amor.
Jin parou por um momento e bebeu um pouco mais de chá.
– De que lado estás, Marina?
– De nenhum.
– Os japoneses acabarão com o jazz. E com a paz. E com Macau. E mesmo com o teu amor, Ezequiel.
– E vocês, se ganharem, não o farão?
– Ainda vives numa ilusão, Marina. És inteligente, mas só vês o que queres. Lembra-te, Xangai era a cidade das concessões estrangeiras. Com os comunistas a corroerem-na por dentro. A cidade só parecia livre para os estrangeiros. Xangai não era uma cidade. Era uma ilusão feita com pessoas reais. Tudo ao serviço do prazer. E dos sonhos para os ocidentais. Era a paz perfeita: uns divertiam-se, os outros ganhavam dinheiro. Depois vieram os japoneses. E a ilusão foi como uma bola de cristal: quebrou-se.

– Eu sei o que passei, Jin. Comecei como acompanhante no Ciro’s. Tive a sorte de Du Yuesheng e de ti própria terem gostado de mim. Não o esqueço. Mas quero viver a minha vida.
– E se os japoneses ganharem?
– Descobrirei qual é o ritmo da dança. Aprendi que neste mundo de enganos, cada um cria o seu próprio jogo de sombras e de ilusões.
– Esse é também o jogo do Ezequiel? Ou tem também um acordo com os japoneses?
Marina fez um ar sério. Sondou o olhar de Jin. E depois disse:
– Ele é um homem com valores. É um negociante, mas tem ética. Não se vende por tudo. Porquê?
– Há cerca de dois anos os japoneses começaram por querer tomar conta da vida noctura de Xangai na barba dos franceses. Queriam substituir o ópio pela heroina, que se injecta com agulhas. Extrai-se do ópio, por isso eram negócios concorrentes. Queriam os clubes nocturnos para controlarem a noite e afastar o Bando Verde. Sem o dinheiro do ópio, deixaria de ter tanta força. É uma boa forma de se ocupar uma cidade sem ninguém reparar.

Parou um pouco para ver que reacção causava o que estava a dizer em Marina. Esta ripostou:
– Também querem fazer isso em Macau. Nomura propôs comprar-me o Bambu Vermelho há umas semanas. Mas aqui gosta-se mais de ópio. E não há uma vida nocturna como a de Xangai. O seu objectivo, aqui, cairá por terra. Talvez conquistem a noite de Manila. E a de Hong Kong. Aqui não.
– Sabes, Marina, tudo isto faz-me lembrar uma velha fábula chinesa. Nela, uma coruja encontra uma codorniz e esta pergunta-lhe: “para onde vais, coruja?” E esta responde: “Vou para oeste, pois as pessoas da aldeia reclaram muito do meu piar.” Diz então a codorniz: “aceita uma sugestão minha: muda o teu piado, ou vão odiar-te onde quer que vás”.

– Eu seu mudar de piar, Jin.
Marina deu uma gargahada. Apesar das diferenças, conheciam-se há demasiado anos. E partilhavam demasiados segredos. A conversa foi interrompida pela chegada de um casal. Falavam inglês, com sotaque. Eram americanos. Jin levantou-se e colocou o seu sorriso de vendedora.
– Continuaremos esta conversa depois.
– Diz-me só mais uma coisa. Foste tu que mataste o russo?
Jin olhou para ela, mas não respondeu. O seu olhar dizia tudo. Marina Kaplan agarrou na chávena e depois levou-a à boca. Aquele chá delicioso não deveria ser desperdiçado.

4 Out 2019

A Grande Dama do Chá

 

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[dropcap]P[/dropcap]ara Cândido Vilaça, Macau ainda era um labirinto de ruas desconhecidas. De esquinas e becos onde se escondiam almas que não queriam revelar o seu passado. Ele não era diferente. O seu passado atormentava-o, como se fosse um fantasma incapaz de adormecer para sempre. Olhou para o céu em busca das estrelas. Não as viu. Estava uma noite nublada e quente. Caminhava calmamente para o restaurante “Grande Oriente”, onde combinara encontrar-se para jantar com José Prazeres da Costa. Ainda um pouco longe, ouviu o estampido dum tiro, algo que não o incomodou. Ouvira muitos em Xangai, quando os assassínios se sucediam, mesmo nas avenidas mais movimentadas da concessão francesa. De qualquer maneira apressou o passo. Passados cerca de cinco minutos chegou defronte do restaurante. Junto a ele aglomeravam-se algumas pessoas e um par de agentes da Polícia de Segurança Pública. Aproximou-se. No chão estava um corpo. Não tardou a reconhecê-lo. Era o do russo Ivan Sapojnikov, que trabalhava para Toshio Nomura. Não era um bom sinal. Fora morto a tiro.

Os agentes da PSP pediam aos curiosos para se retirarem, enquanto esperavam a chegada de um médico e de um oficial superior. Cândido entrou no restaurante, onde muitos clientes pareciam não se ter apercebido do sucedido. Ou então, não desejavam saber o que se passava.

José Prazeres da Costa estava sentado numa das mesas, com um copo de vinho tinto à frente. Cândido sentou-se à sua frente e, antes de dizer algo, Prazeres da Costa questionou-o:

– Está morto, não é?
– Parece-me que sim.
– É uma desgraça. Tinha estado a falar com ele há pouco. Ia levar um recado meu para o Nomura. Porque é que aconteceu isto?
– Porque tinha de acontecer.

O olhar de Prazes da Costa ficou lívido:

– Achas? Será que também me seguem?
– Quem?
– Os chineses do Bando Verde. É deles que Nomura tem medo.

Foram interrompidos por Tomé de Freitas, o dono do restaurante. O seu ar era pesado. Olhou fixamente para Prazeres da Costa e, depois, para Cândido, antes de perguntar:

– Desejam jantar?

Ambos escolherem os inevitáveis bifes com batatas frita e ovo estrelado, uma especialidade da casa. Tomé de Freitas ia dizer algo mais, mas conteve-se. Não conhecia bem Cândido. Afastou-se, rumo ao balcão. O músico olhou para Prazeres da Costa. A sua habitual postura orgulhosa, mas tímida, dera agora lugar a outra, em que os seus mais pequenos gestos traduziam apenas inquietação. Ou desconfiança e insegurança. Cândido viu-o sondar a sala com os olhos. Tinha medo. Tentou desviar a conversa:

– E Amélia, como está?
– Tenho de tomar uma decisão. Mas agora não sei. Se eu estou em perigo, ela também o poderá estar. Meu caro Cândido, esta morte é um sinal. Não vai haver tréguas. Nomura vai retaliar. Este era um dos seus tenentes. Não sei se sabes mas têm morrido homens do Bando Verde e outros que alinham connosco. Assassinados. Outros desaparecem. Tem sido uma guerrra subterrânea, mas onde só têm sido sacrificados peões. Como no xadrez, compreendes. Agora, a guerra é outra.
– Achas que poderá chegar a ti?

Prazeres da Costa fulminou-o:

– E a ti, se desconfiarem do que fazes. Se perceberem que usas o que te diz a chinesa para nos informares, também serás um alvo. Não era nada disso que o Nomura me prometera. Mas se o russo foi morto… Até o Tomé, que é um grande amigo nosso, e tem ouvidos muito atentos, está receoso.

Cândido franziu os lábios. Bebeu um pouco de vinho, no momento em que colocaram a comida defronte deles. Depois disse:

– A política sempre foi uma actividade perigosa. Aprendi isso em Xangai. E outra coisa. A justiça as vezes não é cega, como o de uma deusa, mas tem pés de chumbo. A polícia portuguesa não vai descobrir quem o matou.

Prazeres da Costa estremeceu um pouco e olhou com insistência para o tecto, julgando, talvez, que dali viesse alguma resposta para as suas dúvidas. Depois comeu um pouco do bife. Parecia ter deixado de ter apetite. A voz trémula dizia tudo:

– Porque é que achas que o russo foi morto?
– Porque sabia demais.
– Não. Foi para começar uma guerra.

Olharam um para o outro, à espreita do perigo. Mas nenhum dos dois o via naquele momento. Cândido, mais descontraído, disse:

– O primeiro passo para resolver um problema é vê-lo de forma clara. Nomura fará isso.
– Achas? Ele, às vezes, perde a calma. E guia-se pelas emoções.

Cândido reparou, pela primeira vez, que Prazeres da Costa tinha os dedos amarelos, por causa da nicotina. Fumava demasiado nos últimos tempos. Por causa dos japoneses. E, sobretudo, por causa de Amélia. Voltou à conversa:

– Isso é mau. Talvez seja o que os chineses do Bando Verde estão à espera. Que ele dê um passo em falso. Já agora, diz-me, ele ficou contente com a minha informação?
– Muito.

Cândido olhou à volta. A noite apresentava-se promissora. Tinham chegado novas raparigas ao restaurante. As que, quando a iluminação deixava de ser tão clara, cirandavam pelas mesas, em busca de companhia. Algumas eram russas, outras da Mongólia. Naquela noite apresentava-se ali uma fadista que tinha vindo de Lisboa. E, de caminho para Goa, aproveitara para conhecer Macau. Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e juntar o seu som ao da guitarra portuguesa e da voz dela. Era uma rapariga de pouco mais de 30 anos. Muito morena e de olhos negros. Usava um xaile, algo que era um acessório quente para as noites de Macau. Mas era uma imagem que definia uma fadista como ela. Ana de Freitas, assim se chamava aquela jovem que tinha a voz quente e poderosa que, à meia-luz, fez silenciar todos os que estavam no restaurante. E cantava:

Venho
Desse tempo já esquecido
Quando as mãos se tocavam nos becos
Trocavam beijos ao luar
Tudo isso é tempo ido
Que saudades de amar

Venho
De esquinas sem idade
Onde mulheres de má fama
Liam sinas cheias de verdade
Onde viam perigos
Numa vida de enganos

Tenho
Uma faca e um canivete
Para sobreviver
Aos meus pecados
Na pele, gravados
No coração, desenhados

Quando ela terminou, quase meia hora depois, entre aplausos, Prazeres da Costa fitou Cândido e disse:

– E a tua amiga Marina Kaplan? Não posso deixar de lhe agradecer o que fez por mim.
– Ela é uma senhora. Poderia, se quisesse, recrutar qualquer pessoa para as suas causas. Até os padres. Ou mais.
– Seria uma boa recruta para Nomura.
– Não a tentes com isso. Perderás uma amiga.
– Achas?
– Tenho a certeza. Marina não alinha com ninguém. Só com os seus interesses. E estes são insondáveis. Já agora, que sabes de Ezequiel de Campos?
– Ele é a pessoa por detrás das cortinas. Tem mais poder do que muitos que julgamos serem os mais poderosos de Macau.

