Manuel de Almeida VozesÀ Sombra da Cidade “Não que de Macau eu tenha queixas. Pelo contrário: afeiçoei-me à terra e aqui fiquei. Nunca ganhei nem perdi dinheiro no jogo, porque nunca joguei; nunca ganhei rios de dinheiro nem cousa que com isso se parecesse porque, além de outras razões, em Macau, rios de dinheiro, honestamente, ninguém pode ganhar.” Manuel Silva Mendes (1867-1931); professor, sinólogo, filósofo, advogado [dropcap]S[/dropcap]ophia de Mello Breyner (1919 – 2005) dizia que o ócio é o trabalho do poeta. O meu é vaguear – “ não sei por onde vou/ sei que não vou por aí”, sigo as palavras de José Régio (1901 – 1969) –,sem horas, sem destinos, sem objectivos – desbloqueio a cabeça – e é aí, quando menos espero, que as ideias me visitam – abandonei a cidade nos últimos anos, vivo inconformado. Gasto os caminhos com os meus passos ao visitar diariamente a cidade. O tempo não é inocente ao percorrê-la agora. O tempo devora o espaço, um espaço vazio de existência. Esta brusca interrupção da vida criou um sentimento de ansiedade, solidão, medo – e o medo substitui a esperança. A cidade foi devolvida aos habitantes. O bafo quente já castiga, mas prefiro aos dias cinzentos de chuva, frio, de ar abafado, húmido. A cidade nesses dias parece obscurecida por um humor colectivo – triste, zangada, melancólica, aborrecida, deprimida. Não é imaginação minha, é pura realidade: Macau não é uma cidade de chuva. Macau ergueu-se de desamparos e alimenta-se de silêncios – para calar silêncios, precisamos de novas elites, novos protagonistas –, mas mesmo as novas elites, novos protagonistas, são uma classe proletarizada no gosto, na educação e na ambição, vivem em crise de ideias e valores – vivem de preconceitos e dogmas. O maior défice da sociedade de Macau é o pensamento. Houve uma degradação do “ser” em “parecer”, para citar o autor de “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord. Ao calcorrear as calçadas da história, tropeçamos, involuntariamente, nas palavras da poesia, ruas arrumadas em toponímias – perdemo-nos a folhear um passado presente – , andamos até desaguar em pátios fabulados de fábulas. Macau tem história e muitas histórias para contar. Considero-me um Homem de sorte por ter visto/vivido Macau num estado poético. É aqui, na malha urbana da cidade, que a estética é a do improvável e do incongruente – “nós ao sentir evaporamo-nos”, como dizia Rilke. Em Macau, o passado é construído no presente, é uma realidade física tão perceptível quanto a luz do sol que nos ilumina e nos reconforta. Ao longe, surge como um quadro fantástico, não é mais na realidade do que um simples amontoado de ruas estreitas, íngremes, fechadas, escuras, sem o mínimo de carácter, povoadas por um conjunto de velhas casas. Esses labirintos – vasos capilares –, ainda transportam uma beleza “naive” e as velhas casas já mudas, cegas e surdas, uma dormência irespirável, desmoronam-se na solidão, no abandono – do esplendor à ruína. É aqui que se sente o seu real e verdadeiro batimento cardíaco – respira mais vagarosamente – e se pode olhar verdadeiramente a alma de Macau. Aqui, não há sangue novo – há uma serenidade imposta. Uma cidade sem alma convida ao sono. As pessoas vivem uma tristeza disfarçada de tímida felicidade. É com esta gente, nestes meios, e cito Sto. Alberto Magno, que “na doçura da vida comunitária se encontra a verdade”. Demoramos anos a deixar de ouvir – “E Depois do Adeus” -, já é tempo para termos um olhar mais reflexivo, crítico e sem complexos, não nos devemos martirizar. O objectivo nem sempre é criticar ou culpar alguém, mas ajudar a construir uma nova sociedade, até porque, conforme os tempos, outros tempos virão, as conversas, debates em Macau, vão tendo problemas e discussões diferentes – vamos abrindo consciências ao mundo. Tive o feliz prazer de aqui viver, conviver numa época em que ainda havia pessoas que fizeram frente ao tempo sem nunca ambicionar a eternidade – hoje os tempos são outros! Foram vozes que apareceram para pintar a cidade de cores vivas, nas injustiças, desigualdades, desonestidades, ignorância, corrupção, boçalidade e uma pitada de novos sabores na justiça, igualdade, fraternidade transparência, exigência, verdade. O meu olhar ocidental – nunca o corrigi – leva-me por vezes a uma reflexão instável, movediça, contraditória – sem nunca cristalizar o pensamento –, como acontece quando vagueio pelas vielas, becos e pátios. Não me sinto filho da terra – os tempos também são outros -, mas para falar verdade também não me sinto completamente de outro lugar algum, mas preservo e tento vitalizar e revitalizar a minha ligação com “Ao Men”. É preciso olhar a cidade com um outro olhar. É urgente regenerar a habitação e o pequeno comércio de bairro. Criar novas dinâmicas do quotidiano, mobilidade, aumentar a qualidade de vida dos moradores, requalificar e fixar espaços públicos e reforçar dinâmicas culturais. Além disso, é essencial, para promover e dispersar o turismo, limpeza, casas de banho, iluminação, ambiente, segurança, nova sinalética e sobretudo limitação de tráfego e estacionamento. Nostalgia de uma outra vida, mais humana… é humano idealizar o passado e alimentar a nostalgia. Volto quando a tarde avança, lentamente, à conquista da noite, as sombras são agora mais lânguidas… o que nos define é o prazer, a alegria e a felicidade!
João Santos Filipe VozesMais três milhões [dropcap]“(…) M[/dropcap]antendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes”. Antes de 1999, os democratas já colocavam exposições nas ruas com informação sobre o Massacre de Tiananmen, por isso esperava-se que pelo menos até 2049 este aspecto não fosse alterado. Argumenta-se que existe riscos de propagação da covid-19. A preocupação não é descabida, mas basta entrar nos autocarros, principalmente no 25 e 26A ao fim-de-semana, para perceber que a covid-19 não foi uma consideração. E em 2021, coincidência das coincidências, haverá obras em todos os espaços da exposição. Como sabemos, as obras não permitem que hajam condições de segurança. É uma desculpa que já foi utilizada antes. Sobre a questão quero ainda sublinhar as palavras de Joey Lao. A exposição viola o princípio um País, disse o académico sem conseguir explicar a teoria sem negar a Lei Básica. É nas crises que surgem as oportunidades, meus amigos. Joey Lao apenas utilizou o grande argumento que tudo pode abarcar e vai servir para a caçar as bruxas. Não concordas com o Massacre de Tiananmen? Estás a violar o princípio um País. A Lei Básica impede a aplicação do sistema socialista? Está a violar o princípio um País. Compraste um carro italiano em vez de chinês? Mais uma violação do princípio… A liberdade de expressão da população é seriamente ameaçada, mas o deputado vai ser nomeado para um novo mandato. É certinho. E com uma salário próximo das 60 mil patacas por mês, Joey Lao assegurou quase três milhões de patacas até 2025, fora o salário como académico. A vida corre-lhe bem.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPartilha de rendimentos em Hong Kong [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 15, o Conselho Legislativo de Hong Kong aprovou o Orçamento para 2020/21, com 42 votos a favor, 23 contra e 1 abstenção. A população acolheu com bastante agrado a decisão do Governo de entregar a cada residente, com mais de 18 anos, a quantia de 10.000 dólares de Hong Kong. O Governo local prevê que as candidaturas deverão ser aceites em Junho e que os pagamentos serão efectuados em Agosto. Quer o Governo de Hong Kong, quer o Governo de Macau têm vindo a distribuir dinheiro pela população, mas a situação difere bastante nas duas cidades. Macau começou com esta política em 2008, quando o então Chefe do Executivo Edmund Ho propôs o “plano de partilha de rendimentos”. O objectivo era permitir que os residentes de Macau partilhassem os benefícios do desenvolvimento económico, que pudessem fazer face à inflação e era também uma forma de diminuir o impacto da crise financeira que assolava o mundo. Nessa altura, cada residente permanente de Macau recebia 5.000 patacas e os residentes não permanentes 3.000. Desde então, todos os anos se tem efectuado a distribuição de verbas pelos residentes, e os montantes têm vindo a aumentar; este ano o valor ascende a 10.000 patacas. Assim sendo, cada residente permanente de Macau recebeu entre 2008 e a presente data um total de 104.000 patacas; e cada residente não permanente recebeu no mesmo período 62.400 patacas. Esta política conferiu valor aos cartões de residência em Macau. Embora Hong Kong apresente todos os anos o seu Orçamento Anual, não procedeu à distribuição de verbas em todos eles. O primeiro plano de partilha de rendimentos teve lugar em 2011. Nessa época, o secretário das Finanças, Zeng Junhua, na proposta do Orçamento de 2011-2012, sugeria que fosse injectado o montante de 6.000 dólares de Hong Kong na conta do Fundo de Previdência Obrigatório dos residentes, para reforçar a protecção na reforma. No entanto, esta opção foi muito criticada, porque, segundo a sabedoria popular “não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje”. Depois da contestação, os 6.000 dólares por residente acabaram por ser disponibilizados de imediato nesse ano. Em 2020, o Governo colocou na proposta de Orçamento o montante de 10.000 dólares de Hong Kong, sendo esta a segunda vez que a distribuição vai ser feita na antiga colónia britânica. Embora este ano Hong Kong tenha seguido o exemplo de Macau, o Governo