Habitar o vulcão

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Fevereiro

[dropcap]U[/dropcap]ma casa não é um motel. Podes vir, que não tenho chacais no quarto. Anda ver à tua volta. Não são chacais no quarto. Nem são lobos os que percorrem longos corredores. Vem à vontade que tens sítio onde ficar, pergunta por mim. Não são hienas quem ri quando sobes as escadas. Pergunta pelo meu nome todas as vezes que desejares, não é um leopardo que se esconde por detrás da porta. E todos responderão. Acredita, não são macacos que se dependuram dos candeeiros. Vem e fica à vontade, bem sei que não estamos sós, mas os olhos que brilham são companhia autêntica. Claro que não, que tubarão caberia na banheira? Ratos na cozinha, que ideia!? Anda daí, instala-te, abre as malas, sacode o pó, dobra os mapas. Sem medos, pois todos os selvagens que recolheste das paisagens são aqui em casa animais electrodomésticos.

Santa Bárbara, Lisboa, 3 Março

Na vertiginosa coluna de livros que me despertam vontade de comentário, e que tive agora de transferir das mesas do escritório para os vazios dos móveis da sala, mais do que estar, de ficar, topo com «Parícutin», do Gonçalo [Duarte] (ed. Chili com carne). E celebro a sacrossanta coincidência. A novela gráfica nasce do episódio ocorrido, em 1943, na localidade mexicana do título, quando um vulcão resolveu nascer para estupefacção de quem acordava todas as manhãs para ali mesmo tratar do milho onde agora nasceu um imenso e negro buraco. Estupefacção e culpa. Deixamos o agricultor Dionísio a perguntar-se se não teria sido o causador da desgraça e passemos ao cenário urbano-depressivo onde acontece o que terá que acontecer, com alguém que não se quer levantar, cansado de não dormir, exaurido pelo pesadelo recorrente da queda de prédio em construção. Descobre, então, que deve construir a sua casa, o que faz, com algumas ajudas que logo dispensa para se tornar dono e senhor exclusivo do espaço. A culpa há-de invadir cada recanto desfazendo-se mesmo os corpos na arquitectura. Até que a morada, agora miniatura, regurgite a lava de vulcão que tudo arrastará. Dois registos bem distintos convivem, um de traço simples figurativo, com os protagonistas de características monstruosas, disformes. E outro de fundo negro e massas expressivas onde cabeças se bastam como corpo, são a substância total, membros de «comunhão do tédio». E da culpa.

Alguém recusa sair de si, mesmo quando arrisca erguer projecto-identidade (corpo, casa, família), que se transfigura em obsessão (burra, autocentrada, individualista) até que esmaga toda a paisagem. O Gonçalo consegue, a um tempo, a leveza do desenho espontâneo, veloz, e o peso de um denso expressionismo, entranhado (ilustração algures na página). Esta parábola sonâmbula prenunciava, no final do ano passado, estes estranhos dias onde mergulhámos e nos quais a casa se faz lugar inexpugnável, palco fechado para segredos e demónios, obrigados pelas circunstâncias ao quotidiano. Estamos, sentados no sofá, deitados na cama, a repensar a ideia de indivíduo e comunidade. «Nada de mais. Já passou, não?», pergunta uma cabeça pensante. Não, lá fora, o vulcão continua a jorrar lava.

Santa Bárbara, Lisboa, sexta 13 Março

Fujo de todos os espelhos da casa, não vá o cigarro surgir-me entre os dedos e me atire à cara a bruta pergunta e-agora-joão?, como se fora vez agora, de entre tantas outras que irromperam sempre a arranhar e a magoar, cacto no meio dos lençóis lavados, alfinete de dama na camisola de lã. A idade média não está de catedral, nada de medir o transepto, atirar o eco à nave, retocar os santos, limpar-lhe os martírios, ler as subtilezas dos vitrais, bafejar as jóias, convocar demónios, arejar segredos. Menos ainda soçobrar e rezar. Lá fora o vento sussurra e-agora-joão?. Não cedas. A capicua na quarentena vale joker no baralho, muito estardalhaço para nada, risos estridentes quebrados ao cair no chão cambaleante das noites, atirados ao pano de fundo furado do céu. Um dia de expediente no obrigadar de todos os dias, explicação dos ânimos, na resposta balsâmica aos pesares pesarosos, de circunstância ou nem por isso. Vale joker.

18 Mar 2020

A casa

[dropcap]O[/dropcap] interior de uma casa não é dado por uma geometria pura do que está dentro por oposição ao que está fora. O que delimita o interior do exterior pode ser apenas a percepção da possibilidade do fora. Um quarto sem janelas deixa adivinhar corredores e outras divisões, a rua e as ruas contíguas. Mas são naturalmente janelas e portas que fazem a fronteira complexa entre dentro e fora, que permitem espreitar para dentro e olhar janela fora, entrar e sair, fechar e abrir, prender e soltar.

Há portas e portões que nos estão interditos ou podem estar abertos. Abrimos ou não a porta da nossa casa. Mas portas e janelas têm dimensões multifacetadas, como os portais virtuais do tempo passado e do tempo fantástico do sonho e da imaginação.

Neste sentido apenas se tem acesso ao “interior” da casa a partir de uma percepção da intimidade afectiva da própria casa. A casa não está apensa inserida na natureza que a acolhe: piso, andar, monte, colina, ravina, mas só existe humanamente quando ela começa a inserir-se, a enraizar-se na intimidade do humano.

Demora muito tempo a estar-se em casa, tanto quanto demora a sentirmo-nos em casa. A essência da casa é a intimidade do humano. A intimidade do humano não existe em nenhuma geometria esboçada até à data. O acesso à intimidade da casa é o acesso que o humano pode ter à sua intimidade. A intimidade da casa é de alguma maneira a intimidade do humano e não é perscrutável por quem nela não viva ou para quem se tenha já tornado outro e diferente de quem era.

Só o sonho pode como hipótese psicanalítica sintonizar e canalizar essa dimensão perdida para a memória de uma casa e das nossas vivências dela, distribuídas ao longo do tempo. “O sonho seria uma espécie de elevador que iria buscar, de forma alucinada, essa geografia perdida”. O que o sonho faz viver oniricamente como irreal não deixa de surtir efeito, accionar afectivamente o horizonte de sentido que se projecta sobre todo e qualquer conteúdo real, transformando-o, metamorfoseando-o.

O trabalho do acesso é hermenêutico. Se por defeito o quotidiano se encontra em “negação” relativamente ao estranho, inóspito, angustiante, ou melhor, se o quotidiano produz “recalcamento”, é necessário encontrar vestígios, muitas vezes avulsos e mascarados, que nos ponham na pista da dimensão profunda da existência, ou como os platónicos lhe chamam o outro mundo, ideal, mas mais verdadeiro do que mundo da realidade física.

As portas de abertura encontram-se esporadicamente e requerem não apenas atenção mas um trabalho de elaboração hermenêutica. Se o quotidiano provem de e acaba numa psicopatologia, os momentos de neutralização do pathos podem ser “vistos” no “equívoco, lapso, acto falhado”. São estas formas de descontinuidade no contínuo psicopatológico que constituem verdadeiras fissuras ou fendas, portais de entrada no que a psicanálise chama “inconsciente”, que o é tão pouco que nos acontece por sua visitação, talvez.

30 Ago 2019