Cândido bebeu mais um gole de vinho. Apetecia-lhe sair dali. Já deveriam ter retirado o corpo do russo do passeio onde tinha sido assassinado.

– Ficas, José? Eu vou indo.
– Vou ficar. Apetece-me ficar embriagado. E conhecer as novas raparigas.
– E depois vai jogar?
– Hoje já jogaram o suficiente comigo. Poderia ter sido eu a morrer.
– É verdade.

Cândido saiu. Não se via ninguém na rua. Sabia-lhe bem o cheiro da noite. Mas sentia que lhe faltava algo. Seguiu rumo ao “Bambu Vermelho”. O aroma do ópio chamava-o, para que se pudesse acalmar. E dormir em paz.

20 Set 2019

A Grande Dama do Chá

 

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[dropcap]O[/dropcap] jazz absorvia todos os pecados do mundo. E depois distribuía-os, em forma de música, para absolver as almas. Enquanto dançavam alguns representavam um papel. Outros, sentados, fumavam e conspiravam só com o seu olhar, que percorria incessantemente o salão principal do hotel Riviera. Algumas mulheres observavam os seus maridos, homens influentes da sociedade de Macau, e outros homens que não conheciam. A cidade era pequena e os segredos de cada um não estavam fechados a sete chaves. Surgiam por ali alguns estrangeiros, alguns deles espiões ingleses ou americanos, e homens de negócios chineses. Só o som da Benny Spade Orchestra suavizava todas as tensões naquele fim de tarde. Estava muito calor nas ruas. Entre os que ali estavam, alguns tinham lido a edição do “South China Morning Post” com as últimas das batalhas cada vez mais sangrentas entre japoneses e chineses e das lutas entre os diferentes senhores da guerra da China. Ninguém ali presenciara uma guerra, com os seus corpos caídos sem vida, as cearas queimadas e os animais mortos. A guerra preocupava, mas estava distante. Vivia-se e dançava-se ao som do jazz.

Enquanto estava em cima do palco, com a Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça pensava que, um dia, poderia ambicionar a tocar sozinho. E contar histórias próprias com o seu saxofone. Ele poderia ser a sua forma de gritar. Indiferentes aos seus pensamentos e ao mundo que caía à sua volta, as pessoas dançavam e transpiravam. Talvez essa fosse a atitude mais sensata, pensou. No meio do fumo reparou que Jin Shixin deixara o salão e fora até à varanda do hotel. Quando, largos minutos depois, deixou o palco, encontrou-a ali. Quando o viram, os olhos amendoados de Jin semicerraram-se, dando ainda mais realce à franja do seu cabelo preto, que lhe caia até junto das sobrancelhas. Quando estava assim, Jin parecia ainda mais bela e misteriosa. Cândido sentou-se a seu lado e um estranho silêncio estabeleceu-se. Por fim ela disse:

– Será isto aquilo a que chamam paz?
– Talvez. Não sei.
– É capaz de ser. Afinal temos de poder confiar em alguém ou em algo, para podermos dormir sossegados à noite.

Durante quase meia hora estiveram ali, falando calmamente, com o coração a responder ao coração, os olhos de um a lerem os do outro, as mãos juntas, até que finalmente Jin se levantou e disse:

– É tarde. Vamos até à minha casa?

Ele fez um ar enigmático e ela respondeu:
– Esta noite não tenhas medo de nada. Os deuses estão connosco.

Saíram do hotel Riviera, passando pelo salão onde ainda estavam alguns portugueses com as suas mulheres e amigos. Alguns jantariam ali, numa socialização quase ritual e preguiçosa. À porta estava Potapoff e um condutor, que os conduziram, em silêncio, até casa de Jin. Quando chegaram esta disse:

– Podes ir descansar esta noite, Potapoff. Estou segura.
– Está, senhora?
– Tomei as minhas precauções.

Não disse mais nada, mas o russo pareceu perceber o que ela queria dizer. Depois de entrarem em casa dela, beijaram-se e as suas mãos procuraram o corpo do outro. Despiram-se e foram até à cama. Os seus corpos embateram um no outro, numa estranha batalha de amor onde ambos queriam ficar sem forças. Para, depois, repousarem, inertes pela energia gasta e sem capacidade para pensarem em mais nada a não ser no corpo um do outro. Só mais tarde Jin soergueu-se na cama e dobrou as pernas, encostando os joelhos aos seus seios. Cândido ficou estendido, com os olhos fechados, escutando a voz da chinesa:

– Só estes momentos me relaxam. Preciso cada vez mais deles. Antes de voltar à minha missão. Compreendes, não é verdade? É preciso estares disposto a morrer no intento de a cumprir. A morrer. Sem metáforas.

Combates ou morres. Fazes frente ao inimigo ou o inimigo mata-te. Tu tens outra coisa a defender, e não é a vida. É o teu saxofone. É a tua música. O teu sonho de vida.
Cândido agarrou-lhe na mão e, depois, soergueu-se. Beijou Jin nos lábios.
– Precisas de amor na tua vida.
– O mundo que amava desapareceu. Agora não há paraísos por descobrir. Tudo são infernos, com máscara agradável ou não. O inferno está a subir até onde estamos a arder.
Jin passou a mão pelo cabelo de Cândido e depois encostou a cabeça dele a um dos seus seios. Ficaram assim durante algum tempo, antes dela dizer:
– Posso contar-te uma história?

Perante o silêncio dele, ela continuou:
– Em finais do século Nove, nas últimas décadas da dinastia Tang, os melhores alquimistas chineses criaram a medicina do fogo, como lhe chamaram. Buscavam a fórmula da mortalidade mas encontraram uma receita mortal. As suas virtudes curativas foram depressa superadas pelas suas utilidades bélicas. Começaram a fazer-se batalhas com flechas de fogo, mas esta pólvora mortal só voltou a ser mesmo efectiva quando chegaram os ocidentais. Porque, na Europa, desenvolveram as suas qualidades, não para curar, mas para criar armas de fogo cada vez mais mortais. E foi com elas que subjugaram a China. É com isso que os japoneses estão a matar-nos. É contra isso que luto e lutarei, até morrer.

Cândido beijou-lhe o seio e olhou para ela e para os seus olhos estranhamente tristes. Jin disse:
– És tão perfeito e, às vezes, inocente. Às vezes penso que és uma espécie de uma fada de que vocês falam, foi enviada para viver no meio dos mortais e descobrir quais são os nossos pecados. A diferença é que te tornaste um de nós. E vais perdendo o que tens de fada.
Riu com o que dissera. Cândido disse:
– Qual é o verdadeiro jogo, Jin?
– O meu jogo não sou eu que o faço. Estou só, acreditando apenas no que sei e rindo defronte dos meus inimigos. Conheço as leis dos ocidentais, porque são fundamentais para que eu conheça os homens. Vou contar-te um segredo. Deixei, em Xangai, que os padres me ensinassem a religião porque é através dela que eles comandam as pessoas. Muitas vezes, eles são mais loucos do que as almas que eles assustam. Mas os padres têm poder. Muitos têm medo deles. Por isso lhes fazem ofertas, para que engordem e sosseguem.

Cândido esboçou um sorriso. Beijou a mão de Jin e virou-a, olhando para a sua linha da vida. Era longa. Depois disse:
– Não desconfias da Marina?
– Não. Desde que ela me ame, guardará os meus segredos, e ela amar-me-á por causa dos segredos que partilhámos durante anos em Xangai.
– Sabes muito sobre ela. Mas, sabes, há sempre as sementes da ambição que muitas vezes toldam o raciocínio.
– O veneno da ambição cegam os que o bebem, Cândido. Julgam estar a beber a poção da imortalidade e enganam-se. O mundo está cheio de invencíveis que foram vencidos. Temos de pensar, se tivermos valores, sobre o que queremos deixar como memória. Podemos deixar um vazio, mas nunca um deserto. Há vida para além de nós.
– E agora?
– Agora estamos a chegar ao momento em que tudo se decide.
– Ou quase tudo. Há uma guerra à nossa volta.

Jin olhou para ele e sussurrou:
– A única guerra que importa é a que agora se trava aqui.
– E Du Yuesheng?
– A diferença entre mim e Du é uma: ele não confia em ninguém e eu sei em quem confiar. Fora isso, ele é o meu mestre. Nunca queiras pôr isso em causa.
Dizendo isto, Jin colocou-lhe o dedo nos lábios, calando-o. Depois beijou-o longamente.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

15 Set 2019

A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]O[/dropcap] som era empolgante. Penetrava pelos ouvidos e fazia com que a batida do coração se acelerasse. Ezequiel de Campos não reconheceu a música, mas sabia que era de uma ópera. Quando entrou na sala da casa de Du Yuesheng, junto à praia de Cheoc Van, percebeu que o som vinha da varanda, onde encontrou Du e Luc LeFranc sentados. Ambos fumavam charutos e, na mesa que tinham defronte deles, estava uma garrafa de cognac francês com três copos. Dois quase cheios e um vazio. Havia também uma cadeira disponível. Percebeu que esse era o seu lugar. O som que vinha do gramofone abafava todos os outros ruídos. Quando se sentou, Du olhou para ele e disse, num inglês com forte sotaque:

– A música incomoda-o, sir?
– Não.
– Ainda bem. Gosto de ouvir ópera ao fim da tarde. Enche-me a alma.