tem continuado a ser alvo de críticas, acusado de ter tomado uma decisão tardia. No entanto, como é sabido, mais vale tarde que nunca. Mas, ao contrário de Macau, para Hong Kong esta distribuição de verbas representa um grande esforço. As reservas financeiras de Hong Kong são muito inferiores às de Macau. Há algum tempo atrás, um economista salientou que as reformas pagas aos idosos estavam a estrangular as reservas financeiras e, além disso, o Governo recorreu a parte destas reservas para minimizar o impacto negativo na economia provocado pela Covid-19. É possível que as reservas financeiras do Governo de Hong Kong se esgotem nos próximos dez anos. No entanto, o que acabo de afirmar não passa de uma suposição. Mas uma coisa é certa, desde há muito que as receitas do Governo de Hong Kong provêm principalmente da taxação sobre a venda de terrenos, cujos preços são muito elevados. Os residentes de Hong Kong gastam a maior parte dos seus rendimentos nas prestações das casas. Basicamente trabalham para “ter um tecto”. A vida é dura e as pessoas revoltam-se facilmente. E, mais importante do que tudo, vai chegar o dia em que os terrenos se vão esgotar. Quando isso acontecer, vão também acabar as receitas do Governo de Hong Kong. Quando Tsang Yin-quan foi Chefe do Executivo, quis taxar a venda de todos os produtos para garantir receitas certas ao Governo da cidade. Só se puder contar com um rendimento certo, o Governo pode levar a cabo obras importantes, como o plano de pensões de reforma universal e o apoio à saúde. Sem um rendimento estável, esses projectos são irrealizáveis. É inegável que em Hong Kong é mais difícil disponibilizar apoios do que em Macau. Hong Kong tem cerca de 8 milhões de habitantes, enquanto que em Macau existem apenas 600.000 pessoas, uma percentagem de 13 para 1. Quando o Governo de Hong Kong gasta 13 dólares, o Governo de Macau só precisa de gastar 1 e, para além disso, o rendimento per capita das duas cidades tem sinal contrário. Segundo o relatório publicado pelo Fundo Monetário Internacional em 2019, o rendimento per capita anual em Macau era de 81.151 US dólares, ou seja, 651.967 patacas, enquanto em Hong Kong era de 49.334 US dólares, ou seja 396.349 patacas. Portanto, o rendimento anual per capita em Macau é 1,64 vezes superior ao de Hong Kong. Com muito menos população e mais rico, Macau está sem dúvida em melhor posição para implementar a política de partilha de rendimentos do que Hong Kong. Hong Kong e Macau estão separados pelo mar e as políticas das duas cidades têm valores e referências comuns. Hong Kong não deve apenas seguir o exemplo de Macau no que respeita à partilha de rendimentos e ao plano de segurança social. Mais importante do que tudo é desenvolver uma indústria própria e criar receitas que alimentem o Governo da cidade, para que este possa implementar todas as medidas necessárias. É sobre estas matérias que o Governo de Hong Kong deve reflectir. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Salomé Fernandes VozesLicença para a igualdade [dropcap]É[/dropcap] óbvia a necessidade de as mulheres precisarem de licença de maternidade, e incompreensível a discrepância de dias entre o sector privado e a função pública, principalmente quando nem a última cumpre o período temporal aconselhado pela Organização Mundial do Trabalho. Mas se queremos que haja igualdade de género precisamos de começar a falar mais da licença de paternidade. Com as alterações feitas à Lei das Relações de Trabalho, a figura do pai passa a ter uma licença de cinco dias úteis. É absurdo que seja tão pouco tempo. A licença de paternidade não só permite que o pai passe mais tempo a criar laços com a criança, mas também promove o reconhecimento de que ambos os pais têm um papel a desempenhar no cuidar dos filhos, e torna mais equilibrada a participação das mulheres no mercado de trabalho. Se os cuidados a dar começarem a ser entendidos como uma responsabilidade partilhada quando a criança nasce, pode ser que se torne um padrão para os anos seguintes, garantindo também que a mulher se possa dedicar tanto quanto o homem ao trabalho. A maternidade leva a que muitas mulheres sejam discriminadas de diferentes formas no contexto laboral. Com uma licença de paternidade mais aproximada à da maternidade, é de esperar que eventualmente o género deixe de ser um factor na perspectiva empresarial sobre a contratação ou progressão da carreira.
João Luz VozesSistema secundário [dropcap]E[/dropcap]ntristece-me ter de voltar a escrever sobre este tema. Mas, não posso evitar. Macau está sob ataque, uma ofensiva vinda de dentro e que mina completamente a identidade da região, o seu estatuto jurídico e que visa a rápida homogeneização com o Interior. Esta sexta-feira, em plena Assembleia Legislativa, um deputado nomeado pelo Executivo deu mais uma machadada no brilhante princípio fundador das regiões administrativas especiais e no espírito reformista, não só económico, mas também de valores, implementado por Deng Xiaoping. Um lacaio do fanatismo, que a todos os momentos se quer mostrar prestável ao partido, como um bom cão de guarda, referiu que as exposições que assinalam o Massacre de Tiananmen, violam a Lei Básica, a Constituição da República Popular da China (RPC) e a primeira parte do princípio “Um País, Dois Sistemas”. Não sei se já repararam, mas a parte “Um País” está constantemente a ser violada pela liberdade expressão e pelo pensamento livre, enquanto os “Dois Sistemas” são reduzidos a um plano secundário, ou invisível, pelos adeptos puros do “Um País”. Se certa forma, este princípio é fascinante na mesma medida em que é autofágico, come-se a si próprio, é veneno e antídoto. Algo muito aliciante em termos de filosofia política e filosofia do direito. Pois bem, voltemos às enormidades de Joey Lao. O grande grau de autonomia de Macau e os direitos e deveres fundamentais foram estabelecidos pela declaração conjunta, e também foram plasmados na própria Constituição da RPC. Ficou acordado que em Macau a liberdade dos residentes é inviolável, com pleno gozo da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves. Se Joey Lao não concorda com esta premissa fundamental, que está na génese do que é a RAEM, nunca deveria pertencer a um órgão soberano desta região. Além disso, o Governo que o elegeu deveria demarcar-se publicamente das declarações do deputado por atentarem claramente à Lei Básica, à Constituição da RPC e ao legado de Deng Xiaoping. Importa referir que o mesmo episódio histórico retratado nas exposições foi uma das maiores manchas na carreira política de Deng. Depois há algo de tremendamente irónico nas palavras de Joey Lao, quando referiu que uma exposição de fotografia “não pode ser uma oportunidade para aqueles que têm uma intenção política”. Isto dito por um deputado que quer proibir o exercício de um direito fundamental por razões políticas é o cúmulo da ironia. Além disso, estamos a falar de uma exposição que se realiza há 30 anos, sem registo de perturbações à paz pública ou de ter causado instabilidade em Macau. Já a proibição, feita pela porta do cavalo e ao arrepio da lei, lança óleo numa brasa que mal se sustinha acesa. O antagonismo e a instabilidade, causada pelo medo a vozes críticas, tem sido monopólio do Governo e o único foco de destabilização, dando primazia ao politicamente correcto, em detrimento dos direitos fundamentais. Curiosamente, os mesmos direitos que reclamados por quem tomou a Praça da Paz Celestial. Epá, não me venham com teorias conspirativas nunca consubstanciadas e que contrariam completamente entrevistas, discursos e todos os registos históricos dos protestos em Pequim. Gritar CIA não é um argumento, é um espasmo grunho apologista de um massacre e um certificado de cão de colo. O princípio “Um País, Dois Sistemas” nunca se reduziu ao facto de no sul da China existirem regiões com três moedas diferentes, delimitadas por fronteiras, mas que pertencem à mesma nação. A questão nunca foi meramente cambial e fronteiriça, nem de sistema económico. Depois há outro problema triste no discurso de Joey Lao que acha que as lições dadas pelas exposições “é o tipo de educação que não é precisa”. A forma aberta e despudorada como se censura a história inconveniente é típica de um regime fraco, incapaz de lidar com as próprias falhas, egocêntrico que se olha ao espelho a berrar “eu sou o melhor”. Ironicamente, é um discurso que se aproxima da psique de Donald Trump. Se alguém o critica, se é confrontado com uma citação sua que é embaraçosa, recusa o que está perante os olhos de todos e foge, numa birra infantil, para o abraço maternal da propaganda da Fox News, onde todos lhe dizem que é o maior. Quantas monstruosidades o mundo viveu devido a déspotas narcísicos que não conseguem admitir as próprias falhas? Diria que esta é a educação que mais interessa, que nos faz crescer, que obriga a melhorias, que respeita o passado e que não os cidadãos como ovelhas acéfalas. A China é muito maior que isto, tem muito mais história que isto, muito mais alma, muito mais coração. Já agora, este é o calibre de académico que iria trazer elevação às discussões no plenário, de acordo com as opiniões da maioria dos analistas ouvidos na altura em que se formou a sexta Assembleia Legislativa da RAEM. Só mais uma coisa. Quantas machadadas acham que o segundo sistema aguenta, até Macau se tornar no distrito de Zhuhai onde se joga? Não denunciar estes atropelos é pactuar com eles. Ou já não podemos mesmo falar?
