O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

(Continuação)

O mesmo aconteceu com a China. Se os chineses não tivessem dominado a tentativa de sublevação dos estudantes de Tiananmen em 1989, também Pequim teria iniciado um processo de democratização que teria tido consequências desastrosas e incalculáveis. E o quanto foram erradas as respostas do Banco Mundial às crises das economias asiáticas no final do século, baseadas em regras abstractas e liberalistas elaboradas na mesa de desenho, foi reconhecido por muitos dos responsáveis por esses erros, a começar pelo testemunho honesto de uma grande figura como Joseph Stiglitz, nos anos em que recebeu o Prémio Nobel da Economia. Mas os americanos continuam a não compreender estes problemas. E os europeus, a quem caberia um sentido profundo da história, não só não têm força para corrigir os americanos, como estão a introjectar a utopia americana, rendendo-se a uma cultura sem história.

Portanto, é perigoso. Um neurocientista diria que é uma premissa obrigatória, pois as neurociências estudam sobretudo a memória individual, enquanto na geopolítica partimos da memória colectiva. Estabelecer as ligações entre as memórias individuais e sociais é extremamente complexo. No entanto, pode-se certamente afirmar que, na relação entre memória individual e colectiva, entram em jogo questões de poder. E assim como há uma memória consolidada no indivíduo, há também uma memória consolidada na sociedade. O problema, porém, é que estamos habituados a pensar na memória como algo estático e orientado para o passado. Não é o caso. Antes de mais, a memória não é uma coisa. É um processo dinâmico. Sempre que nos lembramos, damos forma a uma nova memória. De um ponto de vista neuronal, podemos agora ver que, quando uma nova memória é gerada, passa primeiro por uma fase latente de consolidação, durante a qual não temos consciência de que temos um “vestígio” no nosso cérebro.

Mas quando reactivamos esse vestígio ao recordar a memória, é criado um novo estímulo que dá origem a uma nova memória. Que depois se reconsolida. Em segundo lugar, a memória não se dirige ao passado. Se olharmos para ela de um ponto de vista evolucionista, apercebemo-nos de que o processo neural não evoluiu para nos fazer memorizar versos da “Divina Comédia”, mas porque nos permite actualizar as nossas teorias pessoais sobre o mundo, que servem para prever o curso dos acontecimentos e orientar o nosso comportamento. Neste sentido, o nosso cérebro é uma espécie de máquina do tempo que nos permite imaginar o futuro. Isto é feito através da combinação da informação de que dispomos e tudo depende da forma como combinamos essa informação. É este processo que nos permite imaginar e antecipar o futuro. E é neste sentido que o nosso cérebro é um cérebro prospectivo. Claro que lembrar tem a sua simetria no esquecimento.

Não faria sentido lembrarmo-nos de tudo. Pelo contrário, lembrar-se de tudo como o paciente que não conseguia esquecer, estudado pelo psicólogo russo Alexander Luria e como o escritor argentino Jorge Luis Borges nos ensinou em “Funes ou a memória”, ou que a memória é uma patologia, não nos permite generalizar, sintetizar e, portanto, conhecer. E de re-conhecer. O esquecimento é, pois, fisiológico, é uma condição da recordação. A questão é como esquecemos. O que temos de esquecer é o que não é relevante para nós no momento em que precisamos de nos lembrar de outra coisa. Por conseguinte, podemos esquecer ou porque não podemos “escrever” um traço no nosso cérebro, ou porque o apagamos e esta palavra não é acidental ou porque se torna inacessível. Um traço que se torna inacessível é um traço removido, mas a remoção não significa o simples apagamento de uma escrita. Pelo contrário, a remoção consiste em blindar e esconder um traço. Para dar um exemplo, é evidente que nenhum de nós se lembra do que viveu nos primeiros anos da sua vida. No entanto, como a psicanálise sugeriu, e a neurociência hoje confirma, há traços mnésicos infantis, mesmo muito fortes, que permanecem escritos.

Aqui, o estudo da amnésia infantil está a mostrar-nos como esses traços podem emergir da remoção. E da mesma forma que um traço pode e por vezes deve, como nos casos de stress pós-traumático ser eliminado. Podemos estudar estes mecanismos neurobiológicos, mas se os transpusermos para o plano social, verificamos que têm implicações decisivas. De facto, a nível político, uma coisa é não transcrever um vestígio, outra coisa é apagá-lo e outra ainda é não poder aceder-lhe. A questão central parece ser a da relação entre história e anti-história. A história é utilizada quando há interesse em estimular o consenso dos cidadãos (esse interesse não existe necessariamente apenas nos regimes democráticos) e é, portanto, intrinsecamente política. A anti-história, pelo contrário, serve para se relacionar com o consumidor e o homo economicus e é, por isso, intrinsecamente anti-política. Carl Schmitt já se tinha apercebido disso nos anos de 1930 e, mais ainda, nos anos de 1950. Em todo o caso, há sempre um sujeito social, mais ou menos poderoso, que tem interesse em promover uma narrativa histórica ou uma narrativa anti-histórica.

E esta não é uma questão científica ou moral, mas uma questão de luta pelo poder. Quanto mais se entra na dimensão da história, mais político se torna o confronto, mas hoje é mais fácil fazer anti-história, que é favorecida não só pelo impulso da tecnicização imposta pela economia, mas também pelo da tecnicização imposta pelo progresso científico (pensemos no desenvolvimento da inteligência artificial ou da manipulação genética). É precisamente neste terreno que se oscila o jogo da memória. Graças às neurociências, sabemos hoje que é dinâmico, mas convém notar que Aristóteles, fazendo eco de Platão, já distinguia entre mneme e anamnesis. E, precisamente por ser dinâmica, a memória está intimamente ligada à liberdade. Qualquer ataque à memória e qualquer avanço da anti-história deve, portanto, ser considerado um ataque insidioso à nossa liberdade. Para a Europa, em particular, este é um risco mortal, porque, devido a dinâmicas culturais e sociopolíticas bem conhecidas, esta é fundada na história e fez história de uma forma muito especial. Apesar disso, tal como o resto do Ocidente, estamos a correr para uma anti-historização aparentemente irreversível.

12 Set 2024

O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

A crise da história e a crise da memória são um perigo. A civilização europeia está carregada não só de história, mas também de um certo sentido histórico. O início da modernidade europeia, que se associaria ao declínio da sociedade feudal e ao advento dos Estados nacionais, assistiu à afirmação de duas categorias interpretativas e científicas, a política entendida como reflexão sobre uma técnica, isto é, sobre um instrumento necessário para ordenar a vida social (basta pensar em Maquiavel) e a história entendida como um instrumento de construção do presente, necessário para a legitimação dos Estados nacionais nascentes. Pelo menos até ao século XIX, o nascimento e o desenvolvimento dos Estados europeus eram indissociáveis da reflexão historiográfica. O objectivo foi sempre o de apresentar a comunidade de referência como solidamente ancorada nas suas raízes históricas. Figuras como Michelet e Thierry em França ou Ranke na Alemanha são exemplos de escola. Na modernidade, em suma, a história era parte integrante da política.

No século XX, em parte devido ao suicídio iniciado pelas nações europeias com a I Guerra Mundial, algo alterou. Em particular, o sentido estoico das nações europeias mudou, pois começaram a cortar os laços com o seu passado após os dramas do século passado. No coração da Europa há uma espécie de mancha negra, o nazismo, mas também os vários fascismos e, na Europa de Leste, os anos do comunismo soviético que ainda paira sobre a nossa consciência e identidade. Vivemos numa espécie de tempo sem história, dada a dificuldade em aceitar a crise que a nossa civilização viveu no século XX. É uma verdadeira crise de memória. Temos dificuldade em reconciliarmo-nos com o nosso passado. Um factor decisivo, frequentemente tematizado, foi então enxertado neste húmus cultural. O da mitologia americana da “city on a hill”. A ideia de uma civilização nascida sem pecado e baseada no desprendimento da “Velha Europa” tornou-se extremamente poderosa e atractiva para os Estados europeus, que tiveram enormes dificuldades em enfrentar as suas dramáticas vicissitudes.

Mas este mito, que descreve um poder hegemónico imaculado e acima das misérias da história, corre o risco de gerar nos americanos a ilusão de poderem viver uma vida meta-histórica, se não mesmo anti-histórica. Isto é extremamente perigoso, porque aqueles que não se preocupam com a história correm o risco de a repetir. Esta tendência pode ser observada actualmente. Vemos a olho nu como a história se está a repetir. O confronto do século XVIII entre a talassocracia britânica e o império russo revive hoje no terror anglo-americano de um poder terrestre que não estabelece fronteiras. E que, além disso, tem o defeito de ter os pés bem assentes na História, fundando-se desde o tempo de Pedro, o Grande em mitologias imperiais e religiosas que se reproduzem mesmo séculos depois. Como não pensar, por exemplo, na carga histórica presente nos grandes filmes de Serguei Mikhailovitch Eisenstein, tão importantes para mobilizar os russos na guerra contra os nazis?

No entanto, por muito anti-histórica que seja a América, é preciso ter em conta que os pais fundadores se referiam frequentemente ao império romano ou à cultura grega. De facto, esta prática era típica das revoluções do século XVIII. A questão é que esses mitologismos foram empregues mais por necessidade do que por qualquer outra coisa. Quando os pais fundadores se viram a fundar um novo mundo baseado na liberdade individual, não tinham simplesmente modelos, porque os Estados europeus estavam todos organizados hierarquicamente e por classes. O único modelo possível era o da liberdade republicana da Roma antiga, embora certamente reinventado e adaptado ao contexto. Durante o século XX, a anti-historicidade estrutural da América causou sérios problemas. Foi esta característica que facilitou o desenvolvimento da ideia, fundamentalmente oitocentista, de direito natural, segundo a qual a ocorrência de certas condições objectivas só pode ser seguida da realização efectiva dos direitos naturais e, em última análise, das condições necessárias ao desenvolvimento do Estado de direito e do capitalismo.

O erro foi acreditar que, na história universal, a democracia liberal e o sistema capitalista eram a norma e não a excepção. A democracia é algo muito raro e muito difícil de alcançar, enquanto o capitalismo surgiu de uma convergência de factores ideais, materiais e políticos que se combinaram num determinado momento na Europa e que poderiam muito bem não se ter combinado. Acreditar que para realizar o capitalismo e a democracia basta criar condições objectivamente adequadas ao seu desenvolvimento é uma enorme ingenuidade.

O capitalismo ou a democracia não podem ser ensinados numa secretária. Os políticos ocidentais e os homens do Banco Mundial que tentaram explicar aos russos o que era o capitalismo não conseguiram mais do que o sacrifício de uma ração genética e a imposição da autocracia de Putin que conduziu a restaurar autocraticamente a ordem no país, enquanto hoje tenta também restaurar a sua honra perdida com a invasão da Ucrânia.

(continua)

4 Set 2024

O colapso do Ocidente (II)

“Western nations are strongly advocating absolute Globalist universalism at the cost of themselves-pushing for a world where everything is mindless consumerism for the lowest common denominator and all virtue is condemned. Unchecked Social Capitalism dismantles any form of human other then a producer of labor and rampant technology alienates people from their religious and spiritual roots.”
Mikhail Bridgefell

 

Tão genuíno é o afluxo civilizacional que leva Rudyard Kipling a abençoar a empresa colonial britânica, enquanto a Companhia das Índias Orientais escraviza os colonizados. O universalismo é inerente ao Ocidente cristão, como a qualquer monoteísmo. Mais uma vez, com os destroços da União Soviética ainda a fumegar, surge a perigosa convicção de que o Ocidente é um destino inelutável, porque lhe faltam alternativas, logo desejável por todos e em todo o lado. Uma realidade meta-histórica que não admite excepções, mesmo na sua forma económica, o capitalismo na versão neoliberal que se afirmou nos Estados Unidos a partir dos anos de 1980 e no seu centro de irradiação, a América. A par do fatídico triunfo sobre a União Soviética, a dinâmica sino-soviética selou a globalização sob o signo da supremacia americana, na ideia de que a unificação produtiva e comercial era o viaticum de uma progressiva mas definitiva ocidentalização dos sistemas políticos, morais e culturais.

Assim, a 2 de Outubro de 2001, menos de um mês após os atentados terroristas, Tony Blair juntamente com Bill Clinton, talvez a figura política mais emblemática dessa fase arengava no Partido Trabalhista, em Brighton que “Há quem pergunte como pode o mundo ser uma comunidade? As nações agem no seu próprio interesse! Claro que sim, mas hoje os nossos interesses estão inseparavelmente ligados. Esta é a política da globalização. No mundo da Internet, das tecnologias da informação e da televisão, a globalização será cada vez maior. E no comércio, o problema não é o excesso de globalização, mas a sua insuficiência. A questão não é como parar a globalização, mas como torná-la mais justa. Porque a alternativa à globalização é o isolamento. É por isso que as nações do mundo estão a unir-se. Está a ser criada uma nova relação entre a Rússia e a Europa. E quando a Índia e a China tiverem desenvolvido suficientemente as suas economias, reconfigurarão o nosso mundo.”

Na altura, a administração Clinton e grande parte da elite político-económica americana acreditavam piamente que a economia podia redimir a política, consolidando a democracia liberal e corrigindo as trajectórias geopolíticas dos Estados. Washington imaginava a abertura chinesa como uma via de sentido único no sentido ideológico, o galope da China para a democracia; no sentido material, a abertura desse vasto mercado para garantir um enorme afluxo de recursos para a América, pivot do sistema financeiro e monetário mundial e, por isso, o único sujeito capaz de tirar pleno partido da expansão do paradigma capitalista. A da China era uma promessa composta por diferentes elementos, todos eles decisivos para empurrar Washington e Pequim um para o outro. Bens a baixo preço para sustentar o poder de compra do consumidor americano, corroído pela estagflação dos anos 1970-1980 e pela aplicação incipiente das teorias do “capitalismo accionista” de Milton Friedman, que privilegiavam a remuneração do capital em detrimento da do trabalho.

Um vasto mercado interno carente de quase tudo, porque ainda atrasado. O horizonte de um comércio bilateral com enormes receitas para as empresas americanas e, em perspectiva, ganhos para as congéneres chinesas, a serem transformados como já acontecia com o Japão em capital para financiar a dívida soberana dos Estados Unidos, o que aconteceu de forma crescente nos trinta anos seguintes. Desta dinâmica resulta uma vasta interdependência. Pequim depende dos Estados Unidos para as suas exportações e para apoiar o renminbi através de reservas. Washington depende da China para o fluxo de importações económicas que sustenta o poder de compra e os lucros das empresas, mas também para a colocação de uma dívida crescente com a qual compensa a risível taxa de poupança interna, que a partir dos anos de 1960 mas sobretudo a partir do final dos anos de 1970 entra em colapso devido à estagnação dos rendimentos médios e ao arranque do consumo privado.

Numa némesis histórica, a economia “Made in China” é para os trabalhadores americanos o que o ópio foi para os britânicos e para os chineses no século XIX, uma droga que amortece parcialmente a descida do nível de vida. Ao preço, porém, da dependência das mercadorias cuja produção foge da América, desindustrializando-a e alimentando o mal-estar socioeconómico se for entregue a um número cada vez maior de asiáticos. Chegamos assim, resumidamente, às crises gémeas dos últimos anos. Primeiro, a Grande Recessão de 2008, desencadeada pelo incumprimento maciço das hipotecas, que revelou à China a fragilidade crescente do sistema americano e a angústia da sua classe média endividada, em cujo consumo Pequim tinha apostado durante trinta anos. Depois a Covid-19, que recorda brutalmente aos Estados Unidos o peso, em muitos aspectos já excessivo, da (inter)dependência estratégica em relação a um país em cujas intenções, sistema político e práticas já não se pode confiar. Por fim, numa tempestade perfeita, veio a invasão da Ucrânia.

Tomada de surpresa, irritação e preocupação pela China, que temia com falsas suposições à partida a derrota completa da Rússia e o consequente reforço da contestada ordem americanocêntrica, a guerra acabou por cessar o estranho casal sino-russo. Acima de tudo, alimentou a inventividade para contornar os circuitos económicos, financeiros e regulamentares dominados pelos Estados Unidos, num esforço para escapar às sanções draconianas impostas a Moscovo. Desde 2022, segundo um relatório do Gabinete do Director dos Serviços de Inteligência Nacional dos Estados Unidos (ODNI na sigla inlesa) certificado no ano passado, a China “tem oferecido um apoio cada vez mais firme ao esforço de guerra russo, fornecendo a Moscovo tecnologias-chave para armas e equipamento utilizados na Ucrânia”. As indústrias de defesa estatais chinesas enviaram sistemas de navegação, peças de aviões de combate e outros componentes aos seus homólogos russos.

Em Março de 2023, a China tinha enviado drones e respectivos componentes no valor de mais de doze mil milhões de dólares para a Rússia. A China também aumentou drasticamente as suas compras de petróleo, gás e outros produtos energéticos russos, utilizando os seus próprios circuitos financeiros para permitir a Moscovo “contornar a proibição dos sistemas de pagamento ocidentais”, como o Swift. A China e a Rússia também aumentaram a parte do comércio bilateral realizada em yuans em Setembro de 2022, as exportações russas pagas em moeda chinesa tinham aumentado de 0,5 por cento do total anterior à guerra para 14 por cento, e desde então tem crescido ainda mais. As duas potências revisionistas que desconfiam uma da outra tanto ou mais do que desconfiam dos Estados Unidos, a China e a Rússia uniram-se, apesar de tudo, para minar a hegemonia americana, cujos valores rejeitam antes dos meios. Valores vistos como ameaçam à sua integridade territorial, aos seus sistemas políticos e aos seus interesses nacionais.

Neste desafio cada vez mais aberto, pretendem fazer incursões no ponto fraco da globalização centrada nos Estados Unidos, pois os muitos países que, cansados da lógica neocolonial mas demasiado fracos para desafiar as influências euro-americanas, se recusam a tomar partido e a abrir-se aos actores não ocidentais, principalmente Pequim e Moscovo. Isto inclui muitos Estados do Sudeste Asiático e da África do Norte e Subsaariana, mas também da América Latina. Os países maiores ou mais bem equipados, como a Índia, a Turquia e várias monarquias árabes do Golfo, estão a tentar criar perfis autónomos para não caírem de uma dependência para outra. O que emerge é uma globalização cada vez mais fragmentada, em que os vencedores económico-financeiros se confrontam com lógicas estratégicas divergentes e variáveis crescentes. Pequim e Moscovo jogam contra Washington, a Índia vê-se como o fiel da balança entre os Estados Unidos e a China, mas mantém uma relação importante com a Rússia, Ancara joga em todas as frentes, com um pé na NATO e outro fora, o Irão vence o cerco árabe-americano-israelita, tirando partido do “eixo da resistência”.

Entretanto, o Brasil, a Argentina e o México namoriscam com a China, desafiando abertamente a Doutrina Monroe, enquanto a antiga África francófona se volta para Moscovo para se libertar da tutela francesa. Em pano de fundo, a deslocação do fulcro demográfico mundial do eixo transatlântico para a Ásia e, em perspectiva, para África. Zonas cheias de problemas, tensões e traições, mas povoadas por regimes cujos traços autoritários, nesta fase, parecem muitas vezes ser benéficos para a coerência estratégica. Enquanto a opinião pública ocidental lamenta a inclusão das classes políticas sujeitas à compulsão do ciclo eleitoral, no Leste proliferam as “visões” programáticas. Visão 2030 para a Arábia Saudita e o Qatar, Visão 2035 para o Kuwait, Visão 2040 para Omã, Visão 2050 para os Emirados Árabes Unidos. Em deferência ao plano “Made in China 2025” (revelado em 2015), Pequim está agora a inundar o mundo com alta tecnologia barata sobretudo baterias, carros eléctricos, painéis foto voltaicos e rotores eólicos.

No imediato, para compensar, com um mercantilismo agressivo, o risco de rebentamento da enorme bolha imobiliária; em perspectiva, para assumir a liderança nas principais vertentes industriais. A grande limitação do decisionismo económico e, de um modo mais geral, do dirigismo mais ou menos paternalista que caracteriza estes sistemas, é que não admite a contradição e é hostil aos artifícios aleatórios, fruto da liberdade de pensamento, de empreendimento e de organização. Esta é talvez a seta mais afiada no arco das sociedades abertas, cuja efervescência é frequentemente confundida com anarquia fatal pelos seus adversários, mas também pelos seus defensores nas suas fases mais hostis. No entanto, a afasia estratégico-conceptual que caracteriza as grandes democracias ocidentais nesta conjuntura aumenta a sua incoerência e mina a sua credibilidade, mesmo e este é talvez o maior problema aos olhos dos seus cidadãos. Como todas as fases históricas, também esta tem os seus símbolos.

O assustador acidente que levou o porta-contentores Dali a derrubar a ponte Francis Scott Key, em frente ao porto de Baltimore, a 26 de Março, provocando o seu encerramento, custou cerca de quase dois mil milhões de dólares por dia em perdas de receitas, excluindo os danos directos. Isto deve-se ao facto de o porto se situar na foz da Baía de Chesapeake, um dos maiores estuários do mundo e a zona mais densamente povoada dos Estados Unidos. Na tempestade de controvérsia que se seguiu ao desastre, argumentou-se, entre outras coisas, que os navios porta-contentores daquela dimensão não deviam manobrar tão perto de infra-estruturas cruciais. Seria preferível que atracassem em portos menos problemáticos e, a partir daí, utilizassem o transbordo doméstico com navios mais pequenos. No entanto, nos termos do Jones Act de 1920, qualquer navio que transporte mercadorias entre dois portos americanos deve ser de fabrico americano por razões de segurança.

É pena que, após quarenta anos de deslocalização, a indústria de construção naval americana tenha atrofiado ao ponto de não produzir navios de guerra suficientes, quanto mais navios porta-contentores. Isto limita mesmo a circulação interna de gás liquefeito extraído por fracking (fracturação hidráulica), um trunfo estratégico importante nos últimos anos. Então, por que não permitir que o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos Estados Unidos e actualmente entre os melhores construtores navais do mundo, tenham acesso ao mercado naval americano? Porque isso exigiria políticas claras e expeditas de friendshoring, ao passo que o recente veto da administração Biden (Março de 2024) à aquisição da U.S. Steel pelo grupo japonês Nippon Steel vai contra a estratégia de contenção anti-chinesa.

Não é que Washington repudie uma tal estratégia, mas a ausência de política industrial gera monstros. A América vê-se assim confrontada com grandes concentrações anti-concorrenciais em sectores-chave, em nome da segurança (ver Boeing e Starlink), mas sem uma visão que a liberte da escravidão dos fluxos de caixa trimestrais e dos interesses particulares, permitindo-lhe o planeamento a médio e longo prazo necessário às políticas industriais. Nesta confusão estratégica, que a América partilha com a maioria dos seus aliados europeus, insinua-se a desglobalização. Os protagonistas desta, reentrando na cena internacional após fases mais ou menos longas de esquecimento geoestratégico, não rejeitam o armamento económico-industrial que lhes é oferecido pelo Ocidente como instrumento de prosperidade e de poder. No entanto, orientam os seus meios para outros fins, para outros interesses. Com base em agendas que já não são “ocidentais”. Neste sentido, é muito provável que a globalização, tal como a conhecemos, tenha acabado.

29 Ago 2024

O colapso do Ocidente (I)

“The West in its present state is weak. Leadership is poor, priorities are wrong and more than anything else most Westerners can’t even articulate what our civilization stands for. Jihadism will not bring down the West but the inability to champion our exceptionality and defend the essence of what we have on all fronts will most certainly do. We no longer believe in ourselves and this is tragic.”
Gavin Kanowitz

 

O refluxo da globalização, temido ou esperado, é uma crise do primado ocidental sob a égide de Washington. Do barco a vapor britânico ao século americano, passando pelas crises gémeas de 2008-2009, as glórias e as incógnitas de uma supremacia estão na balança. O “Sul Global” em que a China e o Brasil pretendem dominar não existe e a tendência para se pensar o centro do mundo é típica das mentalidades imaturas ou patologicamente narcisistas, dois traços que coexistem frequentemente. A ilusão pode ser acentuada quando se ocupa uma posição de poder, público ou privado, que reforça a convicção de ser intelectual ou afectivamente inatingível, insubstituível.

O narcisista afortunado morre serenamente, na plena convicção isto é, na auto-ilusão de que é aquilo em que acredita. O infeliz sucumbe às duras réplicas da realidade, quando não aos seus próprios delírios de omnipotência. Será este último o caminho seguido pelo Ocidente? O debate sobre a desocidentalização não começou agora e Oswald Spengler publicou “O Declínio do Ocidente” em 1918, numa Viena em que o fim do império se anunciava. Se esse debate está hoje de novo a escurecer, é porque o Ocidente chegou ao fim. Após a II Guerra Mundial, a redução brutal da Europa em consequência de duas guerras mundiais e a subsequente perda drástica de colónias beneficiaram os Estados Unidos e, em menor grau mas não negligenciável, a União Soviética. Após o colapso desta última, o “momento unipolar” viu Washington erguer-se como a indiscutível “Quarta Roma” (deixemos o numeral anterior para Moscovo, logo a seguir a Bizâncio).

As antigas potências europeias, reduzidas a actores regionais nem sempre resignados (o narcisismo prospera com a negação), contemplam ansiosamente estas oscilações, mais ou menos intimamente satisfeitas quando o pêndulo pára na América, filha e apoteose do Ocidente, hegemónico “benévolo” porque familiar, não certamente porque inofensivo. Uma superpotência consanguínea que “faz sempre a coisa certa depois de esgotar todas as alternativas”, dizia Churchill. A coisa certa é o interesse do Ocidente, mesmo quando este precisa de ser salvo de si próprio. O que torna o nosso momento ansioso é a crise da América e a sua projecção externa, na ausência de outro Ocidente semelhante em dimensão, determinação e capacidade, pronto a assumir o comando.

Isto acarreta o fenómeno conexo da desglobalização com implicações geoestratégicas e o afrouxamento contraditório mas tangível dos laços transnacionais económico-financeiros-produtivos cimentados no casamento de interesses de quarenta anos entre a China e os Estados Unidos. Um processo de desintegração incubado ao longo das últimas duas décadas, precipitado pela Grande Recessão de 2008-2010 e acentuado por acontecimentos recentes, incluindo a Covid-19 e a guerra na Ucrânia. A tentação, defendida por muitos, é concluir apressadamente que esta dinâmica beneficia o “Sul Global”. Mas o “Sul Global” tem (pelo menos) três inconvenientes. Em termos estritos, é um oxímoro, ou melhor, uma sinédoque impossível, na medida em que associa uma parte (Sul) a um todo (global) que não pode ser compreendido. Em termos estratégicos, é um disparate, pois as diferenças e idiossincrasias entre as componentes mesmo que nos limitemos às principais desta entidade superam as afinidades, impedindo a delineação de uma nova e clara hegemonia.

Em termos conceptuais, trata-se de uma iteração linear, que toma como irreversíveis os traços marcantes da globalização e, assim, se limita a transferi-los para outra entidade, deixando de estar em causa a primazia indiscutível dos Estados Unidos. Um olhar problemático, talvez mais verdadeiro, parte de uma questão igualmente radical: globalização acabou? Para aventurar uma hipótese a este respeito, é preciso primeiro compreender o que é (era?) a globalização. Uma resposta directa e circunscrita passa por alguns momentos-chave: 1972 (primeira visita de Richard Nixon a Pequim), 1981 (eleição de Ronald Reagan para a Casa Branca), 1991 (colapso da União Soviética), 2001 (entrada da China na Organização Mundial do Comércio), 2008 (falência do Lehman Brothers e início da Grande Recessão). Estas etapas condensam a história da relação funcional criada, contra todas as probabilidades, entre os Estados Unidos e a China numa função anti-soviética primeiro, anti-inflacionária e anti-sindical depois.

Uma história sem a qual não estaríamos a falar de globalização e a questionar o seu futuro. No entanto, as passagens recordadas representam o epílogo de um movimento mais vasto, cuja inversão estrutural teria todas as características de um divisor de águas epocal. A ocidentalização do mundo no sentido contemporâneo é frequentemente atribuída à revolução industrial. No início do século XIX, o PIB das potências ocidentais ultrapassava o das potências asiáticas, embora a população da Europa fosse apenas um quarto da Ásia. Mesmo antes de a indústria ter desenvolvido todo o seu potencial de produção e de guerra, as potências coloniais europeias já tinham subjugado vastas áreas da Índia e territórios do Extremo Oriente que eram tributários da China. No entanto, só com o pleno desenvolvimento da navegação motorizada, em navios metálicos, produto da nova indústria naval industrial movidos pela força propulsora dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo), é que a Europa “globalizou” verdadeiramente o mundo, tecendo com as suas colónias a densa rede de trocas que estruturou o comércio contemporâneo.

Entre os efeitos mais consequentes desta primeira globalização conta-se a plena integração da América do Norte nos circuitos económicos mundiais. Um resultado decisivo, porque uma vez alcançada a independência da Grã-Bretanha (1776) e terminada a Guerra Civil (1861-1865), foram os Estados Unidos que, após a II Guerra Mundial, assumiram o testemunho do poder “global” da Europa, desenvolvendo um poder económico e marítimo inigualável, mesmo no auge da fortuna soviética durante a Guerra Fria. A partir desse momento, o Oeste americano tornou-se um protótipo da modernidade, um modelo económico e, muitas vezes, sócio-institucional a seguir na busca da prosperidade, da independência e do dinamismo. Durante a Guerra Fria, a alternativa soviética de um partido único e de uma economia planificada foi imposta ou imitada de várias formas nas partes do mundo afastadas da influência directa dos Estados Unidos (o bloco de Leste), ou naquelas que eram contestáveis (os conglomerados dos não-alinhados).

No entanto, em retrospectiva, a divisão Leste-Oeste revela-se mais de natureza geoestratégica do que cultural. A matriz histórico-concetual dos dois “impérios” que se confrontam, o americano e o soviético, é de facto a mesma, ou seja, o positivismo iluminista e a lógica hegeliana, que informam a abordagem teleológica da história e dos assuntos internacionais das lideranças americana e soviética, bem como o fascínio de ambas pela ciência e pela tecnologia. O modus também tem muito mais em comum do que é frequentemente apreciado. O produtivismo, que a partir dos anos de 1980 atingirá excessos paroxísticos mas que continua a ser um ingrediente teórico e ideológico fundamental do sucesso capitalista, no sistema comunista tem uma organização e beneficiários diferentes, mas pelo menos nas suas intenções os mesmos fins. O excesso de trabalho de Aleksej Stakhanov não lhe aumenta o salário, a mina em que trabalha e a pá que maneja pertencem ao Estado e não a um magnata privado, o objectivo que o motiva não é o sonho americano mas o paraíso dos trabalhadores.