Fez uma pausa enquanto o mordomo enchia o copo de Ezequiel. Depois disse:

– Sabe o eu é?
– Confesso a minha ignorância.
– Nem todos gostamos de ópera. Eu só aprendi a ouvi-la bastante tarde, em Xangai. Tinha de ir a acontecimentos sociais e este som foi-se entranhando. Passou a fazer parte de mim. Esta é uma das minhas favoritas. O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Não foi um acaso que tenha sido um oficial alemão a oferecer-me.
– E porque gosta dela? Pela música, pelo canto?
– Bem, eu não sei alemão. Mas sinto-me mais forte, especialmente quando oiço a parte da Cavalgada das Valquírias. Todos os personagens querem o anel mágico forjado pelo anão Alberich. Ao renunciar ao amor para sempre este cria o anel mágico, que permite dominar o mundo. Sem emoções isso é possível. É o que vemos quase sempre, não é?

Luc deu uma pequena gargalhada. Estava claramente à vontade perante Du. Ezequiel foi mais seráfico:

– Vemos muitas vezes. Mas o amor também consegue ser mais forte do que o poder.
– O amor trai-nos. O poder não, se o soubermos conquistar e preservar. Mas, para isso, temos de ser inclementes, até connosco próprios. Temos de ser como monges. O poder é uma religião.

Ezequiel, que tirara o curso na Universidade de Coimbra, era um devoto da cultura grega. E, assim, não deixou de recordar:

– Nos dramas da velha Grécia, não sei se conhecem, que sempre tiveram muita influência no Ocidente, os protagonistas predestinados e condenados, são sempre confrontados por um sistema que é indiferente ao seu heroísmo, à sua individualidade e à sua moral. Mas agora há novos deuses. E o maior são os negócios. O dinheiro é Zeus.
– Exacto, meu caro. Mas o dinheiro sempre foi o deus dos homens. É isso que nos move. A Terra não pertence a nada excepto ao vento. O dinheiro é o nosso vento.
– E quem dominar o vento, tem o poder.

Du fez um sorriso afável.

– É um homem que eu entendo.

Levantou o copo, num sinal de brinde. Não esperou que os outros o acompanhassem e bebeu um gole. Os seus olhos brilharam.

– Eu sabia que tínhamos algo em comum devido à forma como trata a Marina.

Ezequiel não disse nada. Mas não conseguiu ler nenhum traço de ironia nos olhos de Du. Luc LeFranc moveu-se um pouco na cadeira, mas continuou calado. Só observava, como se estivesse ali apenas como testemunha. O chinês disse então:

– Caro doutor Ezequiel, tenho as melhores referências de si. Foi por isso que lhe pedi para vir aqui. Imaginará porquê.

O português fez um ar surpreendido.

– Confesso que não sei. Tem algo a ver com a Marina?

Du deu uma pequena gargalhada.

– Não o julgava tão ingénuo, sir. A Marina é uma velha amiga de Xangai, como sabe. Tenho a maior confiança nela. E sei que ela não se ligaria a um homem se não tivesse absoluta certeza sobre as suas ideias e sonhos. E, permita-me dizê-lo, segredos.

Ezequiel fungou.

– Acha que a Marina conhece todos os meus segredos?
– Claro que não. Todos os homens têm segredos que não confiam a ninguém. E ainda bem que o fazem. Mas ela confia em si. É o suficiente.

Fez uma pausa para beber mais um gole de cognac.

– É um homem de negócios, caro Ezequiel. Posso tratá-lo assim, não é verdade?

O português assentiu com um pequeno acenar da cabeça.

– Macau é uma terra de comerciantes. E, quer os portugueses, quer os chineses, fizeram disso o seu acordo de conveniência. Sem assinarem nada, o que vale mais que todos os contratos. Cada um faz os seus negócios, sem que ninguém importune os outros. A única diferença é que os chineses sempre fizeram o comércio sem a desculpa da religião.
– São mais livres, caro senhor Yuesheng.
– É verdade. E chame-me Du, por favor. E olhemos um para o outro. Somos ambos pessoas de comércio. E é por isso que queria falar consigo. Como deve saber, tive de sair de Xangai. É impossível negociar com os japoneses. Eles só conhecem as suas leis. Até agora eu negociava com os ingleses, com os franceses, com os alemães. O senhor LeFranc, que está aqui connosco, pode confirmar isso. E, por isso, decidi abrir novos mercados para os meus produtos. Macau é pequena, mas é importante. Nunca se sabe onde chegará a guerra.
– Assim é. Macau parece frágil, mas é forte. Talvez venha a ser mais importante do que Hong Kong nos próximos anos. Até porque Xangai poderá ficar nas mãos dos japoneses durante anos.
– Esperemos que poucos, sir.

Du recostou-se melhor na cadeira. Ezequiel olhou para ele com atenção. Tinha um ar frágil, mas Ezequiel sabia que isso era uma ilusão. Fora o mais poderoso gangster de Xangai. A sua palavra era lei, nas diferentes concessões estrangeiras. Traficava com tudo. O que Marina Kaplan lhe tinha contado, que era uma ínfima parte do que sabia, era um relato arrepiante do que ele fazia para manter o poder. Não havia limites para a forma como o exercia. Pesavam-lhe na consciência centenas ou milhares de mortos, muitos deles ligados à luta subterrânea contra os comunistas de Xangai, em nome dos ideais de Chiang Kai-shek. Ezequiel não queria fazer juízos de valor sobre isso. Era um homem de negócios, apesar de ter as suas opiniões sobre o assunto. Escutou novamente a voz de Du:

– A minha proposta é simples. Gostaria de ter um homem honesto a gerir, aqui em Macau, as minhas exportações de uísque e cognac para a Ásia. Não sei o que se irá passar em Hong Kong, para onde vou a seguir. Por isso este é um bom porto de abrigo para todas essas actividades. E, depois, há um negócio que muito me interessa: o do arroz. Em tempos de guerra é preciso alimentar os povos. Os preços sobem. Quem dominar o comércio do arroz pode ficar rico. Que me diz?
– Deixa-me sem palavras, senhor Yuesheng, ou melhor, Du. Mas parece-me uma boa proposta. Dê-me um dia ou dois para reflectir sobre ela.

Du fez um sorriso amigável.

– Tem esse tempo. Preciso é de uma resposta rápida. Porque não sei quanto mais tempo ficarei aqui em Macau. Sabe como é. Nada é eterno e, pelo contrário, tudo o que nos rodeia é frágil e perecível. Nunca imaginei que, um dia, poderia ver arder Xangai. Tal como também desapareceram muitas coisas e pessoas que eu acreditava que durariam para sempre.

Há muito que tinham deixado de escutar a ópera de Wagner. Agora só restava o silêncio. Mas, nesse momento de paz, todos sabiam o que estava em causa.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

30 Ago 2019

A grande dama do chá

 

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[dropcap]M[/dropcap]arina Kaplan e Cândido Vilaça estavam a olhar um para o outro como se estivessem hipnotizados. Entre eles intrometeu-se o fumo que trazia odores de ópio e tabaco.

O Bambu Vermelho estava repleto e, por isso mesmo, mais quente do que o habitual. Nem as ventoinhas que iam rodando lentamente no tecto conseguiam dissipar aquela temperatura que fazia surgir gotas de suor na testa dos jogadores e das raparigas que circulavam entre eles.

Aquela hora tardia Cândido gostava de estar ali a tentar imaginar o que era a vida de cada um daqueles homens, antes de devotarem o seu futuro ao jogo. Imaginava cenários que tanto pareciam reais como irreais. Marina agarrou no seu copo de vodka e levou-o aos belos lábios.

Na mesa, perto dela, estava uma máscara da ópera, que tinha trazido de Xangai e que lhe servia, de vez em quando, para recordar esses tempos que nunca mais regressariam. Tinha a certeza disso, apesar do que lhe dizia Cândido.

– És um sonhador, Cat. A velha Xangai morreu. Não ressuscitará. Vai-nos ser servida, ao longo dos anos, em capítulos cheios de memórias. Como um livro que iremos escrever, devagarinho.

Agarrou na máscara e passou os dedos pela face.

– Trouxe-a para nunca me esquecer dos anos que lá vivi. As máscaras dizem-nos muito sobre a vida. Todos as usamos, mesmo que não sejam estas. Por detrás da máscara da firmeza alguns ocultam as suas debilidades. Outros, por detrás da máscara da debilidade, escondem a sua força. Acho que tu és o segundo caso. Sempre foi assim e sempre assim será. Mas, às vezes pergunto-me, porque é que a máscara da força triunfa muitas vezes sobre a da debilidade? Repara nesta. Sabes porque a escolhi?

– Não.
– Gosto das misturas de cores. Tem vermelho, a cor da lealdade e da coragem. E púrpura, da bravura e da esperança. Tem o branco, da crueldade e da traição. E o ouro e a prata porque são usados nas cores dos deuses, porque o seu brilho produz efeitos sobrenaturais.
– Pensava que as tradições russas eram mais importantes para ti do que as chinesas.
– Agora ambas são importantes. O meu pai era cossaco, tal como o meu avô e o meu bisavô. Ia à igreja, aspirava o aroma balsâmico e a luz das velas. Foi aí que aprendi a dominar o fogo interior. Isso salvou-me a vida muitas vezes em Xangai. Quando fugi da Rússia não sabia o que ia encontrar. Julguei chegar ao paraíso. Mas era um paraíso negro.