João Luz VozesMemória de cão [dropcap]S[/dropcap]abem aquela sensação que ultrapassa o déjà vu, quando temos impressão não só que já vimos este filme, mas que já o vivemos? Pois, foi assim que me senti ao voltar a ver o IAM a trocar os pés pelas mãos para impedir a livre expressão de algo sensível politicamente. Sim, ainda a exposição fotográfica sobre o massacre de Tiananmen. Meus amigos, os direitos fundamentais não são circunstanciais, não se suspendem para atender a sensibilidades políticas nem para consolar medos de sombras. Ou vivemos num Estado de Direito, ou não. Não existe aqui meio termo. O facto é que este é o estado actual da política em Macau. O poder faz o que bem entende, não responde perante a lei, ou os cidadãos e só atende à extrema sensibilidade de cima. Aliás, não consigo contabilizar as vezes que ouvi “tens de compreender, este é um momento particularmente sensível” desde que cá cheguei em 2016. Ok, não é um grande lapso temporal, mas, nestes 4 anos e tal, a vulnerabilidade e o melindre do colosso foram constantes. É por isso que em Macau, aquilo que é mais sagrado em termos legais, cai por terra à mera sugestão de melindre. Falando a linguagem da terra, e esquecendo valores e princípios consagrados em leis fundamentais, isto é mau para o negócio. O Estado de Direito dá garantias de estabilidade ao investimento, é uma salvaguarda contra a volatilidade imprevisível da política. Protege os residentes e também o poder contra si próprio. Temo que Macau se vai arrepender de abrir mão de algo tão importante, e que se deixe moldar e desaparecer, à semelhança do que estão a fazer com a história.
João Romão VozesMeia vida, meio triste [dropcap]À[/dropcap]s vezes há disto: cai um gelo espesso e irreparável sobre um entusiasmo até então crescente, o optimismo torna-se mais baço, o futuro mais espesso, o quotidiano mais incerto e sobretudo mais triste. São assim os dias agora em terras nipónicas, com o ritmo ainda marcado pelos caprichos do portentoso vírus que mantém a humanidade refém da sua própria segurança mais fundamental, a da integridade do corpo, da preservação da elementar saúde física. Depois se tratará, mal ou bem, da sanidade mental. No Japão os dias já foram de optimismo, o país foi cedo afectado pela presença do indesejável intruso, mas também foi aparentemente rápida a reacção, a disciplinada mobilização colectiva em defesa da saúde pública, o esforço dedicado de protecção de cada um e de todos os outros, como é costume, aliás, em terras de delicada atenção a todos os riscos possíveis e à integridade do corpo e do espírito. Não foram convocadas desnecessárias formas de coacção e intimidação e ninguém foi detido por vir à rua: uma certa reorganização nas formas de trabalhar, eliminação de saídas desnecessárias, redução ao mínimo da mobilidade, evitar a proximidade e o contacto ainda mais do que e habitual nestas paragens, isolamento absoluto de quem estivesse infectado e de quem os tivesse contactado, foram medidas suficientes para que parecessem amplamente controladas as estatísticas da propagação e do contágio. Só que não: estamos perante um formidável adversário, que mesmo quando parece reduzido a uma quase insignificância e a uma extinção quase certa, reaparece, afinal, retoma inesperado fulgor ofensivo, instala de novo o medo e as decorrentes precauções, que até há pouco tomávamos como excessivas e hoje nos parecem inevitáveis. Quiseram as coincidências da cronologia que mudasse de trabalho e de cidade numa certa fase de acalmia pandémica, por assim dizer. Instalei-me numa região com quase 3 milhões de habitantes e que chegou a finais de Março com três casos contabilizados, três (entretanto recuperados, já agora). Mas ao dia em que escrevo são quase 150, não parece muito quando se compara com outras realidades mais dramáticas no planeta, mas ainda assim foi o suficiente para reinstalar os alarmes e as cautelas, que pode vir aí crescimento exponencial como testemunhado com terror noutras paragens. Na realidade, este recomeço do processo de propagação aconteceu em quase todo o país e trouxe à discussão publica a ausência de uma estratégia sistemática de massificação de testes, que terá evitado que se conhecesse melhor a realidade oculta da propagação viral. Veio então o estado de emergência a todo o país, pela primeira vez desde que apareceram os primeiros casos, mas ainda assim sem confinamentos obrigatórios nem significativas paragens laborais. Veremos no que dá. Mudaram, no entanto, os métodos e as formas de trabalhar. No magnífico campus onde trabalho, a modernidade e a eficiência arquitectónicas graciosamente enquadradas nas paisagens natural e urbana da periferia de Hiroshima evidenciam o vazio: não há estudantes, grande parte dos serviços estão fechados e as presenças reduzem-se a professores e funcionários administrativos. O entusiasmo que trazíamos pelos novos encontros com estudantes – e que para mim seria o primeiro e por isso mais especial – foi sendo substituído pela percepção do isolamento, numa primeira fase, e pelo isolamento efectivo, depois, quando se confirmou, após dois adiamentos do início ano lectivo, que afinal íamos dar aulas à distância. Toda uma nova aprendizagem de técnicas e processos, frios e digitais, com os quais teremos que aprender a criar algum calor, com relações intensas e produtivas com quem nos segue do outro lado. Vive-se a meias, sem fazer nem deixar de fazer, cumprindo com esforço máximo o mínimo dos objectivos, que as circunstâncias não permitem mais do que voos muito rasos. Reaprende-se o trabalho e o convívio sob novas formas, condições e restrições. Vive-se com receio de sair de casa e de encontrar o inimigo insuspeito e invisível, que as máscaras não nos tornam imunes nem invencíveis. Vive-se a tristeza dos espaços esvaziados pela insegurança e pelo medo. Os transportes quase vazios, felizmente. Os restaurantes onde não vamos, também vazios. As ruas quase vazias, de pessoas e veículos. O receio, as cautelas, a desconfiança em cada olhar, visível no que sobre do rosto mascarado. Vive-se a meias, com pouco sentido, à espera. Vive-se triste. Vive-se o medo de não se viver. Não se vive, afinal.
Pedro Arede VozesUma questão de carne [dropcap]N[/dropcap]ão raras vezes o tema da carne (normalmente a de porco) tem vindo a lume nas mais inusitadas situações. Assim de repente, como se não houvesse mais nada para trincar, lembro-me por exemplo de ouvir o Chefe do Executivo a dissertar pormenorizadamente, por ocasião da apresentação das LAG, acerca do flagelo que é constatar a forma como o actual tamanho dos suínos (cada vez mais diminuto) tem contribuído para agravar o preço de venda da sua carne em Macau. No dia seguinte, o tema voltou a ser abordado em debate no plenário, uma vez mais para argumentar sobre os incontornáveis efeitos do preço da carne suína. No entanto, aparentemente, a carne pode ter poderes que a própria carne desconhece, tendo sido inclusivamente usada como arma de arremesso na guerra de palavras que tem resultado da procura de responsabilizar a China pela origem do surto da covid-19. Isto porque na terça-feira, conta o South China Morning Post, em resposta ao apoio demonstrado pela Austrália para com uma investigação internacional acerca das origens da pandemia, a China decidiu banir a importação de carne bovina de quatro das principais fábricas transformadoras de carne do país, situadas em Queensland e Nova Gales do Sul. Segundo analistas citados pelo Post, na base da decisão pode estar a necessidade de “abrir espaço” para o aumentar as importações de carne oriunda dos EUA, de forma a cumprir a primeira fase do acordo comercial entre os dois países. Pelos vistos, parece que a carne tem um inesperado papel a cumprir nos dias que correm. A sorte é que para este problema há sempre alternativa.
