Tânia dos Santos Sexanálise VozesA intimidade nas redes sociais [dropcap style=’circle’] J [/dropcap] á em outras alturas me debrucei acerca das novas tendências tecnológicas e dos desafios para as relações da nova era. As redes sociais vieram revolucionar a forma como socializamos e como comunicamos com os outros – com o mundo. Com os nossos amigos, com os nossos conhecidos e com os nossos desconhecidos, também. Ultimamente até responsabilizamos estas novas formas de interacção, e de quem está à frente delas, das crises mundiais. A intimidade também já não se pode definir da mesma forma, afinal o que é que é verdadeiramente íntimo? Como é que o mostramos? Ou, como é que decidimos não mostrar? Muita gente anda a pensar nestas questões porque a interacção humana tal como a conhecemos sofre contínuas transformações. No sexo e no amor vemos aparecer outras formas (inesperadas?) de manter a chama acesa da paixão – novas formas de conhecer parceiros românticos, novas formas de manter relacionamentos à distância, novas formas de nos mostrarmos (de nos escondermos?) ao criar um perfil de usuário, com certas fotos, com certas informações, com certos pontos de vista. Tanta inovação que é levada até certos limites, porque os clichés de género continuam lá, nas mesmas e antigas expectativas do aceitável e do não aceitável. Tudo depende se tiveres uma vagina ou um pénis, ou te identifiques como homem ou como mulher. Num estudo realizado por Cristina Miguel, sobre o tema de intimidade nas redes sociais, a investigadora explora os significados da intimidade relacional e sexual no Facebook, no Badoo e no Couchsurfing. Os participantes deste estudo consideraram que fotografias sexy, orientação sexual e o estado da relação amorosa eram tópicos, ditos, ‘íntimos’, e por isso a sua expressão nas redes sociais era mediada por certas expectativas – i.e. se fores mulher com fotos de biquíni, és uma atiradiça; se fores um homem de fato de banho, és… normal, não há nada de errado com isso. As fotografias sensuais são íntimas na medida em que queremos que só certas pessoas tenham acesso a elas, mas não deixam de ser uma criação: uma tentativa de ser a máscara na criação conjunta do que eu acho sexy e o que eu acho que os outros acham sexy, dentro dos limites que ditam a minha possível auto-determinação sexual. A gestão dos relacionamentos e das imagens, ou mensagens, de amor e de carinho que queremos ver publicadas também são preocupações do foro íntimo. Aliás, se calhar podemos dividir o mundo em dois grupos, os que querem mostrar bem claro que a sua intimidade está a ser bem preenchida com a intimidade do outro, e os outros que preferem manter o íntimo em privado, até certo ponto. Esta visibilidade que queremos ou não dar aos relacionamentos provavelmente vem da mesma discussão que os nossos antepassados tiveram sobre, os anéis de noivado, por exemplo. Quanto maior o diamante, maior o amor? Maior a prova de amor aos outros? As redes sociais vieram trazer outra camada de complicação nestas coisas da intimidade e da visibilidade. Quando um namoro termina, já ninguém rasga com raiva as fotografias de quem outrora fora o seu mais que tudo. Agora apagam-se os vestígios dos beijos, dos abraços e das mãos dadas nas redes sociais e desamiga-se ciberneticamente quem já foi muito próximo. A visibilidade das intimidades nas redes sociais não deixa de ser antagónica. Na minha visão simplista das coisas, os nossos diferentes ‘eus’ nascem da necessidade de nos apresentarmos em relação a certas coisas. Quando estamos numa entrevista de emprego apresentamo-nos de uma forma, quando estamos com a família apresentamo-nos de outra, quando estamos num primeiro encontro tentamos apresentarmo-nos ainda de outra forma – sempre fantásticos, poderosos e incríveis. As redes sociais só trazem mais uma oportunidade para nos recriarmos face aos outros, mas a nossa intimidade que tem tudo que ver connosco próprios (mediada por conteúdos sociais, claro), é daqueles universos que tentamos que seja o mais honesto. Vou ser pessimista e dizer que as redes sociais podem ajudar pouco à criação, manutenção e reinvenção da intimidade – aquela que eu julgo que nos leva para os prazeres do sexo e de estar com outro(s) de uma forma inteira e sensualmente honesta. A intimidade nas redes sociais, poderá ser pouco íntima?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não existe, faz-se [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão tenho os créditos desta expressão maravilhosa, os créditos vão para o anúncio de um hotel com propósito de receber casais calorosamente e sexualmente envolvidos. Faz-se amor porque ele não existe realmente. Digamos que num mundo de materialismo pouco poderá tornar o amor mais real do que fazê-lo. Manuseando as formas mais naturais dos corpos, tal e qual como viemos ao mundo, permitindo o rubor de certas partes mais propícias ao prazer. Assim acontece o amor, o sexo, pronto. Mas o amor, apesar de se poder fazer de forma tão (aparentemente) simples não se mantém só porque sim. O amor será como construir uma bela casa, que precisa de estrutura, tijolos, pintura e decoração adequada. Há elementos mais importantes que outros, e diria que há alguns mais universais e outros mais particulares aos casais em causa. A terapia de casal tenta explorar algumas destas dinâmicas amorosas de forma a reestruturar o amor – que pode estar simplesmente perdido, à espera de ser reencontrado. Em certos contextos de tradição judaico-cristã o amor deveria ser para sempre, mas já ninguém acredita nisso. O amor que ‘seja infinito enquanto dure’ já dizia o Vinicius de Moraes. A prova viva é de muitos recém-casados se divorciarem em menos de um ano. Afinal, como é que se garante um final feliz se o amor não existe? Trabalhar o amor como uma figura de barro, com alguma delicadeza e cuidado. Quem é que está para isso? Talvez os mais tradicionais e antigos ainda consigam imaginar vidas românticas com um só protagonista. O primeiro namorado torna-se no primeiro e último marido. Ainda que seja uma ideia que tenha funcionado e ainda funcione para alguns, nunca funcionará para todos. O mundo está tão cheio de tentações e de pecados, para manter o tom da semana santa que ainda agora passou, que os desafios ao amor romântico são muitos. Um casal amoroso é amoroso até certo ponto. A violência pode estar presente, a infidelidade, o desentendimento, a opressão e o medo. Quando a união poderia representar a mais pura forma de confiança e de entendimento mútuo das almas e dos corpos, nem sempre é isso que acontece. Conhecer o outro de uma forma mais profunda tem muito que se lhe diga. Atrever-me-ei a dizer que o amor é a arte do conhecimento e da compreensão, na medida porém, o conhecimento total do outro é inatingível Alguma coisa se vai descobrindo ao longo do tempo e dos tempos, nunca sem medo da inevitável transformação que faz com que a total desmistificação do outro seja improvável. O amor é como encontrar o equilíbrio entre o que conhecemos do outro e nos faz confortável e daquilo que nunca seremos capazes de alcançar. O tesão dá uma ajudinha ao amor e à paixão. Excluindo os assexuais, outras orientações e identidades concordarão com a estreita relação entre o amor e o sexo, ou o desejo. Alguns dar-lhe-ão mais importância do que os outros – porque eu acho que cada um tem a liberdade de expressar-se sexual e amorosamente como bem entender– mas a exploração do corpo faz parte do pacote de conhecimento. Conhecer o outro é saber quando ele está rabugento e respeitar o seu espaço, mas também é conhecer-lhe o cheiro, saber como consegue atingir o orgasmo ou saber onde é que ele prefere ejacular. Na minha humilde opinião, fazer amor não se limita ao sexo. Essa seria uma visão simplista demais. Pretendo incentivar o poder ‘agêntico’ dos seres – o que nos faz ter controlo das situações – pelas questões amorosas, porque o amor faz-se. O amor não é uma coisa que acontece zás-trás, plim-plim. O amor faz-se acontecer.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Luta e as Derrotas [dropcap style =’circle’] A [/dropcap] 14 de Março de 2018, no Rio de Janeiro, Marielle Franco foi morta/assassinada/ executada por ser quem era. Perdão, não foi só por ser quem era, mas por lutar por aquilo em que acreditava. Não foi um simples crime de ódio, e isto digo-o com alguma certeza: foi um crime político. Silenciou-se a voz de uma mulher, negra, feminista e defensora dos direitos humanos. Ao longo de tantos séculos de humanidade e civilização quantas vozes já foram silenciadas? Muitas, demasiadas. Mas desta vez bateu-me forte. Esta era uma voz contemporânea, uma voz com a qual poderia ter-me identificado. Muitas ideias que já partilhei aqui, neste espaço de escrita, vezes sem conta, cairiam no mesmo espectro ideológico. Aquele em que acredita que é precisa a emancipação plena das sexualidades, das raças, e das condições de vida humanas. A luta, que deveria ser de todos, é somente para aqueles que a julgam absolutamente necessária. Mulheres de todo o mundo, uni-vos! Da China ao Brasil, mostrem a palavra, as vossas ideias de igualdade e a vossa militância pelo fim da injustiça. Na criatividade contínua ou pontual descobrem-se novas formas de irreverência, novas formas de dar visibilidade à dor de muitos. Dar voz aos oprimidos e injustiçados não é somente mostrar como a vida é filha da mãe. Dá-se visibilidade e põe-se em causa as estruturas, permitem-se mudanças – tem-se esperança que a voz de uns possa um dia dar a voz a muitos mais. Perseverança, resiliência e teimosia são as características obrigatórias para quem quiser alistar-se a este exército. Há a resistência verbal e física, há resistência em forma de balas e de tortura. Não consigo não admirar as muitas pessoas, e muitas mulheres, que deram o corpo e espírito ao manifesto, à causa, qualquer que seja. Haverão lutas mais dignas que outras? Mais necessárias que outras? Isso já são preciosismos que me ultrapassam. Atrevo-me a celebrar a neta que quis dar voz à avó que era prostituta (obrigada Zhang Lijia), ao J-Bo que antes era a Joana (obrigada por seres o primeiro transexual masculino em Macau) e a todxs xs outrxs que marcam, continuamente, a esfera pública e o nosso imaginário colectivo. Grandes, médios e pequenos gestos que vão semeando mudança. As sementes caiem por entre as pedras calcárias do passeio e, contra todas as expectativas, as plantinhas crescem na adversidade. Nós nem sabemos bem como, mas crescem. A 14 de Março de 2014, em Beijing, Cao Shunli morreu por ser quem era. Perdão, por lutar por aquilo em que acreditava. Quatro anos e 17310 km que separam duas mortes de mulheres que atreveram mostrar a sua voz. Que raio de coincidência infeliz. Estas são as derrotas, o que querem que vos diga? Gostava que não acontecessem. Ainda assim vivo iludida de que ‘perder’, não nos desanima nem nos enfraquece. Quanto muito a derrota fortalece ou enraivece, cria massa crítica para mais confronto. O que é que isto tudo tem que ver com sexo? Tem tudo e nada. Face a estas e tantas outras derrotas – aliás, parece que vivemos num mundo triste, ultimamente – tenho criado o meu espaço de protesto, tenho dado forma à voz do sexo que no fundo poderia ser a voz de tudo o que nos preocupa. Esforço-me por exorcizar os meus demónios nesta tentativa débil de criação, e de resistência.