Sorriu tristemente. Os seus olhos azuis claros, por momentos, pareceram escurecer até se tornarem negros.

– Todas cidades são cruéis. E Xangai foi a mais cruel de todas. Havia prazer e sexo em todo o lado. Dinheiro fácil e sem fim. Os gangsters guiavam o destino da cidade. E, para termos o filme perfeito, o jazz dava-lhe mistério e sedução. E tu, Cat, fazias parte dessa mentira muito bonita.

Mas, como sabes, o jazz é uma música muito decadente. Xangai não era uma cidade de pesadelos, apesar das mortes, da droga. Era de sonhos, de fantasia. Lembras-te das pistas de dança cheias de pessoas com roupa de noite? Todos podiam esquecer o passado e os seus pecados. Que eram os pecados de cada um ao pé dos de Xangai? Era um porto aberto. A todos. Também o foi para mim. Salvou-me.

– Porque fugiste da Rússia, Marina?
– Tinha 20 anos. Era uma jovem louca. Idealista. Acreditava na revolução, mas juntei-me aos socialistas-revolucionários. Andei a colocar bombas. Foi um erro que paguei caro. Para não ser morta, tive de fugir. E foi assim que cheguei a Xangai.
– E porque é que vieste para aqui, Marina? Só para fugires ao que se adivinhava em Xangai?
– Os chineses não têm ninguém a quem rezar. Onde é que eu me coloco? Não acredito na culpa, mas penso que há algo que nos é superior.

Cândido escutava-a. Deu uma pequena gargalhada antes de dizer:

-Sabes, a má sorte, sendo habitual, é suficientemente má. Mas, pior, é não ter sorte nenhuma.
– Tu és um homem curioso, Cat. Não admira que tenha estado apaixonada por ti. Mas não iria dar. Tu és o protagonista da paz quando não há paz. Só Jin poderia agora apaixonar-se por ti.

Fez uma pausa e aproximou a sua face da de Cândido.

– Porquê, Marina?
– Porque tu lhe dás essa sensação de paz. Algo que ela nunca conheceu.

Marina levantou-se, saiu do pequeno reservado onde estavam protegidos por uma cortina de linho e voltou, pouco depois, com um crucifixo que parecia russo, ortodoxo. E uma foto.

– Perguntaste-me se tinha trazido algo do passado. Trouxe. Esta foto de quando era uma jovem revolucionária.

Cândido olhou. Ali estava ela, rodeada de muitos jovens, rapazes e raparigas.

– Quase todos foram mortos. Alguns de forma horrível, em prisões onde nunca se vê a luz.
Depois passou a mão pelo crucifixo. Fixou-o, como se estivesse a ter uma visão.
– Tudo o que vem dos homens é tão efémero quanto a vida dos próprios homens. Antigamente as pessoas iam às igrejas para falar com Deus, que reinava no absoluto. Nesse infinito muito reconfortante vivia na luz, na sombra e no silêncio, e nos seus jogos. Tenho saudades de igrejas como as que conheci na Rússia.

– Acho que tudo é irreparável, Marina. Mas é isso que faz a grandeza e a miséria de um homem ou de uma mulher. Porque nunca sabemos em que partes da vida nos equivocamos.
– E é por isso que agora queres ser o que um herói nunca foste?

Cândido ia responder, mas, de repente, por entre as cortinas, surgiu a face de José Prazeres da Costa. Tinha os olhos vermelhos e um ar cansado. Marina levantou-se. Percebeu que ele queria falar com Cândido. Disse que ia ver como estava o Bambu Vermelho. E afastou-se sem ruído.

Prazeres da Costa sentou-se defronte de Cândido. Trazia, na mão, um copo de uísque. Parecia já ligeiramente tocado pelo excesso de bebida.

– O que se passa, José?
– É a Amélia. Quer que eu me decida. Não quer esperar mais. Quer deixar o marido e vir viver comigo. Diz que tenho dois dias para me decidir. Depois sai de casa.

Cândido esperou um pouco antes de responder.

– Acho que não tens fuga. Vais ter de te decidires. Ela está decidida. E tu, queres viver com ela?
– Quero. Mas queria ter tudo controlado. Ter dinheiro. E que ela não saísse de casa desta forma.

Tenho receio da forma como o marido reagirá.

– Terás de conviver com isso.

Prazeres da Costa suspirou. Depois bebeu o resto do uísque que tinha no copo.

– Eu sei. Mas era uma coisa com que não me queria preocupar.
– A vida é assim, José. Não a controlamos.

Prazeres da Costa parecia estranhamente envelhecido e descrente. Cândido já tinha visto homens assim, que procuravam consolo. A qualquer preço, mesmo que fossem jogadores. Ser lúcido, às vezes, é mais doloroso do que perceber que ninguém consegue controlar a sua vida.

A nossa imaginação inventa inimigos para ficar reconfortada. Mas isso não chega. Esse é o grande medo dos homens. Procuramos sempre o Céu. Descobrimos, depois, que é a antecâmara do Inferno. Voltou a encarar Prazeres da Costa. Disse:

– Tenho uma mensagem para o teu amigo japonês.
– Diz.
– É melhor escrever. É mais seguro.

Escreveu num papel: “Daqui a dois dias, à noite, no cais 16, descarga de encomendas vindas da China. Muito importante.” Prazeres da Costa agarrou no papel, meteu-o no bolso, e levantou-se. Deparou com Marina, a quem agradeceu por lhe ter apresentado o homem que lhe tinha emprestado o dinheiro para pagar as dívidas de jogo. Assim poderia criar novas dívidas. Saiu, cambaleante. Marina sentou-se e disse:

 

[CONTINUAÇÃO]

 

2 Ago 2019

A grande dama do chá

 

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[dropcap]U[/dropcap]ma ventoinha, colocada no tecto da casa de chá de Jin Shixin, arrefecia o local, o que era uma bênção depois de se sair da rua escaldante, onde Cândido Vilaça se cruzara com vários soldados portugueses que tinham vindo de Timor. Macau iria ter uma noite muito agitada. “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, era um templo de aromas, e tornara-se rapidamente a loja de chá favorita para quem vivia na cidade. Entrou e a porta fechou rapidamente atrás dele, tentando não dar tempo para que o calor entrasse naquele espaço que queria ser acolhedor. Só um par de lanternas vermelhas acesas davam alguma luz ao local. Da obscuridade saiu Jin Shixin que, movendo-se silenciosamente, dava ainda mais beleza ao cheongsam verde que vestia. Quando chegou perto de Cândido, o português reparou nos pequenos brincos com incrustações em jade que ela usava nos ouvidos e que lhe davam um ar requintado e distinto. Vender era uma arte. Jin deu-lhe um tímido beijo nos lábios e disse:

– Sempre vieste.

Depois, encaminhou-se para um pequeno móvel de bambu, onde estava um bule com chávenas de chá. Encheu duas, levou-as para a única mesa que existia na loja e fez sinal para ele se instalar numa das cadeiras disponíveis. Jin sentou-se de forma a ver a porta, enquanto Cândido olhava à volta. A sala da loja parecia um dos últimos redutos da China antiga. Os móveis de bambu e de madeira de cerejeira acomodavam várias estatuetas de jade e laca. E alguns deles estavam repletos de recipientes de vidro que continham chás das mais diversas proveniências. Não admirava que Jin fosse conhecida como a Grande Dama do Chá de Macau. Era difícil não se encontrar ali o que se desejava. Depois ele desviou a atenção para os olhos sempre atentos de Jin, que a parca luz parecia tornar ainda mais misteriosos.

– O que têm os meus olhos, Cândido? São uma surpresa para ti? Há quem se limite a fitar o vácuo. Os meus olhos alcançam para lá do que há para ver.
– Eu sei. E também escondem, por vezes, mais do que desejamos.

Ela não disse nada e a sua mão direita agarrou na dele e acariciou-a.

– Sabes porque te disse para vires aqui?
– Imagino.
– O perigo ronda-nos. E está na altura de darmos um passo em frente. Suponho que os japoneses e os seus amigos planeiam algo. Temos de lhes dar algo que os leve para o caminho que queremos.
– E onde é que eu posso ser útil?
– Amanhã vai chegar um grande carregamento de uísque e cognac francês, encomendado por Du Yuesheng. Era um daqueles que ia regularmente para Xangai, num dos negócios dele, como sabes. Agora vão começar a vir para aqui e parte deles irão depois para Hong Kong e Singapura, onde Du pensa estabelecer parte dos seus negócios.

Cândido olhou para ela durante algum tempo. Tentou perceber as intenções dela:

– E que queres que faça? Que diga a Toshio Nomura ou ao José Prazeres da Costa que isso vai acontecer? Para quê? Para eles vos emboscarem?
– Nomura não fará isso. Seguir-nos-á até a um armazém fictício, onde ele julgará que será o nosso esconderijo. Ao mesmo tempo passará a confiar em ti. E, quando for necessário, dizer-lhe uma mentira ele acreditará que é verdade. Posso confiar em ti?
– Não o provei já?

A conversa foi cortada pelo ruído da porta. Jin levantou-se. Luc LeFranc entrou. Olhou para ela e disse:

– Venho buscar as minhas encomendas.

Sem dizer nada, Jin passou por um biombo que escondia o resto da sala dos olhares indiscretos e voltou poucos minutos depois. Trazia um saco e uma grande caixa. O francês abriu a caixa e ficou por momentos a vislumbrar o interior.

C’est magnifique!
– Também acho.
– Du vai ficar contente.