Mas o sistema de produção em que se insere é o hiper-industrial que a estalinização tomou de empréstimo à Europa, primeiro, e à América, depois. À custa do atraso. Do ponto de vista económico, a Guerra Fria não é, portanto, um confronto “entre capitalismo e comunismo”, mas entre capitalismo privado e capitalismo de Estado. O primeiro vence graças a um sistema de incentivos superior, que promete ao indivíduo usufruir plenamente dos frutos do seu trabalho para ser próspero e livre de carências e arbitrariedades. Por esta razão, a vitória esmagadora do bloco capitalista encontra um mundo globalmente predisposto a adoptar o seu modelo e mesmo a aceitar a sua égide. No início dos anos de 1990, as antigas sociedades comunistas não são sociedades pré-modernas. São sociedades permeadas por um capitalismo industrial que o calcanhar de ferro de um perestatismo autoritário e ineficaz tornou economicamente pobre, politicamente subserviente e psicologicamente apático.

Nestas sociedades, décadas de modernidade industrial logo, ocidental lançaram as sementes da globalização americanocêntrica, que é aceite e prosseguida apesar de criar enormes desequilíbrios sociais. Enquanto isso, na China, as reformas de Deng Xiaoping desbravaram o espírito mercantil do país, que desde os anos de 1990, mas ainda mais desde 2001, com a sua entrada na Organização Mundial do Comércio se tornou a fábrica do mundo. Se é sobretudo a América que cai na armadilha do “fim da história” (Fukuyama) que imagina o binómio democracia liberal-capitalismo como a forma final e mais elevada da história humana é todo o Ocidente que se apaixona por si próprio. De tal modo que escorrega, sem suspeitar, no paradoxo da afirmação de valores ocidentais “universais”. Assim destorcidos e divorciados das suas próprias esferas geográficas e culturais, estes valores tornam-se um fetiche e um puro instrumento de hegemonia. Isto não é novidade. Ao lado do aventureirismo e da sede de riqueza, é também um sincero espírito evangélico que anima muitos cruzados na sua luta contra o Islão.

22 Ago 2024

O Clube da Luta (IV)

“What is stopping Israel from taking Palestine? Two reasons: Palestinians don’t want to become Israeli citizens. Palestinian Arabs (mostly Muslim) would outnumber Israel Jews in a generation or two, turning the Jewish state into an Arab Muslim state where Jews are the minority. Seeing how minority Jews have been treated in every single Arab or Muslim country, Israel Jews have no desire to do this.”
Terrence Levine

 

O mantra pilatesco dos dois Estados e o reconhecimento verbal do inexistente Estado da Palestina, caminho em que se lançaram a Espanha, a Irlanda, a Noruega, seguida da Eslovénia e talvez outros, apenas confirmam a impotência daqueles que pretendem contribuir para a paz fugindo da realidade. Se fossem uma nação ou algo semelhante, os palestinianos não reagiriam como (não estão a reagir) à retaliação israelita. A Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) é um clã impotente sustentado por Jerusalém, Washington e doadores europeus. Ninguém tem qualquer interesse em tratar essa maquineta de papel pelo que ela é. Contraprova da impossibilidade de ser Palestina. As facções palestinianas continuam a dividir-se, à espera que alguém reinvente o guarda-chuva da OLP para substituir a unidade que não existe. Quanto ao Hamas, é provável que ganhasse qualquer eleição nos territórios palestinianos, se estes permanecessem.

Em vez de se compactar na hora suprema, que se manteve durante anos também graças ao financiamento de governos israelitas demasiado astutos para se aperceberem de que estavam a engordar os organizadores do pogrom, revela-se uma galáxia de grupos e milícias semi-independentes. Os dirigentes alojados nos hotéis climatizados de Doha foram surpreendidos desde 7 de Outubro de 2023, enquanto as Brigadas al-Qassam perderam o controlo do seu próprio raid, com a segunda e terceira vagas infiltradas pela Jihad islâmica e por habitantes de Gaza agitados pelo desejo de vingança. É esclarecedora a falta de empatia dos palestinianos israelitas com os seus “irmãos” de Gaza, impiedosamente bombardeados pelo seu próprio Estado. Nesta guerra, agora de verdade, comportam-se mais como israelitas do que como árabes. O recente inquérito realizado pelo influente Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS na sigla inglesa) de Telavive revela três verdades surpreendentes.

Em primeiro lugar, os árabes e os judeus israelitas partilham quase em uníssono (45 e 48 por cento) o sentimento de que as tensões no seio da sociedade israelita são mais perigosas do que as ameaças externas à sua segurança. Em segundo lugar, apenas 19 por cento dos árabes não apoiam de todo a guerra de Israel contra Gaza, enquanto 54 por cento a apoiam em graus variáveis e 26 por cento se abstêm. Dados que devem fazer reflectir a grande parte dos judeus israelitas que consideram os árabes incompatíveis com o Estado do qual continuam a ser cidadãos de segunda classe. Enquanto a alternativa for viver sob o domínio do Hamas ou da ANP, apesar do assédio e dos direitos espezinhados, Israel é um paradigma invejável. Mas a pressão da ultra-direita racista pode virar a minoria árabe contra as instituições. O INSS adverte que “Na sociedade árabe, as pessoas sentem-se perseguidas pelo Estado, incluindo as agências de segurança. Os árabes israelitas acreditam que o Estado está constantemente a demonstrar a sua natureza antidemocrática pela forma como trata os seus cidadãos árabes”.

O historiador israelita Tom Segev explica que “A natureza irracional do conflito foi a principal razão pela qual nunca foi resolvido. Forçar uma solução que não existe é uma receita para a guerra permanente, afirmando que “A principal razão pela qual a guerra continua não é nem a opressão israelita sobre os palestinianos nem o terrorismo palestiniano, mas a adesão irrevogável dos dois povos a uma terra indivisa. Estes absolutismos tornaram-se cada vez mais a essência das suas respectivas identidades colectivas. Qualquer compromisso seria provavelmente denunciado por importantes comunidades israelitas e palestinianas como uma traição nacional e religiosa”. Segev retira daqui que a irresolubilidade do rebus implica a obrigação de o gerir. Tentar desvendá-lo implica um luto sem fim. Guerras sem termo porque sem objectivo. Do belicismo assassino ao suicídio colectivo, o passo não é necessariamente longo.

Dado o estado (e o não estado) em que se encontram os palestinianos, caberá a Israel dar o primeiro passo para o regresso à política, condição para a gestão não violenta do conflito. O impulso teocrático da extrema-direita e dos colonos, para quem a conquista de toda a Terra de Israel é um mandato divino, reduz ao mínimo a margem de manobra. Se os palestinianos não são uma nação, os israelitas estão ocupados a minar a sua própria nação. Ou, pelo menos, o actual governo, sobrecarregado de extremistas, está a tentar fazê-lo. Poucas horas após o atentado do Hamas, Netanyahu declarou em directo na televisão, dizendo que “Estamos em guerra. E na guerra é preciso manter a cabeça fria”. A sua deve ter uma temperatura peculiar, pois entrou imediatamente na espiral da guerra sem saída, apesar do aviso de Biden para não “repetir os nossos erros”. Para não cair na armadilha da guerra contra o terrorismo, invencível por definição, com a qual a administração Bush Jr., nas mãos dos neocons convencidos de que podiam americanizar o mundo, iniciou o declínio da superpotência.

Israel está nas piores condições para se lançar numa guerra infrutífera contra adversários que só precisam de continuar a existir para ganhar. De facto, eles já ganharam, independentemente de como termine a campanha das FDI em Gaza ou fora dela. É impressionante como, no espaço de algumas semanas, Jerusalém dispersou o capital de simpatia que adquiriu com o massacre do Hamas. Até ao ponto de o transformar num ódio generalizado a Israel, nunca tão solitário. E nunca esteve tão dividido internamente. As tribos já quase não se falam, à espera do confronto quando a catástrofe de Gaza for totalmente revelada. Apenas um israelita em cada dez acredita na vitória total, se é que isso significa alguma coisa.

O Estado judeu sem estratégia combate-se a si próprio. Não encontra alternativa à lei da retaliação. Pratica uma vingança indiscriminada em grande escala. O instinto privado é elevado à função de Estado de uma entidade avassaladora que esmaga milicianos e civis sem perder tempo com subtilezas. Quase como se o Hamas e os palestinianos em geral representassem uma ameaça existencial para Israel. Como se fossem o Irão. Uma enorme publicidade para os terroristas. É impressionante como o medo de ser apanhado numa espiral que pode iniciar a autodestruição do Estado sionista e desencadear novos pogroms contra as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo agita o debate público e as conversas privadas entre os judeus, em Israel e na diáspora. Em causa está o significado de um Estado criado para proteger os judeus. Um postulado violado pela operação Dilúvio de al-Aqsa. Entre os mais assustados, embora não o admitam, estão os estrategas do Irão.

Sem o “Pequeno Satã”, o regime perderia o inimigo necessário para legitimar a rede imperial de clientes árabes, então restituídos à realidade de farpas de uma roda descentrada cujo pivot era a coexistência opositora de Israel e do Irão. Pior, os aiatolas e os pasdarans teriam de organizar celebrações grandiosas para confortar a propaganda de “Morte a Israel! Morte à América!” que reverbera nas reuniões de massas. Os convidados especiais seriam os líderes do Hamas, clientes duvidosos erigidos em heróis do império. A República Islâmica cambalearia sob o peso de tal vitória. As almas sensatas jurariam ter visto o fantasma de Aristóteles a vaguear pelo bazar, com um sorriso de escárnio a cortar-lhe o perfil. Resta saber se Israel é mais louco por querer resolver a irresolúvel questão palestiniana, um erro agravado pelos seus métodos mortíferos e pela sua indiferença ostensiva em relação às vítimas civis ou o Irão por confiar num cliente árabe sunita que já o traiu na Síria, em 2011, ao aproveitar a onda destinada a varrer Bashar al-Assad, que rapidamente se transformou numa corrente de ar.

Até ao ponto de guerrear com o Hezbollah, que tinha treinado as suas milícias. Entretanto, a Turquia, o terceiro adulto da antiga “Aliança da Periferia”, passou, em poucos dias, de um aperto de mão público entre o seu presidente e o primeiro-ministro israelita, uma estreia, à exaltação do Hamas. A praça muçulmana exige este preço. Erdogan e o seu Estado teriam preferido não o pagar, porque queriam reavivar o entendimento secreto com Israel. Será que vão tentar de novo? Os três tecelões de estratégias paralelas de controlo dos clientes e dos actores árabes já não se procuram. De potências indispensáveis a potenciais bombistas suicidas. Vítimas dos seus próprios excessos de astúcia, sobretudo do apoio sub-reptício de Israel ao Hamas desde o nascimento até à madrugada de 7 de Outubro de 2023.

Chamemos-lhe a vingança dos mandatários. Provisória. Quando o nevoeiro da guerra se evaporar e o sol iluminar as ruínas do campo de batalha, a balança voltará a marcar o peso específico de cada um e a despertar a sua consciência estratégica. Desde que ele sobreviva. Nessa altura, cada lado do triângulo retirará as suas próprias lições. Uma, pelo menos, deveria uni-las, pois fora com os clientes, dentro com os patrões, difusa ou esbatida não é aristotélico. O ameaçador rejeita a bivalência seca do verdadeiro/falso. Cultiva a aproximação. Simpatiza com a realidade. Reflecte-a. Especialmente se for do Médio Oriente, que é o mais difuso possível. Para Lotfi Zadeh, o verdadeiro e o falso estão separados e unidos por graus de verdade parcial. Como a sua identidade. É filho de um pai iraniano de origem azeri (turca) e de uma mãe judia russa. Estudou numa escola americana em Teerão, licenciou-se em engenharia electrotécnica e depois mudou-se para os Estados Unidos.

A sua lógica difusa também o tornou famoso pelas numerosas aplicações industriais baseadas na matemática que trata informações vagas e ambíguas. Em 2016, técnicos japoneses construíram o primeiro robot com inteligência artificial baseado na teoria de Zadeh. O suficiente bastante para o eleger herói epónimo da tese de que a pacificação (muito relativa) no antigo “Grande Médio Oriente” implica um compromisso entre os poderes internos de Israel, Irão e Turquia. Os actores árabes são demasiado frágeis. Em rigor, não são verdadeiros Estados e muito menos nações. Quando muito, são patrimónios de famílias desavindas. Antes de estabilizarem os outros, terão de se estabilizar a si próprios. Quanto aos Estados Unidos, China e Rússia, precisam da sua bênção ou pouco mais, porque têm outras prioridades.

14 Ago 2024

O Clube da Luta (III)

“I have ordered a complete siege on the Gaza Strip. There will be no electricity, no food, no fuel, everything is closed,” Gallant says following an assessment at the IDF Southern Command in Beersheba. We are fighting human animals and we are acting accordingly”.
Defense Minister Yoav Gallant, in The Times of Israel, 09.10.2023

 

É claro que décadas de sanções, guerras, ineficácia e corrupção pesam sobre a saúde do aparelho produtivo iraniano, especialmente no sector crucial da energia. Mas a República Islâmica contorna a maior parte das restrições impostas por Washington, de tal forma que oferece aos russos tutores não gratuitos sobre como triangular e criar procedimento financeiros e comerciais de emergência. Nascidas temporárias, estas manobras tecem redes alternativas à influência americana. Originalmente postos de primeiros socorros, transformam-se em hospitais de campanha e, amanhã, talvez, em alternativas permanentes à “ordem baseada em regras”, uma imagem de marca do Ocidente cheio de estrelas. Mais limitativo é o clima político interno, onde a transição das origens teocrático-territoriais para o regime actual é bastante instável.

A incompatibilidade entre os jovens progressistas e as estruturas repressivas que respondem ao Pasdaran e ao Basiji, dotadas de vistosas agências de espionagem e de polícia, é chocante. Será que a sucessão do Guia Supremo, que em breve atingirá a idade de Ali Khamenei, de 85 anos, será a faísca que incendiará o material inflamável acumulado dentro e à volta do regime? O confronto poderá ser desencadeado ainda mais cedo. O descontentamento em relação ao sistema (nezam) exprime-se na abstenção eleitoral galopante, na ausência de candidatos alternativos aos pré-seleccionados pelos apparatchiks. O sucessor do falecido Presidente Raisi, presumível moderado, logo se tornará realidade pelo cair da máscara. Até à eventual reforma ou mudança do sistema, a pergunta rainha permanecerá sem resposta. A estratégia do império persa ignora ou depende da ideologia do regime do momento? Kissinger perguntava-se em público se o Irão era uma nação ou uma causa. Traduzindo que é um actor racional, portanto disposto a comprometer-se com a América, ou subversivo.

Em privado, a resposta foi “uma nação com a sua própria causa”. Talvez um elemento útil para a análise seja a relação entre o último Xá e o seu subversivo. Ambos muito mais pragmáticos do que pareciam. O primeiro pró-ocidental, mas não o fantoche anglo-americano descrito pelos revolucionários marxistas-islamistas. O outro, mais nacional-imperial na sua teologia. Se os barões da inteligência sobrevivessem nalgum departamento de ciências políticas da Ivy League, ofereceriam a Mohammad Reza Pahlevi e a Ruhollah Khomeini diplomas honorários duplos ad memoriam na teoria do realismo aplicado. A estratégia de qualquer grande potência é manter-se nessa posição. O mesmo se aplica ao império persa, que se considera como tal, mesmo que não possua todos os seus atributos. Incluindo a bomba atómica. O fio vermelho que liga o projecto atómico do Xá, lançado nos anos de 1950, ao da República Islâmica traça a continuidade estratégica entre dois regimes com uma genealogia imperial comum. Ambos se reclamam herdeiros da dinastia Aqueménida (cerca de 550-330 a.C.). O cilindro de Ciro entusiasma tanto o Xá como Khomeini e os seus sucessores.

O desenvolvimento da energia atómica desejado pelo Rei dos Reis fala em termos civis e pensa em termos militares. Os juristas xiitas que lideram a revolução insistem nesta ambiguidade. O líder supremo confirma a opção civil ao mesmo tempo que aprova o programa secreto de enriquecimento de urânio, de modo a poder desenvolver um arsenal atómico associado a mísseis balísticos hipersónicos com um alcance de mais de 1500 quilómetros. Capazes de atingir Israel numa dúzia de minutos. Teerão será uma potência nuclear quando decidir fechar o círculo. Basta-lhe uma luz verde do Guia ou de quem quer que seja. Será conveniente para o Irão tirar a máscara e desafiar os dois Satãs? Não me parece que seja o caso. O regime de dormência nuclear permite a Teerão explorar as vantagens da dissuasão suprema sem se expor a retaliações israelitas e americanas.

A menos que Israel, determinado a manter o seu monopólio regional da bomba atómica, arrisque um ataque preventivo, com riscos e custos catastróficos. Incluindo uma ruptura com a América. Em Jerusalém, alguns ultras apelam acabar com o Hamas lançando a bomba atómica sobre Gaza. Nas instituições iranianas, levantam-se vozes que põem em causa a prudência estratégica e sugerem o lançamento imediato da bomba atómica, ignorando que o anúncio seria seguido de uma retaliação israelita, encoberta ou não por Washington. E os sepulcros caiados na região ficariam expostos, a começar pela Arábia Saudita, que aponta silenciosamente para a bomba atómica e que perderia então toda a contenção. Entre as elites persas e israelitas, prevalece o princípio de que uma é inimiga irremediável da outra. A lição da “Aliança da Periferia” ecoa neste postulado de que Israel e o Irão são antípodas e simbióticos.

A ameaça persa é útil para evitar que a maionese tribal israelita enlouqueça e desintegre o Estado judaico a partir do seu interior. O Pequeno Satã, associado ao Grande, desempenha uma função coesiva semelhante no império persa. Jogo de espelhos. Depois de 7 de Outubro de 2023, cada vez mais no fio da navalha. Testado em Abril de 2024 pelo primeiro ataque e contra-ataque directo Israel-Irão. Trata-se de uma mudança de paradigma? Conta mais a quebra do tabu ou o facto de não ter causado baixas por ter sido executado em co-produção indirecta israelo-iraniana não declarada e patrocinada pelos Estados Unidos? A interpretação conservadora lê o combate como uma sequência interna de dissuasão entre inimigos perfeitos. Intocáveis porque sem alternativas.

A ideia evolucionista trata-a como um salto quântico que, em ambos os campos, faz baixar as defesas imunitárias contra uma infecção galopante de mania agressiva. A dança da inimizade do Médio Oriente é acompanhada por uma música envolvente. Depois do Hamas ter invadido Israel para desencadear um pogrom de uma selvajaria assustadora e expor os palestinianos à vingança impiedosa de um povo sitiado pela memória da Shoah, uma recordação eficaz e permanente, a lógica utilitária até então destilada pelos estrategas é posta em causa. O atordoamento melódico é dominado pela tempestade de emoções. Já nada é impossível. Incluindo o duplo suicídio. É o factor humano! Enquanto se aguarda a produção de um futuro volume sobre a raiz geopolítica da filosofia enquanto investigação sobre a pretensão de uma lógica universal, o estudo de caso é ideal para ensaiar a sua premissa.

Nos espaços que por convenção continuamos a baptizar de Médio Oriente, Aristóteles não duraria um minuto. O venerado princípio da não-contradição, segundo o qual uma proposição e a sua negação não podem ser ambas simultaneamente verdadeiras, é aqui irregularmente refutado. Traduzindo, não é válido. Mas não de forma absoluta, porque a negação total pode parecer confirmatória. Como ocidentais tardios, munidos de tal advertência, um convite à modéstia, constatamos que um sistema contraditório é também baptizado de princípio de explosão. Assim avisados, voltamos à luta. Verdadeiramente paradoxal é o gatilho que, a 7 de Outubro de 2023, provocou as explosões à queima-roupa que agitam o arquipélago sem centro do Médio Oriente. Referimo-nos à questão palestiniana. Alteração de Kissinger, causa sem nação. Tragédia humanitária insuportável também pelo seu absurdo. Não deve ser confundida com um problema geopolítico. Não tem solução, logo não tem problema. Era esta a convenção implícita na forma como todos os intervenientes tinham retirado o dossier palestiniano, que estava no congelador da diplomacia internacional há vinte anos.

A começar por Israel, o mais interessado em mantê-lo em naftalina e em garantir a mão livre para não determinar as suas próprias fronteiras. Mantendo assim todas as opções em aberto enquanto avança na Judeia e Samaria (Cisjordânia) de acordo com o princípio da menor resistência equilibrado com a prioridade do carácter judaico do Estado. Parado nas directrizes do governo, segundo as quais “o povo judeu tem um direito exclusivo e inalienável a toda a Terra de Israel”. Seguiram-se os regimes árabes, muito mais atraídos por uma relação positiva com Israel e o Ocidente do que pelos direitos dos palestinianos. No entanto, obrigados a recitar o salmo dos dois Estados, uma vez estabelecido que nada seria feito a esse respeito. Um refrão cativante, deliberadamente repetitivo, cantado pela “comunidade internacional”, ultra-maioritária na ONU e considerado evidente pelos meios de comunicação social liberais americanos e europeus. Dois povos, dois Estados. Intuitivo. Tão óbvio que não pode ser aplicado. Em primeiro lugar, porque nem israelitas nem palestinianos estão dispostos a renunciar ao seu direito a toda a terra entre o mar e o rio, o Mediterrâneo e o Jordão.

Depois, porque Israel é um Estado armado até aos dentes para não ceder um metro quadrado daquilo que possui. Empenhado, quando muito, em expandir-se, graças ao impulso dos colonos, incitados pelo próprio governo. A Palestina não é um Estado, nem sequer uma nação, mas o sonho de um povo humilhado, composto por comunidades e mini-potências que competem entre si e não com o Estado judaico. Dois milhões de palestinianos possuem passaportes israelitas. Contra os restantes, após 7 de Outubro de 2023, foi desencadeada a máquina de guerra do Tzahal, que trata os ghazianos como “animais humanos”, segundo as palavras do ministro da Defesa Yoav Gallant.

8 Ago 2024

O Clube da Luta (II)

“Pezeshkian might be able to bring some social freedoms. But he will be a weak president because Khamenei and his allies are much more powerful than the president.”

Sohrab Hosseini

(continuação)

O império persa informal, tal como o império turco em reforma, e o Estado judaico dotado de uma poderosa diáspora entre as elites americanas pensam para além da escala clássica do Médio Oriente. Esta delimitação preguiçosa deixa muito a desejar. A Grande Guerra não conhece restrições geográficas. A sua dimensão é mundial porque está destinada a determinar a evolução das dezenas de conflitos maiores e menores que a distinguem.

A desamericanização e a desglobalização avançam a galope. É pouco provável que sejam invertidas pelo que resta do Ocidente. O antigo Grande Médio Oriente deve ser mantido sob observação especial. Não tanto pelo seu valor intrínseco, mas porque as ligações ou desconexões do triângulo Israel-Irão-Turquia com o triângulo Estados Unidos-China-Rússia, o vértice do jogo, serão decisivas. A visão geopolítica da República Islâmica resume-se na fórmula 4×3. Quatro pilares ideológicos, dois dos quais subversivos, o islamismo político de tradição khomeinista e pan-islâmica e o terceiro-mundismo adaptado ao clima do “Sul Global”, para além do nacional-imperialismo iraniano e do xiismo tradicional. Aplicado aos países estrangeiros vizinhos, à Ásia Ocidental e à esfera do “Sul Global”, suficientemente não especificada.

A experiência minoritária do xiismo nos círculos muçulmanos e a subtileza persa convidam a considerar qualquer táctica iraniana com o benefício do inventário. A ductilidade é a sua imagem de marca. A temperatura do Irão neo-imperial não deve ser medida tanto pelos factores étnicos e religiosos como pelos nós militares, logísticos, tecnológicos e económicos da sua extroversão de intensidade variável. O objectivo estratégico é afirmar-se de forma decisiva no arco que vai do Levante ao Afeganistão/Paquistão e ao sistema Hormuz-Bab el-Mandeb, chave de acesso ao Indo-Pacífico. Para isso, é necessário expulsar o Grande Satã dessa zona ou, pelo menos, induzi-lo a uma postura passiva. E acompanhar o Pequeno Satã até à sua extinção como “entidade sionista” incompatível com o ambiente islâmico em que surgiu é uma questão de tempo. O jogo final será disputado contra a Arábia Saudita e as oligarquias sunitas do Golfo.

O confronto regional com as petromonarquias árabes parece estar agora em segundo plano, atenuado pelas recentes aproximações de emergência entre sauditas e iranianos, estimuladas pela astenia de Washington que preocupa os seus antigos clientes do Golfo. A rivalidade a longo prazo não está, portanto, terminada. O “eixo de resistência” criado por Teerão com actores assimétricos como o Hezbollah libanês, o regime sírio, os palestinianos da Jihad islâmica e o Hamas é uma faca de dois gumes. Uma contra Israel, declarada e praticada. A outra, encoberta mas estratégica, contra a família saudita que se apoderou abusivamente dos “Lugares Santos”. Porque se a fundação da “entidade sionista” em solo muçulmano e a penetração americana são estranhas à “Casa do Islão”, portanto transplantes destinados a serem rejeitados, o desafio da hegemonia no campo islâmico é permanente. Os clientes do império de Teerão, exibidos como libertadores da Palestina, são e devem continuar a ser duplos.

Ao mesmo tempo que combatem Israel, têm de contrariar Riade e os seus associados. Por exemplo, o Hezbollah deve bloquear as vagas tentativas sauditas de atrair o Líbano para a sua esfera de influência. Quando o Estado sionista cair, porque está destinado a cair não deve acabar sob a casa saudita e/ou outros ramos sunitas do Golfo. O eixo de resistência é o crescente xiita invertido, o cavalo de batalha dos regimes árabes pró-ocidentais, ou supostamente. Desde os que mantêm uma paz fria com Israel (Egipto e Jordânia) até aos signatários dos “Acordos de Abraão”, à espera de descolar. Acordos bilaterais patrocinados em 2020 por Washington e oferecidos por Jerusalém aos Emirados Árabes Unidos e ao Bahrain, ou alargados a Marrocos e ao Sudão (que finge existir).

No pressuposto de que, mais cedo ou mais tarde, a cooperação secreta israelo-saudita, reduzida após o 7 de Outubro de 2023, encontrará uma sanção pragmática. O factor ordenador da geopolítica do Médio Oriente, segundo Teerão, não é o tão propalado confronto Israel-Irão. É a rivalidade entre iranianos e sauditas, complicada pelo emiratismo. A linha divisória em torno da qual oscilam os actores regionais divide o império persa e o Golfo, com grande peso saudita. Onde Abu Dhabi, com a força da enorme riqueza financeira posta ao serviço das miragens da família dirigente, joga sozinho, como um terceiro grande. Terá o Irão os meios para uma estratégia de grande potência? Uma pergunta tipicamente europeia, de quem sofre de economicismo crónico.

É claro que décadas de sanções, guerras, ineficácia e corrupção pesam sobre a saúde do aparelho produtivo iraniano, especialmente no sector crucial da energia. Mas a República Islâmica contorna a maior parte das restrições impostas por Washington, de tal forma que oferece aos russos tutoriais não gratuitos sobre como triangular e criar condutas financeiras e comerciais de emergência. Nascidas temporárias, estas manobras tecem redes alternativas à influência americana. Originalmente postos de primeiros socorros, transformam-se em hospitais de campanha e, amanhã, talvez, em alternativas permanentes à “ordem baseada em regras”, uma imagem de marca do Ocidente cheio de estrelas. Mais limitativo é o clima político interno, onde a transição das origens teocrático-territoriais para o regime actual é bastante instável. A incompatibilidade entre os jovens progressistas e as estruturas repressivas que respondem ao Pasdaran e ao Basiji, dotadas de vistosas agências de espionagem e de polícia, é chocante.

Será que a sucessão do Guia Supremo, que em breve atingirá a idade de Ali Khamenei, de 85 anos, será a faísca que incendiará o material inflamável acumulado dentro e à volta do regime? O confronto poderá ser desencadeado ainda mais cedo. O descontentamento em relação ao sistema (nezam) exprime-se na abstenção eleitoral galopante, na ausência de candidatos alternativos aos pré-seleccionados pelos apparatchiks. A eleição do sucessor do falecido Presidente Raisi, deu-no uma ideia mais clara. Até à eventual reforma ou mudança do sistema, a pergunta rainha permanecerá sem resposta. A estratégia do império persa ignora ou depende da ideologia do regime do momento? Kissinger perguntava-se em público se o Irão era uma nação ou uma causa. Traduzindo, um actor racional, portanto disposto a comprometer-se com a América, ou subversivo. Em privado, a resposta foi “uma nação com a sua própria causa, claro”. Talvez um elemento útil para a análise seja a relação entre o último Xá e o seu subversivo. Ambos muito mais pragmáticos do que pareciam.

O primeiro pró-ocidental, mas não o fantoche anglo-americano descrito pelos revolucionários marxistas-islamistas. O outro, mais nacional-imperial na sua teologia. Se os barões da inteligência sobrevivessem nalgum departamento de ciências políticas da Ivy League, ofereceriam a Mohammad Reza Pahlevi e a Ruhollah Khomeini diplomas honorários duplos ad memoriam na teoria do realismo aplicado. A estratégia de qualquer grande potência é manter-se nessa posição. O mesmo se aplica ao império persa, que se considera como tal, mesmo que não possua todos os seus atributos. Incluindo a bomba. O fio vermelho que liga o projecto atómico do Xá, lançado nos anos de 1950, ao da República Islâmica traça a continuidade estratégica entre dois regimes com uma genealogia imperial comum. Ambos se reclamam herdeiros da dinastia Aqueménida (cerca de 550-330 a.C.). O cilindro de Ciro entusiasma tanto o Xá como Khomeini e os seus sucessores.