Tânia dos Santos SexanálisePeríodo [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ois que o dia 8 de Março já passou, com greves, celebrações, rosas, pedidos de igualdade, e o já clássico ‘dia das mulheres é todos os dias, não é só hoje!’. Pronto, já sabemos – neste 2018 houve celebrações de todos os tipos. Para uma celebração à la sexanálise, achei adequado inserir novamente um tópico clássico à condição feminina: a menstruação. Vou desde já partir do princípio que todos estão conscientes de que a menstruação ainda é um tabu social, em algumas zonas do globo mais do que outras. Rebobinem nas vossas cabeças os anúncios de tampões e pensos higiénicos que já viram, o que é que aparece? Close-ups de rabos de miúdas e quiçá um pensinho onde vertem um líquido azul – que se parece bastante com a menstruação, não é? Not. E sabem porquê? Porque a menstruação ainda suscita algum horror, alguma vergonha, algum desconforto. Os mais variados eufemismos servem para evitar o confronto menstrual. No mundo anglo-saxónico tudo que seja relativamente vermelho serve para falar ‘da chegada’ sangrenta: o comunismo, o Drácula, o Arsenal (em Portugal fala-se do Benfica), a Bloddy Mary ou Mar Vermelho. Só para enumerar uns quantos, porque dizem os que se dedicam a isto que devem existir 5000 expressões para evitar dizer uma palavra relativamente inocente como ‘período’. Não estou de todo a defender que a menstruação se deva tornar num tópico de conversa à mesa de jantar, eu tenho mais decência que isso. Mas porque não discutí-la de forma ponderada fora da hora das refeições? A menstruação não é só o sangue que cai entre as pernas de 3 a 5 dias por mês. A menstruação acompanha-se de todo um conjunto de sintomas (chatos) que variam de pessoa para pessoa. Como se costuma achar que ‘tudo é normal’ aquando da menstruação (‘Ah, estás com dores? É normal’; ‘Ah estás mais irritadiça? É normal) ninguém pára para pensar que há coisas que não são tão normais quanto isso. Saiu estes dias um artigo em que um médico chegou à conclusão que as dores menstruais podem ser tão intensas quanto um ataque cardíaco. Um ataque cardíaco, pessoal! A Dismenorreia (a forma mais médica de dizer dores menstruais) pode dar cabo da vida das pessoas detentoras de um útero. As dores, que são fruto de contracções uterinas, podem não ter uma razão aparente. Quando têm, é provavelmente causada por Endometriose, que é basicamente o endométrio a crescer em lugares atípicos, que pode ser até na bexiga, nos pulmões e no cérebro (!!!!)… Pois, este é o tipo de informação que nem sempre chega a todos. Há pessoas e pessoas que vão a médicos, que se queixam e que opinam sobre o seu desconforto menstrual, e que não chegam a conclusão nenhuma. Como a menstruação é tópico candidato ao evitamento, e como a sociedade acredita que a menstruação é o fardo feminino da impureza e do desconforto, as ferramentas médicas e tecnológicas para mudar o paradigma (da menstruação) deixam-nos muito aquém do que merecíamos. Se existe activismo menstrual (sim, isto é mesmo um conceito) é por estas e por outras mais. Fica por discutir os transtornos pré-menstruais, os preços absurdos dos produtos de higiene feminina, os impostos que lhes exigem quando é um produto de necessidade básica, a poluição associada aos produtos descartáveis, o estigma de que a menstruação está sujeita ou às exigências sociais/familiares quando uma rapariga está menstruada e pode ‘manchar’, ainda que de uma forma abstracta, tudo à sua volta. Ser mulher, perdão, ter um útero (porque ser mulher é uma categoria muito mais inclusiva) e ter a menstruação é, a maior parte das vezes, difícil. De que nos vale arrastar os preconceitos de muitos em detrimento de uma menstruação feliz?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesNas Complicações do Sexo [dropcap]Q[/dropcap]uando o sexo fala mais alto que todos os nossos instintos, tornamo-nos animalescos. Damos espaço aos nossos animais irracionais ao reagir de acordo com os nossos impulsos sexuais e finalmente rendemo-nos aos corpos suados e ao prazer. Mas se há coisa que tenho tentado exprimir é que a biologia do sexo não explica tudo. Nós, as pessoas que o praticam, traçamos limites conceptuais sobre o sexo e as suas práticas associadas. Estas são ideias repetidas e transmitidas através das nossas conversas, dos nossos textos, das nossas imagens, dos nossos órgãos de comunicação social, enfim, de todas as formas comunicativas. Como que por magia, estas acções de criação de significado elaboram uma imagem, uma representação social do sexo. É isso que faz com que uma fotografia de uma miúda de biquíni com uns pelitos a sair da virilha seja automaticamente censurado nas redes sociais. Porque é estranho, não é? Não há sinal de pornografia, nudez ou violência, são uns pêlos que na verdade, verdadinha, não passam de pêlos, e que ainda assim são ofensivos a olho nu. Ainda há pouco tempo a mais conhecida rede social censurou a Vénus de Willendorf. Aquela estátua pré-histórica com maminhas grandes e ancas largas. Estas ideias nas nossas cabeças sobre o que é decente ou não é (aquela velha história da boa sexualidade e sexualidade desviante que é perigosa) apresenta-se como ‘natural’ mas na verdade, não deixam de ser ideias que nós construímos, em conjunto. Vamos fazer um jogo, quando eu digo sexo, quais são as três palavras que vos vem à mente? Sem pensar muito, mais automático que puderem. Prazer. Pénis. Orgasmo. Prazer, com a ajuda do pénis, para atingir um orgasmo. Até dá para delinear uma temporalidade. O sexo que podia ser simples assim, complica-se infinitamente na prática, particularmente, na prática social e diária do diálogo sexual. Aliás, eu diria que os problemas do sexo começam pela falta de um verbo digno e de fácil acessibilidade. O que é que quero dizer com isto: temos o verbo ‘f****’, um favorito pessoal, que lhe falta um correspondente menos grosseiro. Copular? Fazer/ter sexo? Ter relações sexuais? Nada. Se ao menos ‘sexar’ pudesse entrar no nosso dicionário como um neologismo por uma necessidade de simplificação. Mas nunca o puderá ser, porque ‘sexar’, de acordo com o dicionário, quer dizer ‘determinar o sexo de um ser vivo, geralmente animal, por meio da análise de ADN, de traços morfológicos ou de comportamento’. Nada sensual. Mas estas complicações não são necessariamente infelizes, porque ao menos obrigam-nos a pensar no sexo. E sabe tão bem pensar no sexo… nos momentos de intimidade com o outro, nos prazeres do corpo, nas formas sócio-culturais de expressão sexual, nas fantasias de alcançar uma sexualidade feliz e plena de/para todos. Pensar à séria é o que muitos evitam. Vivemos tempos de evitamento, até em desafios de outras naturezas. Olhem para os jornais, para o que tem acontecido em países remotos assolados pela guerra, em decisões políticas complicadas de entender, em participação democrática que dá voz à violência, xenofobia e ódio. A vida está cheia de complicações ainda por resolver, na cama, no quarto, em casa, na cidade, em países e no mundo. Eu percebo que comparado com tensões internacionais, a minha preocupação com um verbo que simplifique ‘fazer o sexo’ pareça uma preocupação fútil. Mas desafio-vos a pensar fora da caixa, a desconstruir as narrativas a preto e branco e que se aceite – e que se aprenda a discutir – as sombras de cinzento que a vida nos proporciona (por falar em sobras de cinzento, já estão por aí novas e picantes descrições da sequela do re-descobrimento do sexo no grande ecrã). Encarar aquilo que evitamos com emoção – com paixão. E agora? Quais são as três palavras que a palavra ‘sexo’ evoca? Prazer. Liberdade. Compreensão?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDo Prato para o Sexo [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] comida com ou sem sexo poderia ser uma questão útil, mas raramente o é. Estou a ver muitas ligações entre uma coisa e outra, os dois são necessários (talvez um mais do que o outro) e dão prazer. Se pudermos juntar os dois prazeres numa experiência conjunta teremos prazer ao quadrado, diriam os matemáticos. Mas como é que se quantifica o prazer gustativo e o prazer sensual, e de que forma se equacionam estas propriedades do prazer na recriação da experiência humana? Já todos ouviram falar do chocolate, certamente. O chocolate produz químicos nos nossos cérebros que são os mesmos do prazer sexual. Mas comer chocolate não é a mesma coisa que a penetração de corpos. Podia ser a mesma coisa, mas certamente que não é. Um ‘foodgasm’ não é um orgasmo, nem a pornografia tem muito que ver com a tão recentemente popularizada ‘food porn’. O sexo é particular a uma intimidade das gentes e do tesão. A comida é prazerosa de uma forma não sexual, ou não sensual, ou será que é? As ostras parecem vulvas descobertas, as bananas e os pepinos são (escandalosamente) fálicos. O abacate e a papaia desenham vaginas, as tartes de maçã… não se parecem com nada, mas já iniciaram a sexualidade de certos jovens de uma certa realidade cinematográfica. O estímulo visual pode provocar a imaginação, mas o melhor são as propriedades ditas afrodisíacas de certos alimentos. São precisos nutrientes que mantêm a erecção e lubrificação. Dizem os especialistas que os espargos, por exemplo, fálicos e cheios de vitamina E e potássio são óptimos para manter a irrigação sanguínea nas partes que interessam. Os abacates e as ostras ajudam na produção de testosterona, os morangos, um clássico do romance, estão cheios de coisas boas para a produção de hormonas. Enfim, já perceberam a ideia, não quero ser uma enciclopédia nutricional. Mas por favor, deixem-me constatar o óbvio que falta ser reforçado: comidinha saudável, corpo são e o sexo acompanha os benefícios. Para ninguém se convencer que comer abacates em quantidades industriais tem o mesmo efeito instantâneo que o Popeye e os espinafres. Falta a comida no sexo – a comida que acompanha a penetração que referi há pouco. Talvez um clássico de morangos com chantilly, ou uma prática para dias especiais, para quando se precisa de um ‘picante’ na relação sexual. Picante esse, acautelem-se, para ser consumido e não ser esfregado em lugar nenhum. Os mais cautelosos ainda sugerem que comida nenhuma poderá ser inserida nas partes íntimas, mas que pode (e deve) ser abusada na pele. Para os interessados na logística, esta não é uma actividade para quem gosta das coisas limpas. Porque corpos nus, esfregadelas e uns amassos com comida à mistura, vai certamente deixar muita desarrumação e sujidade. Lençóis, o chão, ou qualquer outra superfície manchados de chocolate líquido e outros que tais… Mas para quem não tem problemas com isso, regozigem-se com a exploração oral de corpos e sabores. Aliás, parece que os japoneses têm tradições gustativas ainda mais requintadas. O nyotaimori que até já chegou ao ocidente (apesar de ter sido recebido com muitos protestos) é a prática de usar mulheres nuas como pratos de sushi. Ou outra – e esta não percebi se era verdade ou não – de usar o pequeno recipiente que as pernas fechadas de uma mulher criam, e lá verter licor para ser cuidadosamente consumido em infusão com a penugem típica da região. Isto é só puxar pela imaginação e aproveitar as propriedades nutricionais e quiçá afrodisíacas para uma sexualidade e alimentação feliz. A equação que leva o prato ao sexo não é complexa, é simples, é só juntar os ingredientes e ter a vontade certa. Prazer ao quadrado, será?