Jin sorriu. Por detrás do biombo surgiu o russo Patapoff, que, em silêncio, agarrou na caixa e a levou para fora da loja. Luc LeFranc, antes de se despedir, disse:

– A transferência já foi feita.
– Ainda bem. Tudo corre como planeado.

Sem olhar para Cândido, Luc saiu da loja. Pouco depois ouviu-se o ruído de um motor de automóvel e Potapoff voltou a entrar. Depois voltou a desaparecer por detrás do biombo. Jin sentou-se novamente ao lado de Cândido.

– Não percebeste, não foi?
– Entendi que era uma encomenda para o teu mestre Du Yuesheng. Como nos velhos tempos de Xangai.
– Nunca deixou de ser o meu mestre. E a encomenda era um gramofone vindo de Singapura. Du não nasceu no meio da aristocracia chinesa. Mas aprendeu a gostar de ópera. E precisava de um gramofone para, ao final da tarde, a olhar para o mar, escutar aquilo que o acalma. Não descansei enquanto não consegui arranjar-lhe um.

Cândido olhou-a fixamente. Jin tinha o condão de dizer uma verdade, para esconder o que não queria partilhar.

– E o saco, era o quê? Chá?

Ela deu uma gargalhada.

– Luc não é propriamente um apreciador de chá. Prefere outras coisas.
– Dinheiro, não é? Lembro-me dele. Era polícia em Xangai, na zona francesa, não?
– Tens uma boa memória. Isso é bom. Dá-nos vantagens. Lembrar o que os outros esquecerem é uma arma secreta. Mas, deixa-me que te diga, se falares com ele não mostres que o conheces. Ele veio para Macau para apagar o passado.
– Como muita gente.
– Não é diferente da Xangai que conheceste. Ali ninguém queria saber de onde vinhas, desde que tivesses dinheiro e fosses estrangeiro. Eu isso não esqueço, Cândido. Xangai era uma cidade colonial. A cidade das concessões. Cada potência ocidental tinha ali o seu pedaço da China. Cada bocadinho do nosso coração. Agora foram substituídos pelos japoneses, mas nada mais mudou.

Cândido apeteceu-lhe, naquele momento, ter ali o seu saxofone e tocar uma melodia, para poder suavizar o olhar agreste de Jin. Ela percebeu o que ele estava a pensar e fez um sorriso triste.

– A China há-de renascer, pequeno Cat. Vou contar-te uma história que aprendi há muitos anos. Bai Juyi, num poema muito belo, lembra-nos a história dos infinitos amores do imperador Xuanzong pela concubina Guifei. O imperador estava tão apaixonado por ela que começou a não dar atenção aos assuntos do Estado, e por isso, os seus conselheiros, fartos, forçam-no a aceitar a execução da mulher que amava. A tragédia aconteceu. Como consequência disso o imperador acabou por abdicar em favor do filho e acabou a vida na mais completa loucura. A paixão pelo poder dos ocidentais levou à loucura de Xangai. Mas a história não terminará aqui.

A voz de Jin era triste, mas sentia-se o orgulho dela. A vontade de vencer. A conversa foi interrompida pela chegada de duas clientes portugueses. Foi um alívio para Jin, que se dirigiu, sorridente, para elas. Queriam apenas chá.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

26 Jul 2019

A grande dama do chá

[dropcap]O[/dropcap]s sons do jazz tornavam ainda mais agradável aquele fim de tarde na varanda do hotel Riviera. Ezequiel de Campos e Marina Kaplan, sentados, bebiam gin tónico e, de pé, Jin Shixin olhava, com ar nostálgico, para o horizonte, enquanto uma ligeira brisa atenuava o calor húmido. Marina disse:

– Saudades de Xangai?
– Sempre.
– Daqueles tempos em que se prometia o céu e em que chegava o inferno?
– Marina, és como aqueles loucos que perseguem sempre a virtude. Ela nunca existiu.

Ezequiel levou a mão ao seu impecável fato branco e fingiu afastar um inexistente insecto que julgou ver na manga. Depois, com ar sério, disse:

– Em Xangai foi possível juntar o Oriente e o Ocidente. Tal como aqui, em Macau.

Jin Shixin voltou a cabeça:

– Não será assim, senhor Ezequiel. O Ocidente subjugou o Oriente. Sequestrou-lhe a alma com o vício e o comércio sem regras. E chama a isso irmandade?

– Os próprios orientais não estão isentos de culpa, menina Jin.
– O que é a culpa, senhor Ezequiel? Pecar muito, rezar e ser, depois, ser absolvido como se nada tivesse acontecido?

Marina Kaplan resolveu intervir. Não gostava quando Ezequiel e Jin começavam a discutir. Sabia que tinham opiniões contrárias. E agora, com os tambores da guerra, ainda aumentava a tensão.

Nem o som do jazz dançante adoçava o ambiente. Ezequiel levou o copo aos lábios e bebeu mais um gole de gin. Os seus olhos estavam vermelhos. Levou a mão à cicatriz. Marina sabia quando a raiva tomava conta dele. Jin acabou por dizer:

– Não há cura para o que o homem faz. Cada acção é absoluta e eternas são as suas consequências.

Dito isto voltou a fixar os olhos no horizonte. Entretanto a actuação da Benny Spade Orchestra parecia ter terminado. A música foi substituída pelo som das vozes, algumas delas já descontroladas pelo álcool. Cândido Vilaça aproximou-se deles. E, pelas suas faces, percebeu que alguma discussão acontecera. Era habitual. Perguntou:

– Que se passou?
Marina, bem-disposta, ripostou:
– O habitual.

Ezequiel voltou a beber um gole de gin e virou-se para Jin:

– Qualquer pessoa com juízo prefere ser tua amiga do que tua inimiga.
– Foi isso que disseram a luz e a escuridão uma à outra quando se encontraram pela primeira vez.

Cândido deu uma gargalhada. Mas Ezequiel nem um sorriso discreto esboçou. Marina, sempre conciliadora, disse:

– Paz, queremos paz!

Cândido sentou-se ao lado de Ezequiel e este sentiu que tinha alguém para desabafar:

– Meu caro, todo este tempo de incertezas faz-me lembrar sempre uma frase do padre António Vieira, esse grande homem que nem sempre é escutado. Dizia ele que “nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos quando fazemos. Nos dias que não fazemos, apenas duramos.”

– É o problema dos portugueses, não é? Perdemos a vontade de fazer.
– Também acho. Perdemos o sonho. Repara, os ingleses hoje fazem subornos com coisas grandes, controlam o mundo. Nós, pelo contrário, só fazemos subornos com pequenas coisas.

Não deixámos nunca de ser comerciantes, de pimenta, de ouro, de almas. Mas perdemos o sonho. E cingimo-nos à nossa aparente pequenez.

Cândido respondeu:

– Cada um por si, não é? Cada um com a sua pequena vida, com o seu pequeno negócio, com a sua pequena vida. Falta-nos o sonho de grandeza do passado.
– É o mundo, meu caro Cândido. Mas, deixa, um dia o dinheiro deixará de ter valor. Tal como a religião deixou de ter. Olha-se à volta e o que vês? O mundo está refém de ilusões, de alucinações. O que são ilusões? Nada, para além de opiniões. Ora, essas opiniões têm de ser alteradas. O passado ajuda-nos sempre a perceber o presente. Apesar de, no Ocidente, haver um período a que se chamou a Idade das Trevas, havia, nesse tempo, homens chamados alquimistas, que eram desprezados pelos outros porque pensavam transformar metais em ouro. Eles pensavam que eram impossível? Nada é impossível. Havia a possibilidade. É isso que falta agora aos portugueses. Serem alquimistas nestes tempos de trevas.

– Ficámos cansados.

Ezequiel fez um sorriso irónico.

– Sim. E esperamos sempre que alguém resolva os nossos problemas. Como ovelhas que não sabem viver sem pastor.

Enfastiada com a conversa, Marina afastara-se e fora ter com Jin. Ambas falavam de outras coisas. Talvez tão sérias como as que motivavam Ezequiel e Cândido. Quando elas se voltaram a aproximar, Marina dizia para Jin:

– Quer dizer que já não vais jantar connosco?
– Tenho um outro compromisso.

Cândido era a desculpa. Ezequiel insinuou:

-Todas as princesas quebram as suas promessas?
– Eu nunca quebrei uma única promessa. Seja para fazer o bem ou o mal.

Estiveram ali até que a noite se pôs. Depois, Jin e Cândido saíram. À porta do hotel Riviera estava um carro, com Potapoff ao volante. Seguiram até ao Porto Interior, onde jantaram frango com arroz numa casa de pasto sombria. Depois seguiram a pé, até chegarem a um edifício sem qualquer luz. Subiram até ao primeiro andar. Dali via-se um pontão. Iam ficar à espera. Jin percebeu o nervosismo dele:

– Há-de chegar um barco. Vês aqueles homens ali? São como sombras vivas, e dançam da mesma forma como as sombras o fazem numa floresta. Mas, na floresta, ninguém os vê. Aqui estamos a espiá-los.

– À espera de quê?
– É o que veremos.

Cândido colocou a mão no braço de Jin. Estava quente e o português sentiu um ligeiro arrepio.

Diz-me Jin, porque me escolheste?

– Se não fosses honesto nunca terias sido escolhido. Se não fizesses sacríficos de vontade própria isso não seria aceitável. Mas ainda há muito para fazer, e os olhos que viveram demasiado tempo na escuridão ficarão cegos com a luz que transmitimos. Aqueles que veem o futuro são sempre fundamentais.

– Um estrangeiro não ofende a tua honra, estando tão perto de ti?
– Como um pássaro no ar, um homem em sarilhos é um estrangeiro. Eu gosto de sarilhos.

Potapoff pediu-lhes silêncio. As sombras moviam-se no porto e, de uma lorcha, saiu um pequeno barco que chegou ao pontão. Vinha cheio de sacas que uma série de carregadores foram transportando para um camião que, entretanto, ali tinha estacionado. Potapoff disse:

– Mais arroz. Não param.