O desenvolvimento da energia atómica desejado pelo Rei dos Reis fala em termos civis e pensa em termos militares. Os juristas xiitas que lideram a revolução insistem nesta ambiguidade. O líder supremo confirma a opção civil com fatwa ao mesmo tempo que aprova o programa secreto de enriquecimento de urânio, de modo a poder desenvolver um arsenal atómico associado a mísseis balísticos hipersónicos com um alcance de mais de 1500 quilómetros. Capazes de atingir Israel numa dúzia de minutos. Teerão será uma potência nuclear quando decidir fechar o círculo. Basta-lhe uma luz verde do Guia ou de quem quer que seja. Será conveniente para o Irão tirar a máscara e desafiar os dois Satãs? Não me parece que seja o caso. O regime de dormência nuclear permite a Teerão explorar as vantagens da dissuasão suprema sem se expor a retaliações israelitas e americanas.

1 Ago 2024

O Clube da Luta (II)

“Pezeshkian might be able to bring some social freedoms. But he will be a weak president because Khamenei and his allies are much more powerful than the president.”

Sohrab Hosseini

A classe dirigente israelita está longe de estar convencida da ambição ou megalomania de Shiloah. Em torno de David Ben-Gurion, que governou o seu Estado como um quase ditador, os dirigentes trabalhistas da época tendiam para o não-alinhamento, ou seja, para a neutralidade. Pelo menos até 1956, quando, graças à guerra do Suez, o aventureiro Nasser desencadeia a vaga pan-arabista e se torna um defensor da resistência palestiniana, que organiza e promove. E aproxima-se da União Soviética.

Geopolítica dos três círculos, o árabe, muçulmano e africano, com o Egipto no centro. Perigo mortal para Israel, rodeado de árabes inimigos. Shiloah sugere a Ben-Gurion uma contra-estratégia em espelho e Israel como pivot de uma “Aliança da Periferia”, composta pelo braço Norte, com a Turquia e o Irão, e pelo braço Sul, com a Etiópia e o Sudão.

Encoberto, entendimentos bilaterais, baseados em informações (espionagem e operações especiais), comércio (ver as importações israelitas de hidrocarbonetos persas, também através da duplicação do oleoduto entre Eilat e Beersheba com a contribuição da companhia petrolífera nacional iraniana) e até produção de armas, incluindo um protótipo de míssil israelo-iraniano. Baile de máscaras. Tudo estrictamente secreto, muitas vezes salpicado de polémicas amargas sublinhadas pelos meios de comunicação social, porque as opiniões públicas respectivas e as potências opostas não apreciariam essas convergências incómodas. O que une o trio é a desconfiança em relação aos árabes e o medo do Egipto de Nasser, um cavalo de Troia soviético. Não uma verdadeira aliança. Em 29 de Agosto de 1958, numa reunião secreta em Ancara entre Ben-Gurion e o seu homólogo turco Adnan Menderes, com a presença de Shiloah, o patriarca israelita explicou que “Os árabes estão a fazer uma tal algazarra que o mundo inteiro pensa que o Médio Oriente é composto apenas por países árabes, mas isso não é verdade. Se formarmos este bloco de cinco países, poderemos garantir a nossa existência e independência, o que também terá efeitos no Norte de África”.

Pouco tempo antes, Ben-Gurion e o Xá da Pérsia trocaram missivas calorosas de entoação semelhante, com tons de intimidade multimilenar. O líder israelita recorda o que o rei Ciro fez pelos judeus, trazendo-os de volta a casa, e Mohammad Reza Pahlavi disse que “A memória do que Ciro fez pelo seu povo é-me cara e tentarei continuar esta antiga tradição”. O mesmo se passa com Haile Selassie, imperador da Etiópia, “descendente” do rei Salomão e da rainha de Sabá. Na frente dos serviços secretos, nasceu o “Trident”, um acordo de colaboração secreta entre a Mossad e os serviços correspondentes da Turquia e do Irão. A sede é em Israel, financiada pela CIA, com uma secção amarela para os turcos e uma azul para os iranianos, que depressa caiu em desuso e foi transformada num ginásio da Mossad. É impossível avaliar a extensão das trocas entre os membros da “Aliança da Periferia”, dado o grau de secretismo e informalidade. O impulso inicial perde-se rapidamente, ainda que a colaboração secreta de Jerusalém com Ancara resista entre altos e baixos até 7 de Outubro de 2023 e à escolha de campo de Erdoan a favor do Hamas, quando a tensão entre o secretismo do aparelho e a pressão da opinião pública parece esmagar as arquitecturas subterrâneas do semi-eixo turco-israelita.

O de Teerão sobrevive em parte à revolução de Khomeini, desenvolve-se na guerra Irão-Iraque (1980-1988), até ao advento do Pasdaran ao leme da República Islâmica. Dois objectivos principais unem o triângulo que é quebrar as ambições pan-arabistas de Nasser e dos seus emuladores; contar mais com a América. Atingido o primeiro objectivo mais devido ao irrealismo egípcio do que por mérito próprio, o segundo é progressivamente alcançado por Israel, ao ponto de, desde os anos de 1970, ter evoluído para uma quase simbiose. Na opinião do diplomata Gershon Avner “A aliança contribuiu para que nos sentíssemos como uma grande potência. Não somos apenas um mendigo sentado numa vala a ser alvejado em todas as direcções.” Talvez não compreendamos hoje o sentimento de precariedade que tirou o sono a Ben-Gurion e que continua a assombrar as elites mais conscientes do Estado judaico.

O fundador escreveu em 1963 ao Presidente Kennedy que “Pode não acontecer hoje nem amanhã, mas não tenho a certeza de que o Estado continue a existir depois da minha morte”. Equivalente ao roncado com que Ben-Gurion comenta a confissão do general Yehoshafat Harkabi, director dos serviços secretos militares de que “O que temos em comum é que nenhum de nós acredita que o Estado de Israel existe realmente”. Para a Turquia, que neste momento sofre por estar reduzida a uma sentinela no flanco sudeste da NATO, e para o Irão do Xá, que está menos esmagado por Washington do que parece, a “Aliança da Periferia” não é o bilhete privilegiado para o que espera o establishment americano. O quantum de influência de que o Estado judeu goza e que Ancara e Teerão esperam utilizar para os seus próprios fins não é o que Shiloah e companhia se gabam. Washington também não precisa de utilizar o canal israelita para negociar com Ancara e Teerão.

A CIA assegura que a troca de informações não excede um certo grau. Se se aproxima, Langley esvazia o depósito. Quanto ao Departamento de Estado, o lobby arabista iguala, se não ultrapassa, o lobby pró-israelita até aos anos de 1960. Hoje, os antigos aliados da periferia são adversários. E têm tendência para o parecer. Porque, enquanto o pan-arabismo já não tem vestígios e o espantalho do Ocidente é encarnado pelo jihadismo, se é que este serve para dividir a frente supostamente islamista, estes três continuam a presidir ao pódio dos desequilíbrios do Médio Oriente. Apostamos que continuarão a precisar uns dos outros. Talvez como inimigos acesos. Muitas vezes, a inimizade une mais do que a amizade. Até porque, em geopolítica, a primeira existe, a outra é digna de dúvida. Finalmente, e para já visível, a época das alianças, reais ou presumidas, passou e dificilmente voltará. No turbilhão do Médio Oriente, o menu é apenas à la carte. O império persa compreende, na sua actual forma informal, uma população multiétnica com uma maioria árabe agregada por líderes que se sacrificam diariamente a uma ideologia fundada no ódio contra Israel (Pequeno Satã) e o seu protector americano (Grande Satã).

Centrada na República Islâmica do Irão, fundada em 1979 pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini, governada, para além dos véus teocráticos, por uma oligarquia militar-policial centrada nos Guardiões da Revolução (Pasdaran) e nos paramilitares basiji. A sua ramificação em redes de clientes e milícias estende-se desde o oeste do Afeganistão (Herat) até ao Mediterrâneo oriental (Beirute), passando por Bagdade e Teerão. Penetração na Península Arábica, desde os Territórios Palestinianos Ocupados até à costa ocidental do Estreito de Ormuz e ao Iémen dos Hutis. O Irão acrescenta à sua aversão aos judeus e aos americanos a sua rivalidade geopolítica com a Arábia Saudita, que envolve as petromonarquias do Golfo, sobretudo os Emirados Árabes Unidos. O seu centro comercial e financeiro é Dubai, a lavandaria premiada de todos os tráficos iranianos e outros tráficos oblíquos. Para aqueles que resistiram desde o nascimento às sanções americanas e ocidentais, destinadas a esmagar as suas ambições nucleares e a cortar-lhes as asas imperiais, esta saída é essencial.

O leque de relações especiais é completado pela cooperação, não só energética e militar, com a Rússia, mestre das operações cinzentas, que, após a invasão da Ucrânia, arrebatou ao Irão a primazia de Estado mais sancionado do mundo. Selo de um entendimento pragmático entre impérios historicamente adversários. Para além da relação ambígua com a Turquia, rival geopolítico e ao mesmo tempo matriz genética relevante dos povos do Irão metade persas, um quarto de azeris e outros turcos, um décimo de curdos, muito poucos árabes, reflectida na parábola dos impérios persas, como testemunha a origem azeri do Guia Supremo, o turcófono Ali Khamenei; finalmente, o “olhar para Leste”, sobretudo para a China, para equilibrar a pressão americana. Para Washington, o Irão é um membro permanente de qualquer “Eixo do Mal”.

Do original, baptizado em 2002 por George W. Bush para classificar o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte como patrocinadores do terrorismo jihadista, numa tentativa falhada de identificar os inimigos a vencer para erradicar essa raiz maléfica. E a mais recente, evocada pela administração Biden, alinhando China, Rússia, Irão e Coreia do Norte. Acusados, entre outras coisas, de conluio na produção de mísseis hipersónicos, a marca das superpotências nucleares. Os quatro cavaleiros do apocalipse estariam equipados com eles, incluindo o Irão com o seu último Fatah, os Estados Unidos ainda não. (perdoe-se a condicionalidade, mas a ideia de que a informação pública sobre armas estratégicas é real ultrapassa mesmo a nossa ingenuidade).

Além disso, os drones iranianos fornecidos aos russos estão a ajudar a afundar a Ucrânia e a aumentar o receio da Casa Branca de perder a guerra com a Rússia. Hipóteses impensáveis na actual revolução. Perante este cenário, conceber os conflitos do Médio Oriente como locais ou regionais, se não redutíveis à rivalidade Israel-Irão, é um erro crasso. Igualmente desviante é centrarmo-nos na competição ideológico-religiosa, numa região onde a legitimação divina do poder está em declínio com excepção dos extremistas religiosos do governo israelita enquanto as inclinações agnósticas, se não mesmo ateias, se propagam sobretudo entre os jovens (no Irão, a idade média é de 27 anos).

(Continua)

24 Jul 2024

O Clube da Luta (I)

“Because with wise guidance you will wage war, and in the abundance of counselors is victory.”
Proverbs 24:6 (Mossad motto)

Em tempos de paz, a terra é para o homem; na guerra, o homem é para a terra. Onde o homem prevalece sobre a terra, há espaço para a verdadeira vida. No caso oposto, a morte triunfa. O homem acaba no subsolo, em um sentido físico e simbólico. Nós, europeus, ainda estamos convencidos de que habitamos a casa da paz eterna. A guerra não nos pode atingir. É por isso que, quando ela irrompe (em outros lugares), tendemos a retratá-la como uma sequência de crimes. Com uma grande quantidade de cenas horríveis. Um método contundente de não reconhecer o seu significado histórico, de abolir os seus contextos. O nosso labor é ligar os pontos cruzando as perspectivas dos protagonistas. Ler histórias na crónica. Há países em que esse exercício talvez não seja realista. As nossas ferramentas de investigação encontram resistência de culturas que parecem tão exóticas a ponto de serem impenetráveis. Por exemplo, o espaço centrado no planalto iraniano, entre o Mediterrâneo e a Ásia mais profunda, palco de milhares de anos de expansão e contracção de impérios grandiosos aos quais, para simplificar, atribuímos o título de iraniano.

Dentro e ao redor dele, populações de várias linhagens e religiões, entre as quais se destacam os árabes, os turcos e os judeus, juntamente com os persas. No último dia 7 de Outubro de 2023, mais uma carnificina sangrenta foi deflagrada ali, destinada a reordenar as cartas geopolíticas. Estamos nos espaços originais de nossa civilização, nada menos que exóticos dos quais sabemos pouco porque não ouvimos as vozes de dentro. Tentamos fazê-las ressoar. Porque temos curiosidade sobre elas. E porque, se as sufocarmos nos nossos autoproclamados esquemas universais, certamente não as entenderemos. Homenagem ao relativismo das “Cartas Persas”, com as quais Montesquieu pintou um retrato irónico das instituições francesas por meio dos olhos de dois visitantes persas imaginários em 1721. Paradigma inatingível. Mas um lembrete muito actual sobre a urgência de ouvir os outros antes de falar mal de nós mesmos, especialmente quando, por instinto, preferimos ouvir-nos.

Não existe a pretensão de desvendar os mistérios persas. Mas, assim como o mistério aumenta o fascínio, é interessante descobri-lo, apesar de tudo. Seguramente, não entenderemos nada desse teatro sem considerar as suas coordenadas sistémicas, que estão em rápida transformação. Estamos a vivenciar uma revolução geopolítica global marcada por quatro dinâmicas estruturais. Em ordem de importância, a transição dos Estados Unidos da dissuasão para a auto dissuasão; renúncia da Rússia e da China em integrar o sistema hegemónico americano e decisão de desafiá-lo em modos de guerra quente ou latente; redução drástica do Ocidente a uma minoria mundial em declínio, muito envelhecida e enfraquecida, desestabilizada pela crise de credibilidade de seu líder; emergência biológico-demográfica do “Sul Global”, jovem, disposto à violência, dividido em tudo, mas confraternizado pelo ressentimento anticolonial no estilo dos neo-destruídos da Terra.

Não há como voltar atrás, dada a profundidade da crise de identidade americana. Os danos podem ser limitados. Mas o tempo está a jogar contra o Ocidente, que prefere remover a realidade em vez de enfrentá-la. Para os Europeus, essa deriva é mortal. Os conflitos separam os nossos subúrbios do leste e do sul e expõem a nossa dependência de espaços antes protegidos pelo império americano, agora contestados. É também por isso que devemo-nos concentrar também na revolução nas áreas do Levante e do meio do oceano. Terrestre entre a Península Arábica e o planalto iraniano, marítima do Mediterrâneo oriental ao Mar Vermelho e ao Golfo Pérsico. Começando com a polaridade Irão-Israel. É necessária uma escavação profunda do império persa e uma investigação da sua relação paradoxal com o Estado judeu. Ontem era chamado de Grande Médio Oriente, agora é um objecto geopolítico não identificado.

Antes, cada um corria na sua própria pista, mesmo que morresse. Especialidade local em que os exercícios de movimento estacionário com acompanhamento musical forte. Hoje, há lutas sem regras. Os trilhos, assoreados, não podem mais ser vistos. Todos têm medo de descarrilar, mas não sabem como diminuir a velocidade. Os actores do Levante, equipados com máscaras multicoloridas adaptáveis a cada mudança de estação, lutam para se localizar geograficamente em tal confusão. Quem está com quem e onde? Faltam referências externas, as internas vacilam. Alguns duvidam da sua própria identidade. E se não sabe nem onde nem quem é, qual é o sentido de discutir estratégia? As revoluções são horrores para aqueles que as sofrem e despertares de consciência para aqueles que as observam. As chamas queimam e iluminam.

Desde 7 de Outubro de 2023, o antigo Grande Médio Oriente tem sido um hospício. Cartas fraudulentas estão a ser jogadas lá, e até agora nada de novo. Apenas o facto de que costumavam ser cobertas, mas agora são transparentes. Reveladoras. Três premissas são indispensáveis; a histórica, geopolítica e metodológica. Primeiro. Aqui, a Grande Guerra (2022-?) é mais uma fase da Grande Guerra ampliada (1914-2022). O jogo nunca foi encerrado. Conflitos gerados directamente do desmembramento dos impérios eurasiáticos, otomano, russo, francês e também do britânico. Fragmentação inacabada de poderes. Proliferação da impotência. Frequentemente vago. Segundo. A apatia americana não estratégica é agravada pela percepção dos actores do Médio Oriente, para quem a hora do vale-tudo chegou e passou. Actos que teriam parecido obscenos na alta temporada nas estrelas e listras, portanto reprimidos pelo Ocidente, ficam impunes.

É a hora dos oportunistas. E dos adversários dos hegemónicos como chineses, russos e outros que se infiltram nos espaços evacuados por europeus e americanos. Quanto a nós, seria uma oportunidade de nos tornarmos úteis como ocidentais, com ou sem razão, não percebidos como tal pelos locais e, portanto, facilitadores potenciais da paz. Terceiro. Muitos em guerra civil latente, alguns efectivos, outros em conflito directo ou indirecto com inimigos próximos e distantes Antecipemos a tese de para colocar esse caos sob controlo, as grandes potências não são nem serão suficientes. Na melhor das hipóteses, acompanharão a consolidação de actores estatais interessados em garantir um equilíbrio regional de facto, mesmo que ou porque estejam competindo entre si. Só os adversários com autoridade suficiente podem chegar a um acordo sobre uma ordem mínima. A alternativa é a penetração da Caoslândia na Europa, a começar pela Europa do Sul. Quem pode reordenar o Médio Oriente? No baralho de cartas manipuladas e expostas, três de naipe dominante são o Irão, Turquia e Israel. Estados reais. Dois impérios antigos e auto conscientes, de cultura muçulmana diferente e rivalidade comprovada.

Dotados da sabedoria que distingue a aristocracia imperial, base do reconhecimento da consanguinidade entre potências superiores. Mais o recentíssimo Estado judaico (1948), fundado menos na Shoah, mais no Livro. E em lendas históricas auto-legitimadoras ou bem inventadas. De matriz etno-religiosa refractária às tentações imperiais, ou seja, multiétnica, está em permanente emergência bélica. Hoje, paroxística. O senso comum diz que as três potências estão destinadas a entrar em confronto. Julgamento precipitado. A história não conhece cassações. Diverte-se a negar-se a si própria, para desespero daqueles que pretendem controlá-la. O passado deste triângulo é um jogo de sombras. Do amanhã não há certezas. Excepto que um certo equilíbrio do Médio Oriente depende em grande parte das suas cimeiras e das respectivas estratégias para o mundo pós-revolucionário em gestação.

Enquanto zombam e se cobrem de invectivas, israelitas, iranianos e turcos partilham dois instintos; o respeito mútuo e o desprezo pelos árabes. Serão eles, com a aquiescência de potências exteriores, que resolverão a contenda e exercerão um acto de equilíbrio de tom neo-imperial por falta de verdadeiras nações. Ou agravar o caos. O acordo entre as três estrelas rivais sobre os seus papéis e espaços respectivos é uma condição necessária para a reconstrução do Médio Oriente como uma região regida por um certo equilíbrio (e não desequilíbrio excessivo) de poder. Futura constelação de paz. O Irão, a Turquia e Israel são demasiado diferentes para uma aliança. Mas os seus interesses não impedem alinhamentos pragmáticos, reconhecidos pelo mundo. Terapias de choque contra a epidemia de loucura, se ainda for a tempo. Seguir o veneno pois estamos a lidar com amantes secretos que, embora se odeiem, se atraem mutuamente. Os amantes secretos são eternos. Sobretudo nos subúrbios. Daí a lembrança inoportuna.

Entre os protagonistas do nascimento e do estabelecimento de Israel no cenário das nações, Reuven Shiloah é a personalidade mais misteriosa. Nasceu súbdito otomano em Jerusalém, em 1909, no seio de uma família de judeus ortodoxos, cujo pai era rabino. Como bom Sabra (judeu nascido na Terra de Israel antes da formação do Estado) criado no coração mais do que ortodoxo de Jerusalém, o bairro de Mea Shearim, Shiloah não goza da simpatia dos pioneiros de origem europeia que conduzirão o Estado judeu da infância à adolescência. Forjado na luta pela independência nesse ambiente laico e socialista, morrerá cinquenta anos mais tarde, em Telavive, a trabalhar. Por vocação e profissão, foi conselheiro do príncipe, embora, como muitos dos seus homólogos, tivesse preferido liderar. No entanto, faltam-lhe os talentos do homem público e alguns centímetros de estatura. Evita as recitações obrigatórias para o político e negligencia o gosto pela caneta que anima os espiões, sobretudo quando estão fora de curso e de facto, morre em serviço permanente.

Refratário à rotina é um homem de ideias, não de organização. Profeta febril da causa patriótica, não se sabe se teve um dia de folga ou uma paixão artística. Não se sabe se alguma vez foi ao cinema, talvez para um encontro clandestino. Capaz, em privado, de fascinar e comover os hostis, de contradizer calmamente e de reprogramar os seus dirigentes para os empurrar para onde eles não queriam. Sempre ocupado a tecer e a desfazer conspirações secretas em todo o mundo. Esgueira-se por todos os corredores, abre todas as portas se isso servir o país. O seu estilo de penetração diplomática; primeiro entra com a cabeça, depois com os pés. Depois, está feito. Quase desconhecido fora do santuário do Estado judaico, agente de influência e diplomata, Shiloah tem uma rede de relações ao mais alto nível, desde o Estado profundo americano até aos sofás orientais, de África às chancelarias europeias.

É o criador e primeiro director da Mossad (1949-1952). Instituição de nome e de facto. Na definição do mais próximo dos seus amigos poderosos, o ministro dos Negócios Estrangeiros e mais tarde chefe de governo Moshe Sharett que diria “Uma unidade de reconhecimento composta por ele próprio”. Shiloah tem um objectivo muito claro que é de fazer de Israel uma grande potência. Uma vanguarda ocidental do Médio Oriente contra a União Soviética, empenhada em desvendar as cabalas pan-arabistas do líder egípcio Gamal Abdel Nasser, um duplo inimigo mortal, na medida em que era hostil a Israel e sensível às sirenes de Moscovo. Como é que um pequeno país, quase estrangulado no berço pelos árabes durante a guerra de 1948-1949, pode aspirar a tanto? A resposta é de que tornando-se um agente secreto dos Estados Unidos na região e fora dela, depois aderindo plenamente à NATO ou, pelo menos, arrancando a Washington uma garantia directa e formal de protecção.

Com o tempo, na ideia de Shiloah, Israel ascenderia à proeminência global graças à primazia da inteligência, emprestada da abordagem “brain over brawn” típica da forma britânica de liderar os americanos por trás, diríamos como os gregos com os romanos. A sinergia com a diáspora é decisiva. Shiloah argumenta: “Haverá algum país no mundo onde não se encontrem israelitas e judeus, estreitamente ligados, com acesso privilegiado a um tesouro de informação, muitas vezes com a vantagem de ocuparem posições-chave no Estado e no sector privado, de onde podem manobrar as alavancas certas? Haverá algum país no mundo onde os judeus não tenham um poder real ou imaginário?”

18 Jul 2024

O uso ilimitado da força (III)

“In politics stupidity is not a handicap” – Napoleon Bonaparte

O “Mal da América”, também nosso, está todo aqui. Se não nos respeitarmos a nós próprios, não podemos exigir respeito aos outros. Fim da dissuasão. Para melhor compreender o que estamos a perder, um salto ao Ocidente primitivo, filho da Revolução Francesa. Quando a dramatização da história era ainda o alfa e o ómega da política e da pedagogia. “Vous êtes un homme!”. É assim que Napoleão Bonaparte, imperador dos franceses, recebe Johann Wolfgang von Goethe, talvez o maior génio literário de todos os tempos. “És um homem!” é a homenagem do novo Augusto ao Virgílio por quem está à espera de ser cantado. São 10 horas da manhã de domingo, 2 de Outubro de 1808. Estamos na sala de audiências do palácio barroco da tenência de Erfurt, uma cidade média da Turíngia, anteriormente pertencente à Prússia e recentemente incorporada pela França. O cenário é uma sala com 8,90 metros de comprimento, 6,45 metros de largura e 3,2 metros de altura. Os dois protagonistas são quase da mesma altura. Napoleão, 1,69 metros, Goethe, dois ou três centímetros mais alto. O primeiro, em sóbrio traje imperial-militar. O poeta com peruca empoada, elegante casaco bordado, calças até ao joelho, meias de seda, espada embainhada na anca, sapatos brilhantes com fivela. Napoleão fica surpreendido. Esperava um ser desleixado e desajeitado, de acordo com o seu estereótipo dos artistas alemães.

Toma o pequeno-almoço servido por um camareiro polaco gordo, partilhado com o seu braço direito sulfuroso, o duque Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, que consumava a sua traição naqueles dias, e alguns marechais. Antes de regressar à sala de audiências, um olhar sobre o contexto. Napoleão convidou o jovem czar Alexandre I a deslocar-se a Erfurt para o convencer a santificar a eterna aliança destinada a derrotar a Áustria e a Inglaterra, a que se seguiria a divisão do continente entre os dois imperadores. De 27 de Setembro a 14 de Outubro de 1808, uma testemunha ilustre, o poeta iluminista Christoph Martin Wieland, observou que “quatro reis germânicos, com um círculo de príncipes alemães reinantes e não reinantes, mais um número incalculável de carrascos e magnatas alemães, franceses e russos, giravam à sua volta para pôr fim, se possível, às velhas rixas de uma vez por todas”. O príncipe da Prússia e o enviado dos Habsburgos não faltam, misturados com uma dúzia de marechais napoleónicos recém-dotados de títulos de nobreza, mais cerca de cinquenta e sete mil soldados seleccionados para impressionar.

Uma encenação grandiosa. O rigoroso protocolo imperial, das audiências matinais do pequeno-almoço ao meio-dia, das festas de caça ao jantar na vizinha Weimar, é seguido de espectáculos teatrais representados pelas estrelas do “Théâtre français” com cenários originais vindos de Paris. Entre elas, destaca-se o célebre Talma, o Napoleão do palco adorado pelo verdadeiro Napoleão. A meia-luz das velas convida os espectadores a estudarem-se. Goethe aproveita para espiar as feições e os tiques do imperador, que também se vangloria de ter estado presente em Valmy, vitoriosa canhonada francesa que derrotou os exércitos contra-revolucionários a 20 de Setembro de 1792 e marcou a transição das guerras de rendas para os exércitos do povo bem como em Jena, a 14 de Outubro de 1806, onde arriscou a pele. O calendário dramatúrgico é fixado pelo próprio imperador, que não perde um espetáculo com Corneille, Racine e Voltaire sempre ao lado do czar. As regras são estritas, destinadas a solenizar a convenção. Um rufar de tambores assinala a chegada de um monarca, para os imperadores torna-se triplo. Quando os tambores dedicam por engano três sequências ao rei de Württemberg, o comandante fulmina dizendo “Calem-se, ele não passa de um rei!” O imperador está ocupado a convencer Alexandre do pacto entre os governantes do Oriente e do Ocidente.

O seu magnetismo parece intacto. Quase toda a gente que se cruza com ele pela primeira vez cai num desmaio, raramente por complacência. Mas, nos bastidores, acontece-lhe perder a calma. Dá-se ao luxo de ser grosseiro, sinal de que as más notícias vindas de Espanha, onde os franceses derrubaram os Bourbons mas continuam atolados na guerra de contra-guerrilha, lhe abalaram os nervos. A facilidade com que Napoleão rasga os tratados e impõe os seus parentes nos tronos das terras que conquistou, abala a sua reputação e a confiança dos restantes soberanos. De que serve estar de acordo com o imperador dos franceses? E depois Napoleão sofre as conspirações de Talleyrand, que na sombra desfaz o que tece com Alexandre, já tão obstinado como uma mula. Não se consegue obter mais do que vagos entendimentos. Fórmula privada de Talleyrand em conversas semi-clandestinas com o czar que afirma que “O povo francês é civilizado, o seu líder não; o líder das Rússias é civilizado, não o seu povo. Por isso, o czar deve aliar-se ao povo francês”.

O conselheiro camaleónico dos dois imperadores está convencido de que as verdadeiras fronteiras da França se situam entre os Pirinéus, os Alpes e o Reno. E o resto? Loucura de Napoleão que, num dos seus discursos, o apelidou de “excremento em meias de seda”. Estamos de novo na sala onde Napoleão recebe Goethe. O primeiro encontro entre o ainda jovem soldado corso, no auge da sua glória, e o sábio de mil talentos, aqui como conselheiro secreto do Duque de Weimar, permanece impregnado de uma aura misteriosa. Escassas notas escritas por Goethe em 1819 sob a forma de um esboço, bem como testemunhos enigmáticos recolhidos junto de amigos e confidentes, sugerem a metáfora da relação entre a história e a sua realização teatral. Para um duplo excesso de génio, Napoleão é demasiado reduzido para a fama do estratega militar, aquele que, reescrevendo a ordem do mundo, se preocupa em monumentalizar-se; Goethe, célebre ao ponto de as gazetas de metade da Europa difundirem imediatamente a notícia da sua audiência com Bonaparte, preocupa-se com o reconhecimento do imperador, não certamente com a urgência de lhe coser uma narração laudatória. O poder é domínio de produzir a representação de si próprio. Neste caso, o poder e o seu eventual cantor são tão excepcionais que não se podem complementar.

10 Jul 2024

O uso ilimitado da força (II)

“Proportionality is a core legal principle that exists at all levels of international and domestic law. It provides that the legality of an action is determined by the respect of the balance between the objective and the means and methods used as well as the consequences of the action”.
Jeroen Van Den Boogaard
Proportionality in International Humanitarian Law: Refocusing the Balance in Practice

 

(Continuação da semana passada)

A luta pela África foi paralela à corrida ao Oeste americano e à sua unificação efectiva em 1865, depois à penetração japonesa no Sudeste Asiático, enquanto russos, britânicos, americanos e europeus se banqueteavam com os despojos da China. O período de trinta anos das duas guerras mundiais (1914-1945) retirou o Japão, a Alemanha e a Itália das fileiras das potências, completou a transferência da liderança de Londres para Washington e sancionou o fim da ordem eurocêntrica. Seguiu-se a Guerra Fria, quando os europeus vencidos, vencedores ou algures no meio (França), sob pressão americana, desmantelaram relutantemente as suas colónias para se concentrarem em conter a União Soviética e a doença comunista.