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelebrando o Namoro [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]is que o dia dos namorados voltou! Se eu procurar ‘valentine’s day’ nas bases de dados académicas, são as áreas de gestão e consumo que mais andam a publicar acerca deste dia. Porque o pessoal do marketing sabe que ‘celebrações que exigem troca de prendas tem um grande impacto na economia’. Consumir para celebração do amor romântico é, no mínimo, discutível. Que se ande a escrutinar as motivações para o consumo romântico, também me parece pouco… ia dizer ético, mas num mundo neoliberal não se discute a ética do consumo, só o promovemos desenfreadamente. Os resultados destes estudos, que equiparam a importância dos gestos amorosos com a troca de prendas, tentam compreender os significados associados a este dia, tão recentemente globalizado. Parece que as camadas americanas mais jovens (particularmente masculinas) acreditam que caso não presentearem as suas ‘mais que tudo’ no dia 14 de Fevereiro, que as suas relações podem ficar em risco. O pior é que a ideia de que esta é uma celebração que só existe para fazer mexer certas economias não lhes é desconhecida, mas simplesmente é negada em prol de expectativas sociais e relacionais. Vive-se num mundo muito estranho quando gestos de amor estão calendarizados e associados a comportamentos economicistas. Porque não há nada de errado em oferecermos coisas uns aos outros, nem ter um dia disto e daquilo: todos os dias do ano estão muito provavelmente associados a uma causa ou outra. O amor romântico tem todo o direito (e o dever) de ser celebrado, partilhado, reflectido e praticado. Se forem necessárias desculpas externas para ajudar a fazê-lo, ninguém tem nada contra. Aliás, dizem outros investigadores que o dia dos namorados obriga a que os casais pensem no seu amor. Ora tendem a enaltecer os aspectos positivos do relacionamento, para quem tem vindo a construir uma relação forte. Ora tendem a separar-se com mais frequência durante a semana anterior e posterior ao dia dos namorados, para os que têm o relacionamento por um fio. As más línguas acrescentam que uma ruptura antes do 14 serve propósitos de poupança. Acreditem ou não, mas há quem julgue que quanto mais cara a prenda, mais amor se presenteia. A preocupação é real. Há algo de perverso na forma como muitos namorados lidam com o dia São Valentim (de Roma!) – esse mártir que a igreja católica reconhece mal. O São Valentim continua a ser das histórias pior contadas no Martirológio (a palavra nova da semana). A história que se eternizou, mas que não se sabe bem se é real, é que o Valentim era o padre que andava a celebrar casamentos cristãos, a pessoas que não se podiam amar. A celebração do amor romântico a partir destes rumores de um santo no séc. V tiveram notoriedade dentro dos círculos ingleses medievais. Nessa altura começaram-se a escrever cartas uns aos outros finalizando com o que a tradução literal para português seria ‘queres ser o meu Valentim?’, i.e., ‘queres ser um mártir pela causa do amor? Desde o séc. XIV até os dias de hoje muita água já rolou, muito amor já se deu, e agora muitas prendas continuam-se a dar! Esta celebração até altera a nossa percepção das rosas e dos chocolates, e de toda a representação do amor romântico ocidental que tenta ser globalizado. Porque este dia anda agora a moldar as expectativas relacionais com uma preocupação excessiva pelo consumo, quando a reciprocidade romântica precisa de de um trabalho de intimidade e de uma reinvenção do que é romântico, para cada um de nós, e para cada casal.
Tânia dos Santos SexanáliseFilhos Únicos [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om a viragem para o ano do cão – feliz ano novo chinês vindouro! – penso sempre se este será um bom ano para ter filhos. Será que os recém-casados vão correr para procriar e trazer boa fortuna para a vida do seu rebento e entes queridos? Não sei. Infelizmente, sei pouco sobre o zodíaco chinês, e também sei pouco sobre nascimentos, mas digamos que um excerto semanal sobre a sexualidade sabe dizer uma, duas ou três coisas sobre a procriação. Dediquei-me, há uns dias atrás, ao tema do controlo à natalidade – os incentivos e as proibições – e eis que não será certamente surpresa para ninguém que a política do filho único chinesa tenha sido das mais controversas e das mais invasivas às singularidades da vida privada. Argumentos prós e contra, há muitos. O meu foco não será tanto na argumentação da adequação do projecto de desenvolvimento económico e populacional. O que eu quero é reflectir acerca da dificuldade que é de implementar leis que lidam tão intimamente com a nossa intimidade, desculpar-me-ão a redundância. Se houve partes que correram mal nesta experiência de engenharia social foi porque haviam normas – tradições – que não estavam alinhadas com a proposta legal. No que toca à sexualidade, ao género e à família há valores e assumpções muito enraizadas nos seres e nas sociedades. A primazia do primogénito ou a valorização dos múltiplos filhos para ajudar a sustentar a família não mudou depois de 1979, quando, de repente a lei obrigava a ter um só filho. Tudo o que aconteceu para que as famílias pudessem ter o filho homem para continuar a linhagem familiar envolveu muitas decisões difíceis, e às vezes até crimes. Isto agora resulta numa discrepância brutal na quantidade de homens e mulheres na China continental, estima-se que existirão entre 32 a 36 milhões de homens a mais. Ninguém sabe muito bem o que é que este desequilíbrio de género poderá trazer. Os historiadores dizem que tanto homem junto só poderá trazer violência, e perpetuam a ideia de que quando demasiada testosterona está junta só poderá ter consequências nefastas – uma espécie de explosão de masculinidade tóxica. Mas eu quero ser mais positiva do que isso. Vem aí o novo ano, e novos anos são de renovação – e de limpezas primaveris – e eu fantasiei que esta é uma oportunidade para re-invenção familiar. Há mais homens do que mulheres na China, e depois? Acho que isso só é problemático se insistirmos com a lógica heteronormativa (lembram-se deste conceito?) em que não há nada para além de uma constelação familiar que envolva um homem e uma mulher. A vida familiar e privada parece definir a constelação societal, e ao estudar a política do filho único ainda mais impressionada fiquei acerca de como a nossa intimidade exige que as sociedades se reinventem, para melhor ou para pior. Quando a lei dita tão claramente de que forma devemos viver a nossa sexualidade e quantos filhos devemos ter, assistimos à formas de transformação familiares que influenciam gerações. Se calhar, mais do que se preocuparem com a quantidade de homens na China, podemos preocuparmo-nos com os ‘pequenos imperadores’ e ‘imperatrizes’ que governam a vida das suas famílias com exigências ‘imperiais’ acrescidas. Será que a China comunista, de valores anti-feudais, está preparada para sustentar os caprichos de tantos que nunca tiveram um irmão com quem partilhar as suas coisas, as suas ideias e a atenção dos seus familiares? Não quero eu dizer que todos os filhos únicos sejam uns mimados! Nada disso. Mas a vida familiar não é de todo simples, e desde muito cedo que molda as nossas perspectivas e expectativas acerca do mundo. Curiosamente, apesar de ser um tema mais que debatido na esfera pública chinesa, nunca ninguém se debruçou acerca deste fenómeno. Quem são os filhos únicos, e como é que eles vão liderar a China para o sonho chinês?
Tânia dos Santos SexanáliseSedução ou Assédio? [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s temas polémicos exigem-nos opiniões. Todo o movimento #metoo norte-americano (e mundial) veio levantar questões importantes acerca da nossa sociedade e da forma como percebemos o género e o sexo. Os globos de ouro foram palco de um mar negro de indumentárias de luxo femininas. A indústria cinematográfica e televisiva tem assistido a toda uma maré de acusações e queixas da forma como o assédio sexual parece fazer parte da normalidade diária – e têm havido contínuas tentativas de as condenar. Há quem ache a tentativa de activismo durante uma gala cinematográfica absolutamente patética (no sentido que não é assim que se faz política); há quem ache que o movimento se tenha tornado numa caça às bruxas; há quem ache que é de louvar a tentativa de consciencialização sobre tema. Não estou muito preocupada em pensar ‘qual a melhor forma’ de resolver o problema. Porque o que me parece central é perceber se existe um problema de todo. Se isto não é claro para muita gente, se calhar o primeiro passo é clarificar. Para mim é bastante óbvio que o problema existe, mas eu tive uma educação muito feminista – e por favor não se esqueçam que o feminismo é muito plural e diversificado – e já senti na pele as múltiplas nuances do assédio. Um dos mais importantes mitos acerca do tema é que o assédio divide os homens como os maus da fita e as mulheres como as vítimas indefesas. O que não é bem verdade, se pensarmos no género e no sexo como uma construção social, onde vários actores contribuem para os significados e práticas associadas. Gostava que esta reflexão fosse para além da lógica de ‘quem é que tem a culpa?’ – porque isso só parece atiçar hostilidade. Vamos afastarmo-nos disso por um momento, e partir para uma introspecção acerca das normas que regem as relações interpessoais, particularmente em contexto laboral. Não quero soar muito quadrada, mas quando se trabalha, acho que gostaríamos de ser tratados de forma profissional. Não me parece que deverá haver muito espaço para a sedução – para a importunação ou o assédio sexual. Quando eu faço uma apresentação de teor académico, não estou à espera que comentem as minhas pernas, o meu decote, ou a proporção da minha cintura com as minhas coxas. Mesmo no mundo distante de Hollywood, mesmo que a imagem e o sexo venda nos castings de representação, acho que temos o direito de ser avaliados de acordo com as nossas habilidades profissionais. Até que ponto é que o sexo tem que estar presente em todas as coisas da nossa vida? Parece que o sexo é commumente utilizado como uma ferramenta de controlo do outro (e das sociedade em geral). E nestes jogos de controlo, os homens normalmente assumem um papel e as mulheres normalmente assumem outro. Quando uma resposta francesa ao movimento #metoo veio a público, pareceu-me haver uma confusão entre os conceitos de sedução e de assédio. Tenho sido surpreendida pelo sarcasmo de muitos cronistas, opinadores públicos, mulheres e homens de igual forma. A sedução é um fenómeno bilateral – para um tango bem dançado são precisas duas partes com alguma coordenação. Por outro lado, o assédio já é a insistência de uma parte para com a outra – que não é desejada pelos dois, só por uma. Para além desta diferença ter que ser reforçada vezes e vezes sem conta, também vale a pena relembrar que as mulheres têm sido mais sujeitas a tratamentos menos devidos (e a esta confusão de conceitos) – o que não quer dizer que os homens não sejam assediados também. A tentativa de tornar o assédio socialmente condenável tem sido interpretado como demasiado ‘radical’ e um ‘exagero’ – isto porque considerou-se este tipo de interação como (absolutamente) normal durante muito tempo. Os homens aprendiam que era assim que podiam lidar com as mulheres, e as mulheres aprendiam que faz parte da sua existência ter que aprender a lidar com os avanços que por vezes não são desejados. Mas tem-se tentado mudar a forma como vemos o assédio, de forma a não confundi-lo com sedução. Podiam ser a mesmíssima coisa, mas felizmente, não o são.