De onde estavam não conseguiam identificar os homens que se afadigavam a transportar as sacas nem os que, parados, davam ordens. Jin não tinha dúvidas:

É o japonês, Toshio Nomura. Sinto-o. Continuam a armazenar arroz.

Não é para vender?
Não. Têm outro objectivo. Estão a criar postos de abastecimento para as suas tropas, quando a guerra for total. Há-de chegar às costas de Macau.

Cândido não ripostou. Jin era a China, o seu coração. Olhou para ela e perguntou:
– Quão velha é a tua organização?
Jin esboçou um sorriso. E depois disse:
– Quão velha é a China? Quantas dinastias pensavam que reinavam? Nada é eterno, querido Cândido. Nem o amor, nem as nossas certezas, nem as ilusões. Nem a nossa vida.
Potapoff interrompeu-os:
– Estão a ir embora. Vamos segui-los?
Jin abanou a cabeça:
– Não vale a pena. É um risco. Já sabemos onde eles armazenam o arroz. Atacaremos quando eles não o esperarem.

12 Jul 2019

A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]A[/dropcap] noite tem o poder de silenciar todas as certezas. De dia julga- -se que há remédios para as doenças do mundo e da alma. A noite desmente isso. Nada é certo. A noite permite acordar dos sonhos frágeis. Era isso que sentia Cândido Vilaça, apenas iluminado pela forte luz da lua cheia. Fora isso que o trouxera até às ruínas de S. Paulo. Trazia o seu saxofone e sentou-se nos degraus da enorme escadaria. Levou-o aos lábios e do instrumento saiu um som que parecia lamentar todos os males do universo. Era um gemido arrastado, que nada tinha a ver com o que tocava nos fins-de-tarde dançantes do hotel Riviera. Era algo muito íntimo, vindo das suas entranhas. Doía. Quando se cansou de tocar procurou um declive onde a luz da lua não o atingia e ficou ali, entre as sombras, respirando o ar da noite de Macau. Passados minutos ouviu, não muito longe dele, vozes que falavam em português. Olhou para os dois homens que subiam as escadas defronte das ruínas. Um dos homens tinha um sotaque brasileiro, mas era de outra nacionalidade. O outro tinha uma voz que ele reconhecia, mas não sabia de onde. Falavam de pessoas da sociedade macaense e de acontecimentos futuros, mas Cândido não percebeu o sentido da conversa.

De repente, da penumbra, surgiram quatro vultos, que se aproximaram rapidamente. Os dois homens não se moveram. Pareciam esperar o ataque ou, então, estavam seguros da sua situação. Assim era porque perto deles apareceram meia dúzia de sombras que avançaram para o grupo que surgira primeiro. Depois de uma rápida escaramuça, Cândido percebeu que o primeiro grupo, em inferioridade, debandava. Escondido, não se mexeu, até que, para perto de si, resvalou um corpo que se agachou na sombra e se deixou ficar, sem se mover. De onde estava, pro- tegido pela escuridão, Cândido podia ver a zona da escadaria onde se encontravam os vencedores do breve conflito. Ali continuavam os dois homens que tinham estado a conversar, agora cercados por uma meia dúzia de outros que olhavam em todas as direcções. Um deles disse:

– Fugiram, os cobardes!

O homem de sotaque brasileiro retorquiu:

– Não vale a pena segui-los. Sabemos quem são. Iremos apanhá-los quando quisermos.

Ainda estiveram ali mais alguns minutos. Mas, depois, caminharam em fila até à rua poeirenta que dava para as ruínas. E Cândido deixou de os ver ou de os ouvir. Só depois de ter a certeza de que já não estavam por perto, voltou-se para o corpo, vestido com uma cabaia negra, que estava a seu lado. Quando o tocou, sentiu o braço molhado. Era sangue. Os seus olhos repousaram então na face tapada por um pano negro, onde só se viam os olhos. Não deixou de sorrir, ao reconhecê-la, depois de lhe retirar o pano que tinha a esconder-lhe o rosto e o cabelo:

– Hoje os fantasmas têm nomes e rostos. Ela não respondeu e levou a mão ao braço. Tinha sido ferida pela faca de um dos assaltantes. Para estancar o sangue enrolou à volta da ferida o pano que usara para esconder a cara e deu-lhe um nó.

– Temos de tratar disso, menina Jin Shixin. O olha dela era de raiva. Cândido acendeu um cigarro, para se acalmar.

E, depois, disse-lhe:

– Temos de tratar dessa ferida. Podemos ir até à minha casa. Não é longe.

Assim fizeram. Caminharam devagar até à pequena casa de Cândido. Jin encostou o corpo ao dele e o português sentiu o seu calor. Agradou-lhe. Quando chegaram, ele acendeu uma lanterna e ela sentou-se numa cadeira e estendeu o braço. A ferida não era muito profunda e já deixara de sangrar. Cândido colocou um pouco de vodka na ferida, o que fez Jin gritar e pôs, à sua volta, uma gaze de algodão.

– Agora precisas de descansar. E de ter mais cuidado.

O olhar de Jin era frio. Não disse nada. – Quem são os teus inimigos, menina Jin? Ela olhou, desafiadora, para ele:

– Quem achas que são? Os japoneses.
– Que japoneses?
– O homem que estava no hotel Riviera quando vieste falar comigo. E os seus lacaios portugueses.
– Porque é que falas de lacaios?

Jin deu uma gargalhada, o que lhe serviu para esquecer a dor:

– Todos são lacaios do dinheiro. As pessoas fazem tudo por ele. Sejam japoneses, portugueses ou chineses.

Cândido sorriu. Sacudiu um insecto imaginário da roupa, só para mexer a mão. Depois disse:

– Sabes, Jin, a água contorna todos os obs- táculos. A partir dela podes tentar perceber os portugueses. Serviram-se da água para sair de Portugal e procurar outros horizontes. E aplicam esse princípio à vida. Estão sempre a contornar os obstáculos, em vez de os enfrentarem. Somos assim.

Ela percebeu o que ele estava a pensar. Reparou finalmente no aspecto dele. Cândido Vilaça era alto e tinha um corpo seco. Os olhos castanhos e o cabelo escuro combinavam com a tez morena da pele. Os olhos pareciam afectuosos, mas escondiam uma fúria sempre latente. Ha- via algo de sedutor no português. Disse, condescendente:

– Os portugueses podem ser como a água. E serem sobreviventes de muitos naufrágios. Mas há uma guerra que já não está às portas de Macau. Está cá dentro. Hoje assististe a isso. Podes dizer que não tem nada a ver contigo? Houve um filósofo chinês que disse que: “Quando conheceres quem és, conhecerás o céu”. Sabes o que é a guerra?

Cândido suspirou. Recordou uma história que um macaense, que vivera da pirataria, lhe contara: “os imperadores chineses sempre sonharam subjugar as águas. Nós, os piratas sempre desejámos controlar aqueles que se aventuraram acima das águas. Deixamos o céu para os pássaros. E as águas profundas para os peixes. Cada um deve ocupar o seu lugar”. Ele era músico. Nada sabia de guerras. Cândido virou-se para Jin:

– Portugal foi uma grande potência por- que controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal considera- mos a eternidade e o destino com o mar. É o fim depois do fim.

Bateram à porta. Cândido olhou para Jin, mas esta pareceu estar calma. Agarrou numa faca que tinha escondida na roupa, levantou-se e foi-se colocar ao lado da porta. Depois fez sinal para Cândido per- guntar quem era. Ele assim fez. Do outro lado escutou um sussurro:

– Potapoff.
– Quem?

Jin fez-lhe sinal para ele abrir a porta e o português assim fez. Viu uma face dura com olhos frios e negros. Potapoff deu um passo em frente e Cândido teve de se afastar. Jin apareceu e olhou para o russo. – Estou bem. O português tratou de mim. – Ainda bem. Vamos?

Jin seguiu-o em silêncio. Cândido fi- cou a vê-los caminhar na rua escura. Ela não olhou para trás.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

17 Mai 2019

A grande dama do chá

 

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[dropcap]M[/dropcap]acau tornara-se um porto de almas perdidas. Sempre o fora, na realidade. Como sempre, desembarcavam ali refugiados, homens e mulheres sem pátria e sem passado, traficantes e bandidos. Mas agora a maioria vinha de Xangai. O caos, dizia-se por esses dias, é o único Deus da verdade. Todos se queriam salvar. Só que cada um encarava a salvação de forma muito própria. Cândido Vilaça entrou naquela casa de ópio e de jogo como quem procurava um local para respirar. Encontrou o sorriso cordial de Marina Kaplan, velha conhecida de Xangai, uma russa de olhos azuis claros e de corpo seco, sempre disposta a partilhar aquilo que considerava ser o amor. Um dia, quando estava demasiado ébrio, ela dissera-lhe:

– Tu és um homem que procuras o que é a vida. Por isso estás sempre em fuga. És um vagabundo encantador.

Nunca esqueceu aqueles palavras. Tiveram noites de amor demasiado quentes, naquela cidade chinesa que convidava ao pecado. Ela tinha vindo para Macau no ano anterior e instalara-se. O “Bambu Vermelho” era agora um local de eleição. Atraentes jovens russas e chinesas faziam as honras da casa a quem gostasse de as ver dançar ou, simplesmente, de ter a sua companhia, depois do jogo. Ou antes de, num reservado, encontrarem os prazeres do ópio. Era o que gostava mais em Macau. Aqui não havia fronteiras entre as pessoas como em Hong Kong. Ninguém estava demasiado perto dos outros para dizer se estavas certo ou errado. À noite, quando a lua iluminava os corpos que tentavam manter-se de pé depois de horas de prazer, o vento polia as cabeças mais despertas. Cândido conseguiu furar entre os corpos e homens e mulheres e atravessar o cortinado de cana de bambu que escondia o interior. Lá dentro a cortina de fumo era espessa.