Olavo Rasquinho VozesComo o tempo mudou a história [dropcap]A[/dropcap]través dos tempos, as condições meteorológicas sempre foram determinantes no desenrolar de acontecimentos na história da humanidade. Nós, que vivemos neste imenso “oceano” gasoso que envolve o planeta Terra, somos forçosamente influenciados no nosso dia-a-dia pela variação dos vários parâmetros meteorológicos: temperatura, pressão, humidade, vento, visibilidade, nebulosidade, precipitação, etc. As alterações do estado da atmosfera, causadas pelo aquecimento diferenciado a que a Terra está sujeita pela radiação solar e pelo seu próprio movimento em relação ao Sol, refletem-se forçosamente no comportamento da humanidade através da sua história. Fazendo uma retrospetiva de acontecimentos históricos, poder-se-ão mencionar alguns em que o fator tempo foi de importância primordial. BOMBARDEAMENTO DE HIROSHIMA E NAGASAKI (1945) Um exemplo de que o estado do tempo foi decisivo em operações de guerra, foi o facto de Hiroshima ter sido a primeira cidade a ser escolhida para alvo de uma bomba atómica. Antes da descolagem do avião que transportava a bomba, o “Enola Gay”, três outros aviões levantaram voo com o intuito de se verificarem quais as condições meteorológicas sobre os possíveis alvos: Hiroshima, Kokura, Nagasaki e Niigata, cidades que até então tinham sido praticamente poupadas a bombardeamentos. Se Hiroshima estivesse coberta por nuvens não teria sido, certamente, o alvo. Acontece, porém, que no dia 6 de agosto de 1945 o céu estava com pouca nebulosidade sobre a cidade. Assim, por uma mera questão meteorológica, Kokura e Niigata foram poupadas ao rebentamento do “Little boy”, como ironicamente fora apelidada a bomba. Alguns dias mais tarde, a 9 de agosto, Nagasaki estava com o céu pouco nublado, o que fez com que fosse o alvo ideal para o “Fat man”, muito mais potente do que a “Little boy”. Apesar da potência ser superior à bomba de Hiroshima, os estragos não foram tão generalizados, devendo-se ao facto de Nagasaki ser uma cidade mais acidentada em termos de relevo. Kokura era a cidade preferencial para ser bombardeada, devido às suas fábricas de munições, mas o facto de nesse dia estar coberta por nuvens, impediu que fosse o alvo. Caprichos do tempo que, poupando a vida aos habitantes de Kokura e Niigata, fizeram com que as cidades bombardeadas fossem Hiroshima e Nagasaki. Estima-se que as vítimas mortais foram na ordem de centenas de milhares, logo após os bombardeamentos e nos anos seguintes, devido às elevadas doses de radiação sofridas. DESEMBARQUE NA NORMANDIA – Dia D (1944) O estado do tempo também foi decisivo para o sucesso do desembarque das tropas aliadas na Normandia, durante a operação “Overlord”, na segunda guerra mundial. As condições meteorológicas no Atlântico Norte, nos dias 4 e 5 de junho de 1944, eram caracterizadas por um sistema frontal associado a três depressões que se deslocavam de oeste para leste, o que causava mar revolto no Canal da Mancha. Apesar disso, na manhã do dia 5 de junho o céu estava limpo no Canal, o que levou o Comandante Supremo da Força Expedicionária Aliada, o general americano Dwight Eisenhower, a considerar estarem reunidas as condições para a invasão da Normandia. No entanto, a equipa britânica de meteorologistas, chefiada pelo capitão escocês James Martin Stagg, previu que o tempo nesse dia se iria agravar rapidamente, o que poderia comprometer o sucesso do desembarque. Os seus conhecimentos profundos de meteorologia e os dados resultantes de observações meteorológicas em altitude, levaram-no à conclusão que a corrente de jato polar exerceria a sua influência sobre o sistema frontal, o que se traduziria numa melhoria temporária do tempo durante o dia 6. Apesar da renitência de alguns oficiais do Estado-Maior e da equipa de meteorologistas americanos, a determinação de Stagg convenceu o General Eisenhower ao adiamento da operação para o dia 6. Os alemães não previram esta melhoria, pelo que consideraram que os aliados não se arriscariam a desembarcar, o que os levou a descurar a situação de prontidão das suas forças. Na realidade, na manhã do dia 6 o tempo ainda estava tempestuoso, mas melhorou depois do meio dia, como previra Stagg, e tudo se passou a conjugar para que esta fosse a data ideal para o desembarque, na medida em que, além da melhoria do tempo e a diminuição da agitação marítima, também havia lua cheia e maré baixa, o que permitiria visualizar os locais propícios à aterragem dos planadores que transportariam paraquedistas, e identificar os obstáculos subaquáticos colocados nas praias. Análises meteorológicas feitas a posteriori mostraram que o dia 6 foi provavelmente o único dia do mês de junho de 1944 em que havia condições para essa operação. A peça de teatro “Pressure”, de autoria de David Haig, que também desempenhou o papel de Stagg, retrata bem a tensão vivida antes da decisão sobre a data do desembarque. INVASÃO DA UNIÃO SOVIÉTICA PELAS TROPAS NAZIS (1941) Tem sido frequente a utilização de termos meteorológicos para apelidar estratégias e operações de guerra. Foi o caso da ofensiva “Tufão”, assim designada a estratégia de conquista de Moscovo durante a invasão da União Soviética pelas tropas nazis (operação Barbarossa). Se Hitler fosse um bom conhecedor da história da humanidade ou se tivesse alguns conhecimentos sobre o clima da União Soviética, certamente não cometeria o erro de a invadir, no inverno de 1941. A União Soviética adotou a tática da “terra queimada”, tal como os russos fizeram aquando das invasões francesa e sueca, respetivamente em 1812 e 1708-1709. Esta tática consistia em retirar e destruir tudo o que pudesse ser útil ao invasor, como culturas, meios de produção alimentares, gado, etc., de maneira que as tropas inimigas, durante o avanço e a retirada não possuíssem meios de subsistência. De nada serviram aos alemães os 3,6 milhões de soldados, 3.600 tanques e 2.700 aviões que compunham as forças invasoras, perante a tática defensiva adotada, a forte resistência dos soviéticos e o rigoroso inverno. REVOLUÇÃO FRANCESA (1789) O fator tempo também contribuiu para o despoletar da revolução francesa. No final do reinado de Luis XVI, em 1789, França sofria grave crise por causas de ordem política, cultural, económica e social. O país encontrava-se com as finanças depauperadas, devido em parte ao apoio que a França dava à Guerra Revolucionária Americana. A situação foi agravada por uma forte seca, em 1788, a qual foi abruptamente interrompida por intensas quedas de granizo e saraiva, que quase destruíram a totalidade das culturas restantes. Para agravar a situação, o inverno de 1788/1789 foi extremamente frio, fazendo com que houvesse forte aglomeração de neve e gelo que, ao fundirem, provocaram fortes enxurradas e inundações na primavera seguinte, causando a destruição de bens e a morte de gado. A esta adversidade adveio um surto de peste, o que contribuiu para dizimar muitos dos animais que se haviam salvado. Como consequência, a fome grassou entre os camponeses, o que levou a que os meios de transporte de mercadorias fossem frequentemente assaltados. Devido à escassez de alimentos e aos assaltos, o caos instalou-se também nas cidades . O verão de 1789 voltou a ser muito seco, o que contribuiu para agravar a situação. O culminar da revolta deu-se a 14 de julho de 1789, dia em que ocorreu o acontecimento mais significativo da revolução francesa, a Tomada da Bastilha. As condições meteorológicas pareciam conspirar contra a realeza. INVASÃO DA RÚSSIA POR TROPAS SUECAS (1708/1709) O “general inverno” também foi aliado da Rússia quando tropas invasoras, comandadas por Carlos XII da Suécia, avançaram pelo país em pleno inverno 1708-1709, durante a Grande Guerra do Norte. Os invasores depararam-se com grandes dificuldades devido à resistência russa e à tática da terra queimada e, claro, ao inverno rigoroso. Mas o tempo e o clima nem sempre foram aliados dos russos. Cerca de 8 anos antes as tropas russas do czar Pedro I (Pedro, o Grande), foram derrotadas pelas forças de Carlos XII na batalha de Narva, durante uma forte tempestade de neve. DERROTA DA RÚSSIA NA BATALHA DE NARVA (1700) A Grande Guerra do Norte (1700-1721) teve início quando tropas da Rússia e de países aliados invadiram, em novembro de 1700, o território sob a administração sueca. A fim de o recuperar, Carlos XII da Suécia atacou a cidade de Narva (atualmente pertencente à Estónia), ocupada pelos russos, tendo obtido estrondosa vitória, apesar de o número dos atacantes ser cerca de quatro vezes inferior. A vitória deveu-se ao aproveitamento, por parte dos suecos, do fator tempo. A batalha ocorreu durante uma forte tempestade de neve que atingiu ambas as forças antagónicas, impedindo temporariamente o confronto. A certa altura houve mudança na direção do vento, o que fez com que a neve fustigasse as tropas russas, reduzindo grandemente a visibilidade, colocando-as em desvantagem em relação ao inimigo. DERROTA DA ARMADA INVENCÍVEL (1588) O tempo também foi determinante na derrota da Armada Invencível, que havia partido de Lisboa em maio de 1588, acontecimento que teve profundas implicações na história de Europa. A armada, que era constituída por 130 navios, cerca de 30.000 soldados e marinheiros, foi utlizada por Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal) para atacar a Inglaterra, com o intuito de destituir Isabel I. Como Portugal estava sob o domínio espanhol, cerca de um quarto dos navios eram