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDesejo Masculino e Testosterona [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ada é consensual, nem a natureza do desejo sexual. Até rimei. As ciências baseiam-se nas várias formas de como olhar o mundo para interpretar fenómenos humanos. Como se entende o desejo sexual (e os problemas e vantagens a eles associados) vão variar de acordo com as nossas orientações epistemológicas. A mais utilizada para perceber o desejo sexual, que até está presente no nosso senso comum, é a do modelo biológico. Mais concretamente, que as nossas queridas hormonas contribuem para os sinais mais óbvios do desejo e da performance. Mas será a biologia capaz de explicar tudo? Há quem diga sim, há quem diga que não. Parece que os estudos que suportam a tese biológica poderão ser re-interpretados à luz de um entendimento mais dialógico, i.e., tendo em consideração os corpos e as mentes da parelha do desejo e do sexo. A evidência mais clara de que o desejo não depende totalmente de existência de testosterona em força, é a dos eunucos. Os eunucos que, no caso da corte chinesa, trabalhavam para servir as concubinas do imperador, eram castrados para não haver risco algum de se envolverem com as meninas, muito menos engravidá-las – para não correr o risco das concubinas produzirem possíveis herdeiros infiéis à linhagem do imperador. O que certas descrições da época parecem informar é que lá pelos homens terem perdido os tomatinhos (de forma bastante traumática, suponho), não era por isso que não iriam brincar ao sexo com as raparigas (ou rapazes) que quisessem. Aliás, isto é tão verdade que até poderá ter havido a prática de remoção do pénis, para além dos testículos, só para não se correr risco absolutamente nenhum. Mas nada indica que os eunucos não pudessem, ainda assim, não gozar o prazer sexual, usando as mãos ou a boca, por exemplo. Vou tentar explicar o porquê da persistência do desejo, da melhor forma que puder. Imaginem um homem com problemas em ter uma erecção: como é um tanto ou quanto estigmatizante para a sexualidade masculina acontecer tal coisa, é normal que o desejo se agarre à vergonha – para assim se proteger de situações desconfortáveis. Por isso, é bastante comum ver a disfunção eréctil associada à falta de desejo, mas e se não for a biologia a causar a inibição do desejo sexual? E se a causa for o estigma da não-erecção? Quer dizer que a natureza do desejo vai muito além das hormonas (não descartando que elas são parte importante, claro). No caso dos eunucos, eles sabiam que tinham como trunfo sexual a infertilidade – as mulheres sentiam-se atraídas por isso. Não é fantástico poder sentir o prazer do toque e do orgasmo sem se ter que preocupar com uma gravidez indesejada, quando a pílula estava longe de ser comum? Alguns relatos da época parecem apontar para esta explicação – e não me parece descabida de todo – o desejo sexual será, por isso, o resultado de relações de atração. Portanto, trocando isto por miúdos: o desejo sexual parece alimentar-se da atração pelo outro, mas também da forma como nós achamos que o outro pode sentir-se atraído por nós, e das nossas condições de prazer. Daí eu ter descrito o desejo como dialógico, porque parece depender de uma conversa de atrações, do que eu acho do outro, e do que eu acho que o outro acha de mim. Claro que o que nós julgamos atraente é construído socialmente, e o perigo sempre foi associar o prazer e a performance masculinas à erecção e à ejaculação, sem nunca dar espaço suficiente a outras formas de amor e de prazer. A lógica biológica, e melhor disseminada socialmente, parece atrapalhar as formas de desejo sexual que poderiam ser exploradas, justificadas e concretizadas fora da testosterona. Se os eunucos, privados de níveis normais de testosterona, continuavam a sentir desejo e fantasia, e que ainda iam para a cama com as miúdas com quem era suposto não irem, o sexo tem de estar algures entre as nossas cabeças, a nossa magia sensorial e os nossos genitais.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo e Aleatório [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo quer-nos nus, vestidos não tem tanta graça. Há quem não concorde totalmente, uma rapidinha de órgão sexual descoberto e mais nada, para encaixar os sexos, e/ou as bocas e outros orifícios de prazer, também é kinky. Mas para além do prazer sexual, podemos nós esquecer o que de mau o sexo pode trazer? A violência? Só com a nossa intimidade descoberta é que nos magoamos, só para fazer justiça à máxima taoista de que o bem só existe porque o mal anda algures. Gostava de escrever melhor para expressar melhor – comunicar melhor – se é que conseguem perceber a diferença. O sexo não é só um bode expiatório para o nosso reencontro pessoal, é também a possível concretização de sermos felizes com os outros. O sexo tem tanto que ver connosco próprios como é parte integrante da nossa socialização, de quando aprendemos que os outros são importantes na nossa vida. Da mesma forma que damos sentido à música, ao sonho, ou à fantasia e aos conteúdos culturais que nos embalam constante e incessantemente ao construirmos as nossas narrativas. O sexo está lá, nem que seja porque cada um de nós nasce do sexo, nasce do amor ou da ausência dele. Nasce do toque, seja esse de corpos nus ou de corpos cobertos, tocaram-se. Quando era uma criança pré-consciente do sexo e da forma como os bebés nascem, teorizei com o auxílio das novelas brasileiras, que esse toque era o simples beijo, e que com trocas sucessivas de saliva os nossos corpos de poderes alquímicos tornariam vivo o que era inexistente. Este excerto chama-se aleatório porque nunca sabemos o que o sexo suscita e estou a exercitar formas de o descobrir. Caímos em escorregas de significados que provavelmente não têm fim – nem início. A queda contradiz-se com a ascensão porque – lá está – precisamos de opostos e de equilíbrios, morais, éticos ou racionais. Mas tal como as ondas sonoras, as frequências caem e crescem com a mesma sintonia, nunca se definindo como o progresso ou a retrocesso. O sexo nem sempre é bom, nem sempre é mau, simplesmente existe no meio da nossa existência, que tanto insiste no caos. Tantas revistas, tantos canais, tantos vídeos, tantos livros, tantos manuais, tantos textos (!!) para dissecar os significados do sexo e do amor da mesma forma, para chegar a conclusões mais ou menos esclarecedoras acerca do que nós podemos fazer pela nossa sexualidade e pela dos outros. Virgens de todos os géneros, tamanhos e estilos, valores puritanos que pairam até nos espíritos mais liberais. É tudo uma confusão! Mulheres que acham que o assédio é um assunto sério, outras que acham que restringe o acesso à liberdade de importunação. Feminismos de todas as cores e feitios, que ao contrário do que se julga, de muito pouco tem de consenso. Homens que pedem por mais direitos, e outros que dizem que já têm os suficientes. Serão questões de raça, de género, de sexo, de classe social? Afinal o que é se passa neste mundo de injustiças, sexuais e de outros tipos, que não consegue arranjar soluções consensuais para a justiça social? Para a justiça sexual! Ai de quem me traga mundos a preto e branco, de moralismos claros, de soluções pré-definidas. Escrevendo aleatoriamente, na nossa tentativa de perceber o que quer que seja, também as vidas parecem aleatórias. Discussões que nunca mais acabam porque tudo é problemático e nada nunca é fácil. Há um conforto em pensar que nada fica sempre na mesma, e que não há respostas simples para absolutamente nada. O sexo é complexo, as respostas sexuais são complexas, as posições sexuais podem ser complexas. As vidas sexuais que procuram sentido(s), e que raramente o encontram, nunca desistem de tentar.
Tânia dos Santos SexanáliseAno Novo, Sexo Novo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] novo ano traz novos desejos e novos planos – 2018 vai ser o melhor ano de sempre! Ou pode ser um ano exactamente igual ao anterior. Desta vez será diferente, sabem porquê? Porque vou pensar na mudança do ano e do sexo com optimismo – registo que não me é nada natural – só porque fiz o optimismo uma resolução para este ano. Querem-se desejos e sonhos sexuais cobertos de esperança e de possibilidades infinitas. Os desejos serão os mesmos para qualquer causa social nesta viragem do ano. Mais tolerância, mais liberdade e mais amor, e porque não gosto de soar a uma hippie inconsequente – estou a tentar ser optimista, e não uma idealista! – eis o que isto quer dizer: já que muitas das estruturas sociais vivem do ódio, do medo e da vergonha do sexo e da expressão de género, que 2018 traga actos individuais (colectivos ainda melhor) de tolerância. Coisas simples que cada um de nós pode fazer pela nossa própria sexualidade e a dos outros. Quando às vezes penso em tempos antigos, quando as mulheres morriam de abortos mal efectuados, para fugir do estigma da gravidez enquanto solteiras, sem recursos e sem apoios – sim, eu ando uma devoradora de literatura da Margaret Atwood – quando penso na coragem necessária para lidar com as dificuldades das condições menos heterossexuais, menos sexistas, menos sexualmente libertadoras. Outros tempos em que a imagem da bruxa era a de uma mulher com garra, com conhecimento sexual, com a sabedoria que lhe merecia, e, porque assim era, morria queimada na fogueira. O meu pessimismo não existiu estes anos todos sem justificação, alimenta-se da consciência de que muitas destas situações ainda são realidades diárias e contemporâneas. 2018 que soa a um ano futurista – ainda não há muito tempo – vive realidades ainda precárias. A luta continua porque se quer mais e melhor sexo, e porque muito já se conseguiu entretanto. Querido 2018, peço-te um ano novo com sexo novo – daquele mais simples, mais solto e leve. Daqueles que emanam tranquilidade quando pensamos na liberdade de expressão sexual como uma procura dos sentidos. Da transcendência do sexo à simplicidade diária que poderá ser real ou que poderá ser imaginada. Momentos em que o sexo deixa de ser o bicho papão da censura e da vergonha para se tornar num momento de relaxamento de corpo e mente. Posso pedir mais, 2018? Não quero abusar no peditório nem no entusiasmo. Também gostava de ver melhor discutido em praça pública, não só acerca das coisas boas do sexo, mas das coisas más – que nem por isso deverão ser pintadas como terríveis, como habitualmente se faz. Era porreiro que 2018 ajudasse na consciencialização das doenças sexualmente transmissíveis – que são muitas, variadas e de perigos/taxas de infecção diversas. Mais e melhor educação sexual, mas também mais e melhor apoio médico e bem informado a acerca das formas como podemos ter uma vida sexual saudável. Oh 2018, poderias ajudar a formalizar direitos humanos sexuais? Reforçar que a dignidade humana está bem prescrita em papel e na teoria, mas a prática ainda precisa de se esforçar mais? Bem sei que já percorrermos um longo caminho, mas temos um ainda mais longo por percorrer! Pelo direito ao prazer, ao orgasmo, à nudez desproblematizada, à saúde da vagina e do pénis, pelo bem-estar emocional e a liberdade de expressão sexual. Ir contra as persistentes tradições judaico-cristãs que às vezes ainda se mostram nas formas como directa ou indirectamente se julga o sexo neste novo 2018. Um ano cheio de amor e calor. 