Regressa-se a uma ordem mundial, assente no Muro de Berlim (1945-1991). Mantendo-nos na lógica da bipartição simplificadora, observamos, nos quase dois séculos que separam o Congresso de Viena do suicídio da URSS, uma torção em ângulo recto do eixo estratégico mundial, da oposição Norte-Sul para Leste-Oeste. Seguiu-se a década unipolar (1991-2001), depois um período de vinte anos de ajustamento, chamado pós-Guerra Fria porque era impossível determinar o seu carácter.

A invasão da Ucrânia, ou o ataque deliberadamente provocatório da Rússia à América, seguido dos conflitos no Médio Oriente ao longo da linha de falha levantina que liga o Ocidente e o Sul Global/Maioria Mundial, cruza as duas direcções, que actuam a 360 graus, fora de qualquer paradigma e sem uma hegemonia reconhecida.

O giro unipolar é uma roda sem pivô e sem ranhura. Nunca estivemos tão longe da ordem mundial. A macro-falha a muito longo prazo continua a ser o Norte contra o Sul. É o nosso futuro próximo porque já é um passado distante. Se virmos bem, tal também era verdade no sistema soviético-americano. Organizado por potências do Norte que não podiam combater directamente, descarregavam a sua rivalidade na “Terra do Caos”. O Leste e Oeste são as duas faces do Norte divididas entre dois universalismos, mas unidas pelo pacto não escrito que permitia a cada uma delas gerir o seu império europeu, permanecendo o Sul contestável ou negligenciado.

A Guerra Fria foi a paz do Norte. Desfrutada por nós, europeus ocidentais, sofrida pelo Leste e despejada em grande parte do hemisfério sul. Hoje, os Estados Unidos, a China e a Rússia confrontam-se com todas as armas à sua disposição: militares, económicas, jurídicas, mediáticas e culturais. O único limite, por enquanto, é o confronto directo. Mas a guerra mundial, por acidente ou loucura, é uma perspectiva lógica.

Todos nós somos potenciais membros do clube da Caoslândia. Ninguém está a salvo. Outra paz, uma nova guerra fria, não está no horizonte. Os blocos já não existem, as alianças também não. Dissecados em alinhamentos provisórios, revogáveis conforme o momento e o caso. Os técnicos discutem a guerra mundial abaixo do limiar.

Jogos de palavras para encontrar sentido onde não há nenhum. Conflito de tudo numa escala planetária que ninguém quer. Mas toda a gente pensa que tem de se equipar para enfrentar a indefinível luta em curso. Só não sabem como, dada a imprevisibilidade das ameaças. O maior perigo é a excitação com que os protagonistas jogam a carta da propaganda, o outro nome da desinformação. Ao ponto de, consciente ou inconscientemente, acabarem por acreditar nela. Nenhuma trégua, nenhuma negociação real é possível senão a partir do princípio da realidade. Um exercício para o qual os poderes adultos foram outrora treinados.

Hoje, estão intoxicados pela nuvem de propaganda, que se mistura para formar um “cumulonimbus” difuso no espaço-tempo mediático. Antecipação de uma tempestade que já passou. Acontece quando se rejeita a realidade e se inventa uma realidade reconfortante. Sem nos apercebermos de que nos deixamos levar pela corrente. É aqui que reside o calcanhar de Aquiles da América. Na Grande Guerra, a sua narrativa está fora do tempo, fora do tom.

Deprimente ao grau académico-elitista, marcada pela neurose dos seus próprios cânones pretendidos universalmente, pela “reductio ad Hitlerum”, todos os líderes inimigos são Hitler, logo ninguém o é, com reabilitação póstuma do Führer até ao paradigma de Tucídides, um clássico mais citado do que lido de onde os augustos estrategas pretendem extrair a cifra secreta das guerras destinais, sem fim nem propósito. Não nos atrevemos a imaginar o que será desta anti-história para idiotas, quando a campanha contra os estudos clássicos que grassa nas universidades tiver dado frutos definitivos. Desde que se trate de comunicação de guerra, tudo bem. Mas o que está aqui em causa é o soft power, a mais eficaz das armas. Aquele que faz com que os outros, incluindo os inimigos, nos considerem dignos de imitação.

O poder que magnetizou povos de todas as latitudes durante as altas décadas da pós-II Guerra Mundial perdeu força. Caiu numa imitação pouco convicta de si próprio. Hollywood não se adapta ao clima pós-Hollywood. O vector imaginativo do sonho americano não funciona em casa e muito menos fora dela. A pedagogia cinematográfica e musical dos anos de 1950, uma década mágica na memória histórica das estrelas e riscas, é material de cineclube.

Os seus substitutos actuais são, na melhor das hipóteses, diversões. Todos os países que se prezam produzem as suas próprias séries de televisão, zonas de conforto feitas à medida e agregadores sociais. Espalham o sentimento de pertença necessário em qualquer competição, desde os Jogos Olímpicos à guerra. A cultura de massas, tornada imediata e difundida pela Net, ajuda a criar esferas de influência no mundo pós-americano em gestação. Na frente narrativa, a América já perdeu. E muitos satélites europeus, nem sequer estão a competir. Desintegração progressiva do demos pela proliferação de avatares egocêntricos. Nada mau, para quem gostaria de lutar pela democracia.

4 Jul 2024

O uso ilimitado da força (II)

“Proportionality is a core legal principle that exists at all levels of international and domestic law. It provides that the legality of an action is determined by the respect of the balance between the objective and the means and methods used as well as the consequences of the action”.

Jeroen Van Den Boogaard, Proportionality in International Humanitarian Law: Refocusing the Balance in Practice

Em vez de nos induzir à modéstia, ao estudo da realidade e à procura de compromissos, convida à proliferação de conflitos sem fim (no duplo sentido). A guerra transforma-se em massacre. Sangue por sangue. Segundo duas tipologias dominantes, prelúdios possíveis da III guerra mundial pretendida; o conflito mais ou menos indirecto, através de clientes (proxies), ver Ucrânia; e a guerra ao terror, à maneira de Israel contra o Irão. Sobre a utilização de clientes ou mercenários para poupar forças, a primeira e última palavra foi escrita “ante litteram” por Hegel na “Fenomenologia do Espírito”, descrevendo a dialética servo/mestre.

O patrão encontra-se dependente do trabalho do servo, de modo que tende a abandoná-lo antes de ser consumido por ele. A chamada guerra contra o terrorismo oferece a vantagem da revogação a qualquer momento, enviando o terrorista emancipado para Oslo, onde receberá o Prémio Nobel da Paz, a não ser que seja redemonizado quando necessário. Pode, no entanto, ter o efeito de rebaixar o Estado antiterrorista à categoria de terrorista, porque o objectivo declarado de ambos é matar todos os inimigos. Os Estados Unidos experimentaram choques entre as duas tipologias, por exemplo, ao mobilizarem parceiros atlânticos ou ocasionais contra a Al-Qaeda e o regime talibã, a quintessência do terror jihadista, apenas para se desgastarem e fugirem de Cabul. Na síntese lúcida de Osama bin Laden, referindo-se a Bush filho diria que “Foi fácil provocar esta administração e levá-la até onde queríamos. Basta-nos enviar dois mujahidin ao Extremo Oriente para levantar um cata-vento da Al-Qaeda para que os generais se precipitem, aumentando assim as perdas humanas, financeiras e políticas, sem fazer nada de extraordinário, excepto obter alguns benefícios para as suas empresas privadas”.

As neuroses auto-destrutivas de nós, ocidentais, europeus, americanos e oceânicos, sem considerar japoneses e sul-coreanos, como quer o cliché washingtoniano, encorajam a desordem. E encorajam os rivais. Assim, Xi Jinping observa que “a caraterística mais importante do mundo actual é, numa palavra, o “caos”. E esta tendência parece estar a continuar”. Depois, dirigindo-se às câmaras com Putin ao seu lado que diria “Estamos a viver mudanças que não víamos há cem anos. E estamos a conduzi-las juntos”. Numa lógica de soma zero que contempla a hipótese da astúcia superior do nosso campo, poderíamos entender os nossos próprios objectivos tácticos como máscaras para convencer os nossos concorrentes de que o Ocidente está moribundo, de modo a que eles se aventurem a dar passos que não podem suportar e se prejudiquem a si próprios. Putin a marchar sobre o banco dos réus de Kiev. Mas atribuiríamos os excessos de astúcia aos nossos estrategas sem estratégia.

A quem, quando muito, parece aplicar-se a filosofia flippista do Pato Donald, ilustrada por Carl Barks numa célebre banda desenhada, segundo a qual, na vida, é melhor contar com o lançamento de uma moeda ao ar. No globo astronómico, a geopolítica ocidental é a “nottola de Minerva”. Levanta-se ao pôr-do-sol, contempla os fragmentos do cenário planetário conflituoso e, idealmente, volta a juntar as peças, remendando a caixa de Pandora estilhaçada para recomprimir os males do mundo. São três os pontos de vista dos protagonistas; resignados, resistentes e oportunistas. Os primeiros, europeus veteranos acompanhados pela maré crescente de americanos entristecidos, mais intelectuais alienados de todas as cores, sentem o declínio imparável e adoptam o uniforme de Orwell pois estamos envolvidos num jogo que não podemos ganhar; alguns fracassos são melhores do que outros, é tudo. Os outros, os imortais neoconservadores estrelados, os britânicos tardios de olhos arregalados, os franceses educados para parecerem mais do que são, os vanguardistas anti-russos da Europa de Leste que selam os seus cavalos para a investida final sobre Moscovo esperam virar a mesa.

Para preservar a sua própria paz relativa e descarregar os custos sobre os chamados “Remain”, a esmagadora maioria dos seres humanos, os sete mil milhões em oito do igualmente chamado Sul Global. Finalmente, as potências intermédias que, na crise do Ocidente, sentem a oportunidade de expandir a sua esfera de influência como turcos, indianos, polacos, japoneses hoje, depois de amanhã talvez brasileiros, nigerianos e coreanos juntos. Há uma constatação que tanto angustia como entusiasma os inteligentes das famílias acima referidas, pois pela primeira vez na história universal, o jogo está realmente a ser jogado à escala mundial. Mas a Grande Guerra ainda não é redutível a uma única equação. A fórmula brilhante do Papa Francisco de que a “terceira guerra mundial em pedaços” não deve ser tomada à letra. As guerras mundiais são conjuntos variáveis mas coerentes. Aqui, as peças do puzzle não são compostas em torno de um centro, pelo que não são periferias, mas potenciais centros regionais em (re)formação devido ao declínio da intencional ecúmena repleta de estrelas.

Pedaços de terra e mar que a América em retirada estratégica não pode e/ou não quer manter no seu império. Desglobalização e desamericanização são as duas faces de uma crise anunciada que apanha o “Número Um” desprevenido. No entanto, os primeiros alarmes tinham soado há vinte anos a partir de “Beltway”, quando uma parte do Estado Profundo ainda funcionava e diagnosticava o império mundial como insustentável, uma armadilha para a qual o Soviete suicida o tinha arrastado involuntariamente. O resultado é uma fragmentação geopolítica desgovernada. Inimigos e amigos são categorias provisórias, e as cartas são baralhadas nos vários teatros de tensão onde a América se confronta com os seus maiores concorrentes, a China e a Rússia, um falso casal destinado a rebentar se Washington alguma vez escolher um para combater o outro. Nós, europeus e euro-asiáticos, ainda não terminámos as guerras de sucessão produzidas pela desintegração dos nossos grandes impérios.

A Ucrânia e Israel/Palestina são terramotos produzidos, respetivamente, pelo cruzamento das falhas sísmicas russo-alemã-Habsburgo e anglo-otomana. Podemos imaginar a ressecção do império americano a ser produzida em paz? Actualmente, a divisão verdadeiramente relevante à escala global separa aqueles que estão dispostos e são capazes de lutar daqueles que não podem ou não querem. O poder não depende tanto dos arsenais e tecnologias militares, e muito menos do volume de produção auto-certificada através de um PIB improvável, mas sim da vontade de uma comunidade de lutar. Com armas. E em todas as dimensões dos conflitos actuais. Os factores determinantes são a demografia e a identidade partilhada. Ou seja, populações jovens dispostas, em casos extremos, a morrer pela sua pátria. Neste cenário, as macro-categorias do Ocidente e do Resto do Mundo valem pouco, o primeiro nada do segundo. No teste da guerra na Europa, confirma-se que os europeus estão divididos entre si e numa relação diferente com o líder americano. Quanto ao Resto, não é o anti-Ocidente. Se não no sentido dessa vaga fraternidade anti-colonial que junta africanos, asiáticos e latino-americanos.

Tudo ferve na panela dos “Brics” em expansão. Na antecipação oportunista de espaços de soberania em disputa, tornados contestáveis pela retracção americana. O que resta do Ocidente está a atravessar três crises. Psicológica, na medida em que é constituído por potências que dominaram os últimos cinco séculos de história e temem não conseguir governar o sexto; humana, dada a escassez numérica e cultural de forças dispostas a combater; estratégica, dada a divergência de interesses num campo mantido unido, e é tempo de o admitir pelo inimigo soviético e muito menos por uma empatia de valores. Nós, europeus, passámos a modernidade a massacrarmo-nos uns aos outros, excepto em intervalos parciais, mesmo longos (Viena 1815-Sarajevo 1914), baseados no equilíbrio de poderes com o domínio britânico e francês, até que o imperialismo alemão tardio, baseado na raça, atraiu desertores americanos de volta à Europa. Estes estavam determinados a pôr de parte o equilíbrio de poderes para estabelecerem a sua própria hegemonia sobre o Velho Continente, condição da primazia mundial.

Porquê surpreendermo-nos se nos encontrarmos desorientados perante tanta agitação? É inútil olhar para o passado em busca de receitas. A folha de papel onde se desenha a estratégia está em branco. Para todos sejam americanos, chineses, russos, europeus. Tratemos do Resto, habituado a ser submetido aos poderes instituídos. Baptizado de Maioria Mundial por Moscovo, que quer usá-la como alavanca para fazer Obama engolir a frase venenosa sobre a Rússia como potência regional, que Putin considerou uma declaração de guerra tanto que ele próprio a desencadeou com a invasão da Ucrânia, para desgosto dos chineses. Para compreender isto, comecemos de novo pela matriz Caoslândia vs Ordolândia. Bipartição simplificadora mas não simplista. O que está em causa à escala global é evidente; onde se cruzará a linha de fractura entre a Caoslândia e a Ordolândia nas próximas décadas? Dizem os ocidentais apocalípticos que serão os nossos heróis capazes de impedir a invasão do Sul, se necessário com armas?

Geopolítica das entranhas. Diligente na América e na maioria dos países europeus. As terras do caos ou de Hobbes homenagem ao teórico do “bellum omnium contra omnes” interpretámo-las, esboçámo-las e actualizámo-las progressivamente a partir de um vestígio que é a “Nova Carta do Pentágono” assinada por Thomas Bartlett, conselheiro do Secretário da Defesa, em Março de 2003. Primeira tentativa de mapear a grande estratégia americana no “momento unipolar”. Os Estados ali presentes dividiam-se entre os bem-aventurados admitidos no “Núcleo Funcional da globalização” e os miseráveis encurralados no “Bolso Não Integrado”, desligados de nós globalizados. Entre os dois havia uma faixa de sutura potencial do México ao Brasil, da África do Sul a Marrocos e à Argélia, da Grécia à Turquia e ao Paquistão, Tailândia, Malásia, Filipinas e Indonésia. Na América ainda optimista, que, nessa mesma época, festejava a “missão cumprida” no Iraque sem se aperceber de que essa “vitória” acelerava o seu declínio, a mídia pretendia atribuir às elites de Washington a tarefa do pós-Guerra Fria como globalizar/americanizar o planeta.

É difícil imaginar mais “tendência ao extremo” do que isso, excepto Musk e Bezos. O mundo, não o império. Ironicamente, Bartlett citou entre os globalizados a China, a Rússia e a Índia, excepto para avisar no posfácio que “podemos perder esses países”. Dito e feito vinte anos depois. A ideia de Bartlett e dos neoconservadores que exaltavam a “Nova Roma” esquecendo que esse império estava no limiar e falhou. Washington concebeu-se como um farol destinado a estender à órbita terrestre o feixe de luz verde que entusiasmou Gatsby, “in hoc signo vinces” do destino manifesto. A iluminação é agora reduzida. Prevalece a “tendência para o mínimo”. Onde o mínimo, talvez o máximo, é impedir que a Caoslândia integre a América. Que mais é o espectro da guerra civil, evocado pelos mídia e pelo filme homónimo, com evidente intenção apotropaica? Na fase alta da modernidade, o século entre Viena e Sarajevo a actual “Terra do Caos” era um campo de batalha entre as grandes potências do Norte, com a França e a Inglaterra à cabeça.

(continua)

27 Jun 2024

O uso ilimitado da força (I)

“A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”

General François Lecointre

Em outro tempo houve uma guerra política contínua por outros meios. O que resta sem a política? A guerra autónoma, dirigida a si própria. Violência ilimitada. Irracional. Chamar-lhe-íamos besta se nas espécies animais não existissem hierarquias de dominação, de modo que a competição pela superioridade é geralmente resolvida por ameaças e não pelo exercício da força. Em rigor, deveríamos deixar de chamar guerra ao que há muito deixou de corresponder ao cânone estabelecido em 1832 por Carl von Clausewitz.

O seu tratado sobre a guerra, um tratado de antropologia e de arte da política em que as armas são apenas o seu instrumento, foi utilizado por gerações de oficiais, de tal forma que passa por um manual técnico de combate. É digno de figurar ao lado da “Fenomenologia do Espírito” do seu contemporâneo igualmente prussiano, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, só que lhe subverte o sentido porque não expõe a realização da história como um projecto divino, mas anuncia talvez inconscientemente a sua subversão.

A fractura que diante dos nossos olhos liquida a dimensão política da guerra, emancipando-a da primeira, reduzida a um estado larvar, produziu-se a partir da época napoleónica. O fim da “guerre en dentelles”, dos torneios em tributo regidos por uma etiqueta cavalheiresca de costumes, o início das mobilizações de massa e dos movimentos revolucionários que culminam no triplo suicídio das hegemonias europeias (1914-1945-1991). Hegel e Clausewitz estavam ambos em Jena, a 14 de Outubro de 1806, quando Napoleão derrotou o exército prussiano.

Clausewitz ficou prisioneiro daquele Bonaparte em quem Hegel, olhando pela janela, queria ver a alma do mundo a cavalo. Duas perspectivas fisicamente opostas, a do oficial que caiu nas mãos do inimigo experimentou o clima e os modos de um grandioso exército do povo, e depois passou de cobaia a investigador dessa revolução, que não era apenas militar; o filósofo demasiado sistemático para admitir as aporias que o impediriam de encerrar a sua dialéctica trinitária, viu em Napoleão o anúncio simbólico do desígnio de Deus ao afirmar “É uma sensação maravilhosa ver um indivíduo que concentrado num ponto, irradia sobre o mundo e o domina”.

Clausewitz rejeita, na introdução, a necessidade de reduzir as suas observações a um sistema, um sinal do destino, dado que não poderá terminar de corrigir a sua obra-prima: “Em vez de uma doutrina abrangente, temos apenas fragmentos para oferecer. Tal como muitas plantas não dão frutos se os seus caules forem demasiado altos, é necessário que, nas artes práticas, as folhas e as flores teóricas não se desenvolvam demasiado. É preciso não se afastar muito do terreno que lhes convém, isto é, da experiência. Talvez surja em breve um espírito mais esclarecido, que substitua estes grãos isolados por um todo fundido num só molde como um metal sem escória”. Clausewitz acabaria então por ser desviado pelas ciências militares e políticas. Até que um antropólogo e crítico literário muito original, René Girard, revelou o seu núcleo oculto. Uma fórmula que torna o seu pensamento actual, ou seja, a cisão entre política e a guerra. Clausewitz já a tinha, de facto, intuído, só que recuou quase temeroso perante a descoberta e assumiu o papel de técnico de armamento, decididamente diminuto. Eis a passagem-chave, que no texto precede o postulado, agora ultrapassado, sobre a relação política/guerra: “Confirmemos, portanto – a guerra é um acto de força, cujo uso não tem limites – os beligerantes impõem a lei uns aos outros; o resultado é uma acção recíproca que logicamente deve levar ao extremo”.

Girard lê neste fragmento a confirmação da sua tese sobre o mimetismo, retirada do estudo dos clássicos da literatura, de Cervantes a Proust e Dostoievski em que a imitação é o motor das relações entre os humanos na medida em que se reconhecem como semelhantes. Leva-nos a aprender, mas também a lutar pelo desejo do objecto do outro. Mais radicalmente, pelo desejo do desejo do outro. Daí a dinâmica da violência como um jogo de espelhos que torna os inimigos cada vez mais semelhantes. O uso ilimitado da força é um sintoma da “tendência ao extremo” que acelerou o curso da história desde o final do século XVIII. E determina uma continuidade do confronto bélico através da “acção recíproca” impulsionada pelo desejo mimético dos contendores. “Bump and grind”. Extensível ao infinito, por imitação na qual a violência chama a violência. Ao ponto de se perder o próprio sentido de defesa e de ataque, de agressor e de vítima. Exemplo, o “ódio misterioso” entre a França e a Alemanha que constitui “o alfa e o ómega da Europa”. Neste sentido, a Guerra é apocalíptica. Pois estamos sempre em guerra, uma vez que a guerra enquanto instituição capaz de produzir sentido e determinar equilíbrios de paz já não existe. Um fenómeno que, segundo Girard, afecta todas as instituições.

O que resta da política persegue a guerra como Aquiles, a tartaruga. A abolição determinativa da guerra é intencional. Aqui estamos interessados tanto no fim da guerra como no fim da paz. A ausência do primeiro exclui a paz. Para a conseguirmos, temos de saber porque lutamos e, sobretudo, com que objectivos os nossos adversários nos confrontam. É para isso que serve a geopolítica. Obriga-nos a contemplar o conflito a partir do alto (perspectiva de arbitragem) e, a partir daí, a descer por graus e escalas crescentes até ao terreno em disputa (olhar conflitual), medindo o que está em jogo – o objecto do desejo mimético – as intenções e os recursos dos protagonistas. O exercício geopolítico educa até ao limite. Refreia os impulsos mais imprudentes dos contendores, incluindo-os mimeticamente na mesma equação, em respeito pelo princípio da realidade. Prepara a paz. Exercício fora de tempo? Não pensamos assim. Pelo contrário, pensamos que compensa a “tendência para os extremos”.

Entusiasmado com o teatro de papel machê que pinta efectivamente o mundo inexistente das regras universais, eleva o não-direito internacional a direito. Uma receita para acabar com a guerra, sim, mas através de uma colisão definitiva capaz de erradicar a humanidade deste planeta. Quem tranquiliza não cura. Contribui para a catástrofe. Traduzamos a tendência para o extremo em geopolítica. O que é que ela nos diz, senão da ocidentalização do mundo, filha da Revolução Francesa? Desencadeadas pelas campanhas de Napoleão, desenvolvidas com as guerras do ópio britânicas, as empresas coloniais das potências europeias vestiram-se de civilização das raças inferiores, culminando na formação de um mercado mundial de bens e capitais sob a égide americana. Previamente antecipado em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels como o estigma da sociedade burguesa no “Manifesto do Partido Comunista” em que “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, logo as relações de produção, portanto o conjunto das relações sociais.

A incerteza e o eterno movimento distinguem a época burguesa de todas as anteriores. A necessidade de um escoamento cada vez mais vasto dos seus produtos impele a burguesia para o outro lado do mundo. Em todo o lado tem de se impor, estabelecer, constituir relações”. Se substituirmos “burguesia” por “Ocidente”, descobrimos a dinâmica geopolítica que se mantém desde então e cuja crise vivemos actualmente. A tendência para o extremo que deveria ter acabado com a história descarrilou das pistas economicistas engenhosamente traçadas pelos dois jovens renanos. Os estudos antropológico-culturais que se seguiriam à expansão colonial estavam a dar os primeiros passos. As raízes e as múltiplas funções das guerras modernas, estimuladas pela tecnologia, começavam a alargar o seu alcance. Para investir todas as dimensões competitivas das relações entre grupos humanos, o comércio como cultura, a força militar como esfera do direito, as finanças como desporto. Um processo do qual emana a miragem da ocidentalização do mundo como o fim (masculino e feminino) da história humana.

Descarrilamento da teleologia hegeliana. A ideia um tanto bizarra de universalizar o Ocidente, uma ofensa ao princípio de não-contradição, expõe os limites da tendência ao extremo que se pretende ilimitada. Síndroma de Clausewitz-Girard em que a ocidentalização da humanidade é tanto filha da imitação dos não ocidentais, consciente ou não, como do nosso beligerante impulso ecuménico. Não se trata de um movimento unilateral do centro do poder para as periferias impotentes, mas de um duplo movimento. Aproximação mútua em vista do duelo. As periferias procuram o centro, sobretudo quando não o admitem a si próprias, oferecendo alternativas a um paradigma que introduziram, tal como o centro visa as periferias. Dialéctica sem síntese possível, em aceleração contínua. Desalinhada. Se, em vez de avançar para o triunfo, a história marcha ao acaso ou em círculos, a tendência para o extremo radicaliza-se até ao paroxismo. E produz guerras potencialmente intermináveis. Num duplo sentido, sem objectivo e sem fim. Dançamos à beira do vulcão.

Estamos na era da proliferação das armas de destruição maciça, não apenas nucleares. É preciso um formidável acto de fé para nos convencermos de que milhares de bombas atómicas na posse de actores cada vez mais imprevisíveis e numerosos, lançadas a partir de vectores hipersónicos capazes de atingir o alvo em minutos e de tornar inabitáveis continentes inteiros são produzidas para os respectivos stocks. E o que dizer da fábula segundo a qual a inteligência artificial nunca será autónoma dos seus criadores? A tendência para o extremo perturba o cartesianismo dos estrategas de gabinete. Viúva da dissuasão, o “Ancien Régime” desmoronou-se com a demolição do Muro. Os historiadores, uma espécie em vias de extinção devido à abolição progressiva da disciplina, não estão muito melhor, pois o desporto do século é a marcha frenética a partir de um impasse. Sem passado, sem futuro, sem nada para fazer senão para consumo imediato. A improvável ocidentalização do mundo expande-se para a desocidentalização do Ocidente. Sobretudo, para a desocidentalização da América.

À força de exportar a liberdade e a democracia com guerras preventivas-educativas regularmente mal sucedidas e sofridas, se nalgum canto da nossa memória prezamos o princípio de que lutamos para vencer, quantos restam em casa? Se muitas democracias residuais são menos populares do que várias autocracias, porque é que os chineses ou os russos nos hão-de imitar? Talvez pensemos que uma campanha para libertar um povo de um tirano, ao estilo da invasão estrelada da Mesopotâmia, transformará de um momento para o outro o sujeito num fanático do modelo de Westminster? Prestemos homenagem a Thomas Friedman, o ideólogo do terrapianismo, a quem, num suspiro inconscientemente autocrítico, escapou a pergunta proibida: “O Iraque é como é hoje porque Saddam é como é, ou Saddam é como é porque o Iraque é como é?”. Por fim, quanto à globalização consensual de Washington, paradigma económico do Ocidente americano, o que fazer se uma grande parte do mundo discorda e se dedica cada um a acercar o seu próprio estilo de produção e de troca, para adaptações posteriores?

No entanto, no Ocidente, continuamos a conceber as guerras como o recurso último do progresso de que reclamámos a exclusividade. Cada vez mais fracos e menos convencidos, somos ainda prisioneiros de um síndroma do membro fantasma. Colaterais da tendência para o extremo, por definição avessos à reflexão. De medir a realidade e o lugar que provisoriamente ocupamos nela. Quase como se o Ocidente fosse uma categoria meta-histórica. E a guerra a parteira da história, dixit Marx, ocidentalizador não convencido. O hiato entre a ideologia e a correlação global de forças induz a depressão na América, que se identifica com o Ocidente como protectorado de confiança divina e comunidade de valores. Mas a profundidade da sua própria crise impede-a de abjurar a ideia universal de progresso que justifica a sua existência e promove o seu poder superior. A história não pode acabar em glória, é certo, mas a auto consciência fundadora sem a qual a América não existe pode confrontá-la com a alternativa do diabo que é a guerra civil ou a guerra mundial. Ou ambas. Em nome dos direitos humanos, mais vale suicidar-se com todo o planeta.

A aproximação à encruzilhada faz-se por um conflito sem objectivo nem conclusão. Alimentado pelo ilimitismo americano. E demarca os Estados Unidos e os seus associados das potências não ocidentais, onde persiste alguma forma de racionalidade, ainda que peculiar. A anti-estratégia em esteróides praticada dentro e à volta da Casa Branca exprime a “geopolítica para as classes médias” que o “Estado Profundo” em confusão postula inspirar-se. Anátema aos olhos dos hiper-capitalistas estrelados, para quem nem o céu é o limite. Pensemos em Elon Musk e Jeff Bezos, o segundo e o terceiro homens mais ricos da Terra, que imaginam exportar a humanidade para além deste planeta, um lugar demasiado estreito para nós. Podemos acabar de o destruir e começar a colonizar o universo. Musk quer-nos em Marte. Bezos eleva a fasquia pois triliões de seres humanos flutuarão em enormes estações espaciais no espaço interplanetário. Tudo se pode esperar do homem (Musk) que foi castigado pela História por ter gerado uma filha comunista e do seu rival que, em criança, treinou o seu talento tecnológico instalando um alarme eléctrico para impedir os irmãos mais novos de entrarem no seu quarto.

Visões proféticas do futuro? Como bons vetero-europeus, preferimos a receita do social-democrata vienense Franz Vranitzky, antigo chanceler austríaco que disse “Quem tem visões deve consultar um médico”. Mas quanto mais velhos ficamos, nós, ocidentais, mais sofremos de mimetismo diacrónico. Imitamos os nossos grandes líderes de outrora, sem medo do ridículo. É o caso de Emmanuel Macron, com o seu manto napoleónico, pronto para uma campanha militar contra a Rússia. E dos dirigentes polacos, bálticos e escandinavos que gostariam de riscar a Federação Russa do mapa, para dar origem a um colorido festival de miudezas “pós-coloniais”. Um clima de higiene mundial neo-futurista, exclusivamente bélico, que enevoa tanto os comentadores “mainstream” insuspeitos como os militares no activo e no passivo. Assim, Janan Ganesh, colunista do Financial Times, estabelece a equação paz=estagnação e convida-nos a saborear a guerra como um “estimulante”.