portugueses. Os ingleses confrontaram a Armada no Canal da Mancha, infligindo-lhe pesada derrota, frustrando a invasão e obrigando os navios a regressarem pelo caminho mais longo, contornando as Ilhas Britânicas. A oeste destas ilhas grande parte dos restantes navios naufragaram devido a condições meteorológicas altamente desfavoráveis à navegação. Rota da Armada Invencível TENTATIVAS DE INVASÃO DO JAPÃO PELOS MONGÓIS (1274 E 1281) O Japão localiza-se numa região do globo que é anualmente fustigada por tufões. Não é, portanto, de estranhar que estes fenómenos meteorológicos tenham contribuído para influenciar importantes acontecimentos históricos neste país. Foi o que aconteceu durante as invasões mongóis de 1274 e 1281. Após a submissão do reino coreano de Goryeo, as ideias expansionistas de Kublai Khan (neto de Genghis Khan) estiveram na base de duas tentativas de invasão do Japão pelas forças mongóis. No entanto, as investidas foram goradas não só pela resistência dos japoneses, mas também pela ocorrência de tufões aquando das invasões. Por esta razão os japoneses passaram a designar tufão por “kamikaze”, que significa “vento divino” em japonês. OUTROS ACONTECIMENTOS HISTÓRICOS Muitos outros acontecimentos históricos foram influenciados pelas condições meteorológicas. Um levantamento mais minucioso levar-nos-ia aos tempos bíblicos e tentar perceber o mito do dilúvio. Embora não haja nenhuma prova científica da ocorrência de um dilúvio à escala global, muito provavelmente terão ocorrido fortes precipitações e, consequentemente, inundações em vastas áreas, que tenham inspirado os autores de documentos sagrados de diferentes religiões, tais como a Bíblia, o Corão e outros. Mas, por enquanto, não entremos nesta área…
Andreia Sofia Silva VozesRaimundo não é político [dropcap]R[/dropcap]aimundo do Rosário, secretário para os Transportes e Obras Públicas, não é um político, mas também não é um funcionário público típico. Está no meio, onde mora a virtude, mas neste caso onde se aloja a eficiência e a brutal honestidade. Se olharmos para a tutela das Obras Públicas dos últimos anos, só temos corrupção, silêncio e ineficiência. Ao Man Long encontra-se a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Coloane, Jaime Carion, ex-director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, está em parte incerta e Lau Si Io desapareceu na presidência do conselho de administração do Centro de Ciência de Macau para não mais falar sobre o passado. Agora temos Raimundo do Rosário, um secretário que explica sempre tudo numa tentativa constante de transparência e que resolve problemas de verdade. Além disso, é honesto: pela primeira vez, tivemos um governante na Assembleia Legislativa a assumir que não queria este cargo, nem no primeiro mandato, nem no segundo. Há ainda muito a resolver no que diz respeito à eficiência nas Obras Públicas, mas as coisas estão a andar. Será difícil encontrar um nome para o substituir.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA manipulação mediática e a Covid-19 “Whoever controls the media, controls the mind.” Jim Morrison [dropcap]A[/dropcap] exortação de Mahatma Ghandi de sermos a mudança que desejamos ver no mundo é de que devemos começar por nós a implementar essa mudança; abrir os nossos olhos às desigualdades e às injustiças. A desigualdade e a discriminação não são um destino inelutável e devem ser combatidas a todos os níveis, incentivando simultaneamente as pessoas a reagir. É de começar por uma consideração básica sobre a Covid-19 e como esta pandemia se tem manifestado e está a ser combatida. A dificuldade em fazer face a esta pandemia deve-se principalmente à escassez de pessoal e de infra-estruturas de saúde. A inadequação dos serviços de saúde pública é o resultado de décadas de reduções nas despesas de saúde pública dos países. De onde vem se é sempre o investimento mais baixo em despesas de saúde pública? Vem de uma orientação (política e, consequentemente, económica e, provavelmente, vice-versa, uma orientação económica que “influenciou” as escolhas políticas) que pode ser traçada desde a economia neoliberal que impulsiona a globalização dos mercados e a privatização também dos serviços essenciais (água, energia, saúde, transportes). A situação agravou-se dramaticamente na maioria dos países europeus desde a sua adesão à União Europeia (UE), onde, na sequência de uma série de tratados (por exemplo, o Pacto de Estabilidade), tiveram sempre de fazer milagres para se manterem dentro dos parâmetros indicados. Assim, é claro para todos como o sistema conduziu ao empobrecimento dos patrimónios público nacionais e à forte redução de todos os investimentos relacionados com o bem-estar social: Saúde, Escola, Trabalho, Transportes, Investigação e Desenvolvimento e, por último mas não menos importante, a valorização dos produtos e serviços de alguns Estados-membros. O outro perigo, para além da grave pandemia, é que esta situação se torne um instrumento para os países hegemónicos da Europa (Alemanha e França), para os “investidores internacionais implacáveis e perversos” e outros países não europeus (potências económicas) tomarem posse do património público de alguns Estados-membros, através de um novo aumento da dívida pública em detrimento dos povos desses países. É importante considerar neste contexto o papel dos meios de comunicação social e os modos de comunicação generalizados, não tanto para entrar no mérito, mas para fornecer elementos de reflexão relacionados com as dinâmicas passadas e actuais (TV, jornais, web, etc.). As consequências económicas desta pandemia são comparáveis às de uma guerra militar, no sentido mais clássico. A guerra que vivemos actualmente (e há muitos anos) é uma guerra financeira, que nos vê sucumbir e regredir dia após dia, graças à incapacidade (ou melhor, à falta de vontade.) dos políticos para defender os interesses dos países, respeitando a cooperação e a solidariedade com outros países e outras populações. Se não forem tomadas medidas adequadas, imediatas e directas para facilitar os investimentos públicos em infra-estruturas, bem como para proporcionar liquidez directamente às empresas, as consequências serão desastrosas, comparáveis ou piores que as da “Grande Depressão Americana de 1929”. Nesta lógica, a “crise da Covid-19” representa, deste ponto de vista, uma grande oportunidade para os europeus e quiçá outros países de diferentes latitudes. A oportunidade de reafirmar os direitos constitucionais e valores conexos. As constituições dos Estados-membros da UE apesar das particularidades e especificidades de cada uma são reconhecidas como das melhores do mundo e, mais uma vez, a maioria dos cidadãos europeus, não apreciam o que têm ou, pior ainda, não a aplicam nos fóruns políticos e jurídicos internacionais adequados. Talvez seja uma escolha forte, sofrida e oposta, mas têm seguramente talvez de sair deste modelo europeu que se tornou para os países (mais fracos), uma gaiola financeira e regulamentar que os levará ao empobrecimento e à aniquilação social, cultural e económica (veja-se a Grécia). É um desafio que, conjuntamente é possível vencer se os europeus estiverem plenamente conscientes de tudo o que está a acontecer por detrás da falsa frente da protecção do bem comum e se tiverem a força e a coragem de tomar as decisões necessárias. No entanto, isto deve andar a par com a evolução pessoal e espiritual, devendo esforçarem-se por desenvolver sentimentos e acções que possam alimentarem valores saudáveis de solidariedade (e não egoísmo), cooperação (e não competição) e mesmo algum sentido de pertença saudável, que perderam. Qual é a importância de se sentir parte de uma comunidade? Seja uma família, um bairro, um país, uma união económica e política! É a hora de rebelião para que a UE seja aquilo que deveria sempre ter sido e que é o seu desiderato. A verdadeira dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas escapar das antigas segundo afirmou John Maynard Keynes. A Covidd-19 tem servido à ganância para a manipulação e controlo dos meios de comunicação social sendo o prato forte a distracção, sensibilidade, culpabilidade e complacência da mediocridade. Todos os dias somos sujeitos a centenas de estímulos externos que inevitavelmente influenciam a nossa opinião. Mesmo a pessoa mais objectiva e imperturbável é inevitavelmente condicionada por algo ou alguém. Quer se trate da imprensa, da televisão, do “magnum mare” da Internet, não é apenas um quarto poder, ou seja, a capacidade da imprensa para orientar a opinião pública, mas também um quinto e um sexto poderes. É de pensar no papel ainda dominante do pequeno ecrã e no cada vez mais penetrante das redes sociais. Tudo começa com a pergunta se o que realmente pensamos deriva daquilo em que os outros querem que acreditemos? Esta pergunta foi respondida por Noam Chomsky, linguista americano, filósofo, teórico da comunicação e anarquista que elaborou as dez regras de controlo social, ou seja, as estratégias utilizadas para manipular o público através dos meios de comunicação social. Começa com a estratégia de distracção, implementada para desviar a nossa atenção dos problemas reais e focalizá-la naqueles que têm menos importância. Segue a regra baseada na criação de um problema, como uma crise económica ou uma ameaça terrorista (um vírus letal), à qual é proposta a solução. No entanto, tudo isto deve ter lugar gradualmente para evitar traumas e motins. A decisão, portanto, deve