2018 e todos os anos vindouros serão pela evolução positiva do sexo, sempre.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSonhos eróticos [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s sonhos eróticos, parte fundamental da nossa sexualidade, já foram alvo de escrutínio durante vários séculos. Diz-me o que achas que os sonhos são, e dir-te-ei todos os complexos sexuais que possas ter. As explicações do que acontece no nosso cérebro quando estamos em REM caía no espectro onde de um lado teríamos a saudável recriação e expressão sexual inconsciente, e do outro teríamos a forma como reprimimos (conceito Freudiano tão citado!), ou reinterpretarmos os nossos instintos. Muito se poderia dizer sobre os sonhos, e muito se poderia estudar, mas a verdade é que as comunidades científicas deixaram de estudar o sonho de forma sistemática, i.e., ninguém anda esforçar-se para escrever um novo manual de interpretação. Isto porque os sonhos caem no domínio da subjectividade individual e quiçá, cultural, de símbolos e conteúdos diversos. O que não quer dizer que não valha a pena escrutiná-los ao tutano para perceber o seu significado. Se quisermos olhar para uma história longínqua dos sonhos, estes sempre estiveram envoltos em mistérios proféticos. Os sonhos eróticos também não seriam excepção, ou porque prometiam uma caça bem sucedida ou um controlo parlamentar pleno. Sim, sim- os políticos da democracia grega antiga consideravam que um sonho erótico com a mãe simbolizava poder, o controlo sexual sobre o que seria a ‘nação’-mãe. Para outros contextos culturais menos proféticos o primeiro sonho erótico/ ejaculação nocturna é considerado um rito de passagem masculino da mesma forma como a menarca é sinalizada como o início da sexualização feminina. E por isso, os rapazes e homens têm mais fama de sonharem com conteúdos sexuais. Não é por acaso que os poucos estudos que existem sobre o tema tendem a concentrar-se na recolha de uma amostra maioritariamente masculina quando se quer perceber a relação entre o sonho erótico e a vida real erótica. Há estudos que mostram alguma relação entre o consumo de pornografia e a frequência de sonhos. Quanto mais se vê sexo na vida vivida, mais se sonha com ele. E aqui é importante enfatizar a diferença entre ver/imaginar sexo e fazê-lo, porque quando se pratica sexo com muita regularidade, o inconsciente sonhador já não utiliza esses conteúdos da mesma forma. Os nossos sonhos alimentam-se, com maior regularidade, de fantasias que acontecem única e exclusivamente nas nossas cabeças – do que fica na nossa imaginação. Há também quem tenha tentado mapear os conteúdos destes sonhos masculinos e parece que são tendencialmente egoístas, i.e., o prazer é só deles e de mais de ninguém. Aliás, a a companhia copulatória no sonho nem costuma ser a sua parceira na vida real, mas será uma mulher conhecida ou desconhecida. Há-de ser outra pessoa qualquer. Apesar do sonho já não receber tanta atenção pela psicologia dita mainstream, o Freud talvez tivesse razão ao achar que o sonho é o caminho real para o inconsciente. Não deixa de ser fascinante pensarmos na nossa capacidade de criar cenários e histórias quando estamos de olhos fechados. Quando sonhamos acordados talvez tenhamos uma melhor percepção daquilo que somos e queremos, porque são fantasias do sexo enraizadas na nossa vivência real. Tudo o que se passa no sonho não deixa de ser um exercício de exploração individual inconsciente – que raramente deve ser tomado literalmente. Contudo, são poucos os que ocupam em perceber, afinal, para que nos serve o sonho erótico? Amadurece-nos sexualmente? Ajudam-nos a resolver os nossos conflitos ou vergonhas? Serão conteúdos artísticos ou desprovidos de nada? Sonhando eroticamente, torna o nosso sexo mais feliz?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSex-Talk [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]nvestigar a sexualidade humana não é tarefa fácil. Como escrevo sobre sexo todas as semanas quase que me esqueço que o à vontade para falar sobre o sexo não será o mesmo do que qualquer outro tópico de conversa. E isso depois reflecte-se na dificuldade em estudá-lo, ou de produzir respostas de ajuda eficazes. Os serviços que providenciam algum tipo de apoio mais especializado ao sexo, vêem-se obrigados a arranjar estratégias criativas de atrair utentes. No mundo ocidental em que vivemos há um paradoxo interessante entre não falar sobre sexo, mas usá-lo como produto de consumo. O sexo vende, e por isso o marketing usa clichés da atracção sexual que continuam a funcionar, mas falar sobre o sexo de forma aberta e saudável é que está quieto. Aliás, sempre que vejo movimentos de pais contra a educação sexual nas escolas, pergunto-me se eles não têm noção que os seus filhos pré-adolescentes são bombardeados com vídeoclipes com mulheres semi-nuas e altamente sexualizadas a toda a hora. Mas isso é uma circunstância da vida, falar sobre o sexo é que não pode ser, não se expõe assim a ‘perversão’- ainda a atraem com mais força. Por estas e muitas mais tontices, é que falar sobre o sexo é difícil e limitado pelo tabu – o que torna a investigação socio-biológica do sexo das mais desafiantes. Ao menos temos séries e filmes, O Sexo e a Cidade seria uma delas, ou o Girls, se pensarmos na televisão mais americanizada. Estes são dos poucos momentos televisivos em que o sexo é apresentado de uma forma mais natural, mais realista. Tudo o resto são exageros hiper-sexualizados e hiper-românticos que ajudam a perpetuar mitos já nossos conhecidos. Por isso, quando queremos entrar nestas construções sociais do sexo – que a televisão, a música, o consumo, a nossa experiência individual ajuda a criar – o expectável seria entrevistar pessoas sobre o sexo, pô-las a falar para melhor compreender as suas cabeças. Mas imaginem o horror que poderá ser, pôr uma sala cheia de estranhos a conversarem acerca de, por exemplo, satisfação sexual? Nós, que somos seres sociais a trabalhar um equilibrio saudável entre o individual e o social, precisamos de comunicar. É preciso comunicar sexo seja isso de forma mais informativa, mais pessoal e íntima, melhor ou menos problematizada. Não basta sexar, é preciso conversar. E isto serve como dica para toda uma vida, não só uma queixa dos que estudam o sexo e vêm dificuldades acrescidas simplesmente porque é um tópico difícil. Conversem com o parceiro, com as amigas e com os amigos. Há certos mitos e crenças de roda do sexo que são contraproducentes, que perturbam o bem-estar individual e de casal. O remédio? Uma boa conversa com um copo de vinho com a melhor amiga para desconstruir alguma tolice – que os homens não têm que vir-se na cara da rapariga, por exemplo, só para reforçar que os mitos vêm de toda a parte, até da pornografia. Costumo pregar o direito universal do sexo, pela nossa identidade sexual, prática e fantasia. Mas frequentemente esqueço-me que o maior desafio não é ter sexo, mas falar sobre ele. Num estudo que tenta perceber de que forma a satisfação sexual é conceptualizada, a comunicação sexual apareceu como parte do processo para chegarmos à satisfação plena. A natureza da relação amorosa, e de forma que ela é comunicada também faz parte integrante do desafio a dois, a três ou de toda uma sociedade ou planeta. O sexo vem dos corpos, da mente e da linguagem que cria as relações, as partilhas e os mundos por descobrir. Para uma sexualidade saudável é preciso conversar sobre sexo, demais, e nunca de menos.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDisfunção sexual [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre o corpo e a mente do que a disfunção sexual pode ser, há uma panóplia de tratamentos para curar este mal que pode assolar qualquer pessoa. De todas as gentes, todas as orientações, todos os géneros ou órgãos sexuais associados. Podem ter um pénis ou uma vagina, ou os dois, que a disfunção sexual pode afectar o nosso apetite e performance para o sexo. A definição está no tão conhecido manual da doença mental, sendo a categoria guarda-chuva que acolhe por exemplo, a disfunção eréctil, formas de hipoactividade sexual, a, mais comummente designada por, ‘frigidez’ nas mulheres e ‘impotência’ nos homens. Curiosas descrições, não são? porque as mulheres devem ser calorosas ou ‘amorosas’ e os homens potentes, pujantes e energéticos – só para referir, uma vez mais, que estas assumpções de género estão por toda a parte, e no nosso dia-a-dia. Voltando à categoria de disfunção que não é fácil de compreender – ou de aceitar, porque reforça a ideia da patologia em nós –, esta pode estar associada a factores físicos, psicológicos e sociais. Quando identificada com uma etiologia física, a disfunção é tratada através de, quiçá, uma cirurgia e facilmente resolvível. Quando as causas são psicológicas e/ou sociais (permitam-me considerar que o psicológico e o social não são facilmente dissociáveis, e por isso os tomarei como causas ‘semelhantes’) é que a porca torce o rabo, o burro não levanta o pau, ou qualquer outra metáfora que ajude a imagem de que os possíveis tratamentos não são tão fáceis de delinear. Aqui é que o conceito de ‘disfunção’ parece ser contra-producente, porque dificuldades de cariz psicológico são mais difíceis de ser levadas a sério na população em geral. Pensemos na disfunção eréctil, por exemplo, em que existe um tratamento medicamentoso, mas que não é eficaz a longo-prazo. A investigação parece mostrar que, em combinação, a psicoterapia tem efeitos mais positivos e persistentes no tempo. Aliás, o primeiro grupo de investigação sobre sexualidade humana em Portugal (Sexlab, na FPCE da Universidade do Porto) tem-se debruçado sobre isso mesmo, de como a psicoterapia pode curar a disfunção eréctil. Entre vários exemplos, isto prova que o sexo apesar de se apresentar como puramente físico – e muitas vezes fala-se no sexo como uma necessidade física… – envolve-se em dimensões cognitivas, emocionais e mentais que são vulgarmente ignoradas. Qualquer doença mental sofre do mal do estigma também, porque julga-se que a mente, muito rápida e facilmente, consegue resolver o que quer que seja: depressão, esquizofrenia ou distúrbio bipolar. Mas o sexo consegue complexificar aquilo que julgávamos simplesmente biológico e físico. O sexo, só é sexo, porque temos órgãos sexuais e porque temos uma cabeça que dá sentido a aquilo que sentimos. Talvez pensar que a nossa sexualidade reside na nossa mente não seja uma ideia fácil de digerir. Mas é tal e qual um atleta de alta competição, que mesmo que esteja muito envolvido na performance e no treino das suas competências físicas, precisa de disponibilidade mental. Na mente é que se jogam os medos, anseios, culpas ou a vergonha e a disfunção sexual alimenta-se demasiado destas valências que precisam de ser, acima de tudo, reconhecidas e pensadas. Talvez a função do sexo não seja o coito puro e duro, talvez seja um redescobrir emocional que envolve outras gentes, ou que nem envolve ninguém. A disfunção é assim um sintoma de muitas das nossas dificuldades integradas em várias dinâmicas e que precisam de tratamentos que possam acolher a complexidade do físico com o emocional.