Uma droga poderosa, cujos efeitos Ganesh descreve em três fases; “Primeiro, o trauma obriga-nos a imaginar lugares novos e estranhos. Em segundo lugar, as ideias resultantes vendem-se mais facilmente porque as ideias dominantes estão agora manchadas de sangue. Em terceiro lugar, a violência provoca muitas vezes alguma inovação técnica”. Faz eco do general François Lecointre, antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas francesas, certo de que dentro de dez anos nós, europeus, teremos de recolonizar África porque não podemos continuar a aceitar “fazer fronteira com o caos”. Em todo o caso, “só podemos matar pela França, não pela democracia”. Aqui Lecointre imita o Robespierre aprendido na escola de que “A ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um político é acreditar que basta a um povo ir armado a uma nação estrangeira para a fazer adoptar as suas leis e a sua constituição”. O ilimitismo do limitado que somos gera monstros.

20 Jun 2024

O terrorismo do Hezbollah II

(continuação)

“Hezbollah was declared as a terrorist group by the US, Arab Leage, UK, Germany and other countries. It is an organization used by Iran to plan and be ready to execute terror attacks in the future”.

Itamar Kasztelanski

Antes e depois da retirada israelita em 2000 e até à guerra de 2006, o Hezbollah era essencialmente um partido armado com uma base de apoio popular crescente e uma presença institucional à escala local. Imediatamente após 2006, acelerou a sua transformação numa força política, social e institucional libanesa, alargando a sua rede de alianças transconfessionais e a sua presença nas instituições centrais. Desde 2012, promoveu-se como uma força regional, primeiro na Síria, depois no Iraque, no Iémen e na Faixa de Gaza, provando ser capaz de gerir, em nome do Irão, as outras articulações do “eixo da resistência”, ao mesmo tempo que a linha de contacto com Israel entre o Sul do Líbano e a Alta Galileia se manteve um dos locais mais estáveis da região durante dezassete anos. Em 2022, graças à mediação americana que durou cerca de dez anos, o Hezbollah chegou a um acordo histórico com o inimigo sobre a divisão dos recursos energéticos no Mediterrâneo oriental e acordou a demarcação da fronteira marítima.

No entanto, há um ano e meio, sabiamente, deixaram em suspenso qualquer possível abertura de negociações para a demarcação da fronteira terrestre. Deste excurso resulta que o Hezbollah chegou à data de 7 de Outubro de 2023 com uma bagagem de interesses estabelecidos muito mais pesada do que aquela que trazia consigo nas vésperas da guerra, no verão de 2006. O facto de o Partido de Deus ter hoje muito mais a perder do que no passado contribui decisivamente para moldar a sua posição táctica no conflito em curso. Com efeito, uma guerra em grande escala com o Estado judaico poderia fazer com que o movimento xiita pro-iraniano perdesse uma parte significativa do poder a nível local, nacional, regional e mesmo global. Por estas razões, o Hezbollah não está interessado numa guerra total com Israel. Em 8 de Janeiro, Mohammad Rad, líder do grupo parlamentar do Hezbollah, que perdeu um dos seus filhos combatentes num ataque israelita em 22 de Novembro de 2023, afirmou explicitamente “Não queremos que a guerra se alastre. Queremos que a agressão (israelita) termine. Depois, claro, se Israel quiser alargar o conflito atacando o nosso país, iremos até ao fim. Não tememos as suas ameaças”.

Um conceito reiterado várias vezes pelo líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, que em 3 e 14 de Janeiro chamou ao Sul do Líbano uma “frente de dissuasão”. Segundo Nasrallah, esta frente de guerra está aberta por duas razões; para pressionar Israel a cessar a sua agressão a Gaza e para se abster de lançar uma grande ofensiva no Sul do Líbano. “Se esta batalha for iniciada por Gaza”, disse Nasrallh a 3 de Janeiro, “também o será para defender o Sul do Líbano. Em resumo, disparamos contra o inimigo para o manter ocupado e não o deixar atacar. É por isso que, até agora, o Hezbollah não respondeu de forma agressiva à escalada armada desencadeada pelo Estado judaico entre Dezembro de 2023 e Janeiro de 2024”. À sombra de um porta-aviões e de cinco outros navios de guerra americanos que permaneceram no Mediterrâneo oriental, em frente à costa libanesa, entre Outubro de 2023 e o início de Janeiro de 2024, desde o início do inverno as FDI atacaram repetidamente nas profundezas libanesas, chegando mesmo a perpetrar, a 2 de Janeiro, um assassinato selectivo contra Saleh Muhammad Sulayman al-Arouri, um alto expoente do Hamas no coração do reduto do Hezbollah, nos subúrbios do sul de Beirute.

Este ataque insere-se numa campanha de ataques aéreos e de bombardeamentos israelo-anglo-americanos que, no espaço de duas semanas, entre o final de Dezembro de 2023 e o início de Janeiro de 2024, atingiu quatro capitais árabes, todas elas cruciais para a projecção do Irão no Médio Oriente. Durante o mesmo período, Israel matou no Sul do Líbano, em mais um assassinato selectivo, Wissam Tawil, um dos chefes militares do Hezbollah, um “mártir” por excelência que se junta aos mais de 160 combatentes mortos entre 8 de Outubro e o início de Janeiro. Perante estes ataques repetidos, o Hezbollah limitou-se a responder alvejando duas bases militares israelitas, uma no monte Merom (Garmaq) e outra perto da cidade de Safed, respetivamente a cerca de dez e vinte quilómetros da linha de demarcação com o Líbano. Alguns dias antes destes dois ataques, Nasrallah tinha avisado que a resposta ao assassinato selectivo de al-Arouri em Beirute teria lugar “quando e como o campo de batalha (Maydan) decidir. O campo de batalha não vai esperar”, disse o líder do Partido de Deus, deixando assim algum trabalho para os comentadores e cenaristas profissionais.

Oito meses após o início do conflito, a prioridade do Hezbollah continua a ser, portanto, a de preservar, no Líbano e na região, as posições que adquiriu ao longo dos anos. E isto em plena continuidade com os últimos vinte anos da sua história pois participou activamente no assassinato do antigo primeiro-ministro Rafiq Hariri, em Fevereiro de 2005, em Beirute, para evitar uma alteração do equilíbrio regional a favor do eixo pro-soviético. Em Maio de 2010, levou as suas armas e as dos seus aliados para as ruas de Beirute para se opor a um governo libanês muito próximo de Washington. Em 2012, interveio militarmente na Síria com o mesmo objectivo de impedir que o sistema de poder encarnado pela família Asad em Damasco fosse derrubado a favor de forças locais e regionais hostis à influência iraniana, desde o Planalto Iraniano até ao Mediterrâneo. Em Outubro de 2021, participou activamente, juntamente com os seus parceiros e rivais libaneses, em confrontos armados numa das praças emblemáticas de Beirute, para efectivamente dar o empurrão final à instável investigação sobre a devastadora explosão do porto da capital libanesa em Agosto de 2020.

O inquérito, há muito enterrado, tinha então revelado que altos responsáveis da cúpula do sistema de poder libanês de que o Hezbollah faz parte integrante, juntamente com outras forças políticas cristãs e muçulmanas tinham conhecimento, desde há anos, da presença de material altamente explosivo no interior de um dos hangares do porto de Beirute, situado a algumas centenas de metros do coração residencial, institucional e comercial da cidade. Todas estas iniciativas, sempre levadas a cabo na ponta das baionetas desde o início dos anos 2000, foram ditadas pela necessidade do Hezbollah de consolidar e alargar o seu poder dentro e fora do Líbano. É certo que nem o Partido de Deus, nem o Irão e os outros membros do “eixo da resistência” pretendem libertar os territórios palestinianos e desfilar triunfalmente sobre os antigos mármores da esplanada que vai da Cúpula da Rocha à Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém.

E, na linha da sua visão reacionária, o Hezbollah nem sequer parece verdadeiramente interessado em chegar a um acordo político e diplomático, a curto ou médio prazo, para pôr fim a este novo conflito com Israel. Entre Dezembro de 2023 e Janeiro de 2024, o enviado francês Bernard Émié, primeiro, e o enviado americano Amos Hochstein, enviaram ao governo libanês e ao Hezbollah uma proposta de acordo de cessação das hostilidades em troca, entre outras coisas, do início de negociações para a delimitação do conflito terrestre com Israel, que tem pelo menos treze pontos fronteiriços contestados. A 5 de Janeiro, Hasan Nasrallh falou desta proposta, mencionando a possibilidade de “libertar”, através de negociações e apenas “após o fim da guerra em Gaza”, “o resto do território” do Líbano. O líder libanês tinha mencionado três zonas que estão no centro das disputas territoriais entre o Líbano, a Síria e Israel desde há décadas que são Gagar, as colinas de Kfar Sab e as quintas de Sabá.

Consciente de que o conflito entre Israel e o Hezbollah está intimamente ligado ao que se passa na Faixa de Gaza e que, por conseguinte, é impossível que o Partido de Deus e o Estado judaico cessem as hostilidades sem um acordo global sobre Gaza, Amos Hochstein propôs, a 11 de Janeiro, um plano de desanuviamento mais específico, articulado em três momentos-chave diferentes sendo (1) O Hezbollah e Israel limitam as trocas de fogo dentro de uma faixa territorial de oito quilómetros de profundidade, tanto no Sul do Líbano como no Norte de Israel; (2) As partes cessam as hostilidades e regressam às regras de combate em vigor antes de 8 de Outubro; (3) Iniciam-se negociações entre as partes sobre a demarcação da fronteira, incluindo os treze pontos em disputa e as quintas de Sabá. Três dias depois, a 14 de Janeiro, o Hezbollah respondeu a Hochstein através de um novo discurso televisivo do líder Hasan Nasrallh de que “Continuaremos a lutar enquanto a guerra em Gaza continuar. O resto veremos mais tarde”.

Afinal, para o Hezbollah, chegar a um acordo político e diplomático com Israel sobre a demarcação da fronteira significaria sacrificar um dos pilares da sua identidade, o de ser um partido armado de resistência e de libertação da ocupação inimiga. O Partido de Deus teria assim de admitir, nomeadamente no Líbano, que poderia prescindir do seu arsenal, perdendo desse modo um instrumento fundamental de dissuasão interna e regional. Se algum dia, num futuro longínquo, o Hezbollah vier a negociar uma tal opção, só o fará em troca de garantias libanesas e internacionais adequadas à sua sobrevivência e à manutenção da sua posição de domínio agora adquirida. Neste sentido, o movimento pro-iraniano tem todo o interesse em empatar e prolongar a situação actual na frente sul (“Primeiro é preciso acabar com a agressão em Gaza, depois veremos…”). Esperando assim conseguir equilibrar internamente as repercussões socioeconómicas e políticas do conflito prolongado com Israel, sobretudo tendo em conta a deslocação no Sul do Líbano de quase 100 mil civis, na sua maioria pertencentes à sua própria comunidade.

Manter-se dominante, equilibrando vulnerabilidade e resiliência, é a própria essência do exercício do poder. Para isso, o Hezbollah é chamado a negociar incessantemente, pelas armas e pela política, não só com Israel e os seus aliados, mas também com o seu parceiro iraniano e, sobretudo, com os seus aliados e rivais políticos libaneses. O Hezbollah terá de esperar que o contexto regional não se inflame numa espiral de violência descontrolada. Para aqueles que temem que um acidente ou um erro de cálculo de uma das partes em jogo possa desencadear uma sequência devastadora, a história do último quarto de século no Médio Oriente vem em socorro, pois apesar das tensões e rivalidades repetidas, os actores fazem tudo para evitar uma guerra total, que acabaria por minar a resiliência dos seus próprios sistemas de poder. Não nos devemos deixar enganar por uma retórica que, tradicionalmente, é muito mais agressiva do que a prática no terreno.

Mas se o Irão procurasse um alívio extremo junto do seu aliado Hezbollah, este último seria obrigado a responder. Na medida, porém, em que tal acção não conduza ao seu próprio suicídio político. Longe de ser um fantoche da República Islâmica, a identidade e os interesses libaneses ancoram-no firmemente em certezas e interesses locais, não necessariamente ligados aos do Irão. Este último, em todo o caso, fará tudo para não arriscar sacrificar o seu melhor aliado mediterrânico. Mais realisticamente, o Hebollah continuará a dar apoio moral, logístico, político e militar a todas as articulações do “eixo da resistência”, do Hamas às milícias iraquianas e às forças iemenitas apoiadas por Teerão. A fim de manter o equilíbrio da dissuasão e desta com o eixo rival constituído pelos Estados Unidos e por Israel.

13 Jun 2024

O terrorismo do Hezbollah I

“Hezbollah was declared as a terrorist group by the US, Arab Leage, UK, Germany and other countries. It is an organization used by Iran to plan and be ready to execute terror attacks in the future”.

Itamar Kasztelanski

A prioridade do Partido de Deus é preservar as posições que adquiriu ao longo do tempo, e não um conflito em grande escala. Seria obrigado a vir em socorro extremo do Irão, mas na condição de este não se suicidar. Porque o conflito fronteiriço com Jerusalém continua a ser existencial. Imaginemos a prática corrente de que o telefone toca e um número libanês do WhatsApp aparece no ecrã. Um indivíduo de nome Ali como tantos outros milhões com o mesmo nome atende. Do outro lado, a voz de um homem com um claro sotaque sul-libanês cumprimenta-o, apresentando-se como um amigo da família que vive na Austrália. Ali ouve e responde aos cumprimentos habituais sem perceber bem com quem está a falar. O homem começa a fazer-lhe algumas perguntas sobre a sua família e as necessidades dos seus entes queridos na difícil situação das regiões libanesas mais próximas da frente de guerra com Israel.

Ali responde de uma forma geral, mas fica desconfiado quando o homem lhe pergunta se o filho mais velho está no sul ou em Beirute. Ali não é um combatente activo do Hezbollah, mas trabalhou durante anos como quadro civil do partido. Ali teme que o homem seja um informador de Israel e não um parente distante preocupado com os seus entes queridos. Entre o final de Dezembro de 2023 e o início de Janeiro de 2024, houve milhares de chamadas telefónicas de números de WhatsApp libaneses, feitas por homens com sotaque libanês claro e recebidas por cidadãos libaneses, residentes nos locais mais próximos da linha de demarcação com Israel.

Tanto assim que, a 10 de Janeiro, o Hezbollah lançou o seguinte aviso à população do Sul do Líbano nos seus canais Telegram de que “O inimigo israelita continua a procurar alternativas para recolher informações sobre a resistência (as unidades militares do Hezbollah) e o paradeiro dos seus combatentes nas localidades do Sul do Líbano. E isto especialmente depois de ter perdido a maior parte da eficácia dos seus dispositivos de intercepção e espionagem que estavam instalados ao longo da fronteira, mas que foram destruídos pela resistência. Neste contexto, o inimigo israelita tenta contactar algumas das nossas estimadas famílias a partir de números de telefone que parecem ser libaneses, quer por telefone fixo quer por telemóvel, com o objectivo de inquirir sobre certos indivíduos, o seu paradeiro e o estado de certas localidades. Nestas comunicações, o inimigo faz-se passar por vários personagens, por vezes polícias, agentes dos serviços de segurança libaneses ou membros da defesa civil. O interlocutor, que fala com um forte sotaque libanês, tenta obter informações sobre os membros da família e o seu paradeiro, ou faz perguntas para obter dados sobre os arredores. O inimigo utiliza estas informações para verificar a presença dos irmãos combatentes nalgumas das casas que tenciona bombardear”.

O aviso termina convidando “os nossos caros concidadãos em geral e, em particular, os habitantes das localidades próximas da frente a não responderem a chamadas telefónicas de estranhos que façam perguntas sobre o meio circundante e a circulação de pessoas”. A anedota do telefonema a Ali e o texto do aviso contribuem de forma exemplar para descrever o laço orgânico intrínseco entre o Hezbollah e a grande maioria das comunidades do Sul do Líbano, palco do conflito em curso com Israel desde há oito meses e que será um potencial campo de batalha nos próximos meses. Aqui e noutras zonas do país, como o Vale do Beca oriental e os subúrbios do sul de Beirute, o movimento armado apoiado pelo Irão não está integrado na sociedade local, é ele próprio a sociedade local. A adesão à causa da resistência, na retórica e na prática, é quase absoluta e inquestionável em grandes segmentos das comunidades.

Explorando o quotidiano da vida colectiva em certas zonas de Beirute, no sul do país e em Beca, a indissolubilidade entre a estrutura do Hezbollah e o tecido comunitário é evidente. Este tecido não é um bloco monolítico, é um conjunto de componentes individuais, familiares e de grupos alargados; de laços geográficos e político-ideológicos; de convergências de interesses tácticos e estratégicos; de ligações a médio e longo prazo; de relações horizontais e verticais, internas e externas ao que pode ser justamente considerado a “comunidade” do Hezbollah. Perante este facto, é evidente a impossibilidade de derrotar o Hezbollah. A menos que se faça terra queimada, deportando mais de um milhão de libaneses das regiões onde o Partido de Deus representa a sociedade local. Apesar disso, os israelitas e os seus aliados americanos, apoiados pela França e pelo Reino Unido, insistem em encontrar uma solução dita diplomática para facilitar o regresso às suas casas e campos agrícolas dos cerca de 60 mil civis israelitas deslocados desde 8 de Outubro, dia do primeiro lançamento de rockets por parte do Hezbollah.

Para isso, Israel exige que o governo libanês que inclui ministros do Hezbollash e é apoiado por um parlamento composto também por deputados do Partido de Deus e dos seus aliados aplique à letra, após dezassete anos, a resolução 1701 da ONU de 2006. Esta estipula, entre outras coisas, a ausência de actividades militares que não sejam as do exército regular libanês perto da linha de demarcação com o Estado judaico. Israel e os seus aliados pretendem, na prática, o desmantelamento da estrutura militar do Hezbollah no Sul do Líbano, pelo menos até ao rio Litani, cerca de quarenta quilómetros a norte da Linha Azul. O sonho de Israel é o restabelecimento da zona tampão criada entre 1978 e 2000, que impediu durante anos que a Alta Galileia fosse exposta aos ataques dos grupos de resistência armada palestiniana.

As condições dessa época são muito diferentes das actuais pois Israel invadiu militarmente o Sul do Líbano em várias ocasiões, a partir de 1978, até tomar a capital Beirute em 1982. Desde então, e durante muitos anos, tentou delegar o controlo do território libanês a uma milícia de colaboracionistas libaneses anti-Pasdaran. A partir de meados dos anos de 1980, o aparecimento do Hezbollah como ramo local do Pasdaran iraniano e a sua emergência, nos anos de 1990, como principal força de resistência armada anti-israelita alteraram gradualmente a equação, obrigando o Estado judaico a pôr termo à ocupação e a retirar-se em Maio de 2000. Actualmente, Israel não teria capacidade militar para conduzir uma invasão em grande escala e bem-sucedida no Sul do Líbano contra a comunidade Hezbollah, a menos que sofresse enormes custos políticos internos e internacionais causados pelas consequências desastrosas de uma tal campanha. Mas se o Estado judaico, com o apoio militar dos Estados Unidos, tivesse sucesso nesta tentativa, seria obrigado a manter o controlo do território sem poder contar com a cooperação das forças locais.

Mesmo nesta eventual segunda fase, os custos políticos seriam muito elevados para Israel e para toda a coligação pro-israelita. Sem contar que o Irão e todos os seus aliados regionais do Iraque ao Iémen, da Síria ao Líbano interviriam de forma ainda mais agressiva do que já o fazem, oferecendo apoio directo e indirecto ao Hezbollah. Isto aumentaria a pressão política, diplomática e militar sobre Israel, os Estados Unidos e os seus aliados nos vários quadrantes envolvidos na guerra em curso no Médio Oriente, do Mediterrâneo ao Golfo, da Mesopotâmia ao Mar Vermelho. Actualmente, as hipóteses de Israel desencadear uma guerra total contra o Hezbollah, em território libanês, parecem reduzidas. É uma holding financeira mundial, capaz de controlar os tráficos lícitos e ilícitos (incluindo o das anfetaminas Captagon) em vários cantos do planeta, da América do Sul à Austrália, da Europa à África subsaariana, passando pelo Médio Oriente.

(Continua)

6 Jun 2024

O terrorismo Huti (continuação)

“We have repeatedly stated without hesitation that supporting Palestine and resistance groups is on the agenda of the Islamic Republic’s policies”

Iranian President Ebrahim Raisi, in 14.01.2024

A ligação Irão-Arábia Saudita passa pelo Iémen e a imprevisibilidade das opções estratégico-militares dos Hutis e o perigo latente de uma escalada desencadear consequências indesejáveis, incluindo confrontos directos entre o Irão e os Estados Unidos levantam duas questões importantes. A primeira, poderá o processo de aproximação entre Teerão e Riade sofrer um revés? A segunda, as conversações de paz em curso entre a Casa Saud e os Hutis para a saída dos sauditas do Iémen e, espera-se, o início de um processo de paz sob os auspícios da ONU, correm o risco de descarrilar? O dossier iemenita representa o primeiro teste do processo de normalização irano-saudita iniciado com o acordo de 10 de Março de 2023, patrocinado pela China. Apesar dos rumores persistentes de desacordo sobre as suas abordagens à guerra de Gaza, os dois actores parecem decididos a prosseguir na via da diplomacia. Uma proposta que o conflito na Faixa de Gaza teria efectivamente contribuído para reforçar. Desde o início da guerra entre Hamas e Israel, a Arábia Saudita e o Irão têm estado em contacto regular para evitar que o conflito assuma uma dimensão regional.

Não é por acaso que, antes do ataque americano e britânico aos Hutis, em 12 de Janeiro, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Amir-Abdollahian, e o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Príncipe Faizal bin Farhan bin Abdullah Al-Saud, tiveram uma conversa telefónica sobre a evolução da situação em Gaza e na região. Em Novembro de 2023, o primeiro encontro bilateral entre o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman Al Saud e o presidente iraniano Ebrahim Raisi teve lugar na cimeira islâmica-árabe em Riade. Cerca de um mês mais tarde, realizou-se em Pequim a primeira sessão da comissão conjunta China-Arábia Saudita-Irão para acompanhar os progressos do desanuviamento diplomátic. É pouco provável que a República Islâmica decida, por conseguinte, prestar apoio adicional aos Hutis, a menos que os ataques liderados pelos Estados Unidos ponham em risco as capacidades militares do movimento. Do mesmo modo, a interferência iraniana nas decisões de Ansar Allah só ocorreria se a aproximação de Teerão à Arábia Saudita fosse posta em causa. O risco de uma militarização crescente do Mar Vermelho é uma fonte de grande apreensão para Riade. Poucas horas depois da segunda vaga de ataques dos Estados Unidos, os Hutis efectuaram uma manobra militar ao longo da fronteira com o reino, na província de Sadá com um aviso aos sauditas sobre as potenciais consequências de se aliarem aos Americanos.

Tal como as outras monarquias do Golfo (com a única exceção do Bahrein), a Arábia Saudita aderiu formalmente à recém-criada (Dezembro de 2023) missão naval “Prosperity Guardian”, liderada pelos Estados Unidos. Isto reflecte a política externa pragmática do reino, que visa a prossecução de objectivos nacionais e a salvaguarda de interesses estratégicos específicos. A Arábia Saudita está a atravessar uma crise de “confiança” com o seu tradicional aliado americano e não quer correr o risco de comprometer a sua segurança interna. A sua prioridade é prosseguir a normalização com o Iémen e impedir o recomeço dos ataques transfronteiriços. A estabilização da fronteira saudita e das regiões meridionais do país (Jazan, Asir e Najran), a obtenção de um cessar-fogo permanente e o relançamento de um processo de paz conduzido pela ONU estão no centro das negociações em curso entre a Arábia Saudita e os Hutis. Embora o cessar-fogo mediado pela ONU em Abril de 2022 tenha terminado formalmente seis meses depois devido a desacordos entre Ansar Allah e o governo oficial iemenita apoiado por Riade, as conversações prosseguiram informalmente.

Em Abril de 2023, o embaixador saudita no Iémen, Mohammed bin Saeed-Al-Jaber, deslocou-se a Saná com uma delegação de Omã para se encontrar com Mahdi al-Mashart, presidente do Conselho Político Supremo de Ansar Allah (o mais alto órgão dirigente dos Hutis), enquanto em meados de Setembro de 2023 teve lugar na capital saudita uma nova ronda de negociações para elaborar um roteiro para o processo de paz no Iémen. A última ronda de conversações, organizada na Arábia Saudita e em Omã, teve lugar em Dezembro último, quando o Primeiro-Ministro iemenita Maeen Abdulmalik Saeed e o negociador-chefe dos Hutis Muhammad Abd al-Salam concordaram “em iniciar um processo de paz sob os auspícios das Nações Unidas”. Apesar da fragilidade das tréguas informais entre os Hutis e os sauditas, é pouco provável que as negociações descarrilem, a não ser que Riade queira ou precise de dar um apoio suplementar aos Estados Unidos, o que não parece provável até agora. A Arábia Saudita pretende ser o coração económico e financeiro do Golfo, aumentando a sua influência internacional.

A concretização dos ambiciosos objectivos da “Visão 2030” (a rápida diversificação e modernização da economia e da sociedade) confirma-se como o principal motor da política externa da Casa Saud. Olhando para a geografia dos planos de desenvolvimento do país, como a cidade futurista de Neom, na costa do Mar Vermelho, ou o projecto de desenvolvimento turístico do Mar Vermelho, é fácil perceber que evitar potenciais represálias por parte dos Hustis e resolver o conflito do Mar Vermelho estão entre as prioridades do Reino. A paz em Gaza não garante a segurança da região Cerca de 40 por cento do comércio marítimo mundial transita pelo Mar Vermelho. Todos os dias, mais de 6,2 milhões de barris de petróleo bruto e de barcos petrolíferos atravessam o estreito de Bab-el-Mandeb, dos quais 3,9 milhões têm como destino a Europa. Cerca de 10-14 por cento do comércio mundial (incluindo o petróleo) e 30 por cento do volume global de contentores passam pelo Canal do Suez. Embora o impacto dos ataques ao abastecimento de petróleo e gás, com repercussões na economia mundial, pareça ainda limitado nada é comparado com os custos incorridos pelos mercados mundiais após o encalhe do porta-contentores “Ever Given” no Canal do Suez em 2021 e um longo conflito nessas águas teria um impacto significativo.

Num relatório datado de 9 de Janeiro de 2024, o Banco Mundial alertou para o facto de os recentes ataques e o consequente abrandamento das redes de abastecimento “aumentarem a probabilidade de estrangulamentos na inflação. O fornecimento de energia também pode ser afectado, levando a aumentos de preços” As principais companhias de navegação como a Maersk, Hapag-Lloyd, Msc, Cma Cgm e Yang Ming, bem como a British Petroleum suspenderam as operações no Mar Vermelho, optando pela rota do Cabo da Boa Esperança. Os ataques conjuntos de Washington e Londres, concebidos como uma reacção simbólica e, portanto, limitada, não tiveram qualquer efeito dissuasor para o Ansar Allah. Pelo contrário, parece ter contribuído para o agravamento do conflito. Nas palavras de Yahya Saree, o porta-voz militar dos Hutis, “nenhum novo ataque ficará sem resposta”. Em 15 de Janeiro, o Comando Central dos Estados Unidos comunicou o lançamento de um míssil balístico anti-navio no Golfo de Aden contra um navio porta-contentores de propriedade americana.

As acções militares dos Hutis no Mar Vermelho foram condenadas pelas várias personalidades do Conselho Presidencial do Iémen. Desde Dezembro último, a Guarda Costeira foi colocada em alerta no Mar Vermelho. O Conselho de Resistência Sul secessionista de Aidarus al-Zoubaidi (influente na zona de Aden) e as forças de resistência de Tariq Saleh (baseadas em al-Mokha), ambos apoiados pelos Emirados Árabes Unidos, declararam querer contribuir para a segurança e a liberdade de navegação no Mar Vermelho. No entanto, as tensões entre os oito membros do governo iemenita (reflectidas nos objectivos estratégicos divergentes das facções que compõem a frente anti-Huti e na rivalidade entre Riade e Abu Dhabi) dificultam o desenvolvimento de uma estratégia comum e de uma visão partilhada do futuro do Iémen. A profundidade estratégica do sul do Mar Vermelho e a segurança das suas rotas energéticas e do comércio mundial estão duplamente ligadas à guerra civil no Iémen.

O Mar Vermelho não voltará, portanto, à tranquilidade com o fim da guerra em Gaza. Nem o “Prosperity Guardian”, nem a decisão europeia de criar a sua própria missão marítima, nem a escolha de Washington de voltar a incluir os Hutis na lista dos movimentos terroristas (se os ataques não cessarem) ajudarão a resolver o problema. Os Acordos de Estocolmo de 2018, mediados pela ONU entre os Hutis e o governo oficial iemenita para um cessar-fogo imediato na província de Al Hudaydah e na cidade costeira com o mesmo nome, permitiram aos Hutis consolidar a sua autoridade no porto estratégico e entrincheirar-se ao longo da costa ocidental. O controlo das ilhas estratégicas de Kamaran, Ras Douglas e Taqfash, ao largo da costa de Al Hudaydah, proporciona aos rebeldes uma importante plataforma de projeção marítima. Garantir a segurança do Mar Vermelho exige, portanto, que se enfrentem de frente as dinâmicas que têm minado a sua estabilidade, os desequilíbrios de poder no Iémen e a incapacidade internacional de resolver o capítulo ainda em aberto da guerra civil do Iémen.