Precisava sempre de se habituar. Os seus olhos foram-se adaptando e os corpos passaram a ter mais nitidez.

O balcão ficava ao fundo, a toda a largura e a sala do rés-do-chão era formada por pequenos compartimentos tapados com reposteiros com dragões vermelhos e dourados e separados por espaços. As mesas estavam todas ocupadas tal como os compartimentos. No primeiro andar do edifício ficava a sala de jogo e, no segundo, os reservados.

A iluminação não era intensa, nem era para ser. Era fornecida por candeeiros pendurados no tecto e por suportes nas paredes. As raparigas estavam vestidas com trajes tradicionais de bom gosto, subidos até ao pescoço e abertos de lado, sobre as pernas, até quase às coxas. Cheong-sam, chamavam-lhes. O traje deixava adivinhar os corpos, e atraía o olhar dos homens sedentos de álcool e de sexo. Chegou, com dificuldade, ao balcão. Marina Kaplan aproximou-se novamente dele e levou-o até a uma mesa mais recatada. Colocou-lhe a mão no braço e acariciou-o. Ele sorriu, satisfeito. Nunca mais se tinham encontrado num quarto, desde que se tinham voltado a ver em Macau. Mas ele vinha ali, religiosamente, quase todas as noites, depois de ter tocado no hotel Riviera. Olhou à volta, tentando reconhecer alguém. Alguns portugueses conhecia-os como funcionários públicos. Havia muitos chineses que jogavam intensamente. E uns quantos ocidentais, oficiais de barcos ou de empresas de importação. Ali não entravam marinheiros comuns. Na porta não se abriam excepções. Marina queria manter uma clientela selecta, com dinheiro para gastar. Mas agora Cândido pensava noutras coisas:

– Conheces o amigo português de Jin, Marina?

Ela sorriu com a pergunta. Esperava-a:

– Conheço alguns amigos dela. Como era esse que viste?
– Era um homem magro, com ar inteligente, mas dava a impressão de ser mais velho.
– Se é quem penso é um homem que cultiva a descrição. Chama-se Manuel Grainha. É o secretário pessoal do Governador. Pessoa experiente. Conhece tudo e todos.
– Ela sabe cuidar das amizades.
– Sempre soube. Mas, querido Cat, não queiras saber mais do que isto.

Cat era a sua alcunha em Xangai. Gostava de ser tratado assim. Cândido sabia que Jin e Marina eram próximas. Demasiado chegadas. Ninguém sobrevivia sem ligações em Xangai. E em Macau também não. Cândido olhou para Marina. Era uma mulher ainda jovem e bonita, talvez tivesse uns 35 anos, não mais, mas estava repleta de segredos. Poderia ter sido tudo. Uma espia do Bando Verde ou dos nacionalistas ou dos comunistas. Ou ser amante de Du Yuesheng. Ou de um oficial francês que queria saber o que se passava realmente na Concessão Francesa ou na Concessão Internacional. Talvez essa fosse a forma de ela ser livre. Ali em Macau poderá ser espia dos japoneses. Ou não ser nada disso. E ser agora apenas uma sobrevivente.

– Continuas igual, Cat. Eu sei o que te corrói a alma. Já estive na mó de cima. E na de baixo. Na luz e na escuridão. E os dois lugares estão vazios.
– A vida é um jogo viciado.

Ela sorriu:

– O vicio do jogo não é bom para quem não sabe quando parar. Muito dinheiro pode ser ganho ou perdido, muito depressa. O pior é quando se perde a alma.
– Isso acontece aqui muito?
– Mais do que imaginas. O problema é que há quem não saiba que perdeu a alma.
– Qual é a alternativa, Marina? Porque é que um homem honesto não pode ser recompensado por ser honesto?
– A honestidade não tem valor comercial. Já deverias saber. Não se vende nem se troca.

Cândido olhou para Marina. A sua frieza era desconcertante. Já vira tanto na vida que não acreditava em muita coisa. Olhou à volta. Os brancos bebiam demasiado, o suficiente para matar meros mortais, porque tinham pouco para fazer. Torravam dinheiro. Tinham úlceras e as suas mulheres viviam enfadadas. Muitas desejavam regressar a Portugal depressa. Não se adaptavam.

No “Bambu Vermelho” todas as mulheres tentavam limpar os bolsos dos homens até à última pataca ou dólar de Hong Kong. Muitos chineses gostavam de falar das suas amantes russas.

Alguns só queriam sentar-se e falar. Em Xangai se tivesses dinheiro tinhas tudo. Ali não era diferente. Mas não seria assim em todo o lado? Por isso havia tantas prostitutas, jogadores e vendedores de droga. O cheiro do ópio sentia-se em muitas ruas. Como se Xangai e Macau fossem irmãs.

Olhou novamente à volta. Foi então que viu Prazeres da Costa numa mesa de jogo. Recordou as suas palavras:

– Temos de usar o dinheiro. Devemos ser ricos, para lá dos nossos sonhos. O mais importante é ter dinheiro. Será sempre. Até que este mundo desapareça.

Cândido julgara que ele brincava. Mas não. Ele era reservado. Tinha muitos segredos que não dizia. Marina, que seguira o seu olhar, disse-lhe:

– É teu amigo?
– Não sei.
 

[CONTINUAÇÃO]

 

10 Mai 2019

A grande dama do chá

 

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[dropcap]D[/dropcap]o hotel Riviera podia ver-se o mundo. Os portugueses que viviam em Macau acreditavam nisso. Todos os finais de tarde dirigiam-se para ali, vestidos a rigor. José Prazeres da Costa, elegante no seu fato branco de linho e fumando um charuto filipino, sempre desdenhara dessa ideia. Mas não resistia à tentação de estar ali. De pernas cruzadas assistia ao concerto da Benny Spade Orchestra. Muitos pares tinham estado a dançar e agora descansavam um pouco. Ele apenas observava. Escutou uma voz, vinda do palco, em inglês:

Say, you guys want have a little fun?

E a música recomeçou. Benny Spade morrera há um par de anos, mas o nome mantivera-se. Um outro americano, Charlie Powell, tomara conta da banda. Nada mudara. O objectivo era colocar os corpos a dançar, muito próximos, e a não temerem o contacto físico. O grupo tinha chegado de Xangai uns meses antes, onde tocara nos hotéis Cathay e Metrópole da Concessão Internacional.

Alguns dos músicos tinham tocado também no Ciro’s, o clube nocturno conhecido pelo seu ar condicionado, onde os taipans britânicos e os gangsters chineses entravam à noite, com as suas mulheres ou amantes. À porta do Ciro’s estavam sempre russos de uniforme, garantindo a segurança. Todos eles diziam ser antigos generais do czar e, com o seu olhar impiedoso, travavam os pedintes chineses. Lá dentro, muitas russas desdobravam-se em sorrisos e galanteios aos visitantes. Era um estilo de vida que se adaptava aos edifícios de arquitectura europeia que se impunham no Bund, a famosa frente ribeirinha da cidade. Tudo parecia sólido e perene. A Xangai moderna era uma criação ocidental e não chinesa. O Céu e a Terra uniam-se naquela cidade. Mas tudo mudara com a chegada dos japoneses a Xangai. E já nem o jazz unia um mundo que se quebrava como uma bola de cristal.

Sentada, Jin Shizin assistia à dança de homens e mulheres que se recusavam a acreditar que a guerra existia ali ao lado. No pequeno palco, ao lado dos seus companheiros da Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça, conhecido como Cat, tocava saxofone. Olhou para a sala e não deixou de reparar na chinesa. Conhecia-a de um outro lugar. Quando ela se levantou para dançar com um português bastante mais velho do que ela, lembrou-se. A sua forma de dançar, ousada e radiosa, não escapava à atenção. Vira-a em Xangai, nas noites no Ciro’s.

Mais tarde, quando deixou o palco e reparou que a chinesa estava sozinha, aproximou-se, com descaramento, da mesa onde estava sentada a fumar e disse-lhe, em inglês:

– Boa tarde, gostou?

Os olhos cor de amêndoa de Jin semicerraram-se e fixaram-no como se fosse um alvo. A sua face era sólida e esbelta e o seu cabelo preto era moldado por uma franja que caia sobre os olhos. Cândido percebeu: era uma mulher invulnerável. Ou quase. Ela sorriu polidamente, e respondeu num português quase perfeito:

– Gostei.
– Estava a dançar.
– Foi um acaso. Não costumo dançar.
– Não? Não gosta do que tocamos?

Ela voltou a fitá-lo friamente depois de ter soprado o fumo do cigarro para o espaço que os separava.

– A vossa música traz-me demasiadas memórias.
– De que não deseja recordar-se.
– Não. De que eu me quero sempre recordar.

Cândido Vilaça fingiu não perceber. Não queria dizer de onde a conhecia. Fez menção de se sentar.

– Preciso de beber algo antes de voltar para o palco.
– Acredito. Mas nessa cadeira está sentado o senhor que está comigo.

Cândido Vilaça recuou na sua intenção. Foi então que, olhando para trás, viu um japonês que olhava fixamente para ele. Não se lembrava de alguma vez o ter visto.

– As minhas desculpas. Mas foi um prazer.

O companheiro da chinesa aproximava-se e Cândido afastou-se. Foi até ao balcão do bar e pediu um uísque. José Prazeres da Costa aproximou-se dele e deu-lhe uma pequena cotovelada.

– Não tiveste sorte com a chinesa?
– Não tentei nada.

Prazeres da Costa sorriu, desafiador.