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesNo Divã com o Sexo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar da psicanálise ter sido o grande impulsionador da teorização do desenvolvimento sexual e da saúde mental, hoje em dia são raros os psicoterapeutas que usam uma perspectiva estritamente psicanalítica. Hoje, cada vez mais, os psicoterapeutas tentam incorporar as várias perspectivas psicológicas de como lidar com o sofrimento humano e com o(s) processo(s) de procura de bem-estar – mas como é que se lida com o sexo? Surpreendentemente ou não, somos todos humanos e todos temos vieses que nos podem tornar mais ou menos tolerantes quando discutimos a sexualidade. Os psicoterapeutas podem ter mais ou menos capacidade de explorar, com o seu cliente, identidades e formas de sexualidade menos prototípicas. Surpresa: nem todos nós encaixamos nos paradigmas ocidentais, que se baseiam, fundamentalmente, numa perspectiva evolutiva, cisgénero, heterossexual e onde o sexo serve unicamente os fins de procriação. A dificuldade em falar do sexo de forma saudável, é transversal a todas as categorias profissionais que, à partida, achamos nós, deveriam ter valores mais progressivos, ou que fossem, pelo menos, a favor do bem-estar individual e colectivo. Assim acontece quando continuamente assistimos à representação do outro – o que não encaixa na expectativa heterossexual – como silenciado, hiperssexualizado ou assexualizado. Na formação psicoterapêutica começam a existir conceitos que nos auxiliam a pensar estas questões do sexo e uma delas é a do sexo-positivo. Considerem um espectro em que num extremo está o sexo-negativo e no outro o sexo-positivo. De um lado temos as dificuldades associadas à culpa e à vergonha do sexo, e da outra temos consciencializada a necessidade de considerar o sexo como parte integrante do nosso desenvolvimento saudável, nas suas várias expressões livres e consensuais. Muito para além das identidades sexuais como as entendemos, o sexo-positivo engloba o bem-estar físico e as experiências e relações de prazer. Um psicoterapeuta sexo-positivo sabe que é necessária uma sensibilidade particular para lidar com as tendenciais mensagens e valores sociais de erotofobia que muitas vezes são trazidas para o processo terapêutico. A erotofobia, conceito ao qual eu sou relativamente nova, reforça que o medo do erótico, ou, medo de aceitar o nosso erotismo, está associado a outras formas de comportamento nefastas para a saúde, bem como uma diminuição da auto-estima. Até há bem pouco tempo, no manual de diagnóstico à doença mental (DSM-IV), ainda se encontrava listado como patológico o sadismo e masoquismo sexual (vulgarmente denominado por BDSM). Não tem sido fácil desfazer a ideia de que não existe uma ‘normalidade’ categórica do sexo. Tanto que ainda existem um número de assumpções sexo-negativas que associam as práticas BDSM a ‘traumas não resolvidos’ ou de desajuste social e sexual, em que (supostamente) há uma forte dependência nas relações de poder que se acreditam ser ‘perpetuadas’ na vida real. Esta estigmatização (e má informação), que acontece entre terapeutas e profissionais, parte da contínua confusão entre BDSM consensual e não-consensual, este último bastante associado à literatura forense. Poderia dar muitos mais exemplos, ocorre-me por exemplo, as constelações poliamorosas que muito provavelmente, em contexto terapêutico, serão analisadas à luz de relações monogâmicas – o que não servirá de grande ajuda, muito pelo contrário. E porque estas coisas têm vindo a acontecer, existem vários apelos pelo sexo-positivo no sentido de valorizar a expressão e desejo sexual consensual, que ultrapasse a nossa necessidade de considerar patologia aquilo que – bem trabalhado e bem aceite – nos traz a uma relação saudável connosco próprios e com os nossos desejos e prazeres.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesClímax [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] segredo para o bom sexo não é o orgasmo. O orgasmo faz parte, claro, mas o sexo não se reduz a este único momento. Quando vemos tutoriais e artigos de revistas femininas de como atingir o orgasmo, nos seus diferentes tipos, reforça-se a ideia que o sexo, para ser considerado sexo, tem que culminar no dito. Mas como nunca vale a pena cristalizar o que quer que seja: 1. De que vale a expectativa orgásmica? Se focarmos toda a nossa actividade sexual, incluindo a masturbação, no caminho real para o orgasmo, a coisa pode correr mal. É como se diz e é bem verdade, o orgasmo acontece quando menos se espera. Quanto mais quisermos sentir o prazer máximo, mais difícil será chegar lá. Sabotamo-nos quando colocamos um enorme peso na performance sexual: quando julgamos que o bom amante é aquele que se vem e que faz vir. Nos extremos do espectro temos casais heterossexuais em que o prazer masculino é privilegiado (se a mulher não atingir o orgasmo, que se lixe) e no outro lado os casais que julgam a ausência de orgasmo um desastre sexual. No meio é que está a virtude, i.e., parem de dar o protagonismo ao orgasmo – porque assim ele não consegue tornar-se protagonista de todo. 2. Quantos tipos de orgasmos existem? Revejam os diferentes tipos de orgasmos que já tiveram e como é que lá chegaram. O orgasmo, e agora vou pensar particularmente no feminino, tem muitas vias de acção. Quando existem disputas pelo número de orgasmos que existem – será que são 4? Ou 8? Ou 12? – é comum esquecerem-se de referir que todos os corpos são diferentes e por isso os formatos de prazer também são diferentes. Recebemos alegremente todas as milhares de sugestões de prazer que possam existir por aí, mas quem conhece o nosso corpo, somos nós. A anatomia dos nossos sentidos, quando bem investigadas, permitem possibilidades infinitas de exploração. O botão do amor, o clítoris, é de tamanho bem mais generoso que o visível a olho nu, com 8000 finais nervosos que se estendem no pavilhão pélvico – por isso, porquê reduzirmo-nos a acariciá-lo debaixo do seu capuz? As mulheres de várias gerações que nunca tiveram a oportunidade de dar prioridade ao prazer, nem sempre estão sintonizadas com os seus potenciais orgásmicos. Potenciais esses que até podem nem passar pela directa interação vaginal e clitorial. Com muita paciência e dedicação, a boca ou mamilos podem levar-vos às nuvens do orgasmo. 3. Como chegamos à (nossa) variedade de orgasmos? Nem todas nós temos a sorte de ter uma vida profissional a testar brinquedos sexuais – e assim passar as horas úteis do dia a explorar os nossos caminhos de corpo e prazer. Mas a facilidade do clímax não é o mesmo para toda gente, e há quem precise de umas horas extra para se dedicar às respectivas estratégias. Para chegar à variedade temos que não abusar das nossas fórmulas certeiras para o orgasmo e não ter medo de explorar outras. Os brinquedos sexuais de múltiplos tamanhos, formatos e vibrações têm um papel importante nesta investigação pessoal. A experiência directa, as conversas com as amigas, as leituras eróticas ou as nossas reflexões fazem parte deste processo que nem sempre é linear – desenganem-se se acham que um vibrador vos transporta automaticamente para o sonho orgásmico, muitas vezes é preciso paciência até lhe tomarmos o jeito. Surpreendentemente ou não, o que mais importa ao nosso orgasmo é a nossa mente (e ter um brinquedo sexual também ajuda). O nosso estado cognitivo-emocional cria condições para a nossa disponibilidade e curiosidade sexual, permitindo que todas as sinapses associadas ao toque, à estimulação, ou à fantasia possam culminar nas contracções orgásmicas que tanto queremos experenciar. Mais do que uma dica aqui ou ali, o segredo para o orgasmo é uma entrega física e mental plena, atentos às sensações e às complicadas interacções em que o nosso corpo nos envolve, até chegar ao clímax.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo na distopia [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] romance de Margaret Atwood, História de uma Serva, em inglês The Handmaid’s Tale, de repente lançou-se para fama porque alguém se lembrou de fazer uma adaptação televisiva. A autora diz-se encaixar no género de ficção especulativa, projectando futuros distópicos que podiam muito bem acontecer, e não discordo. Esta história soa à actualidade de alguma forma, mesmo que tenha sido escrita nos anos 80. O actual interesse por ideologias mais conservadoras no mundo ocidental parece encaixar que nem uma luva em alguns dos processos que levaram ao contexto político e social desta narrativa. Vi a série e li o livro, e não pretendo de modo algum revelar spoilers. Esta é só uma reflexão a partir da ideia base em que esta história se desenvolve: no poder encontra-se um governo conservador altamente patriarcal. A narrativa gira à volta de uma mulher que é feita serva do sexo – para colmatar a necessidade de procriação. É uma espécie de concubina para trazer ao mundo os bebés que já são difíceis de produzir. Como toda a ficção transporta-nos para futuros mais ou menos plausíveis, os nossos pobres neurónios são quase que obrigados a reflectir sobre as condições sociais, culturais e sexuais das nossas vidas. Remeteu-me para a existência particularmente feminina porque aborda o sexo e a maternidade de forma sufocante e urgente. Entrei nas realidades psicológicas das personagens e na de mim própria. A sexualidade feminina como conquista contrasta com a reinterpretação fictícia do sexo como objecto económico. Não é descabido – assustou-me – a fertilidade como bem estatal. Se algum dia virmos o mundo a padecer de uma taxa de natalidade decrescente, ao ponto dos humanos entrarem em vias de extinção, não serão absurdos os movimentos que instigam a mulheres a serem única e exclusivamente parideiras. Como os pandas em cativeiro. Nesta história o sexo é atirado para o plano religioso e utilizado somente para procriar – com aquelas que ainda podem, com as mulheres que ainda são férteis. A ‘cerimónia’ acontece uma vez por mês de forma mecânica, impessoal, dolorosa ou não dolorosa, nem interessa. A gestação é uma formalidade para trazer alguém ao mundo. Sabemos como é a mente humana, a dor é silenciosa mas sabemos que a engenharia social magoa estas servas que não escolheram estar ali. Vê-se materializada a imposição ideológica que cobre formas de vida, e de sexo, sem grande reflexão. Já viram um mundo que em vez de entendê-lo, massacra-o? A história é marcada pelo exagero patriarcal que se mascara na necessidade demográfica. O sexo carrega pudor social mas são permitidas manifestações clandestinas e violentas. Quem é que vive sem sexo? Quem é que vive sem carinho, ou amor? Quem é que vive sem sedução? Quem vive sem que lhe toquem? A história da Offred, personagem principal e narradora, torna saliente o desespero de não ter aquilo que o nosso corpo e mente precisa. Quando somos contrariados e tornamo-nos marionetas de uma ideia que não é nossa, e da qual não temos controlo algum. E o sexo assim torna-se, sem formas saudáveis e livres de expressão, num fruto envenenado que ninguém quer experimentar. A maternidade revela-se instrumental e sem espaço para afectos. A emoção que reina (e controla) é o medo, e assim se mantém a ordem social. Reflectir sobre os significados do The Handmaid’s Tale é ter medo também – não necessariamente do possível tom profético – mas do extremismo ou autoritarismo que regem muitas vidas por esse mundo fora, no presente.