30 Mai 2024

O terrorismo Huti

“We have repeatedly stated without hesitation that supporting Palestine and resistance groups is on the agenda of the Islamic Republic’s policies”

Iranian President Ebrahim Raisi, in 14.01.2024

Apesar do crescente apoio de Teerão, os “Partidários de Deus” estão a prosseguir a sua agenda que é independente do Irão traduzida na rivalidade com Saná, normalização com uma Arábia Saudita cansada de guerra e uma paz em Gaza que não estabilizará o Mar Vermelho. Desde 19 de Novembro de 2023, dia do sequestro do cargueiro “Galaxy Leader”, o Mar Vermelho voltou a estar no centro da cena internacional. O ataque ao cargueiro ligado ao magnata israelita Abraham “Rami” Ungar pelo movimento iemenita político-religioso Ansar Allah, (Partidários de Deus), mais conhecido como ” Hutis”, marcou o início de uma nova e crítica fase de escalada neste ponto estratégico entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico. Nos últimos meses, os Hutis realizaram dezenas de ataques contra navios mercantes em trânsito no sul do Mar Vermelho, perto de Bab-el-Mandeb e do Golfo de Aden, lançando mais de uma centena de mísseis e ataques com drones a partir dos territórios iemenitas sob o seu controlo.

A estratégia de desestabilização das rotas marítimas internacionais e os repetidos ataques contra Israel dirigidos sobretudo contra o porto meridional de Eilat estão ligados à tragédia humanitária que se vive em Gaza e à ofensiva israelita. Embora os navios mercantes não pertencentes ao Estado judaico também tenham sido alvo dos Hutis, o grupo iemenita tem, de facto, sublinhado repetidamente que o bloqueio marítimo e as acções militares no sul do Mar Vermelho dizem respeito a navios comerciais ligados a Israel ou destinados a portos israelitas, condicionando a cessação das hostilidades ao “levantamento do cerco de Gaza”. Num comunicado oficial de 6 de Janeiro de 2024, o movimento foi mais longe, declarando que as suas “operações” estão em conformidade com o direito internacional, especificamente o artigo 1.º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948).

A imprensa e a articulada máquina mediática pró-Huti elevam as acções do movimento a uma “batalha de apoio” à libertação dos territórios palestinianos ocupados. O líder Abdul-Malik al-Houthi, num discurso proferido no final de Dezembro de 2023, apelou aos “países vizinhos” para que abrissem as suas fronteiras a fim de permitir aos seus “Mujahidin” (combatentes da jihad) “entrar na Palestina”. Para além da retórica, são os interesses regionais especiais e os cálculos internos que orientam a estratégia político-militar de Ansar Allah relativamente à guerra de Gaza, bem como a escalada no Mar Vermelho. A nível regional, os Hutis viram no conflito da Faixa de Gaza uma oportunidade para reforçar os laços com o “eixo de resistência” liderado pelo Irão, que inclui Hezbollah, o governo sírio de Bashar al-Asad, as milícias xiitas iraquianas e o grupo palestiniano Hamas.

Mas também uma oportunidade importante para reforçar a sua posição negocial nas conversações de paz em curso com a Arábia Saudita, a fim de obter o reconhecimento internacional e legitimar o seu poder. Ao mesmo tempo, pretendem aproveitar a onda de indignação e tornar-se o porta-voz do sentimento “pró-palestiniano” no mundo árabe-islâmico, a fim de aumentar o consenso interno. Os Hutis, agindo como Estado, organizaram desde 7 de Outubro de 2023 mais de um milhar de manifestações a favor da Palestina nos territórios que controlam e recrutaram pelo menos 25 mil novos combatentes nas Brigadas Al-Qassam, provavelmente para serem utilizados contra o governo iemenita reconhecido internacionalmente. Algumas semanas antes do início da guerra entre Israel e o Hamas, os Hutis organizaram uma grande parada militar na capital Saná, exibindo o seu arsenal de drones e mísseis de longo alcance para demonstrar as suas capacidades militares adquiridas.

Assim, não é de excluir que o movimento aproveite os recentes acontecimentos no Mar Vermelho, bem como a tragédia em Gaza, para lançar ataques contra o governo do Iémen (o Conselho Presidencial) em zonas estrategicamente importantes como al-Dali, al-Hudayda, Marib, Sabwa e Taizz. Os Hutis, confrontados com fortes protestos populares devidos principalmente à desastrosa situação humanitária e económica no Iémen, querem tirar partido da guerra em Gaza e da crescente mobilização no Mar Vermelho para aumentar o consenso interno. O ataque conjunto dos Estados Unidos e do Reino Unido em 12 de Janeiro de 2024 contra alvos militares jogou a favor dessa estratégia e centenas de milhares de iemenitas saíram às ruas, inclusive na capital Saná, para condenar os ataques, agitando bandeiras do Iémen e da Palestina e gritando “Deus é grande, morte à América e a Israel, amaldiçoando os judeus e vitória ao Islão”, era o slogan oficial do movimento.

No entanto, mais do que um acto de fé para com os Hutis, estas manifestações de “apoio” popular são muitas vezes uma expressão de hostilidade partilhada em relação a Israel e a qualquer intervenção militar estrangeira em território iemenita. O Irão pode estar mais do que satisfeito com a actual escalada no Mar Vermelho. As ações militares perpetradas pelo Hutis enquadram-se perfeitamente na estratégia do Irão de exercer pressão sobre os Estados Unidos e Israel no quadro da guerra em Gaza, evitando o risco de um confronto directo. Em visita a Teerão em Dezembro de 2023, o porta-voz oficial de Ansar Allah, Muhammad Abdul Salam conversou com altos funcionários iranianos, incluindo o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional, Ali Akbar Ahmadian, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Hussein Amir-Abdollahian, recebendo “apreço e agradecimentos” pelo seu apoio “forte e autoritário” ao povo palestiniano. Para o Irão, que desde a eclosão do conflito reafirmou o seu compromisso de fornecer apenas apoio político e não militar, os Hutis representam um trunfo importante no apoio ao “eixo da resistência”.

Isto reafirma, em parte, o desejo do Irão de evitar uma guerra regional em grande escala. Esta escolha foi também partilhada por Sayyid Hassan Nasrallah, político libanês, Secretário-Geral do partido e organização armada xiita Hezbollah, que agradeceu publicamente aos Hutis e à resistência islâmica no Iraque pelo seu empenho. Ansar Allah está a revelar-se um importante trunfo estratégico para o Irão, quase ao mesmo nível do Hezbollah. A localização do Iémen adquire um valor militar importante, pois o país é uma plataforma ideal para lançar ataques contra navios em trânsito e desestabilizar o comércio internacional ao longo de Bab-el-Mandeb e do Mar Vermelho. A distância que separa Saná de Israel impede que os Hutis o ameacem, mas permite operações militares destinadas a aumentar a pressão sobre o Estado judaico. No entanto, interpretar as opções estratégico-militares dos Hutis como uma simples implementação da vontade do Irão cujo envolvimento no Mar Vermelho continua a ser muito matizado é enganador, pois não permite compreender os seus interesses e necessidades particulares a nível local.

A imagem dos Hutis como agentes do Irão é um produto do conflicto no Iémen e da sua leitura como terreno de confronto irano-saudita. Esta imagem foi principalmente alimentada por Riade para justificar a sua intervenção militar em 2015. Deve, portanto, ser inscrita na mudança do equilíbrio de poder no mundo árabe, que encontrou um importante ponto de ruptura nas “Primaveras Árabes” (2010-2011). A consolidação da profundidade estratégica do Irão na zona do Médio Oriente que culminou em 2015 com a assinatura do acordo “Jcpoa (Joint Comprehensive Plan of Action)” com os Estados Unidos e a percepção do afastamento americano da região iniciado com Obama, continuado com Trump e Biden consolidaram a imagem do Iémen como teatro da guerra por procuração entre o Irão e a Arábia Saudita. A política externa dos Hutis, que se dizem os verdadeiros representantes do Estado iemenita, é assim posta de lado, se não mesmo obliterada. A cooperação entre Ansar Allah e o Irão baseia-se numa insatisfação comum com o status quo regional, numa ideologia islamista partilhada e numa perspetiva anti-americana, anti-sionista e terceiro-mundista. A fé não tem nada a ver com tudo isto, uma vez que o grupo iemenita não pertence à denominação xiita duodecimano, mas é uma expressão do movimento revivalista zaidita.

O projeto reformista iniciado por Hussein Badr al-Din al-Houthi, o fundador do movimento, deve provavelmente ser interpretado como uma reacção às terríveis condições políticas e económicas, aos abusos e à corrupção sistémica que caracterizaram o Iémen de Ali Abdullah Saleh entre os anos de 1990 e o início dos anos 2000. No seu seio, assiste-se ao confluir de diferentes ideologias, incluindo o khomeinismo, o islamismo da Irmandade Muçulmana e o jihadismo salafita. A onda de protestos que abalou o mundo árabe em 2010-2011 representou a primeira grande oportunidade para o Irão consolidar a sua aliança com os Hutis e transformar o Iémen numa plataforma de projecção regional. Embora, de acordo com um relatório da ONU, o Ansar Allah tenha começado a receber pequenas quantidades de armas de Teerão pelo menos desde 2009 quando estava empenhado em combater o governo central na “Batalha de Sadá ”, é a partir de 2011 que Teerão e o Hezbollah têm vindo a aumentar o seu apoio ao movimento com “financiamento, envio de armas e treino militar”. Este apoio é reforçado com a conquista da capital Saná pelos Hutis (2014) e após a operação militar liderada pela Arábia Saudita em apoio ao governo central deAbdrabbuh Mansur Hadi (2015).

Para além de fornecer ao grupo quantidades crescentes de armas ligeiras, o Irão começou a fornecer armas mais avançadas e letais (mísseis anti-navio e mísseis balísticos) e concordou com Hezbollah no reforço das suas capacidades de produção e montagem de armas (como drones) em solo iemenita, utilizando componentes iranianos. Neste casamento de conveniência, os Hutis conheceram uma integração progressiva no chamado “eixo da resistência” graças a instituições como o Conselho Islâmico da Jihad, sem, no entanto, perderem a sua autonomia decisória e operacional. Além disso, embora o apoio militar iraniano tenha certamente desempenhado um papel importante na transformação dos Hutis de uma guerrilha local numa força armada mais sofisticada, uma parte significativa do arsenal do movimento deriva da absorção (negociada ou coerciva) de unidades do exército iemenita, de aquisições no mercado negro e de alianças com milícias tribais.

(Continua)

23 Mai 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (III)

“The purely military or undiplomatic recourse to forcible action is concerned with enemy strength, not enemy interests; the coercive use of the power to hurt, though, is the very exploitation of enemy wants and fears”.

The Diplomacy of Violence
Thomas Schelling

 

 

Se os Acordos de Abraão tinham por objectivo bloquear a anexação da Cisjordânia em 2020, segundo Yousef Al Otaiba, embaixador dos Emirados em Washington, a sua extensão à Arábia Saudita poderia ter agora o duplo objectivo de mudar o curso da guerra e de relançar as negociações políticas que estão paradas há dez anos. De facto, os riscos para Israel tornaram-se mais elevados com a guerra em curso.

A situação tornou-se também mais complexa para a administração americana, que investiu os seus melhores recursos diplomáticos em torno da normalização entre sauditas e israelitas. O fim da “guerra total” em Gaza e um acordo israelo-saudita poderiam também ter um efeito positivo na campanha eleitoral do actual presidente democrata, cujas sondagens continuam a cair na perspectiva das eleições de Novembro próximo. Os Estados Unidos não escondem o seu afastamento progressivo do Médio Oriente desde a retirada do Iraque, em Dezembro de 2011, reiterada pela acção diplomática do Presidente Barack Obama no acordo nuclear internacional com o Irão e, mais recentemente, pelos Acordos de Abraão, sob a presidência de Donald Trump.

Mas o conflito em Gaza expandiu-se perigosamente na região com o ataque do Irão e Hezboolah, arrastando a América para as malhas de outros conflitos há muito não resolvidos. Em particular, os bombardeamentos britânico-americano contra várias posições militares dos Hutis no noroeste do Iémen destinam-se a travar os seus ataques contra a navegação comercial no Mar Vermelho e a travar a acção desestabilizadora do Irão, o seu improvável titereiro. Os americanos dissociaram oficialmente esta acção militar do conflito de Gaza, numa dupla tentativa de desacreditar as mensagens pro-palestinianas dos Hutis e de obter um consenso árabe que tarda em chegar.

Contrariamente à possível normalização, integração ou pacificação regional que Antony Blinken previa para o seu aliado israelita, a acção anglo-americana no Iémen arrisca-se a acrescentar mais um apêndice à guerra de Gaza, com resultados muito incertos, bem como a ressuscitar o espectro da guerra civil do Iémen e as suas ramificações regionais.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Yi Wang, não demorou a contradizer a posição americana. Numa visita ao Cairo, qualificou a tensão no Mar Vermelho como “uma encarnação das repercussões externas do conflito de Gaza” e denunciou a ilegalidade dos ataques anglo-americanos ao Iémen por não terem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Também se distanciou dos Estados Unidos e apelou, juntamente com o seu homólogo egípcio, a um cessar-fogo imediato em Gaza e a uma paz duradoura que passe pelo reconhecimento internacional do Estado da Palestina. Mas, para além das denúncias, o ministro chinês não apresentou uma solução diplomática para a insegurança no Mar Vermelho, por onde passa cerca de 12 por cento do tráfego marítimo mundial. Limitou-se igualmente a reiterar a posição chinesa a favor de uma conferência internacional sobre o conflito israelo-palestiniano, que, embora partilhada por Estados da região e da Europa, se opõe, sem sucesso, à abordagem bilateral seguida por Israel, apoiada pelos Estados Unidos, “no tratado de paz” com o Egipto negociado em 1978-1979.

No Médio Oriente em ebulição, a competição sino-americana não dividirá ainda mais os países da região, que tencionam manter-se afastados dela para maximizar os seus benefícios. Não irá incitar a UE, dividida e ausente, a assumir um papel político incisivo nos assuntos da região. Em vez disso, vai pressionar os Estados Unidos a continuar a lidar com ela.

Entretanto, o Irão lançou dezenas/centenas de drones kamikaze, mísseis de cruzeiro e lançadores balísticos a 13 de Abril contra Israel, em represália pelo bombardeamento da sede consular do regime dos ayatollah em Damasco a 1 de Abril. Trata-se do primeiro ataque directo da República Islâmica contra o Estado judaico. Teerão informou, no entanto, que tinha informado os seus vizinhos em tempo útil antes de lançar o ataque. Israel e os seus aliados tiveram, assim, tempo para preparar contra-medidas. Em todo o caso, os alvos designados não eram as zonas mais densamente povoadas. Os mísseis e os drones visavam sobretudo o Golã, o Sul e a Cisjordânia. Mas também foram efectuados ataques contra Jerusalém. De acordo com as Forças de Defesa de Israel, foram lançados cerca de 170 drones, 30 mísseis de cruzeiro e 120 mísseis balísticos.

Alguns foram dirigidos contra a base de Nevatim, onde estão estacionados os valiosos caças F-35. Com a ajuda de americanos, britânicos, franceses, jordanos e sauditas, 99 por cento dos projécteis foram interceptados. O Estado judaico avaliou a necessidade de um contra-ataque.

O gabinete de guerra presidido por Binyamin Netanyahu consideraou o tipo e o momento com as pressões americanas e dos aliados para não haver retaliação. Os dois membros do governo de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, apelaram a medidas militares pesadas. Por seu lado, o Presidente dos Estados Unidos, apelou ao “Rei Bibi” para que não retaliasse contra o ataque e considerasse os sucessos antiaéreos como uma “vitória”. Aparentemente coincidindo com o aniversário do Guia Supremo da Revolução Islâmica, Ali Khamenei, Israel efectuou uma represália limitada e simbólica contra uma base aérea perto de Isfahan.

Ainda não há uma reconstituição coerente dos factos e o ataque foi efectuado com a utilização de pequenos drones, talvez mesmo a partir do interior do território iraniano, onde há muito tempo actuam agentes dos serviços secretos do Estado judaico.

A resposta militar à agressão iraniana na noite de 13 para 14 de Abril foi feita com mísseis de longo alcance lançados de aviões segundo o “Jerusalem Post”. É certo, porém, que as defesas antiaéreas iranianas foram activadas e que se ouviram explosões, circunstâncias que confirmariam a perfeição de um ataque e apontariam para a hipótese de vectores exteriores à República Islâmica. Na ausência de mais pormenores, porém, parece possível concluir que Israel atacou efectivamente o Irão de forma a não causar vítimas, escolhendo um alvo de natureza militar e não muito distante das instalações utilizadas por Teerão para o seu programa de investigação nuclear. Assistimos a um exercício daquilo a que Thomas Schelling chamou “diplomacia da violência”.

A mensagem transmitida pelo Estado judaico é, paradoxalmente, uma manifestação de boa vontade, porque se evitaram danos irreparáveis e agora também Israel pode considerar encerrada, pelo menos, esta fase do confronto com o Irão. Mas é também um aviso dirigido aos ayatollahs e ao Pasdaran (Guarda Revolucionária Iraniana) de que uma nova infracção será punida com ataques muito mais mortíferos a que Teerão não poderá resistir.

15 Mai 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (II)

“The purely “military” or “undiplomatic” recourse to forcible action is concerned with enemy strength, not enemy interests; the coercive use of the power to hurt, though, is the very exploitation of enemy wants and fears”.

The Diplomacy of Violence – Thomas Schelling

Mais problemático ainda para o Estado judaico seria o regresso ao poder do movimento islamista armado através de eleições nos Territórios Palestinianos. Um regresso que é tanto mais real quanto mais fraca for a ANP, sua rival. Em suma, o plano não poderá impedir um regresso ao status quo antes de 7 de Outubro de 2023.

Quanto às reacções das facções palestinianas, pouco se sabe. No entanto, é seguro supor que o ramo político do Hamas poderia não se opor, uma vez que recuperaria o seu papel e as suas funções do pós-guerra, tanto em Gaza como na Cisjordânia. Em vez disso, é evidente que as facções armadas o rejeitam. Preferem a guerra total e o martírio à maneira de Deus “não à retirada israelita e à libertação dos presos políticos”. O ANP, “não vê com bons olhos um governo de técnicos que não controlaria”. Em vez disso, um possível plano israelita tomou forma sob a direcção do ministro da Defesa Yoav Gallant.

Apresentado em 4 de Janeiro à imprensa, ainda antes do Conselho de Ministros, reitera os parâmetros de segurança a médio e longo prazo acima referidos, que o Estado de Israel imporá na Faixa de Gaza “até que estejam reunidas as condições para a sua retirada indefinida, ou seja, a pacificação completa e a desmilitarização total dos territórios palestinianos”.

Com isto em mente, Gallant passa a conceber os contornos de uma administração civil amiga de Israel capaz de garantir a prestação de serviços, a lei, ordem e a reconstrução. Prevê que seja composto por chefes tribais e personalidades locais, excluindo a participação do Hamas e da ANP.

A ideia não contradiz os desejos de Netanyahu e segue a linha do plano de Mordechai Kedar, um académico de direita da Universidade de Bar-Ilan, conhecido como “Emirado Palestiniano” ou também “Oito Estados”. Se o plano de Kedar previa, em 2012, a criação de oito emirados na Cisjordânia, para além do emirado de Gaza, o plano de Gallant divide Gaza em oito a nove províncias, cada uma governada por uma determinada tribo, todas sob o controlo de uma administração civil central que funciona sob a supervisão e os auspícios de Estados como os Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos, Egipto, Arábia Saudita e a UE.

A presidência deste grupo de Estados, bem como a da sua componente técnica responsável pela reconstrução, será americana. O plano não obteve apoio no seio do governo israelita e muito menos na esfera palestiniana. Pelo contrário, provocou uma resposta dura do Comissário Geral da Alta Autoridade para Assuntos Tribais na Faixa de Gaza, Akef Al-Masry e a rejeição categórica da ANP na Cisjordânia.

Todos determinados a rejeitar as intenções israelitas de dividir o campo palestiniano, de enfraquecer a sua resistência à ocupação e de separar o governo de Gaza do da Cisjordânia, privando-o de qualquer tipo de soberania. A visão americana do pós-guerra parece estar ainda em fase de “definição”. Alguns detalhes surgiram, no entanto, durante a visita do Secretário de Estado Antony Blinken à região em Janeiro passado, a quarta desde o início do conflito.

No clima de tensão palpável com o aliado israelita, as reuniões do Secretário de Estado americano confirmaram, antes de mais, a dificuldade da administração Biden em equilibrar o apoio à destruição militar e política do Hamas com a exigência de negociar a libertação dos reféns, de minimizar os danos à população e às infra-estruturas civis em Gaza, de permitir o regresso dos deslocados ao norte da Faixa e de iniciar o planeamento da reconstrução.

Não é claro se as suas exigências, também ditadas por uma forte pressão interna e internacional para mudar a face de um conflito devastador, também estão subjacentes às dúvidas americanas sobre a capacidade de Israel para atingir o objectivo primário da destruição total do Hamas e aos receios de uma expansão da guerra ao Líbano, Síria, Iraque e Iémen. Mas a mensagem israelita ao seu aliado americano confirma que a segurança de Israel, tal como entendida pelos seus dirigentes políticos e militares, não é negociável.

Ainda mais problemática é a centralidade que a ANP teria aos olhos da administração americana num provável período de pós-guerra sem o Hamas. É de perguntar qual será a capacidade de auto-reforma da antiga liderança política e qual será a legitimidade da nova liderança se as políticas israelitas de colonização da Cisjordânia continuarem e se o seu regresso à Faixa desmilitarizada e destruída estiver sujeito à aprovação israelita? Além disso, os Estados Unidos ainda não reabriram o seu consulado em Jerusalém nem permitiram que a OLP reabrisse a sua missão diplomática em Washington, ambos encerrados pelo então Presidente Donald Trump.

Por fim, o constante apelo americano a uma solução de dois Estados com base nas resoluções 242 e 338 da ONU dá azo à esperança de que não se trate de um horizonte político a ser alcançado nos moldes das intermináveis negociações de Oslo. Para que um tal processo político seja aceitável para a opinião pública palestiniana e árabe, segundo o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros jordano Marwan Muasher, é necessária uma abordagem inversa à de Oslo.

Partindo do princípio de que um Estado da Palestina contíguo e soberano ainda pode emergir e unir Gaza à Cisjordânia, Muasher afirma que a diplomacia internacional terá de reconhecer, através de uma nova resolução do Conselho de Segurança da ONU, que “o fim da ocupação israelita e o estabelecimento do Estado da Palestina constituem o objectivo primordial das negociações que se desenvolverão em fases específicas e durante um período de três a cinco anos”.

Este processo exigirá igualmente uma nova liderança, tanto israelita como palestiniana, legitimada por eleições e apoiada por um consenso popular para prosseguir o objectivo primordial das negociações. No entanto, as condições actuais não são propícias ao início de quaisquer negociações. O Conselho de Segurança da ONU está paralisado.

As partes beligerantes não estão em condições de chegarem a um acordo a curto ou médio prazo, mais depois do ataque concertado do Irão e Hezbollah dia 13 de Abril e aplaudido pelo Hamas. Os seus objectivos estratégicos respectivos estão ainda longe de ser alcançados. A violência e a guerra radicalizaram as suas opiniões públicas e minaram gravemente a sua “confiança” numa coexistência pacífica e duradoura. Neste contexto local e internacional, o Secretário de Estado dos Estados Unidos tenta jogar a carta regional da normalização das relações dos Estados árabes com Israel, a fim de induzir este último a abrandar o bombardeamento maciço de Gaza e a considerar um futuro Estado da Palestina com o campo palestiniano moderado, ou seja, a ANP reformada.

(continua)

2 Mai 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (I)

“The usual distinction between diplomacy and force is not merely in the instruments, words or bullets, but in the relation between adversaries-in the interplay of motives and the role of communication, understandings, compromise, and restraint”.
The Diplomacy of Violence – Thomas Schelling”

Netanyahu quer recuperar o controlo total de Gaza, entretanto arrasada e com uma população palestiniana reduzida. Só então será possível imaginar o pós-guerra. O Egipto teme ver as massas de pessoas desesperadas a transbordar e a América passa por um grande embaraço, dado que o pós-guerra em Gaza começa a tomar forma no terreno, antes do papel dos improváveis planos de paz. O facto é que as partes beligerantes, Israel e Hamas, não oferecem sinais tangíveis de um cessar-fogo viável, faltando a ambas objectivos estratégicos realisticamente realizáveis e uma visão duradoura da paz. É agora evidente que a violência do Hamas não criará as condições para melhorar a economia de Gaza nem porá termo à ocupação israelita a curto ou médio prazo.

Pelo contrário, pode agravar a primeira e prolongar a segunda no espaço e no tempo, sob o signo de governos de extrema-direita cada vez mais extremados. Do mesmo modo, a ofensiva de Israel não irritará o Hamas nem desradicalizará os palestinianos. Em vez disso, pode provocar no Hamas metamorfoses ainda mais extremistas e radicalizar velhas e novas gerações de palestinianos dentro e fora dos limites de Gaza. O conflito, que provavelmente continuará ao longo deste ano com menos intensidade do que antes, pesa tanto sobre o destino dos 132 reféns israelitas como sobre o dos 2,2 milhões de palestinianos destinados a partilhar uma faixa de terra cada vez mais exígua e miserável.

A paz da diplomacia internacional, que deveria ser garantida pela criação de um Estado palestiniano soberano num território contíguo a Israel e com Jerusalém Oriental como capital, corre o risco de se tornar um slogan irrealista e ilustre. Perante a perspectiva de um futuro próximo sem paz, emergem dos escombros de Gaza peças de um possível cenário de pós-guerra. Entre eles, o mais significativo é o êxodo parcial da população palestiniana. As condições socioeconómicas em Gaza eram particularmente preocupantes mesmo antes do conflito. As operações militares israelitas no Norte da Faixa destinavam-se, então, a fazer terra queimada numa zona onde se concentrava a espinha dorsal das infra-estruturas militares do Hamas e duas das suas brigadas mais importantes, as do Norte de Gaza e da Cidade de Gaza, equivalentes, a 60 por cento do total das suas forças.

Se estas operações não parecem ter conseguido a descapitalização das chefias militares do movimento armado palestiniano e a destruição de grande parte da sua “tensa rede de túneis subterrâneos”, o mesmo não se pode dizer dos efeitos perturbadores sobre a população civil. Há mais de 1,1 milhões de pessoas deslocadas desta zona, actualmente amontoadas no centro e no sul da Faixa em condições deploráveis. A evacuação de civis ao longo do cone oriental de Gaza e o bombardeamento de campos de refugiados no centro e em Khan Yunis, no sul, também aumentam a pressão demográfica ao longo da fronteira com o Egipto e exacerbam a crise humanitária, agora muito grave. As estimativas da ONU elevam o número total de deslocados a 1,9 milhões, ou seja, 85 por cento da população total, enquanto denunciam a destruição ou a inabitabilidade de mais de 60 por cento das habitações e de cerca de metade dos hospitais, a inacessibilidade de todas as instalações educativas e a falta de água e de eletricidade.

À luz destes dados, a probabilidade de um êxodo “voluntário e forçado” para além da fronteira torna-se cada vez mais real. Não o escondem os ministros, os políticos, os militares e os analistas israelitas que, desde o início da guerra, evocam uma segunda “Nakba” (catástrofe), em que a primeira remonta à expulsão dos palestinianos do Estado de Israel em 1948 como efeito da guerra de Israel contra o Hamas e a população de Gaza culpada de a apoiar. A este respeito, é suficiente mencionar o antigo primeiro-ministro Naftali Bennett que, ao negar a existência de civis palestinianos em Gaza, afirma que “estamos a lutar contra os nazis”.

O major-general Giora Eiland, autor de um plano autorizado de deslocação de uma parte da população para o Sinai, é ainda mais categórico ao afirmar a necessidade absoluta de fazer de Gaza “um lugar onde nenhum ser humano possa existir” e de combater “não apenas o Hamas, mas toda a população de Gaza “. E não se trata apenas de retórica bélica se o Egipto e a Jordânia intensificarem a acção diplomática para barrar o caminho quer a um eventual plano israelita de deslocação forçada da população palestiniana para o Sinai, Jordânia ou Congo, quer a uma guerra total que tornaria o êxodo inevitável. As cimeiras egípcio-jordana, egípcio-palestiniana e egípcio-jordano-palestiniana do início do ano são um testemunho claro das preocupações crescentes destes países quanto à resolução da questão palestiniana e aos seus efeitos desestabilizadores sobre eles.

Há também rumores persistentes de que o presidente egípcio Abdel Fattah el-Sisi está actualmente sob intensa pressão para ceder áreas do Sinai aos palestinianos em troca de ajuda “financeira”. O Egipto está a braços com uma grave crise económica e terá de reembolsar este ano mais de 28 mil milhões de dólares da sua enorme dívida externa. Um segundo elemento fundamental é a criação de zonas-tampão no interior de Gaza e a expansão das zonas de segurança no norte e no leste da Faixa, o que indica a provável persistência de bolsas de resistência armada mesmo no “pós-Hamas”. A liderança política e militar israelita nega querer anexar áreas ao longo da já robusta rede de segurança em torno da Faixa. No entanto, os mesmos dirigentes declararam claramente que pretendem criar não só “zonas-tampão” no interior de Gaza, com o objectivo de impedir que o Hamas se aproxime do continente no futuro, mas também “um cobertor de segurança em torno da Faixa para impedir que a população civil aceda a pé à rede de fronteiras”.

A demarcação de uma parte do território palestiniano ao longo do cone com Israel é uma condição prévia do governo de Netanyahu para o pós-guerra. Os Estados árabes da região seriam devidamente informados. A criação de zonas tampão implica a presença de instalações militares e o reforço da capacidade israelita de efectuar incursões no interior da Faixa. Significa também a inacessibilidade destas zonas aos palestinianos e, consequentemente, uma maior pressão demográfica sobre as zonas habitáveis. Quanto ao norte de Gaza, se não for parcialmente anexado, pode tornar-se, na melhor das hipóteses, uma zona militar “temporariamente” fechada, ou seja, confinada. A evacuação dos civis ao longo da linha oriental, provocada pela operação militar israelita de Outubro de 2023 em resposta ao ataque do Hamas, criou desde então um vasto território temporariamente desabitado que se estende por longos troços até à estrada de Salah al-Din, que divide a Faixa longitudinalmente de norte a sul.