ser dolorosa e necessária e tem de ser explicada às pessoas como se fossem crianças, sem uma análise crítica absoluta, usando a emoção em vez da reflexão na base de toda a manutenção de um povo medíocre e ignorante. Por outro lado, como argumenta Chomsky, os sistemas democráticos, não estão dispostos a manter a obediência pela força, devem controlar não só o que as pessoas fazem, mas também o que pensam. Foi por isso que o filósofo elaborou a lista das dez regras para o controlo social. A premissa necessária é que os maiores meios de comunicação estão nas mãos dos grandes potentados económico-financeiros, interessados em filtrar apenas certas mensagens. Mas como é que eles condicionam as nossas vidas? O decálogo para o controlo social passa por mencionar a estratégia da distracção, criar o problema e depois oferecer a solução, a estratégia da gradualidade, a estratégia de adiamento, o dirigir-se às pessoas enquanto crianças, usar o aspecto emocional muito mais do que a reflexão, manter as pessoas na ignorância e na mediocridade, estimular o público a ser a favor da mediocridade, reforçar a culpabilidade e conhecer as pessoas melhor do que elas se conhecem. A estratégia da distracção é a primeira e mais importante regra, pois “desviar a atenção do público dos problemas sociais e mantê-lo preso por questões sem verdadeira importância”. Manter as pessoas ocupadas, sem lhe dar tempo para pensar, voltando sempre à “quinta como os outros animais”. O elemento primordial do controlo social é, portanto, distrair as pessoas, desviá-las dos problemas e mudanças importantes decididos pelas elites políticas e económicas, através da técnica de dilúvio ou inundação de distracções contínuas e de informação insignificante. A estratégia de distracção é também indispensável para evitar que o público se interesse por conhecimentos essenciais nas áreas da ciência, economia, psicologia, neurobiologia e cibernética. Em suma, manter a atenção do público presa por temas sem verdadeira importância e desviá-la dos problemas sociais. A segunda regra é criar o problema e depois oferecer a solução. Esta regra parece mais actual do que nunca. O método é também designado por “problema-reacção-solução”. Cria-se um problema, uma “situação” que irá produzir uma certa reacção no público, de modo que esta é a razão das medidas que se pretende que sejam aceites. Há muitos exemplos, como deixar a violência urbana propagar-se ou intensificar-se, ou organizar ataques sangrentos para que o público exija leis e políticas de segurança à custa das liberdades, ou mesmo criar uma crise económica para que a redução dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos sejam aceites como um mal necessário. A terceira regra é estratégia do gradualismo e para que uma medida inaceitável seja aceite, basta aplicá-la gradualmente, com o conta-gotas, durante um certo número de anos consecutivos. Foi assim que foram impostas condições socioeconómicas radicalmente novas (neoliberalismo) nos anos de 1980 e 1990 com um Estado mínimo, privatização, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que não garantiam rendimentos decentes, tantas mudanças que teriam causado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez. Oferecê-las ao “público” pouco a pouco, permite ao poder fazer aceitar estas condições de uma forma menos traumática e como inevitável. A quarta regra é estratégia de adiamento, ou seja, outra forma de conseguir que uma decisão impopular seja aceite é apresentá-la como “dolorosa e necessária”, obtendo o consentimento das pessoas para uma futura aplicação. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Em primeiro lugar, porque o esforço não tem de ser feito de imediato. E depois, porque as pessoas, o povo, tende sempre a esperar ingenuamente que “tudo será melhor amanhã” e que o sacrifício necessário poderia ser evitado, o que dá às pessoas mais tempo para se habituarem à ideia de mudança e para a aceitarem com resignação quando chegar o momento da execução. A quinta regra é dirigir-se às pessoas enquanto crianças, pois a maioria da publicidade directa ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e uma entoação particularmente infantil, muitas vezes com uma voz fraca, como se o espectador fosse uma criatura de poucos anos ou um idiota. Quanto mais se tenta enganar o espectador, mais se tende a usar um tom infantil. Se alguém, de facto, se dirige a uma pessoa como se ela tivesse doze anos de idade ou menos, então, devido à sua sugestibilidade, tenderá provavelmente a responder ou a reagir de uma forma crítica sem sentido como uma pessoa com doze anos de idade ou menos. A sexta regra é usar o aspecto emocional muito mais do que a reflexão, pois alavancar a emocionalidade é uma técnica clássica para provocar um curto-circuito na análise racional e, finalmente, no sentido crítico do indivíduo. Além disso, o uso do tom emocional abre a porta ao inconsciente para implantar ou injectar ideias, desejos e medos, ou para induzir comportamentos. A sétima regra é manter as pessoas na ignorância e na mediocridade. Tornar as pessoas incapazes de compreender as técnicas e métodos utilizados para o seu controlo e escravatura. A qualidade da educação dada às classes sociais mais baixas deve ser tão pobre e medíocre quanto possível, de modo que a distância criada pela ignorância entre as classes mais baixas e mais altas é e continua a ser impossível para as classes mais baixas ultrapassar. A oitava regra é incentivar o público a ser a favor da mediocridade. Encorajar o público a acreditar que está na moda ser estúpido, vulgar e ignorante. A nona regra é reforçar a culpabilidade. Fazer o indivíduo acreditar que só ele é responsável pelo seu infortúnio devido a inteligência, capacidade ou esforço insuficiente. Desta forma, em vez de se revoltar contra o sistema económico, o indivíduo desvaloriza-se e sente-se culpado, o que, por sua vez, cria um estado de repressão do qual um dos efeitos é a inibição de agir. A décima regra é de conhecer as pessoas melhor do que elas próprias. Nos últimos 50 anos, os rápidos avanços da ciência criaram um fosso crescente entre o conhecimento das pessoas e o das elites dominantes. Graças à biologia, neurobiologia e à psicologia aplicada, o “sistema” tem podido beneficiar de conhecimentos avançados do ser humano, tanto física como psicologicamente. O sistema tem sido capaz de conhecer o indivíduo comum muito melhor do que ele próprio se conhece, o que significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um maior controlo e poder sobre as pessoas, muito maior do que as pessoas exercem sobre si próprias. Será possível escapar ao controlo social? A resposta é positiva, quebrando essas mesmas regras que nos querem enjaular. Ao visar o conhecimento e a análise, o confronto e a pluralidade de opiniões, ao voltar a ser público crítico e ao não aceitar a priori o que nos é imposto. Trata-se de escavar para além da superfície. Este é o verdadeiro desafio que se coloca, na sua esmagadora maioria. Os noticiários-media não se limitam apenas a estabelecer a pertinência de determinados argumentos. A investigação sobre o “enquadramento das notícias” considera que a forma ao qual é apresentada uma notícia também afecta o que as pessoas pensam dos problemas. A nova geração de notícias diz respeito aos aspectos estruturais da crónica, incluindo o exame dos símbolos utilizados na construção de notícias. Com o termo enquadramento significa uma ideia de organização central ou a linha da história que fornece o significado. “Para enquadrar” (configurar) significa seleccionar certos aspectos de uma realidade percebida e tornar estes aspectos mais salientes numa comunicação, de modo a promover uma definição do problema específico, uma interpretação causal, uma avaliação moral, ou uma recomendação de tratamento. As notícias falsas ou verdadeiras sobre a Covid-19 podem ser formuladas de várias formas, como uma história de tragédia humanitária, como uma história de má sanidade, como uma história de heroísmo dos profissionais de saúde ou como uma conspiração económica.
João Santos Filipe VozesUma visão [dropcap]2[/dropcap]000: Um país, dois sistemas. 2001: Um país, dois sistemas. 2002: Um país, dois sistemas. 2003: Um país, dois sistemas. 2004: Um país, dois sistemas. 2005: Um país, dois sistemas. 2006: Um país, dois sistemas 2007: Um país, dois sistemas. 2008: Um país, dois sistemas. 2009: Um país, dois sistema. 2010: Um país, dois sistem. 2011: Um país dois, siste, 2012: Um país, dois sistemas. 2013: Um país, dois sistemas. 2014: Um país, dois sistemas. 2015: Um país, dois sistemas. 2016: Um país, dois. 2017: Um país, doi. 2018: Um país, do. 2019: Um país, d. 2020. Um país. 2021: Um país, u. 2022: Um país, um. 2023: um país, um s. 2024: um país, um si. 2025: Um país, um sis. 2026: um país, um sist. 2027: um país, um siste. 2028: um país, um sistem. 2029: um país, um sistema. 2030: um país, um sistema. 2031: um país, um sistema. 2032: um país, um sistema. 2033: um país, um sistema. 2034: um país, um sistema. 2035: um país, um sistema. 2036; um país, um sistema. 2037: um país, um sistema. 2038: um país, um sistema. 2039: um país, um sistema. 2040: um país, um sistema. 2041: um país, um sistema. 2042: um país, um sistema. 2043: um país, um sistema. 2044: um país, um sistema. 2045: um país, um sistema. 2046: um país, um sistema. 2047: um país, um sistema. 2048: um país, um sistema. 2049: um país, um sistema. 2050: Um país, um século dourado.