– Não? Olha que ela, a Grande Dama do Chá como é conhecida, tem sólidas amizades. Não as desafies. Neste pequeno meio português todos conhecem todos. A intriga é o seu jogo de cartas preferido.

Cândido deu uma pequena gargalhada.

– Meu caro, eu sei que o amor, em tempos de guerra, é uma coisa impossível.
– O amor é sempre uma coisa impossível. Nunca desafies esta máxima.

Conheciam-se desde que Cândido chegara a Macau. Prazeres da Costa gostava de jazz. E de mulheres. E de dinheiro. Não por esta ordem, é claro. Este encostou as costas ao balcão e olhou para a sala. O seu olhar cruzou-se com o do japonês. Conheciam-se, mas não se falaram. Como se evitassem que alguém os relacionasse. Cândido reparou na troca de olhares, mas não queria conhecer o mundo secreto de Macau. Tinha outras preocupações. Como tinha o sono muito leve, dormitava e não dormia. As olheiras sustentavam a sua vida. Diziam que os homens de jazz envelheciam mais depressa do que os outros. Sabia porquê. Interpretavam canções sobre mulheres magoadas e sobre os homens que elas tinham amado. Ele também era assim.

Abandonava as mulheres sem olhar para trás. Era egoísta. Não inspirava confiança nem segurança. Escutou a voz da cantora que estava no palco. Vestida com um traje chinês, apesar de ser filipina, cantava em português, com um sotaque:

“Se eu tiver de mentir,
Aos que amam a verdade
Farei isso
Se eu mentir
Será um dever
Será por saber
A verdade sem a sentir
Se eu quiser mentir
Será antes de partir.”

Ficou com a letra na memória. Assobiou-a baixinho, para se recordar. Gostava de cantoras assim. Descrentes e com a voz carregada pelas dores alheias. Foi até à varanda, seguido por Prazeres da Costa, funcionário do Governo, mas sem grande convicção. Estiveram ali durante alguns minutos, falando de coisas banais. A banda de Cândido já tinha terminado a sua actuação diária e, por isso, saiu dali e foi em busca da noite. Prazeres da Costa disse-lhe que ia para casa. Forma de dizer que ia ter com a amante. Quando chegou à casa de ópio na Rua da Felicidade, o músico entrou e avançou pelo meio do fumo, pediu uma cerveja e sentou-se numa cadeira disponível. O mundo deslizava à sua volta. Nada lhe importava. Sentiu um aroma conhecido e, levantando-se, foi em busca de conforto numa sala escondida por um biombo. Quando se ergueu da pequena cama, lá fora, o escuro da noite cedera o lugar aquela luz indecifrável que antecede o amanhecer.
 

[CONTINUAÇÃO]

 

3 Mai 2019

A grande dama do chá

 

Macau, Dezembro de 1937

 

[dropcap]A[/dropcap] guerra já tinha chegado a Macau. Mas ninguém ousava falar dela. Muitos pensavam que, evitando o tema, o medo acabaria por se dissolver. Naquela pequena sala, mal iluminada, falava-se de guerra. Ali todos sabiam que os japoneses, depois de terem tomado Xangai avançavam a caminho de Nanjing. A China era o seu inimigo. Mas o conflito já chegara à calma e descontraída Macau. Não se via, nem se ouvia. Germinava nas sombras, à espera da luz do dia. Mesmo que os ocidentais não quisessem ver a realidade, como muitas vezes acontecia.

A luz era escassa, mas era a suficiente para se ver a face de Jin Shixin, onde nenhum músculo se movia. Os seus olhos estavam semicerrados, concentrados no homem sentado à sua frente que, de vez em quando, baixava a cabeça, incapaz de aguentar o olhar fixo da chinesa. Nela não havia afecto, mesmo quando a sua voz era de veludo, como acontecia naquele momento:

– Sabes, Zhang, o melhor chá verde tem de equilibrar o sabor amargo com a doçura. De outra forma é impossível conseguir a perfeição.

Não parecia que esta explicação interessasse ao chinês, com as mãos e pés atados por cordas. Mal se conseguia mover. O banco em que estava sentado era pouco confortável. Tinha uma das ripas partida e a outra torta. Sentar-se nele já era um castigo. Mas se merecia ou se tudo aquilo estava a ser uma injustiça não o preocupava. Tinha a mente dominada por outros pensamentos. Jin Shixin dirigiu-se a uma mesa e inspirou o aroma que ia saindo do bule de chá que ali estava colocado.

Depois, com rigor, colocou o chá nas três chávenas que estavam em cima da mesa e deixou que o aroma se espalhasse por toda a pequena sala. Estavam no interior de uma casa que funcionava como armazém, na frenética Rua de Camilo Pessanha, entre as locandas onde se jogava o fantan, as lojas de penhores e os locais onde se fumava o ópio. O comércio estava sempre aberto, e ali ninguém escutava nada. E todos se calavam. Ela não escolhera o local por acaso, quando chegara a Macau há pouco mais de um ano. À vista de todos, ficava suficientemente escondido para desenvolver as suas actividades secretas. Era ali que Jin Shixin guardava as encomendas de chá vindas da China e que depois levava para a sua loja, “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, que se tornara conhecida em Macau pela qualidade dos seus produtos. Ela sabia prepará-los como ninguém. Como sempre, toda a arte tem sempre um lado obscuro.

Atrás de Zhang, e atento a qualquer eventual movimento deste, estava Wen Xiao. Tinha os braços cruzados e tentava, também ele, perceber o que escondiam os olhos e as palavras de Jin Shixin.

Na penumbra, encostado a uma parede junto à porta, apenas se via a casaca branca de Vladimir Potapoff, que há muitos anos se apresentara em Xangai como o conde de Lvov. Um dos muitos russos brancos que, sem alternativas de vida, acabara como guarda-costas dos maiores magnates da cidade chinesa. Viera com Jin Shixin para Macau, um ano antes, para a proteger.

– Tal como este chá, as tuas acções têm dois sabores. Pareceram doces, mas resultaram amargas.

Sabemos o que fizeste, Zhang. Só desconhecemos a mando de quem. E é só isso que desejamos que partilhes connosco.

A voz de Zhang soou pela primeira vez:

– Admito que matei Wu. Mas foi por uma questão sentimental.
– Eu sei que ambos desejavam a mesma mulher. Mas isso foi apenas uma desculpa. Sabemos que há um inimigo a rondar-nos. O problema é que não conhecemos a sua face. Mas tu conheces, Zhang. E, em nome do passado, deves dizer-nos quem é.

Perante o silêncio dele, agarrou numa chávena e levou-a até junto das narinas.

– Todos procuramos um aroma perdido. Um sonho que nos faz afastar do caminho certo. Qual era o teu? Dinheiro?
Zhang abanou a cabeça. Ela insistiu:

– Glória? Vingança?

Perante o contínuo silêncio dele, Jin voltou-lhe as costas por um momento. Depois agarrou calmamente uma faca que estava em cima da mesa e rodou-a entre os dedos.

– A sombra é parte da luz. É o outro lado dela. Eu peço para sermos invisíveis. Sabes porque? A invisibilidade é o mais difícil dos dons. O teu problema é que te tornaste demasiado visível.

Mataste um amigo teu. E, com isso, ameaçaste-nos a todos. Sabes que podes trair os teus amigos, o teu país, a tua esposa, a tua amante. Podes trair por dinheiro, por sexo, por amor, por ódio ou por qualquer motivo fútil. Mas não podes trair a tua família. E nós sempre fomos a tua família.

Sabes qual é o nosso único problema? Não sabemos quem é que te encomendou a morte de Wu. E, assim, não sabemos quem é o nosso inimigo. Não sabíamos quem eram os inimigos de Wu. E agora não sabemos quem são os nossos. Porque ele fazia parte da família.

Potapoff aproximou-se devagar e colocou-se atrás dela. Ao levantar a cabeça, Zhang ficou com os olhos fixos no russo. Jin notou uma ponta de terror no olhar do chinês.

– Estamos a chegar a algum lado. Foi um russo que te encomendou a morte de Wu, não foi?

Zhang olhou novamente para Patapoff. Para as suas barbas e olhos negros impassíveis. Julgou, por momentos, que era Ivan Sapojnikov. Não era. Mas cometera o mais terrível dos erros: o seu olhar tinha-o atraiçoado. Sabia, a partir daquele momento, qual era o seu destino. Ele era um homem perigoso para a chinesa. Era um homem que odiava. Não era possível esperar dele qualquer lealdade futura. Jin ficou a olhar para ele, trespassando-o. Por momentos, ela recordou-se da sua vida em Xangai. Lembrou-se do seu chefe, Du Yuesheng, na sua mansão na Rue Wagner, na zona da concessão francesa em Xangai. Imaculado no seu casaco de mandarim e na roupa de seda, enquanto dirigia o seu enorme negócio de ópio. Jin tornara-se uma das suas subordinadas mais fiéis. Fora ele que, prevenindo o futuro, a enviara para Macau.

Jin agarrou novamente na sua dadao, a faca que tinha sido utilizada pelos rebeldes Boxers, na sua luta contra o poder. Não era uma arma sofisticada, nem o poderia ser. Deu-a a Wen. Zhang olhou para os dois e para o sorriso malévolo de Wen. Sabia que ia morrer. Jin agarrou na chávena de chá e levou-a à boca. Depois de beber um pouco, acrescentou:

– Já não conhecemos os nossos inimigos. Estão nas sombras, onde é mais difícil ver. Estão dentro de nós. É pena que assim seja.

Zhang olhou com ódio para ela e disse:

– Eles vão matar-te. Sabem quem és. E o que tens.
– Não te iludas, Zhang. Fui treinada para não ter medo da morte. Não acredito na morte. Só acredito no fim dos meus inimigos.
 

[CONTINUAÇÃO]

 

9 Abr 2019