Para além dos objectivos de segurança israelitas, o regresso dos palestinianos às suas casas e aldeias será também ditado pelo processo de reconstrução, que, segundo algumas estimativas, poderá levar dois a três anos a repor em Gaza os níveis de miséria anteriores à guerra. Um terceiro elemento é o reforço das medidas de segurança no sul de Gaza, que pode significar, no limite, a reocupação da Faixa por Israel. Netanyahu evocou esta possibilidade ao declarar, a 31 de Dezembro de 2023, que “o corredor de Filadélfia deve estar nas nossas mãos … e deve ser fechado” para atingir o objectivo de desmilitarizar Gaza. São 14 quilómetros ao longo da fronteira com o Egipto. O posto fronteiriço de Rafah também se situa aqui. As forças da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) deviam patrulhar este corredor do lado palestiniano da fronteira após a retirada israelita em 2005.

A tomada do poder pelo Hamas, dois anos mais tarde, alterou o executor, mas não a substância do acordo, deixando efectivamente ao Egipto a responsabilidade principal por esta passagem e por este corredor. O controlo israelita sobre estas zonas voltaria às condições anteriores a 2005, o que implicaria a reocupação da Faixa. No entanto, não se pode excluir a possibilidade de Netanyahu não ter qualquer intenção de fazer regressar o exército israelita ao longo desse corredor, e de as suas declarações terem apenas como objectivo exercer uma forte pressão sobre o Egipto e os palestinianos, de forma a obter maiores concessões em futuras negociações. Mas o facto é que, se a lógica da segurança prevalecer sobre qualquer visão geopolítica do pós-guerra, Gaza poderá alimentar uma guerrilha desestabilizadora e tornar-se uma “prisão a céu aberto” muito pior do que tem sido.

A separação da Cisjordânia seria igualmente decretada de forma de definitiva. Não é, pois, surpreendente que seja o Egipto, cuja segurança nacional está igualmente ligada ao Sinai e, por conseguinte, a Gaza, a estar na primeira linha na oposição às intenções anunciadas por Netanyahu e a exigir, juntamente com os outros Estados da região, um cessar-fogo imediato com uma retirada gradual do exército israelita. O quarto elemento é a mudança de regime em Gaza, tal como na Cisjordânia. O governo israelita recusa-se a lidar com o “pós-guerra” enquanto as operações militares continuarem na Faixa de Gaza. Na sua opinião, qualquer tentativa nesse sentido corre o risco de recompensar politicamente o movimento islamista armado e de criar as condições para um regresso cíclico da violência. No entanto, a forte pressão regional e internacional para oferecer um horizonte político à guerra em curso produziu planos e propostas incluindo em Israel para a gestão do pós-guerra em Gaza.

Se, como se espera, Israel exercerá um controlo “temporário” da segurança, uma eventual administração civil não incluirá palestinianos filiados em qualquer facção política ou militar que ainda opere na Faixa. Gaza, como disse o Primeiro-Ministro israelita à imprensa em 16 de Dezembro de 2023, não será “nem Hamastão nem Fatahstão”, sendo Fath a componente política dominante da ANP na Cisjordânia nem mesmo depois da retirada das Forças Armadas israelitas. Se a recusa israelita de prever qualquer presença do Hamas no pós-guerra é categórica, a relação com a ANP poderá, pelo contrário, mudar, desde que esta seja reformada num sentido anagráfico, democrático e ideológico. O que é certo é que a administração de Abu Mazen, o presidente não eleito da ANP, com mais de oitenta anos, é esclerótica, inepta e corrupta.

Isto não parece surpreender ninguém, dentro ou fora da Palestina, incluindo os governos israelitas que favoreceram o seu declínio, voluntária ou involuntariamente. No entanto, o ANP, o “herdeiro” dos acordos de Oslo de 1993 e herdeiro da OLP de Yaser Arafat, tem cooperado activa e eficazmente com Israel no sector da segurança desde há décadas. Cooperação que o tornou de facto cúmplice na luta contra o adversário comum, o Hamas, e lhe permitiu suprimir as vozes dissidentes. A sua crescente incapacidade para prevenir e conter as tensões na Cisjordânia tem, no entanto, resultado em frequentes incursões do exército israelita desde o ano passado, o mesmo exército que, no entanto, se tem abstido de intervir contra a violência dos colonos israelitas e de impedir o êxodo dos palestinianos das casas e aldeias sujeitas aos seus ataques.

A expansão dos colonatos, a ausência de segurança e de protecção e, agora, também a decisão do Governo israelita de reter centenas de milhões de dólares de receitas da “porta de entrada” e de impedir a entrada de 150000 trabalhadores palestinianos em Israel e nos colonatos, contribuem para a perda de legitimidade da Autoridade de Abu Mazen aos olhos de muitos dos seus concidadãos, dentro e fora dos Territórios Ocupados. Uma sondagem recente confirmou que 90 por cento dos palestinianos exigem a demissão de Abu Mazen, enquanto o Shin Bet, o serviço secreto interno do Estado judaico, alerta Netanyahu para o colapso iminente da própria Autoridade. Quanto aos israelitas, o silêncio da ANP sobre o massacre de civis perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 pulverizou o seu último grão de “confiança” em Abu Mazen e seus colaboradores.

No entanto, a ANP continua a ser, para a comunidade diplomática internacional, a única instituição legítima de um proto-Estado capaz de administrar, uma vez reformada, a Faixa de Gaza na era pós-Hamas. No entanto, a sua reforma exigirá tempo e dinheiro. Enquanto se aguarda a sua conclusão, terá de ser criada uma administração civil transitória. Existem algumas propostas a este respeito, incluindo o plano egípcio e algumas ideias israelitas e americanas. O plano egípcio faz, na realidade, parte de um ambicioso projecto conjunto egípcio-catariano de cessar-fogo, de libertação gradual dos reféns e de criação de um governo provisório para a gestão do pós-guerra e para a preparação de eleições presidenciais e parlamentares palestinianas. Apresentado em 25 de Dezembro de 2023 às partes em conflito, bem como aos Estados da região, à UE e aos Estados Unidos, o plano visa não só pôr fim às hostilidades, mas também preparar o terreno para uma paz duradoura.

Embora tenha o mérito indiscutível de abordar as questões humanitárias de ambas as partes, tem igualmente em conta as etapas indispensáveis das negociações entre o Hamas e Israel no que se refere à libertação dos reféns israelitas e dos detidos palestinianos, bem como o papel deste movimento no período pós-guerra. O Hamas e as outras facções palestinianas são chamadas a seleccionar peritos sectoriais para uma administração técnica e transitória de Gaza e da Cisjordânia, a fim de restabelecer os serviços essenciais e criar as condições para a reconciliação intra-palestiniana e a preparação de eleições políticas. Estas últimas medidas permitiriam criar um parceiro palestiniano legítimo e coeso para as futuras negociações com Israel sobre o Estado da Palestina. No entanto, o plano encontrou resistência tanto por parte de Israel como por parte dos palestinianos. Para Israel, o plano não cumpre o objectivo principal de destruir o Hamas ou de o obrigar a render-se com a libertação incondicional dos reféns, para além de desmilitarizar Gaza.

25 Abr 2024

O Ocidente dividido

“Make no mistake, the normative authority of the United States of America lies in ruins. The decision to go to war in Iraq, without the explicit backing of a Security Council Resolution, opened up a deep fissure in the West which continues to divide erstwhile allies and to hinder the attempt to develop a coordinated response to the new threats posed by international terrorism”.

The Divided West – Jürgen Habermas

(continuação)

Revela também a perplexidade dos dirigentes israelitas, que não imaginavam que os terroristas palestinianos fossem tecnicamente capazes de uma tal operação. Como disse o general israelita Giora Eiland, a coligação de direita e de ultra-direita no poder prejudicou gravemente a imagem e a credibilidade de Israel ao lançar a represália de dois meses no interior de Gaza, em vez de se limitar a controlar o “Corredor de Filadelfia” (o corredor Filadelfia é uma zona limite entre a Faixa de Gaza e Egipto. Este corredor, de 100 metros de largura e 14 km de comprimento, poderia ser a única via de passagem para centenas de milhares de palestinianos no caso de um grande ataque do exército israelita em Rafah) e isolar a “Faixa” para obrigar o inimigo a render-se, pelo que “Sentimo-nos vítimas do 7 de Outubro, um ataque frio e impiedoso e agora toda a gente nos considera carniceiros”.

Abriu-se um novo capítulo na disputa secular entre judeus e árabes palestinianos. Ninguém sabe nem pode saber onde vai acabar. Depois de se ter afastado a quimera dos dois Estados, uma hipótese que nunca existiu mas que era conveniente para todos, restam três possibilidades, a de um Estado, nenhum ou “cem mil”. No primeiro caso, Israel formalizaria o facto de que, entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, existe apenas um Estado, o seu. O resto são territórios ocupados, corroídos todos os dias pelo impulso dos colonos. É suposto estabelecer-se assim a quota de palestinianos que é tolerável no Estado-nação do povo judeu.

Os restantes terão de emigrar, espontaneamente ou não. A 28 de Janeiro de 2024, realizou-se em Jerusalém uma manifestação festiva, com a presença de doze ministros, para anunciar a recolonização de Gaza. Com um mapa detalhado dos colonatos. O ministro das Comunicações, Shlomo Karhi, criou para a ocasião o conceito de “emigração voluntária imposta”. O resultado de com a acção desencadeada pelo Hamas deve, portanto, consistir num grau de limpeza étnica determinado por meras relações de poder. Os “Estados Zero” seriam, em vez disso, a consequência de um conflito alargado com a Cisjordânia, o Líbano e a Síria, mas também para o Irão e os Estados Unidos com os seus respectivos associados. Sem excluir a utilização da “bomba atómica”.

Todos os conflitos do Médio Oriente seriam perturbados e redesenhados ou ficariam fora do alcance de qualquer entidade estatal. Israel e os “Territórios”, tal como são actualmente, deixariam de existir. Improvável, mas não impossível. Por “cem mil” entende-se a tribalização paroxística que afecta as populações de Israel, profeticamente denunciada pelo antigo Presidente Reuven Rivlin em 2015. Nos meses que antecederam a guerra, multiplicaram-se os projectos de federalização, de cantonização e de parcelizações diversas, talhados a bisturi no espaço exíguo do Estado judaico. Desde os panfletos da Cisjordânia aos de Israel. A homogeneidade étnico-cultural-religiosa determinaria a divisão de territórios considerados heterogéneos. Um gosto pela escultura que sempre animou os projectos de reconfiguração de espaços estreitos e disputados.

Tal como no “Plano Eiland” para Gaza, que na versão de 2008, previa o alargamento da “Faixa de Gaza” a uma fatia do Sinai Egipto em troca de uma parte do Negev (região de Paran) atribuída ao Cairo e 12 por cento da Cisjordânia anexada a Israel. Ou os oito emirados palestinianos entre Gaza e a Cisjordânia, fruto da acrimónia de Mordechai Kedar, antigo oficial dos serviços secretos. A tentativa de resolver o insolúvel convida à auto-destruição. Mas nesta altura a “Caixa de Pandora” já foi aberta. A responsabilidade recai sobre todos os actores envolvidos na região. Deixar às armas a imposição de projectos geopolíticos que serão sempre contestados pelos adversários do momento significa resvalar para a guerra permanente. Potencialmente suicida. Tudo menos uma vitória decisiva. Poder-se-ia estabelecer neste contexto dez dogmas da guerra de Israel contra o Hamas num conflito de longa data que resultou em inúmeras baixas e destruição de ambos os lados em que Primeiro, o Hamas é uma organização terrorista: Um dos dogmas centrais da guerra de Israel contra o Hamas é a rotulagem do grupo como uma organização terrorista. O Hamas tem sido responsável por numerosos actos de terrorismo, incluindo ataques com foguetes contra civis israelitas e a utilização de bombistas suicidas. Este dogma justifica as acções militares de Israel contra o Hamas, enquadrando-as como medidas necessárias para proteger os seus cidadãos da violência.

Segundo, Israel tem o direito à auto-defesa: Outro dogma fundamental da guerra de Israel contra o Hamas é a crença no direito do país à auto-defesa. Israel argumenta que as suas acções militares são necessárias para proteger os seus cidadãos dos ataques do Hamas e de outros grupos militantes da região. Este dogma constitui a base das operações militares de Israel em Gaza, incluindo os ataques aéreos e as incursões terrestres. Terceiro, o Hamas utiliza escudos humanos: Israel acusa o Hamas de utilizar escudos humanos, uma táctica em que os militantes se escondem entre os civis para dissuadir os ataques das forças inimigas. Este dogma é utilizado para justificar o ataque de Israel a áreas civis em Gaza, uma vez que os militares israelitas afirmam que o Hamas está deliberadamente a pôr em risco vidas inocentes ao utilizá-las como escudos. Os críticos argumentam que esta justificação constitui uma violação do direito humanitário internacional, que proíbe o ataque intencional a civis durante um conflito armado.

Quarto, o bloqueio de Gaza é necessário para a segurança: Israel mantém um bloqueio a Gaza, controlando o fluxo de bens e pessoas que entram e saem do território. Este dogma afirma que o bloqueio é necessário para a segurança de Israel, uma vez que restringe o movimento de armas e militantes para Gaza. Os críticos argumentam que o bloqueio é uma forma de punição colectiva contra a população civil de Gaza, uma vez que restringe o acesso a bens e serviços essenciais. Quinto, a solução de dois Estados é a única via para a paz: Muitos apoiantes da guerra de Israel contra o Hamas argumentam que a solução dos dois Estados é o único caminho viável para a paz na região. Este dogma afirma que a criação de um Estado palestiniano ao lado de Israel é a melhor forma de resolver o conflito e de responder às aspirações de ambos os povos. Os críticos argumentam que a solução dos dois Estados já não é viável devido à expansão contínua dos colonatos israelitas na Cisjordânia e à falta de vontade política de ambas as partes para negociar um acordo de paz duradouro.

Sexto, o direito internacional apoia as acções de Israel: Israel afirma que as suas operações militares em Gaza estão em conformidade com o direito internacional, nomeadamente com as leis dos conflitos armados. Este dogma afirma que as acções de Israel são respostas proporcionais e necessárias às ameaças colocadas pelo Hamas e por outros grupos militantes na região. Os críticos argumentam que Israel violou o direito internacional ao visar zonas civis em Gaza, ao utilizar força excessiva e ao ignorar os princípios da distinção e da proporcionalidade. Sétimo, o Hamas rejeita o direito de Israel à existência: Outro dogma central da guerra de Israel contra o Hamas é a rejeição, por parte do grupo, do direito de Israel a existir. O ideário do Hamas apela à destruição de Israel e à criação de um Estado palestiniano no seu lugar. Este dogma é utilizado para justificar as acções militares de Israel contra o Hamas, enquadrando-as como medidas defensivas contra uma ameaça existencial. Os críticos argumentam que a rejeição pelo Hamas do direito de Israel a existir é uma posição política que deve ser abordada através da diplomacia e das negociações, e não da força militar.

Oitavo, o papel dos actores externos no conflito: a guerra de Israel contra o Hamas não é apenas um conflito localizado entre duas partes, mas uma luta geopolítica complexa que envolve múltiplos actores externos. Este dogma reconhece a influência de países como o Irão e o Qatar no apoio ao Hamas e a outros grupos militantes na região. Reconhece também o papel dos Estados Unidos e de outras potências ocidentais no apoio militar e diplomático a Israel. Este dogma salienta a necessidade de cooperação e empenhamento internacionais para abordar as causas profundas do conflito e promover uma resolução pacífica. Nono, o impacto do conflito na população civil: O actual conflito entre Israel e o Hamas tem tido um impacto devastador na população civil de ambos os lados. Este dogma reconhece o sofrimento e as perdas sofridas por pessoas inocentes apanhadas no fogo cruzado do conflito, incluindo crianças, mulheres e idosos. Sublinha a necessidade de assistência humanitária, de protecção dos civis e de respeito pelos direitos humanos no meio de um conflito armado. Este dogma apela a uma maior atenção às dimensões humanitárias do conflito e a um empenhamento na defesa dos princípios do direito internacional humanitário.

Décimo, a necessidade de diálogo político e de negociação: Apesar da profunda animosidade e desconfiança entre Israel e o Hamas, reconhece-se a necessidade de diálogo político e de negociação para resolver o conflito. Este dogma sublinha a importância da diplomacia, do compromisso e do reconhecimento mútuo na abordagem das causas profundas do conflito e na obtenção de um acordo de paz sustentável. Apela ao reinício das conversações de paz, à implementação de medidas de confiança e ao envolvimento de mediadores externos para facilitar uma resolução pacífica do conflito. Os dogmas da guerra de Israel contra o Hamas reflectem a natureza complexa e multifacetada do conflito em curso entre as duas partes. Embora cada dogma apresente uma perspectiva diferente sobre as causas e as consequências do conflito, todos eles apontam para a necessidade urgente de uma solução abrangente e sustentável para alcançar a paz e a segurança para o povo de Israel e de Gaza. Só através do diálogo, da negociação e de um verdadeiro empenhamento na defesa dos direitos humanos e do direito internacional será possível quebrar o ciclo de violência e alcançar uma paz duradoura na região.

18 Abr 2024

O Ocidente dividido

“Make no mistake, the normative authority of the United States of America lies in ruins. The decision to go to war in Iraq, without the explicit backing of a Security Council Resolution, opened up a deep fissure in the West which continues to divide erstwhile allies and to hinder the attempt to develop a coordinated response to the new threats posed by international terrorism”.
The Divided West
Jürgen Habermas

 

O ataque do Hamas a Israel a 7 de Outubro de 2024 não deriva da invasão da Rússia à Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. Confirma que a introversão americana solicita as ameaças que o caos representa para o Ocidente dividido e as oportunidades de quem usa o caos para se expandir. É o caso do Irão. A dimensão estratégica do “pogrom” do Hamas no interior do Estado judaico desafia a disputa Irão-Estados Unidos-Israel. O jogo dá-se no “Grande Oriente Médio”. Este estende-se desde a intersecção do Mar Negro, do Mar Cáspio e do Cáucaso, da encruzilhada do império russo, turco e persa, para leste até ao Paquistão e ao Afeganistão, para oeste através dos estreitos do Suez, de Babelmândebe e de Ormuz.

O Sul da Europa, atento ao seu próprio destino, verá ameaçados os seus interesses (um Mar Mediterrâneo livre e aberto), (evitar uma colisão com o caos) e (estabilização dos vizinhos estrangeiros). Confirmando a urgência de estabilização dos vizinhos estrangeiros (Euroquad), o núcleo ocidental do Mar Mediterrâneo, o menor denominador comum para se afirmar na luta em expansão descontrolada. O futuro da zona, pois falar de região é não perceber o seu interior, depende do resultado do confronto entre o par Estados Unidos-Israel e o Irão, que se apoiam em clientes seleccionados. O objectivo americano e israelita é conter a expansão do império russo e proibir-lhe por todos os meios o acesso à “bomba atómica”.

O sonho iraniano é obrigar os Estados Unidos a recuar para a linha Egipto-Chipre e isolar Israel. Não destruí-lo, pois é o inimigo perfeito, útil para legitimar o “eixo de resistência”, o suporte da sua esfera de influência entre o Afeganistão Ocidental e o Oriente, com clientes árabes xiitas e sunitas. Entretanto, a Turquia afirma o seu peso decisivo, pronta a lançá-lo sobre este ou aquele prato da balança, enquanto os sauditas e os petromonarcas do Golfo se adaptam a qualquer acto de equilíbrio para não serem esmagados por concorrentes superiores. A Rússia aproveita a “distracção” americana, que deixa a Ucrânia numa situação desesperada.

A China, que, ao contrário da América, extrai da região recursos energéticos essenciais e aí desenvolve os portos de escala das “Rotas Marítimas da Seda”, ostenta uma ligeira honestidade, treinando os seus músculos diplomáticos com vista a um possível futuro hegemónico.

No Médio Oriente, Washington encontra-se, portanto, na encruzilhada clássica, a de encurtar as frentes, retirando-se entretanto do Iraque e da Síria, onde é um alvo fácil para as milícias pró-Irão, correndo o risco de agravar a crise em Israel, facilitar o castigo da Rússia e a influência da China. Ou reentrar nela em estilo feroz, admitindo o fracasso do desengajamento gradual disfarçado com o paradoxo de “liderar por trás”, postulado após os desastres da “guerra contra o terrorismo” no Afeganistão e no Iraque.

Nesse caso, a sobre extensão das estrelas e das riscas revelar-se-ia monstruosa, pois a guerra quente com a Rússia, morna a ferver contra o Irão, fria mas decisiva contra a China para não falar da Coreia do Norte. Compromissos de intensidade militar inversamente proporcionais às vagas prioridades estratégicas actuais de Washington. Enquanto a única fronteira que realmente interessa à opinião pública americana é a do “Vale do Rio Grande”, onde talvez se decida a corrida para a Casa Branca. Como se isso não bastasse, o eixo com Israel está rachado.

Em aparência, porque Biden considera Netanyahu um inimigo pessoal em casa como se fosse um dos líderes do Partido Republicano, bem como o primeiro-ministro mais desastroso da história do Estado judaico. No fundo, isso provoca uma clivagem entre as estratégias e as tácticas de um casal em crise de nervos. Washington tinha a ilusão de poder gerir o Médio Oriente à distância, contando com o entendimento entre Israel, parente e não aliado e o Golfo liderado pelos sauditas, serpentes e não parentes.

O ataque do Hamas a Israel e a reacção de Jerusalém, surda aos apelos da administração americana de “não repetir os nossos erros”, ou seja, nada de “guerra contra o terrorismo”, quebraram a confiança e como resultado, mais desordem na “Terra do Caos”. O único grande Estado da região que parece ter sido poupado à ofensiva da desintegração é a Turquia. Todos os outros, incluindo o Irão e Israel, lutam pela sobrevivência. Uma roleta russa mortal, com Ancara a ser a porta giratória entre as entropias ucranianas e do Médio Oriente que se alimentam mutuamente. O Sul da Europa conta muito pouco num espaço que já o viu importante no início do século XX, e depois também durante a Guerra Fria.

Será um caso de reaprender algumas lições esquecidas dos nossos antepassados levantinos, capazes de tecer relações oblíquas com potências locais, mais ou menos otomanas. Por exemplo, a economia e o comércio não valem por si, mas são meios necessários para ganhar peso geopolítico, que por sua vez abre novos mercados. O objectivo estratégico é contribuir para evitar o choque de civilizações entre o Ocidente e o Oriente, do qual nós europeus seríamos uma das primeiras vítimas. Neste caso, estamos ao lado dos Estados Unidos e de Israel, mas, juntamente com muitos outros, sabemos que uma guerra potencialmente atómica contra o Irão incendiaria o nosso quintal.

E tornaria intransitáveis as águas que nos abrem as rotas oceânicas. A crise do Mar Vermelho, com os Hutis a bloquearem selectivamente o tráfego ao longo do corredor Suez- Babelmândebe e vice-versa, é uma proclamação moderada do que aconteceria em caso de guerra total na região. Seria equivalente a um bloqueio naval. Um desastre a ser evitado com a ajuda de amigos e aliados clássicos. E menos clássicos, como os turcos. Nem que seja pelo facto de serem activos e ambiciosos em toda a nossa vizinhança externa, da Tripolitana aos Balcãs do Adriático, passando pelo Oriente e pelos centros do Mar Mediterrâneo. Que desce do Adriático e do Jónico em direcção ao sul, com a parte ocidental plantada na antiga Líbia e a oriental entre o Suez, Israel e o Oriente. Pontos fulcrais do sistema em que se situa o centro da Europa do Sul e que dão sentido e enfoque ao projeto euro-mediterrânico.

Em Israel, com outros europeus, para além do interesse geopolítico, existe uma responsabilidade histórica para com o Estado judaico que fala muito mal dos sul europeus. A esta realidade afastada ou, pior ainda, algebricamente ritualizada, junta-se a maldade oferecida aos palestinianos sob ocupação, que disputam com os israelitas um espaço que ambos sentem como seu. Até 7 de Outubro de 2023, havia um acordo não escrito entre os dirigentes israelitas e palestinianos segundo o qual ninguém tentaria solucionar um problema que só poderia ser resolvido através da aniquilação de um ou de outro povo. Ou de ambos. A simetria entre o poder de Israel e a fraqueza dos palestinianos divididos e sem Estado deixava a Jerusalém uma margem de manobra muito grande para interpretar esta limitação, expandindo entretanto as colónias na Judeia e na Samaria (Cisjordânia).

E a subcontratação de Gaza aos Hamas, regulando a entrada de dinheiro do Qatar para manter a sobrevivência precária da “Faixa”. No entanto, continua separada da Cisjordânia, aproximada ao fantasma da “Autoridade Nacional Palestiniana”, portanto controlada por Israel. Com o 7 de Outubro de 2023, este equilíbrio foi quebrado. E a ânsia de uma vitória decisiva, palavra de ordem dos estrategas israelitas, ressoa.

Não sabemos até que ponto o Hamas, ou melhor, a sua ala militar, tinha sofrido as consequências do ataque aos “kibutzim” e aos postos militares israelitas em torno da “Faixa”. Mas a ferocidade desse massacre totalmente falhado produziu um tal choque em Israel que este recaiu na armadilha de Gaza, da qual se tinha emancipado em 2005, pensando sufocar a questão palestiniana sob uma eterna borbulha. Irritado com os avisos dos americanos e de uma parte da cúpula militar, Netanyahu desencadeou o castigo colectivo dos habitantes de Gaza, comparados ao Hamas, apelidados de “animais humanos” pelo ministro da Defesa Yoav Gallant. (continua)

11 Abr 2024

O declínio do Império Americano

“The rise and fall of great powers is, thereby, the central dynamic of international politics”.

The Rise and Fall of the Great Powers – Paul Kennedy

A causa principal de uma possível guerra em grande escala deve-se ao rápido declínio do Império Americano. A pretensão global corroeu a nação. Põe em causa a sua existência. E revela o seu lado maníaco-depressivo. Doença dos impérios, oscilando entre o delírio de omnipotência, com a sua excitação psicomotora, e a depressão catatónica, manifestada pela abulia e pela distimia. Em nada menos de trinta anos, a potência número um passou do unipolarismo geopolítico ao bipolarismo psíquico. O pêndulo de Washington oscila entre a expansão ilimitada e a contracção descontrolada.

Considerando as invasões e outros envolvimentos militares, de todos os Estados, apenas Andorra, Butão e Liechtenstein não experimentaram a presença de forças armadas dos Estados Unidos no seu território. Os americanos podem estar a aproximar-se da sua concha, a Ilha da América do Norte constituída pelos Estados Unidos mais o Canadá, mas sem o México, um veículo de infecção migratória. É difícil que o descanso seja poupado à festa dos Estados Desunidos. A melancolia que aflige os americanos desencadeia no resto do Ocidente, a Europa atlântica à cabeça, síndromes de abandono desordenado.

Em contrapartida, no duplo inimigo sino-russo, par improvável gerado pela palidez visível das estrelas e riscas, como nos outros adversários declarados, do Irão à Coreia do Norte, prevalece o sentimento de poder esbofetear o antigo poder hegemónico sem arriscar a pele. No caso Iraniano, pagando direitos limitados, enquanto na família Kim o limiar da dor parece mais elevado. Talvez se trate apenas de uma encenação. Se assim não fosse e o sumo-sacerdote do Juche (a ideologia oficial do regime de Kim Jong-un) descongelasse o jogo coreano ao fim de mais de sete anos, a III Guerra Mundial rebentaria por fusão das peças evocadas pelo profeta Papa Francisco quando afirmou que a “terceira guerra mundial foi declarada” e que o conflito na Ucrânia “talvez tenha sido provocado”.

A possível guerra espalha-se de diferentes formas. À frente quente na Ucrânia juntou, desde 7 de Outubro de 2023, Israel e o Médio Oriente. Teatros que adquirem uma dimensão mundial graças ao envolvimento dos Estados Unidos e aos ataques do Outono no Mar Vermelho, confluência entre o Atlântico e o Indo-Pacífico. No antigo Terceiro Mundo, curiosamente rebaptizado de Sul Global, os tabus da superpotência e a fragilidade das antigas nações imperiais europeias excitam vontades de vingança dispersas após séculos de colonização ocidental. A “Terra do Caos” está a expandir-se à medida que se torna mais caótica. Entre colisões de poderes e convulsões nas zonas de baixa pressão geopolítica que rodeiam a Europa, todas as linhas vermelhas se esbatem simultaneamente. Vista de Bruxelas, esta deriva representa o pior cenário possível que é a negação dos interesses vitais europeus.

O catálogo de desgraças traduz uma tempestade na América, virada sobre si e convencida de que está a apostar tudo em jogo na luta com a China; uma crise no império euromediterrânico dos Estados Unidos, do qual a Europa é uma província importante; uma tensão entre o Ocidente colectivo (slogan de Putin) e o Sul global (imprecisão homologada pelos meios de comunicação), ou seja, entre um oitavo da população mundial, conservadora porque rica e de idade média, e os restantes sete, adolescentes precários e inquietos, revolucionários muitas vezes imaginários e, portanto, imprevisíveis; a guerra semi-directa contra a Rússia na fronteira oriental, com Moscovo a penetrar no mar mediterrâneo para criar os seus portos de escala e fortalezas entre o Levante e a África; o oportunismo neo-imperial turco, uma lição para aqueles que ainda acreditam na santidade das alianças; a ingovernável diferença e desfaçatez francesa à Europa do Sul (correspondida), com Paris em modo predatório face ao que resta da indústria avançada daquela zona da Europa e a rotação da Alemanha sobre si.

Para os apocalípticos, a III Guerra Mundial foi anunciada, tendo em conta o ponto de partida das duas primeiras. Nas dobras da possível guerra está o confronto fatal entre os Estados Unidos e a Alemanha. Existe uma má visão que a América está a tentar seguir na guerra da Ucrânia, pois cada golpe da América na Rússia é também um golpe na Alemanha e vice-versa. O mesmo se aplica à China. A Europa foi avisada e meio salva, porque se voltasse a negociar em grande escala com os russos e chineses com os alemães no meio, como fizeram durante décadas nos domínios da energia, do comércio, da indústria e outros, a retaliação seria pesada. A cadeia Pequim-Moscovo-Berlim, que a América sente apertar-se à volta do seu pescoço, não poderia e não poderá envolver a península central do Oceano, um semi-protectorado das estrelas e das riscas.