Salomé Fernandes VozesTons de cinzento [dropcap]A[/dropcap] decisão do Instituto para os Assuntos Municipais em voltar atrás com a autorização que tinha dado à União para o Desenvolvimento da Democracia para organizar exposições fotográficas sobre o massacre de Tiananmen não vem acompanhada de uma justificação suficientemente plausível para acalmar suspeitas de motivações políticas. É nestas decisões que se sente o ambiente a ficar mais tenso. E ultimamente têm sido frequentes: basta recordar a decisão de Outubro do Tribunal de Última Instância em rejeitar o recurso sobre a realização de protestos contra a violência policial em Hong Kong, ou os diversos casos de recusas de entradas em Macau no final do ano passado. Não se percebe o que mudou desde a autorização inicial dada em Abril. Tendo em conta a “situação real” de Macau – expressão que tanto se gosta de usar, é difícil apresentar o contexto da covid-19 como um factor de ponderação. A menos que os cientistas tenham descoberto que olhar para imagens leva a que se contraia o vírus, quando não existem sequer casos de transmissão dentro da comunidade. As liberdades que o segundo sistema supostamente protege não se vão perder de um dia para o outro. Mesmo quem não se identificar pessoalmente com o conteúdo dos movimentos ou exposições, deve valorizar o direito de manifestação e liberdade de expressão. É preciso haver mobilização social contra sinais de repressão, antes que se tornem a norma em vez da excepção.
João Luz Vozes8 de Maio de 2045 [dropcap]M[/dropcap]eu amor, escrevo-te palavras que sei que nunca irás ler. Pouco tempo me sobra, dificilmente terei outro dia pela frente, estas linhas apenas tornam concretos os pensamentos que te dirijo. Perdemos a guerra, algo que, por certo, saberás melhor que eu. A frente que seguro com um pequeno e intrépido reduto luta para adiar o inevitável. Pagamos a nossa morte a crédito, em penosas prestações. O mundo perde connosco e nós perdemo-nos um ao outro. O futuro pertence à obediência cega, à irracional superioridade trazida de berço, à morte e degradação dos que pensam além do regime que aí vem, que se avizinhava há décadas e que ignorámos, outra vez, como um capricho passageiro. Passageira é a liberdade, o pensamento livre, o exercício puro do amor, a vida. Vimos a besta no horizonte e nada fizemos, deixámos que tomasse conta do discurso público, das instituições e até dos corações dos que culpam os outros dos seus próprios insucessos. Deixámos mal os que lutaram antes de nós para os nossos pais terem o luxo de nos dar livres ao mundo. Fomos perdendo, enquanto nos julgávamos invencíveis, enquanto defendíamos ingenuamente a liberdade de expressão dos que nunca esconderam todos quererem calar. Entregámos o povo à brutalidade da vingança mascarada de política social, demos de mão beijada as minorias à violência do preconceito torpe. Este quartel, que mal aguenta as ofensivas do inimigo, é o último reduto do longo somatório de derrotas que acumulamos, tantas que não tenho vida suficiente para elencar. Primeiro roubaram o povo de um sentido de verdade, depois escapou-se a história. A campanha contra o jornalismo começou sorrateiramente, em discussões pseudo-deontológicas entre objectivismo e subjectivismo que evoluíram para um diálogo de surdos entre dois grandes grupos económicos que transformaram a verdade numa questão de perspectiva. A partir daí a confiança no jornalismo independente morreu, como morreram os jornalistas autónomos, calados por falta de recursos e campanhas de difamação orquestradas pelas duas cabeças comunicativas do monstro bicéfalo que comeu a verdade. Factos passaram a ser uma questão sujeita a interpretação pessoal, cada um escolheu a verdade mais apropriada ao seu palato político, sem noção de que neste duelo nunca ganha a razão, nem o conhecimento, muito menos a ponderação e a elegância. Quando o palco da luta ideológica é a pocilga, o porco joga em casa e ganha sempre. Foi o que aconteceu. Depois da verdade, da factualidade, o passado foi editado para acomodar o regresso do fascismo ao poder. Segundo a versão revista, estes regimes nunca existiram, passaram a ser uma névoa indecifrável que virou a culpa para longe dos saudosistas em direcção a um abismo de desculpabilização absoluta. Se não consegues dizer o que foi o regime, se é impossível de concretizar, provavelmente não existiu. Se não existiu, como sabes que vai ser mau? A derrocada das instituições que constituem a república estava ao virar da esquina. A verdade, o passado e também a separação de poderes que equilibra as forças decisórias, tornaram-se três inimigos que conspiram na penumbra contra o lobo vestido de vontade popular. Só o líder paternal e autoritário pode salvar a população desta tão rocambolesca tramoia, que ninguém nunca conseguiu vislumbrar o objectivo concreto. Ainda assim, ficámos em choque a assistir atónitos à queda da justiça independente, à rendição do poder legislativo e à subida do executivo aos céus do absolutismo. Com o país controlado, era uma questão de tempo até à internacionalização incontrolável da besta pelo continente afora. A doença espalhou-se com a velocidade de contágio do vírus da propaganda e uniu-se com a solidariedade que só os cartéis conseguem congregar. Os dois blocos continentais ficaram cada vez mais definidos. De um lado, a nova ordem, assente em desumanas e antigas ideias, e a ordem estabelecida, sem força para aguentar direitos, liberdades e garantias, depois de décadas de sucessivas capitulações políticas. Antes da asfixia dos debilitados poderes que seguravam a democracia, já se previa a campanha de execuções em praça pública de dissidentes e contestatários do Rei Sol que esperava o amanhecer mais negro deste século. Quando reagimos já era tarde demais, quando pegámos nas armas já estávamos com a cabeça a prémio, entre a parede e o pelotão de fuzilamento. Como gostaria de te prometer que vais voltar a ter liberdade para escolheres o teu destino, autodeterminação para viajares, ires onde quiseres, falares com e sobre o que te apetecer, degustar os prazeres da arte sem limites. Mas sabes que não te posso garantir nada disso. Só espero que sejas poupada ao sofrimento e que voltes um dia a sorrir. Deus sabe como o mundo fica pobre sem o teu sorriso. Para sempre teu…
João Luz VozesQuem espera… [dropcap]D[/dropcap]esespera! Amanhã assinalam-se dois meses que enviei e-mails para tudo o que é contacto do Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) com perguntas para um artigo cuja actualidade se esvai com o passar dos dias. Passadas duas semanas do e-mail inicial, insisti para manter as minhas questões vivas na memória dos serviços. O tempo foi passando e, na voracidade das milhentas histórias que noticiamos todos os dias, as questões enviadas ao IAM foram caindo no esquecimento. Por isso, de quando em vez, faço uma revisão aos emails enviados para ver se alguma coisa ficou esquecida. Isto é deprimente e uma vergonha para as relações entre jornalistas e departamentos de comunicação, por muito que nos tratem por “amigos da comunicação social”. Por vezes, pior que o silêncio é a resposta que nada diz, que reúne palavras alusivas ao tema, sem expressar nada de coerente. Provavelmente, vou-me arrepender de escrever isto, quando poderia apenas reiterar o email e pedir uma estimativa de quando posso obter as minhas respostas. Para evitar arrependimentos, gravo já esta coluna no servidor. Fica em página. Isto parece um conto do Franz Kafka, a resposta que nunca chega, que talvez tenha chegado, encriptada em silêncio e vazio, mas que nunca percebi. Às tantas, algum funcionário escreveu as respostas em chinês nos rótulos de garrafas de Tsingtao que me passaram pelas mãos, mas que ignorei. Se calhar, a culpa é minha. A máquina tem sempre razão, e eu, nervo, sangue, carne e músculo, sou falível, não tenho uma sigla, nem sede, nem assessores. Isto é “O Castelo”.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesTradição, alicerce do patriotismo [dropcap]O[/dropcap] debate das Linhas de Acção Governativa das cinco áreas principais de trabalho foi concluído a 6 de Maio na Assembleia Legislativa. A única vantagem de se ter abreviado a discussão, inicialmente agendada para dois dias e efectuada em apenas um, foi a possibilidade de os deputados terem ido para casa mais cedo. Quem acompanhou a discussão na comunicação social concordará que os ditos “debates” se resumiram a uma sessão de perguntas colocadas pelos deputados aos membros do Governo, ou melhor, a uma demonstração de apreço dos deputados pelo Governo. A forma como os legisladores e os membros do Governo interagiram fazia lembrar uma partida de ténis de mesa, com a bola a ser atirada com regularidade de um lado para o outro. Os deputados faziam o serviço, mas a vantagem era sempre dos membros do Governo. Se a estrutura da Assembleia Legislativa se mantiver, a qualidade interventiva dos deputados não vai melhorar, e desta forma nunca será possível monitorizar o desempenho do Executivo. Por exemplo, quando um deputado interpelou o Governo sobre a demora na construção do novo Estabelecimento Prisional de Macau (EPM) em Coloane e sobre os elevados custos envolvidos, o assunto foi evitado e teve como resposta uma vaga alusão a uma suposta monitorização do projecto. Só num sítio tão especial como Macau este tipo de coisas pode acontecer. Fica a pergunta por responder, quem é