Tânia dos Santos SexanáliseToque [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ual é o maior órgão do corpo responsável pelo prazer? A pele. Acho que esta pergunta já foi usada em tom de anedota – não tenho muito jeito para anedotas – mas as palavras ‘prazer’ e ‘grande’ leva a pensarmos em formas fálicas, muito naturalmente. Temos a pele como a estrutura que nos protege do mundo exterior e a que conduz as mais variadas sensações, sejam elas de dor ou de prazer. No sexo, este prazer do toque é central para uma união sexual mais inteira, mas todos estão convidados a discordar. Desde cedo que aprendemos que os órgãos genitais estão no centro do prazer sexual sem reflectir acerca das periferias do corpo e o seu contributo. Quem tem fetiches particulares provavelmente terá uma noção mais alargada do sexo – para além dos seus genitais. A pele tem um papel importante nisto, ou por outra, o toque subtil ou violento estimula os nossos centros de prazer de forma mais integrada para quiçá, um bom preliminar ou um bom orgasmo. Temos o toque tão garantidamente presente. Quando nos privamos do toque enlouquecemos. Não me refiro somente ao contexto sexual, mas em tudo das nossas vidas. Quando é que sentiram que um abraço com o toque de um corpo com o outro poderia fortalecer o sentido de ser, um sentido de ligação quando estamos particularmente sozinhos na nossa experiência. Seres intelectuais que somos vivemos preocupados com a nossa mente, preocupamo-nos em viver com a ‘cabeça’, com racionalidade. Esquecemo-nos das sensações do corpo e da pele que a acompanha em formatos mais ou menos do nosso agrado – quem é que se sente totalmente confortável na sua pele? Vão-se perdendo sentidos porque vivemos demasiado agarrados ao passado ou no futuro, nunca no presente. O sexo vive disso também, de uma sensação de presença temporal que deveria ser obrigatória, e facilitadora pela pele. Prendemo-nos no(s) outro(s) à espera de percebermos mais sobre nós próprios, sobre o nosso corpo e a nossa sensação. Nada de pensar na lista de compras, nas tarefas ainda por fazer, nos problemas familiares ou num outro qualquer macaquinho na cabeça. Não – deixem-se ir. Se esta fosse a normal perspectiva do sexo, teríamos pessoas mais felizes? É provável que sim. Não que seja a solução perfeita para a doença mental, mas ajuda – nascemos sensíveis em todas as pontas do corpo para nos protegermos do perigo, para nos mantermos vivos, para nos sentirmos. Quantas vezes já se queimaram com água a ferver e tiveram a perfeita sensação de alívio por só ser uma pequena área do dedo? O contrário do prazer é a dor, e por mais que nos confundamos com a linha ténue de diferença, o prazer – mais ou menos intenso – ensinou-nos como é que nos tratamos bem. Mas é isso, somos tanto pelo hedonismo simplificado – da mesma forma que se criam robôs hedonistas sensíveis à aprendizagem pelo prazer – que bem podíamos dar complexidade ao prazer e à sensação, para nos deixarmos de prazer básico, e de consumo rápido. Queremos o prazer certeiro de roçar de genitais, ou será que queremos perder mais tempo (eu sei, ninguém tem tempo estes dias) a procurar formas de prazer mais sofisticadas, pele com pele, corpo com corpo e mente? Não quero complicar a vida de ninguém, mas se somos seres conscientes com potencial de prazer imenso, porque é que nos acomodamos? Procurem o prazer, conscientemente, lentamente. Compliquem o prazer para descomplicar tudo outra vez.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesAssédio a sério [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem tem acesso à imprensa internacional provavelmente deparou-se com uma avalanche de notícias que cogitam os sentidos do assédio sexual. O que nos parece surpreendente, é que alguém de grande nome internacional e prestígio tenha sido actor de assédio e violação durante anos. A pergunta natural é de como é que esta situação nunca fora denunciada? Como é que se manteve silenciosa? O que eu julgo que é uma explicação para este fenómeno, é a normalização do assédio. Na nossa experiência limitada pensamos que a realidade social está bem delimitada entre o certo e o errado, e por isso, (achamos que) o assédio será automaticamente reconhecido e denunciado. Contudo, somos seres complexos que contam narrativas acerca do nosso posicionamento social e daquilo que fazemos, e o assédio não é explicado de forma simples. As formas de avanço masculino muitas vezes dançam por entre as linhas ténues do que é normal ou não. E como nós nos regemos por expectativas de género fixas, até somos incapazes de reconhecer assédio sexual nos homens – porque julgamos os homens sempre predadores e as mulheres sempre as vítimas. A primeira reacção costuma ser sempre: provavelmente isto aconteceu porque ela ou ele estava a pedi-las. E isto as pessoas à nossa volta vão ajudar a confirmar. Mas para o assédio ser levado a sério teria que ser melhor discutido sem grandes complicações. Num mundo ideal-hipotético, o assédio poderia ser denunciado sem grandes consequências, mas não é isso que acontece. Denunciar o assédio não traz só repercussões ao agressor, mas a quem denuncia. Num outro momento já me debrucei sobre a temática da agressão sexual mais explícita, denunciando as práticas (que roçam a humilhação) a que as vítimas são normalmente sujeitas. Há sempre aquela ideia de que ‘ela/ele merecia’ e que contribuiu com alguma responsabilidade para todo o desenlace. No caso do tal produtor de Hollywood que anda a fazer títulos de jornal com a legião de mulheres que têm denunciado o seu comportamento desapropriado, temos visto alguma justiça. O caso tem sido tão mediático que conseguiu pôr uma quantidade de mulheres à vontade de denunciar a sua conduta para com o sexo feminino. A academia de cinema quer-lhe tirar o Óscar e tudo! Isto talvez sirva de exemplo para tantos outros por aí. Mas será que vale de alguma coisa? É quase como se presenciássemos o privilégio da realeza cinematográfica que arranjou um bode expiatório numa única criatura – quando o problema continua a ser estrutural. Também não vou ser pessimista ao ponto de não ficar contente agora que várias mulheres puderam vir cá para fora, mostrando que é possível denunciar assédio e que isso traz consequências. Nada disso. Mas será que influencia as ‘zé-ninguéns’ como eu, será que nos dá voz? Será que me vão ouvir? Será que se começa a levar o assédio a sério? Enquanto se objectifica o sexo como uma ferramenta comercial para produzir lucros e audiências dificilmente vejo um resultado diferente. A indústria cinematográfica, essa mesmo que tem lidado com o escândalo do assédio, tem contribuído para isso mesmo: continua a utilizar o sexo como uma estratégia de audiências, continua a objectificar o corpo humano, tendencialmente feminino, mas também o masculino, exaltando o culto da juventude. No geral, continuamos a lidar com questões de género de forma extenuadamente sexualizada – já ouviram falar das empresas que obrigam as mulheres a usar saltos altos? Para levarmos o assédio a sério precisamos de mais, muito mais do que a condenação de um produtor de Hollywood.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPlayboy [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Hugh Hefner, o criador e fundador da revista Playboy, faleceu a semana passada com 91 anos. Há quem o considere um ídolo, um homem que lutou e viveu os seus sonhos e não o dos outros – citação do próprio – ou há quem exalte os valores filantrópicos e liberais do ‘Hef’ e da luta política-social pelo sexo livre e sem preconceitos. Mas também há quem reflicta se se pode considerar feminista o homem que tornou a pornografia um lugar-comum. Andei a vasculhar nos meios de comunicação o legado do homem-lenda Hugh Hefner, para rapidamente perceber que é polémico. Se há quem esteja de luto porque o símbolo da revolução sexual deixou este mundo, outros estão a mostrar as garras de raiva porque muitos continuam a pintá-lo como um libertador do sexo, quando provavelmente desenvolveu outro tipo de cativeiro. Talvez… um cativeiro para coelhinhas? Mulheres feitas coelhas que, com fatos de corpetes apertadíssimos, peitos generosos, pernas descobertas, orelhinhas acetinadas e, normalmente, de cabelos loiros, eram treinadas e incentivadas a serem o protótipo da mulher sexy. Elas passeariam por entre os homens que frequentavam o Clube Playboy ou seriam um dia fotografadas para a revista, desta vez, nuas. Do homem fala-se da inteligência extraordinária que foi precocemente reconhecida, apesar de se ter desinteressado da escola. Cresce, aparece, e começa a ter ideias que vêm a revolucionar a forma como a cultura popular vê o sexo e o corpo feminino nu. Nos anos 50, sem grandes expectativas no que ia dar, lança primeira edição da Playboy com a Marilyn Monroe vestida, na capa, e nua nas páginas centrais. A ideia era criar uma revista que pudesse entreter o homem contemporâneo: com textos de autores bem respeitados (e.g. Kerouac) ilustrado com mulheres lindas de morrer a mostrarem-se tal qual como vieram ao mundo. Esta revista popularizou-se de tal forma que veio contribuir para a revolução sexual que durante os anos 60 e 70 tiveram o seu pico de expressão. Por isso, sim, as ideias do falecido trouxeram algum empoderamento sexual ao mundo, mas ao mundo predominantemente masculino. Esta figura mítica veio capacitar os homens a re-descobrirem a sua sexualidade de forma a gozarem o desejo sexual de forma livre e desinibida – normalmente com uma revista Playboy escondida debaixo da cama. Se trouxe alguma coisa à sexualidade das mulheres… aí é que as opiniões divergem. Parece que as opiniões caem entre julgá-lo um feminista ou um chulo. As evidências políticas apontam para uma preocupação da sexualidade feminina – ao ter apoiado a distribuição livre de contraceptivos femininos ou pela legalização do aborto. Mas o resto do pacote comercial que passava cá para fora… aquela mansão, as sete namoradas, todas loiras e ‘plastificadas’ por um cirurgião ou as constantes entrevistas em que reforça a ideia de que as mulheres são e serão objectos do sexo… Eu consigo reconhecer o que de bom o homem trouxe ao nosso sexo e à sociedade globalizada. Aliás, os mais de cinquenta anos de existência do conceito constitui uma bela colecção de como o corpo da mulher (e o padrão de beleza) tem-se alterado. De mulheres com corpos de ampulheta, mamas de grandes e variadas aréolas mamárias vimos transformarem-se em mulheres mais esguias e de peitos mais artificialmente avantajados. Dizem as más línguas que era o próprio Hefner que insistia (e contribuía financeiramente) para os implantes das colecções mais recentes de coelhinhas-namoradas. Também dizem as más línguas que as namoradas eram sujeitas a um tipo de tratamento pouco digno, que eram obrigadas a recolherem-se aos seus aposentos todos os dias às 9 da noite, vestidas de pijamas de flanela cor-de-rosa. Os rumores também conjeturam o sexo programado e (provavelmente) forçado entre coelhinhas e um homem idoso. Graças a ele temos o sexo livre e graças a ele temos mulheres ainda em menor controlo da sua própria sexualidade. Vamos ver agora qual a herança do império do sexo porque o homem já foi. Agora descansa no jazigo ao lado do da Marilyn Monroe, a quem outrora fez capa de revista – sem nunca lhe ter pedido permissão.