O confronto entre os Estados Unidos e a Alemanha, uma constante da I Guerra Mundial, da II Guerra Mundial e, eventualmente, da III Guerra Mundial, é totalmente assimétrico. Uma coisa é o número um, que luta pela sobrevivência. Outra bem diferente é ser o antigo aspirante a potência hegemónica, esmagado em 1945 e submetido a uma lavagem cerebral tão lenta que lhe distorceu as feições e o meteu no casulo da grande Suíça. De tal forma que convenceu muitos alemães da replicabilidade do paradigma suíço. Neutralização de facto insustentável depois de 24 de Fevereiro de 2022. Tal, é apercebido, talvez antes dos alemães que ainda se debatem com os efeitos secundários do excesso de hipnóticos que lhes foram administrados pelos vencedores. Os americanos entram, os russos saem, os alemães caem.

Os Estados Unidos continuam a tratar a Alemanha como um sujeito impróprio. Inimigo latente. Como o reflectido na ameaça do Presidente Biden ao Chanceler Scholz na conferência de imprensa conjunta na Casa Branca em 7 de Fevereiro de 2022 onde é afirmado que se a Rússia voltar a invadir a Ucrânia, não haverá “Nord Stream 2” (que é uma cadeia de gasodutos que transportam gás natural pelo Mar Báltico e da Alemanha, uma grande parte do gás é redistribuído para outros países da Europa). É perguntado ao Presidente Biden como iriam fazer, uma vez que o projecto está sob controlo alemão? Tendo este respondido sem tergiversações de que o fariam e o Chanceler alemão perante tal resposta não esboçou qualquer sinal de oposição. O caso do “Nord Stream 2” é apenas o mais impressionante dos infortúnios que se abateram sobre a Alemanha desde o fatídico 24 de Fevereiro de 2022.

A lista de desastres sofridos até à data é longa. A começar pela perda do gás russo, substituído pela Noruega numa quota-parte de necessidades (60 por cento) quase igual à anterior, com um mínimo de diversificação. Seguida da contracção do comércio com a China, de que sofre sobretudo a indústria automóvel, despreparada para a agressão dos carros eléctricos no mercado chinês e não só. Mais uma vez, a Alemanha perde o controlo sobre o seu império geoeconómico informal, a Mitteleuropa alargada ao Leste de França e ao Norte de Itália, com a Polónia a empurrar-lhe para a cara a factura das reparações devidas pelo tratamento dado pelos nazis no valor 1,3 mil milhões de euros.

A Polónia nunca os verá, mas o gesto impressiona. A face geoestratégica desta crise reside na afirmação da Polónia como o parceiro europeu privilegiado pelos Estados Unidos numa função anti-russa. E na tentativa americana de descarregar sobre a Alemanha e, portanto, sobre os outros europeus, os milhares de milhões de euros que foram calculados para pôr a Ucrânia de pé. A recessão, até agora modesta (-0,3 por cento), não é apenas conjuntural. Na verdade, exprime uma paragem estrutural do motor económico do continente devido à falta de combustível. O motor terá de ser reconstruído e o combustível terá de ser mudado. Isso levará muitos anos. A repercussão política da crise reside na queda vertiginosa do prestígio e da influência da Alemanha na Europa e no mundo.

Se houvesse uma votação agora, o governo estaria em minoria. A estrela neo-nacionalista da “Alternativa para a Alemanha (AfD) ” brilha na antiga RDA, de tal forma que as autoridades sugeriram a sua ilegalização por “migração” neo-nazi. Um quinto do eleitorado seria desqualificado. Não há vestígios do rearmamento anunciado pelo Chanceler alemão. As forças armadas alemãs continuam a ser o menos eficaz dos exércitos dos principais países europeus. Enquanto se espera que a terapia reparadora faça efeito, há quem pense em deitar a mão à bomba atómica. Opção impensável ontem, debatida hoje. Porque o guarda-chuva americano não está lá, apenas com Trump na Casa Branca. Há os que evocam a europeização do arsenal francês, tabu para qualquer inquilino do Eliseu, e os que acrescentam uma bomba para cinco que são a França, Alemanha, Itália, Polónia e Espanha.

Um condomínio decididamente heterogéneo. É também uma forma de habituar a opinião pública a considerar a alternativa por defeito. Alguns sugerem uma aproximação à Rússia e à China, quase como se o perigo viesse do exterior. O AfD é mais do que favorável, pois se a OTAN não nos protege, protejamo-nos com os seus (e não nossos) inimigos. É melhor estar à mesa do que na ementa. Por baixo da pele, os velhos laços com a Rússia e as relações de interesse com a China estão à espera que o massacre ucraniano seja reavivado. A começar pelo canal do Báltico, talvez reduzido a metade. Se, na Alemanha, há um vale-tudo, o AfD propõe o Dexit, um divórcio ao estilo britânico da família da União Europeia, enquanto a América mantém tudo sob controlo, e para os europeus o cenário escurece.

Sobretudo se tivermos em conta a interdependência industrial entre os países do Sul da Europa e a Alemanha, a “segunda fábrica europeia”, o orgulho nacional, é, na realidade, o “único bis”, porque respira a pulmões teutónicos (e, em menor grau, vice-versa). O sentido profundo da crise alemã é que tudo na Europa parece estar a estacionar. Paradoxalmente, a principal razão pela qual a guerra continua é precisamente a de que os termos das longas tréguas que se seguiriam – a verdadeira paz não é para este século – são bastante previsíveis, a menos que a Rússia, a Ucrânia ou ambas desapareçam do mapa geopolítico (e nós Europeus, eventualmente, com elas) com Kiev a trocar a cessão de territórios ocupados por Moscovo por rigorosas garantias de segurança do Ocidente amigo, bem como da Rússia inimiga e de outras potências, sobretudo a China.

Mas como fazer com que os povos beligerantes cheguem a um tal entendimento? Quando Putin e Zelensky ou quem quer que seja encontrarem uma forma de não perderem a face e em lugar de assinarem o acto de tréguas, assinarão talvez um acordo de quatro etapas. Primeiro, um cessar-fogo por tempo indeterminado, com a interposição de um contingente internacional de manutenção da paz, para o qual teriam contribuído os Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá, Polónia, Itália, Israel, Turquia e outros. Também teríamos querido a China, mas Washington estava preocupado com o facto de Pequim se intrometer na fronteira armada entre o seu império e a Rússia. Este grupo de países também teria promovido os passos seguintes. Por esta ordem, a de uma Ucrânia neutra protegida pelas garantias internacionais das grandes potências, com o início imediato das negociações para a entrada na União Europeia; a confirmação dos acordos ucranianos feitos aquando da independência em troca de um governo autónomo para as zonas da Geórgia, com o entendimento não escrito de que a Crimeia e Sebastopol continuariam a pertencer a Moscovo; finalmente, o ponto decisivo seria o início das negociações para um tratado internacional entre os Estados Unidos, a Rússia e as potências europeias para a paz e a segurança na Europa.

Putin fez saber à diplomacia europeia que apreciava este último ponto, que abriu a porta ao entendimento pan-europeu reclamado por Moscovo. Em conformidade com a aspiração secular da Rússia de participar no equilíbrio de poderes na Europa. Mas Biden e sobretudo Johnson, que tinham acabado de sabotar o acordo de cessar-fogo negociado e parafraseado pelos russos e ucranianos na Turquia, não tencionavam discutir o assunto. O que resta dessa iniciativa, apresentada com um eufemismo nostálgico como um “conceito aberto”? Muito, se a interpretarmos à luz dos interesses nacionais primários e da urgência, não só europeia, de apagar o fogo antes que destrua a Ucrânia, totalmente dependente de uma ajuda externa cada vez menor.

Estado falhado a reconstruir. Mas também um aviso de que as acrobacias europeias, espremidas como estão entre a Cila do alinhamento com a América sem linha e a Caríbdis da pressa para encerrar decentemente este conflito antes que ele nos domine, corremos o risco de cair entre duas cadeiras. Manobras diplomáticas que nos excluirão do clube dos co-decisores, que só se lembrarão de nós quando tivermos que pagar a conta do renascimento ucraniano, hoje estimado em cerca de milhares de milhões de euros. Na Ucrânia há muito cansaço de todos os lados e aproxima-se o momento em que todos compreenderão que é necessário uma saída.

O apoio militar a Kiev deve ser aliado a uma “acção diplomática incisiva” para parar a guerra. Resta compreender porque é que a quantidade de sabedoria depositada na diplomacia europeia e americana não se expressa de uma forma suficientemente profunda, mas em formas involuntárias ou semi-clandestinas, entre auto-censura, conversas fúteis e notícias falsas para orientar a opinião pública.

O tempo está a esgotar-se. Este ano saberemos se o conflito ucraniano será resolvido ou descarrilado. É pouco provável que se desenrole de forma linear durante muito tempo. A guerra de fricção que a Rússia e o Ocidente impuseram simultaneamente à Ucrânia, por razões opostas mas convergentes, está a esgotar os recursos humanos e materiais do país atacado. A caça aos tesouros que lhe restam está a decorrer. Para Putin, humilhado pelo assalto falhado a Kiev, a redução drástica mas temporária das ambições, em que o objectivo da operação continua a ser restabelecer a Ucrânia como um tampão, se não mesmo a fronteira ocidental do império impõe paciência.

O Kremlin apostou na distracção gradual do Ocidente (facto), na resiliência do complexo militar-industrial russo (outro facto) e no patriotismo exaltado na propaganda que pretende que a Santa Rússia seja a antemuralha dos valores tradicionais contra o Ocidente desperto (funciona, mas não demasiado). Até que ponto é que este esquema se aguenta? Para Biden e os seus apoiantes que hoje, em seu nome, tentam evitar que a América se afunde e que amanhã se dedicarão a sabotar o eventual regresso de Trump à Casa Branca, trata-se de “anular” a Rússia (falhou, por agora), aguentando a resistência ucraniana à custa de a sangrar até à exaustão (feito) e, com ela, a fachada da unidade atlântica (não há tinta que o simule). Os estrategas de Washington estão divididos entre os que gostariam de negociar uma trégua longa e suja com os russos, segundo o modelo coreano, possivelmente antes de o modelo explodir, e os que estão dispostos a sacrificar o último ucraniano para manter a Rússia sob pressão, na esperança de que o regime imploda. O princípio partilhado por quase todos é que a guerra não deve ser travada contra a Rússia em caso algum. Para isso, há os ucranianos. Estamos em guerra por dupla representação, russa e americana.

Os americanos estão a tentar a todo o custo (ucraniano) evitar o colapso de Kiev. Até ao ponto de arriscarem a desertificação do país de que se dizem protectores, mas que, uma vez terminada a guerra, entregarão aos europeus para que cubram os custos da reconstrução. E contar com a substituição de Zelensky pelo general Valerii Zaluzhnyi, ex-chefe das Forças Armadas e, portanto, seu potencial sucessor, ou por quem mais subscrever a mascarada coreana. O festival dos jogos duplos, ou melhor, múltiplos, conta com a participação dos europeus, que querem abrir as portas da União Europeia a Kiev, enquanto empatam a ajuda financeira e militar, também por falta objectiva de recursos.

Em Bruxelas, calcularam em cento e oitenta e seis mil milhões de euros a ajuda que Kiev receberia em sete anos dos cofres da União Europeia em caso de adesão. Esse montante subiria para cerca de duzentos e cinquenta e sete mil milhões de euros no caso de um alargamento que incluísse a Moldávia, a Geórgia e os seis Estados dos Balcãs Ocidentais na fila de espera em frente aos cofres da União Europeia. Para os Europeus, cada dia que passa agrava o dilema de como garantir que a agressão russa é recompensada sem destruir totalmente a Ucrânia e desestabilizar a Europa para o conseguir? Se a guerra de fricção continuasse, teríamos de lidar com um enorme buraco negro na junção com a cortina de aço anti-russa, guardada pelas vanguardas atlânticas do Nordeste.

Para lá da costa adriática, teríamos de viver com a constelação recortada dos Grandes Balcãs, incluindo o que restará da Ucrânia, a começar pela quantidade de armas enviadas para Kiev e depois dispersas, das quais até os americanos perderem o rasto. De todas as ameaças ao quarteto dos nossos interesses primários, a balcanização da Ucrânia é a pior. Porque sancionaria a fractura quebrada do Ocidente e ameaçaria sugar uma parte dele para a “Caoslândia” total. Mesmo que nada aconteça, seria importante para levar a opinião pública a pensar positivamente. A catástrofe não é uma consequência da catástrofe, é uma premissa da catástrofe.

Feliz Páscoa!

28 Mar 2024

O inimigo da paz

“Bibi Netanyahu has an innocent-sounding first name. But he is the danger man for a dangerous region. Even an avid supporter like Trump knows that Bibi doesn’t want peace. On and off, for the 16 years he has occupied Israel’s highest office, he has butchered tens of thousands of Palestinians. Under him, Gaza has endured a 16-year blockade, with itsa 2 million-plus population languishing in a virtual concentration camp. Now, Netanyahu threatens to Hiroshima it with a massive non-nuclear ground invasion.”
Hendrick Kung

Em 2009, Israel regressa às urnas e o Kadima voltou a ganhar com Tzipi Livni, mas não tinha os assentos necessários para governar. Em vez disso, Netanyahu (conhecido por Bibi) consegue-o, graças a um acordo com o líder da extrema-direita Avigdor Lieberman. É o seu segundo governo, ao qual se seguirão outros quatro, que lhe permitirão bater o recorde de Ben Gurion como o primeiro-ministro com mais anos de governo da história de Israel, ou seja, mais de 14 anos de poder, desde 2009, excepto o interlúdio dos governos Bennett e Lapid (Junho de 2021-Dezembro de 2022). Em 2010, Obama reiniciou as negociações à distância entre Netanyahu e Abu Mazen, que foram interrompidas quando Bibi retomou a colonização da Cisjordânia a toda a velocidade. E volta a atacar Gaza em 2012 com a “Operação Coluna de Nuvem”.

Em 2013, ganha novamente as eleições e regressa ao cargo de primeiro-ministro pela terceira vez. No ano seguinte, lança um novo ataque violento contra Gaza para atingir o Hamas. É a “Operação Margem Protectora” (dois mil e duzentos palestinianos e setenta e um israelitas mortos). Em 2015, Netanyahu consegue declarar no “Congresso Sionista Mundial”, como qualquer negacionista, que “Hitler não queria exterminar os judeus, apenas expulsá-los”, mas depois foi atraiçoado pelo Mufti de Jerusalém (tio de Arafat). Mas a maioria dos eleitores continuou a votar nele. Nas eleições antecipadas do mesmo ano, volta a ganhar e forma o seu quarto governo, novamente entre o Likud e a extrema-direita nacionalista e religiosa. No entanto, já estava a ser investigado em três processos diferentes por corrupção, fraude fiscal e quebra de confiança (correspondente ao nosso abuso de poder).

E, ao contrário de Olmert, ataca frontalmente o poder judicial, acusando-o de fabricar falsas acusações contra ele. Em 2018, faz aprovar uma lei constitucional que altera a natureza secular e multiétnica de Israel, transformando-o num “Estado-Nação do Povo Judeu”. No mesmo ano, Netanyahu concorda que o Qatar deve transferir milhões de dólares por ano para o governo do Hamas em Gaza. Numa reunião do Likud, chega mesmo a confessar que “quem quiser impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o reforço do Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia, de isolar os palestinianos de Gaza dos palestinianos da Judeia e da Samaria” (mesmo com o famoso muro de separação, que ele prolonga com uma barreira subterrânea muito cara).

Um conceito que ele irá mesmo reiterar perante a polícia que o interroga num dos seus julgamentos, dizendo “Temos vizinhos que são nossos arqui-inimigos… Envio-lhes mensagens a toda a hora, engano-os, desestabilizo-os, provoco-os e bato-lhes na cabeça… Controlamos a altura das chamas”. Ele ilude-se, como um aprendiz de feiticeiro, para guiar as chamas do Hamas para queimar Abu Mazen. Tal como pensa que está a remover o furúnculo palestiniano sem o curar, mas ignorando-o enquanto espera que desapareça por si próprio. Em 2019, Israel regressa às urnas e Netanyahu volta a ganhar, mas não consegue formar governo e obriga o Knesset a “dissolver-se” por lei e a mandar o país de novo às urnas. Mas nem mesmo desta vez surge uma maioria clara, antes o partido centrista “Azul e Branco” do antigo chefe do Estado-Maior do Exército, Binyamin “Benny” Gantz, ultrapassa o Likud por alguns pontos.

E ninguém consegue quebrar o impasse. Em 21 de Novembro, o procurador-geral Avichai Mandelblit decidiu acusar (ou seja, colocar em prisão preventiva) Netanyahu, que se tornou assim o primeiro primeiro-ministro israelita a ser acusado no exercício do cargo (embora apenas por assuntos correntes). As acusações são de fraude e abuso de confiança em dois casos; e de suborno, fraude e abuso de confiança num terceiro caso. O primeiro caso (fraude e abuso de confiança) diz respeito a presentes muito caros oferecidos a Bibi por dois amigos ricos (o magnata de Hollywood Arnon Milchan e o bilionário australiano James Packer) em troca de favores como a ajuda na obtenção de vistos, facilitação e promoção de interesses comerciais.

Segundo a acusação, os dois terão oferecido ao primeiro-ministro e à sua terceira mulher Sara (uma antiga hospedeira de bordo com quem casou em 1991) mais de duzentos e sessenta mil euros, bem como viagens e estadias em hotéis. No segundo caso (fraude e abuso de confiança), Netanyahu deve responder por ter usado a sua influência política sobre o editor do diário gratuito “Israel Hayom” para favorecer o seu principal concorrente, o jornal “Yedioth Ahronoth”, que deveria retribuir escrevendo bem sobre ele. Mas o acordo acabou por não se concretizar. O terceiro caso é o mais grave (corrupção, fraude e abuso de confiança) e diz respeito às decisões de Netanyahu enquanto ministro das telecomunicações e nessa qualidade, teria favorecido o “guru dos média” Shaul Elovitch, proprietário do primeiro colosso editorial “Bezeq”, para obter boa imprensa no seu site “Walla News”.

De acordo com os investigadores, o primeiro-ministro e a sua mulher Sara, bem como Elovitch e a sua mulher, intervieram continuamente para influenciar o conteúdo do sítio, chegando mesmo a controlar as nomeações de jornalistas. Em troca, Netanyahu terá aprovado regulamentos pró-Elovitch e várias facilidades que renderam ao magnata mais de quinhentos milhões de dólares. Em Israel, os arguidos não podem ser ministros e, se os ministros acabam por ser julgados, o Supremo Tribunal obriga-os a demitir-se. Mas uma lacuna na lei permite salvar os primeiros-ministros que estão a ser julgados, até porque ninguém antes de Bibi tinha estado nessa posição (Olmert tinha-se demitido antes), no pressuposto de que devem sair se forem condenados no recurso. No entanto, é sempre possível que o Supremo Tribunal se pronuncie sobre o caso de Bibi, preenchendo essa lacuna, pois de facto, Netanyahu está a começar a colocá-lo na mira.

Em 2020, como não há acordo, Israel volta às urnas. Desta vez, Netanyahu e Gantz chegam a acordo sobre um “governo de emergência” em forma de estafeta, ou seja, Bibi assume a sua liderança, à espera de passar o testemunho a Benny. A 13 de Agosto, em plena emergência Covid, Netanyahu assina na Casa Branca os “Acordos de Abraão”, mediados pelo seu amigo Donald Trump, com os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein, estabelecendo relações diplomáticas com estes países (à semelhança das sancionados com o Egipto e a Jordânia). Seguiram-se acordos semelhantes com Marrocos e o Sudão. E está a ser preparado o muito mais decisivo com a Arábia Saudita. Tudo sobre a cabeça e a pele dos palestinianos. A grande ideia prevê, pelo menos numa primeira fase, a luz verde para a anexação de 30 por cento da Cisjordânia, ou seja, dos territórios que rodeiam as colónias judaicas. Uma dupla provocação para o povo dos Territórios e para a Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) do cada vez mais fraco Abu Mazen.

E mais um favor inesperado para os extremistas do Hamas. Em 2021, o governo de amplo acordo desmorona-se e tanto Gantz como Netanyahu optam por mais uma votação antecipada. O Likud volta a ser o partido líder, mas Bibi não consegue encontrar o número de assentos para governar. E, desta vez, a oposição une-se contra ele, interrompendo o seu reinado após 12 anos ininterruptos. A 13 de Junho, Naftali Bennett, líder da “Yamina” (a nova federação da direita anti-Likud), aliou-se aos centristas liderados por Gantz e Yair Lapid, mas também a grupos de esquerda e (pela primeira vez) a um partido árabe, e tornou-se primeiro-ministro. A fórmula do revezamento regressa, e os dois primeiros anos da legislatura para Bennett, os outros dois para Lapid. Em Março de 2022, Bennett declara a neutralidade de Israel na guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia.

Apesar da pressão de Biden, apenas envia aos ucranianos armas defensivas, capacetes e escudos militares. E oferece-se como mediador entre Moscovo e Kiev. Mas justamente quando um cessar-fogo parece próximo, (ele próprio o diz) o veto conjunto dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha chega para bloquear tudo. Entretanto, em Telavive, a coligação governamental desmorona-se ao fim de apenas um ano. Em Julho, Bennett passa o testemunho a Lapid, na expectativa de eleições antecipadas em Novembro. As sondagens dão a Bibi o favoritismo, com uma maioria relativa de lugares no Knesset. Mas ele, consciente do desaire do ano anterior, não quer arriscar e continua a ter a espada de Dâmocles de um julgamento sobre a sua cabeça. Por isso, apresenta às urnas uma ampla coligação de extrema-direita com os partidos religiosos “Shas” e “Judaísmo Unido da Torá” e, pior ainda, com a direita fundamentalista “Sionismo Religioso”, uma lista encabeçada por Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir.

Este último, líder do “Poder Judaico”, é um supremacista fanático e fascistóide, repetidamente acusado e uma vez mesmo condenado por incitar ao racismo contra os palestinianos, também famoso por ter ameaçado publicamente Rabin duas semanas antes do seu assassinato. Um aliado indesejável até para os seus amigos americanos na administração de Joe Biden. Nas eleições de 1 de Novembro de 2022, a coligação de Netanyahu venceu com sessenta e cinco dos cento e, após dois meses de negociações frenéticas, Bibi formou o seu sexto governo. O mais à direita de toda a sua história e da história de Israel. Anuncia imediatamente uma reforma contra a justiça para colocar o Supremo Tribunal sob a alçada do governo. Nomeia Aryeh Deri, líder do “Shas”, condenado por suborno e fraude fiscal, para Ministro do Interior, mas o Tribunal obriga-o a demiti-lo. Em vez disso, Ben Gvir torna-se nada menos que Ministro da Segurança Nacional e, a 3 de Janeiro de 2023, estreia-se com uma caminhada na “Esplanada das Mesquitas” em Jerusalém, imitando a caminhada de Sharon que desencadeou a segunda Intifada em 2000.

Poucos dias depois, o exército invade Jenin, na Cisjordânia, onde morrem uma dúzia de palestinianos. No dia seguinte, um ataque palestiniano mata nove israelitas em frente a uma sinagoga em Jerusalém Oriental. E os confrontos voltam a explodir tanto na Cisjordânia como em Gaza. Na política externa, Netanyahu confirma a linha de Bennett com nenhum envio de armas ofensivas para a Ucrânia. Na política interna, o seu verdadeiro inimigo são os magistrados que o julgam e o Supremo Tribunal que o pode expulsar se for condenado. De facto, já em Janeiro, apresentou a sua anunciada reforma judicial, que dá ao governo (ou seja, a si próprio) mais poder na nomeação dos juízes e ao parlamento (ou seja, à sua maioria) o poder de anular as decisões do tribunal com uma votação de 50 por cento +1. É um ataque à divisão de poderes, a pedra angular de todas as democracias, incluindo a israelita.

E, desde Fevereiro, as pessoas saem à rua praticamente todos os dias em Telavive, Jerusalém e em todas as principais cidades do país, protestando contra essa lei, mas também contra outra que é a criação de uma força policial especial, a “Guarda Nacional de Israel”, directamente dependente do ministro Ben-Gvir.

Netanyahu foi em frente, mas a 27 de Março, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, criticou a reforma do Tribunal e o primeiro-ministro expulsou-o na mesma noite, decapitando efectivamente as forças armadas (um gesto de que se arrependeria amargamente alguns meses mais tarde). As ruas e praças ficam ainda mais inflamadas com manifestações pró-Gallant, greves, barricadas, confrontos, marchas, até de soldados e reservistas enfurecidos. Bibi é forçado a voltar atrás no despedimento do ministro. Mas, em Julho, fez com que o Knesset aprovasse a lei anti-judiciária em etapas forçadas, lançando mais achas para a fogueira.

Nessa altura, o Presidente da República Isaac Herzog interveio, apelando a Netanyahu para que retirasse a reforma. Israel nunca esteve tão dividido biblicamente em quarenta semanas de protestos ininterruptos. No final, o primeiro-ministro concordou em congelar a medida enquanto se aguarda uma mesa redonda com as oposições, mas não a da Guarda Nacional. Entretanto, continua a financiar novos colonatos na Cisjordânia como antes e mais do que antes, pois em apenas seis meses, o seu governo aprova a construção de mais treze mil casas do outro lado da fronteira. Trata-se de um recorde desde 2012. E uma escolha tão cínica quanto suicida. Os dados demográficos são impiedosos, dado a taxa de natalidade dos palestinianos ser superior à dos judeus israelitas e uma anexação da Cisjordânia (com o direito automático de voto para os seus habitantes) entregaria em breve a maioria parlamentar à população árabe e “Adeus Estado Judaico”.

Mesmo a ideia de uma anexação parcial é insustentável, porque dizer adeus à fórmula “dois povos, dois Estados” deixaria Israel cercado e sitiado por populações ainda mais hostis do que é actualmente. É impensável imaginar um paraíso rodeado de inferno. Sharon compreendeu-o em 2005. Netanyahu não o entendeu agora e varre o pó velho para debaixo do tapete e acumula pó novo. Em 1993, ano de Oslo, havia cento e trinta e seis mil colonos na Cisjordânia. Depois, Rabin reduziu-os e Sharon também, desde 2004. Actualmente, são cerca de quatrocentos e setenta mil na Cisjordânia e duzentos e trinta mil em Jerusalém Oriental, distribuídos por duzentos e setenta e nove colonatos em que metade deles nem sequer são reconhecidos pelo governo, ou seja, duplamente abusivos. Ocupando os territórios palestinianos mais férteis e ricos em água, os colonos são mal vistos pelos invasores, despojados de terra e água, muitas vezes expulsos das suas casas, não raro destruídas para os mandar embora.

Por isso, Israel é obrigado a fazer enormes esforços para os proteger, com cerca de quinhentos postos de controlo e grande parte do exército reduzido à sua escolta armada. Na frente norte da Cisjordânia, o governo de Netanyahu mantém vinte e seis batalhões do exército, deixando os serviços secretos (outrora os melhores do mundo) sem bússola, e a frente sul de Gaza, guarnecida por apenas duas companhias de recrutas e a polícia local, desprotegida. Para Netanyahu, o Hamas já não é uma emergência, dado que em 2023, o Governo deixa de pôr os seus dirigentes sob escuta para “não desperdiçar recursos”. E logo na frente sul, às 06h30 de 7 de Outubro de 2023, no dia seguinte ao 50.º aniversário da guerra do “Yom Kippur”, enquanto Israel festeja a “Simchat Torah” (Alegria da Torah), o Hamas lança a operação “Dilúvio de Al Aqsa” com dois mil e quinhentos terroristas que se infiltram de Gaza em Israel, atravessando a fronteira a bordo de carrinhas, camionetas, motos, asas-delta e parapentes.

E atingem vários “kibutzim” na fronteira com a Faixa de Gaza e uma festa Rave. O Estado judaico é apanhado totalmente desprevenido, exactamente como no Kippur, cinquenta anos antes, e apesar dos avisos dos serviços secretos egípcios e americanos sobre o perigo iminente de Gaza. É uma carnificina, um ” pogrom”, o pior massacre de civis jamais sofrido por Israel com cerca de mil e quatrocentos mortos num dia (incluindo muitas crianças, rapazes e mulheres) e duzentos e trinta e nove reféns. Netanyahu, agora no fim da corda, proclama o estado de guerra, como não fazia desde 1973. Tenta recompor o país que ele próprio dividiu, com um governo de unidade nacional a que se junta Benny Gantz. E desencadeia a operação “Espada de Ferro na Faixa de Gaza” que é um cerco com lançamentos indiscriminados de mísseis, ataques aéreos e incursões por terra, mar e ar, que cheira a retaliação decidida com raiva, a “vingança colectiva” contra a população, uma vez que os dirigentes do Hamas estão quase todos no estrangeiro, entre o Qatar e a Síria.

Os relatórios da ONU são aterradores e indicam sete mil palestinianos mortos, incluindo três mil crianças, só nos primeiros vinte dias; 40 por cento das casas destruídas; cerca de seiscentos mil deslocados (mais de um quarto da população) em fuga para a parte sul da Faixa de Gaza e para o deserto do Negev; uma catástrofe humanitária e sanitária; ajuda alimentar em abundância que demora muito a chegar aos destinatários (as fronteiras com o Egipto e Israel estão seladas, salvo algumas brechas esporádicas). E uma catadupa de anúncios loucos de invasão de terras sem um plano ou uma saída. Até à data, o número de mortos subiu para trinta e um mil e trezentos e de feridos para setenta e três mil e cem. Todos os dias estes números aumentam e a comunidade internacional não tem uma solução imediata para parar a carnificina.

Entretanto, o Hamas, longe de estar enfraquecido, continua a atacar o Estado judaico com quase dez mil rockets em três semanas. E atinge dois dos seus objectivos com o “pogrom” que é o congelamento dos novos “Acordos Abraâmicos entre Israel e a Arábia Saudita” e uma guerra aberta com o Estado judaico na selva de Gaza. Se, a 7 de Outubro de 2023, Israel tinha regressado por um dia ao lado da direita, ou pelo menos do agredido, em poucas horas Netanyahu conseguiu a árdua tarefa de o fazer regressar ao lado errado, ou pelo menos do agressor. A profecia de Gandhi torna-se realidade pois à força de “olho por olho”, ficaram todos cegos.

21 Mar 2024