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesÉ difícil ser mulher [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] regular leitor deste excerto temático saberá que tenho uma natural tendência para discutir a condição feminina nos dias que correm. Às vezes ser mulher não é fácil, já cantava a Tammy Wynette, que termina com um refrão que só exalta a representação feminina de dependência daquela altura – stand by your man. Esses eram tempos nos 60s de música country que espelhavam realidades conjugais ainda bastante tradicionais. Agora já se fala do amor, do matrimónio, de homens e mulheres de maneira diferente, ou pelo menos tenta-se. Contudo, e isto parece persistir ao longo do tempo, ser mulher continua a não ser fácil. Como todos bem sabem, há países onde as mulheres ainda não têm direitos. Na Arábia Saudita só muito recentemente lhes foi concedida a possibilidade de assistirem a um jogo de futebol num estádio – e isto não podia ser mais mundano. As mulheres permanecem limitadas na sua expressão mental, emocional e sexual com risco de serem mortas porque dizem e fazem aquilo que querem. Estive atenta à história de Qandel Baloch no Paquistão, uma estrela das redes sociais, que foi morta pelas mãos do irmão por estar a ‘desonrar’ a família com a sua honestidade online. Até em sociedades ditas civilizadas e onde os direitos políticos e de representação já foram atingidos, há dificuldades que teimam a ser ultrapassas. Reparem na Google, que muito recentemente se viu alvo de atenção pública em torno da diferença salarial entre mulheres e homens. Uma empresa tão incrivelmente progressiva, com políticas de bem-estar laboral de ponta! Mas surpresa: paga muito mais aos homens do que às mulheres. O pior é que ainda tem de se discutir se esta é uma questão ou não, porque os nossos problemas estruturais e endémicos dificultam o reconhecimento de que a discriminação de género ainda é uma realidade. Culpo os papéis de género que tornam as expectativas sociais demasiado estáticas, demasiado inflexíveis, e por vezes, demasiado incompatíveis. Ser mulher é ser cuidadora, esposa, mãe, filha, emocional, bonita, que se cuida, carinhosa, frágil e vulnerável, sempre muito vulnerável. Estas características frequentemente se contrapõem com outras formas de ser e estar e entram em conflito pessoal e social. Dou-vos outro exemplo igualmente mundano: em pleno séc. XXI, uma mulher com pêlos nas pernas ainda é uma ‘novidade’ e vai ser alvo de olhares de surpresa e provavelmente de algum desdém. Para além da representação feminina temos também a anatomia feminina – o corpo de mulher – que não é de todo a característica de definição exclusiva. Esta anatomia de mamas, útero, ovários, vagina e vulva exige cuidados e um entendimento particular do corpo, corpo esse que está preparado para o sexo, para menstruar e parir. As mulheres, porque são mulheres e carregam uma história de discriminação e negligência, vêem os seus corpos a serem entendidos por poucos. As femininas mais militantes dirão que esta negligência, em particular, no contexto médico, é uma forma de controlo social – eu diria que não é tão propositado, mas sintomático do que a mulher sempre representou ao longo de tanto tempo. Não é por acaso que sintomas relacionados com o transtorno pré-menstrual ainda são mal diagnosticados. Contudo, ser mulher não é sempre difícil, depende muito das coordenadas da nossa nascença, que ditam a facilidade com que se pode ser do sexo feminino. Ser mulher, acima de tudo, pressupõe uma ou outra batalha que ainda tem que ser travada. As representações populares do feminino precisam de uma reviravolta de vez em quando, para agitar os (ainda demasiados) corações tradicionais e conservadores. Querem-se mulheres com ou sem mini-saia, com ou sem pêlos nas pernas, emocionais e analíticas, enfermeiras e engenheiras. Mulheres que querem ser elas próprias.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesLentamente [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara quem é um ávido consumidor de pornografia vai-se deparar com sexo muito rápido e insistente. Imaginamos ‘coelhinhos/as’ a saltar uns em cima dos outros/as, violenta e prazerosamente. A lentidão parece que não se encaixa na representação do sexo per se, somente nos controversos momentos de preliminares é que parece que lentamente se tira proveito dos momentos de prazer – mas que a penetração não tem como aproveitar da lentidão – o slow motion. Parece que o sexo lento é o segredo melhor guardado dos senhores-mestres-deuses do sexo. Nem sequer é contra-intuitivo, é simplesmente romântico. Mas sejamos honestos, quantos de nós foge do romance? Daqueles momentos em que os corpos se entrelaçam em trocas de almas, em trocas do mais íntimo de ser? Tantos! E assim o segredo se mantém segredo, sem grande razão de ser. O prazer continua a ser negado e negociado por representações populares-pornográficas e a lentidão continua a estar na prateleira, em lista de espera. Não fosse o sexo lento muito bom! Para todos, para ele e para ela, para eles e elas. Porque estas manias não são tendencialmente femininas – apesar de ser um catalisador de prazer feminino. A vantagem é a sensação e sensibilidade de milímetros de consciência. Porque aqui também se aplica a história da lebre e da tartaruga… a lentidão não é de perdedores mas de vencedores audazes, na corrida orgásmica do sexo. Digamos que o bom sexo pode ser um sprint, mas é certamente uma maratona. Mas ninguém consegue inteirar-se da lentidão porque vivemos em tempos muito rápidos. Não se deve andar devagar, conduzir devagar, trabalhar devagar. Vai contra os princípios da produtividade – apesar da sabedoria popular sugerir que ‘devagar é que se vai ao longe’, ‘depressa e bem, não há quem’, etc. O sexo é assim mesmo, bom sexo exige tempo, despreocupação e lentidão para acordar os sentidos sensuais que possam estar perdidos e esquecidos. E sim, a lentidão favorece o orgasmo feminino. Mas qual é o parceiro/a que não quer privilegiar o orgasmo mais intenso todos, o de quem desejamos? Nem que seja momentaneamente. Ora pensemos heterossexualmente: se um homem em média ejacula em 7 minutos e as mulheres atingem o clímax em 45 minutos, o sexo lento parece uma óptima solução para resolver este desequilíbrio. Assim o coito é prolongado em minutos, ou em horas para os mais corajosos, e o culminar orgásmico é intensificado. Podem até não se deixar levar à primeira vinda do orgasmo, mas controlar (torturar) o êxtase leva a um acumular de desejo que resulta em orgasmos mais intensos e prazerosos. Não acreditam? Pois este é outro segredo dos senhores-mestres-deuses do sexo: adiem o prazer por mais que puderem. Não sejam consumistas em quantidade mas em qualidade, vão ver que triplicam (ou quadruplicam) o vosso bem-estar sexual. Uma abordagem estritamente capitalista ao sexo, i.e., de consumismo rápido, priorizando a quantidade (muitas vezes descurando a qualidade), pensado que o sexo é uma perda de tempo – e o tempo é dinheiro! – é uma injustiça pela nossa vida sexual. Claro que não quero aqui insinuar que o sexo rápido à coelhinho não valha a pena, nada disso. Mas o sexo não pode ser só isso. Dar o tempo necessário à nossa vida sexual, com a lentidão desejada, com o prazer que daí advém é um direito universal. Pronto, não é mas devia ser. Porque já dizia o Freud que a nossa saúde mental e física é afectada por uma vida sexual decrépita. Mais vale apostar na prevenção e tentar um sexo bem lento de vez em quando – pela nossa saúde.
Tânia dos Santos SexanáliseGlossário do Sexo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras usadas para descrever a verdadeira diversidade sexual são mais que muitas. No dia-a-dia mundano estes significados podem passar-nos ao lado porque vivemos uma realidade tendencialmente binária, e perdemos a noção do pluralismo sexual. Isto é, estamos mais atentos à dinâmica feminina-masculina heterossexual e esquecemo-nos do que se encontra entre uma coisa e a outra. Não há nada como um lembrete da nomenclatura que pode ser estranha a muitos. Para além de que é útil percebermos que a normalidade tem de ser alargada para uma total liberdade sexual de ser e de estar. Ora vamos por partes, a biologia do sexo não tem nada que saber: existem vaginas, pénis e outros formatos anatómicos que não são nem uma coisa nem outra. Imaginem um espectro de biologias que desafiam o normal desenho do órgão sexual e dos cromossomas a ele associados. A perfeição do sexo é coisa que não existe, mas há agora um espaço designado por interssexualidade para anatomias menos típicas – menos prototípicas. Mas para além destes factores biológicos, que não ditam experiências subjectivas de género, encontramos combinações de biologias, identidades e de preferências que vestem constelações e vivências sexuais únicas e particulares a cada um de nós. Imaginem-me uma mulher transsexual lésbica, ou como andrógena bissexual. Também posso ter um género fluído e ser assexual, posso ser agénero e demissexual ou identificar-me como mulher e ser pansexual. Este vocabulário não nasceu por acaso, nasceu da necessidade de reconhecimento e denominação. Isto porque frequentemente as minorias sexuais carecem de redes sociais directas que ajudem a esta identificação – porque vivemos num mundo onde ‘sair do armário’ continua a não ser um processo simples. Aqui vai uma lista com alguns termos que ainda possam ser desconhecidos. Agénero (adj.) – alguém com pouca identificação com o sistema de género mais comuns, não se identifica com os conceitos feminino/masculino. Andrógeno (adj.) – alguém que expressa elementos tanto do género feminino como o masculino, também pode ser usado para quem possua anatomia feminina e masculina. Demissexual (adj.) – um indivíduo que normalmente não sente atracção sexual, à excepção quando se cria uma forte ligação emocional com alguém, normalmente numa relação romântica. Fluidez de género/sexual (adj.) – descreve um identidade que não é fixa, que é capaz de se transformar ao longo do tempo. Pansexual (adj.) – uma pessoa que sente atracção romântica e sexual com todas as identidades e expressões sexuais (cisgénero/transgénero/agénero). E pronto, este é apenas um pequeno auxiliador para dar o nome certo a algumas identidades, práticas e desejos (atenção que existem muitas mais!). A semântica é importante porque espelha a diversidade sexual: fá-la real. Porque afinal, às vezes sentimos coisas que não podemos explicar e as pessoas à nossa volta também falham em explicar-se. No que toca ao sexo, toda esta pluralidade semântica veio facilitar a liberdade de sermos o que quisermos – o importante é que ninguém se intrometa a achar o que quer que seja. Porque se há quem ache que existem palavras a mais, há quem continue a manifestar-se porque as palavras ainda são de menos, e que uma semântica de liberdade é um requisito para a liberdade do sexo.