o verdadeiro responsável pelo atraso na conclusão do novo EPM? Não tenho a certeza se o Governo se sente ameaçado com a luta pela liberdade e pela democracia na região vizinha. Mas alguns membros do Governo sentem que Macau se tornou cada vez menos seguro após o regresso à soberania chinesa e que passou a ser uma séria ameaça à segurança nacional. É por isso que foram instalados mais “Olhos no Céu” (“Sistema de Videovigilância em Espaços Públicos” em toda a cidade. Depois de a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” ter sido implementada, foi criado um grupo de trabalho interdepartamental para assegurar o cumprimento desta lei, e foi igualmente criado um conjunto de leis e regulamentos complementares com a finalidade de transformar Macau numa cidade patriótica e inteligente. Poderão os “Olhos no Céu”, as “super bases de dados” e os diversas “quadros legais” garantir a segurança nacional? A resposta é um redondo NÃO. Algumas pessoas propuseram a introdução da “educação patriótica” e a criação de uma base de educação do amor à pátria e amor a Macau. Macau é efectivamente um local repleto de História. Durante o final da Dinastia Qing, o mercador Zheng Guanying (a sua família residia em Macau há já várias gerações) escreveu um livro intitulado “Advertências em Tempos de Prosperidade”, que se compunha de avisos à corte Qing. O Dr. Sun Yat-sen, no regresso a casa após uma temporada a estudar no estrangeiro, utilizou Hong Kong e Macau como bases revolucionárias para planear o fim da governação Qing. Mesmo o General Ye Ting, que se juntou ao Kuomintang e posteriormente ao Partido Comunista, chegou a residir em Macau. Karl Marx era um judeu alemão. Durante a sua vida, Israel ainda não era reconhecido como um país. Baidu Baike afirmou que Karl Marx não tinha nacionalidade. Adolf Hitler, Hideki Tojo e Mussolini, defenderam respectivamente o pan-Germanismo, a Esfera de Co-prosperidade da Grande Ásia Oriental e a restauração da glória do Império Romano. Acreditavam todos na “educação patriótica” que, em última análise, se virou contra os seus próprios países. Para conhecermos o nosso verdadeiro patriotismo, temos de entender a cultura tradicional chinesa. O pensador Confusionista Mencius defendia que o bem-estar do povo se sobrepõe ao bem-estar do país e só aqueles que recebem o apoio popular estão em posição de poder governar. Analisando a rebelião popular para derrubar a Dinastia Shang e matar o rei, Mencius advogava a morte dos tiranos cruéis e não a morte do rei. Quando comparada com as teorias da era moderna, a tese de Mencius da “supremacia dos direitos do povo”, que já existia antes da “Teoria do Governo” de John Locke, revela-se muito mais avançada do que a “Declaração de Independência” dos Estados Unidos. Mencius foi uma figura profética, um verdadeiro patriota e um homem de estado, deliberadamente ignorado pelos sucessivos monarcas chineses. As suas palavras e os seus feitos merecem ser estudados nas escolas e integrar os conteúdos de uma verdadeira educação patriótica.
Pedro Arede VozesIlações de consumo [dropcap]O[/dropcap] início do programa dos vales de consumo pôs a descoberto alguns problemas de aplicação. Obviamente que é impossível antecipar todas as vertentes de utilização de um plano desta natureza mas o sobreaproveitamento da situação por parte das cadeias de supermercado podia ter sido antecipado. Os supermercados foram durante grande parte de Fevereiro, altura em que Macau parou devido ao covid-19, dos poucos (ou únicos) estabelecimentos onde a população se podia dirigir quando saía de casa e por isso acabaram por nunca fechar totalmente as portas. Com a reabertura progressiva dos estabelecimentos e chegado o momento de activar o programa de apoio foi nos supermercados que a maioria da população optou por investir as suas patacas electrónicas oferecidas pelo Governo, contribuindo muito provavelmente por remeter novamente para segundo plano, a maioria dos pequenos estabelecimentos do comércio local, já por si mais frágeis. Recentemente uma trabalhadora não residente foi apanhada a utilizar um cartão de consumo que não lhe pertencia, podendo vir a ser criminalizada por isso. O programa dos vales de consumo é uma medida de louvar mas com um enquadramento diferente é muito provável que os seus efeitos pudessem ser muito mais benéficos. Porque não limitar a utilização dos vales de consumo a espaços de menor dimensão? E alargar o plano de apoio aos trabalhadores não residentes, que muito provavelmente constitui a franja que mais dificuldades está a passar neste momento? Talvez na próxima ronda haja alterações. É que vêm aí mais cinco mil patacas para distribuir.
Manuel de Almeida VozesViagens por Macau [dropcap]A[/dropcap] melancolia das manhãs, manhãs de agonia, levam-me habitualmente a fazer “viagens” – “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminhos mais rápidos em direcção a nós mesmos” – a um lugar chamado Macau, lugar de pertença – retomar caminhos, com um outro olhar (o olhar escolhe, os olhos vêem), uma nova percepção -, o voltar ao território de exílio, o buscar do desconhecido conhecido, espaço de saudade e contemplação do lugar… a cidade abandonada. Nos últimos anos, muita coisa mudou – demografia, arquitectura, trânsito, poluição, clima, ambiente, usos e costumes -, Macau tornou-se um laboratório de ansiedade. Gosto do convívio da noite, de estar só – nasce um desespero ingénuo -, surgem ideias, daí palavras, formam-se esboços de frases – nasce o texto! As rotinas são terríveis – matam o pensamento -, fazem-nos perder a inquietação, a dúvida, necessárias à mudança. A imaginação é essencial para se desfrutar de um lugar como Macau, onde os pormenores em que a vista atenta não são o que parecem, mas antes outros tantos pontos de referência para todo um sistema secreto de mundos sobrepostos mas espantosamente divergentes na complicada vida da cidade. Foram alguns velhos resistentes – uma velha guarda já desaparecida –, e não outros, que me ajudaram e me iniciaram a perceber a maneira como eu próprio podia estabelecer uma relação com o espírito da cidade. Hoje em dia ocupo-me – comigo eu entendo-me -, a tentar determinar a relação ente Macau e eu próprio – é vida! A memória – “memorizar é restaurar a intimidade” – não abandona as suas imagens tão prontamente, as minhas estão inextricavelmente associadas aos seus sabores, odores, cores e sons. “A desistência é uma revelação”, já o constatava Clarice Lispector. Reprimem-nos, mas não nos roubam as almas, transformam-nos, mas não nos mudam a identidade, subjugam-nos, mas não nos tiram o pensamento. Já sabemos calcular a vida – o que a vida custa – sacrifícios, doenças, a morte; pensamos, agimos, mas como existe um hiato entre cérebro e coração – amor e compaixão -, adiamos resoluções. Nascer é um começo, o resto é discutível. A vida – assim como a cidade – não segue uma coerência narrativa. Macau ainda é uma cidade catita, atraente, sóbria. Não é desmantelada por defeito, somente desleixada, suja – já foi pior -, um pouco desbotada, enferrujada. Tem uma certa unidade decrépita no estilo e concepção arquitectónica, tanto tem uma concordância, como uma colisão de conceitos ocidentais e orientais de proporções e formas – possui uma história social e humana. – essa é a verdadeira essência da cidade. Macau é uma cidade desnorteada, impreparada, vive deslocada da realidade presente e o seu sentido de colectivo e confiança está em erosão de pensamentos e ideias – tudo o que é solução é inaplicável e tudo o que é aplicável não é solução. Deambulemos (pensamentos), pela cidade – “é obrigatório ter outros em face” -, sem restrições nem representações. Os habitantes dos bairros periféricos – “as periferias são a parte mais importante das cidades. São fábricas de desejos e sonhos”, na opinião do arquitecto italiano Renzo Piano -, Iao Hon, Patane, Tagmanini Barbosa, Ilha Verde vivem num silêncio contido. A alma deles é generosa, vivem domesticados, são classes assistidas, têm consciência da asfixia social em que vivem, mas vivem longe da praça, do palácio, do governo, mas existem! Em contexto social de bairro, a sua solidariedade é grande, já que há “um movimento intrínseco de inserção e um propósito social de inclusão”, que no seu conjunto exprimem a ideia cívica de união, aquilo a que Tomás de Aquino chamava “amizade civil”. São pessoas – lê-se-lhes nos seus rostos, não são precisas palavras – que desejam uma sociedade em que mulheres e homens pudessem ser livres. E para serem livres bastar-lhes-ia ter uma vida digna e decente, com um conteúdo económico e social, gostariam de ter uma independência ética. Do programa faz parte a gramática social… não a gramática teórica. O rio das Pérolas lá no fundo, continua a representar o trânsito do desejo e da aventura, daí as noites continuarem a ser uma mera continuação do dia – existimos logo vivemos!
Andreia Sofia Silva VozesO problema dos números [dropcap]A[/dropcap]s esperanças estão depositadas num novo Governo que parece estar, finalmente, a agir ao invés de se limitar a existir. No entanto, é preciso percorrer ainda muito caminho para que o discurso político seja levado a sério sempre que é proferido. Os últimos governantes têm tido um problema com os números: não só a fiscalização dos gastos é muito difícil de fazer como quem governa gosta de fazer de nós parvos. Não se percebe como é que, em pleno hemiciclo, se diz que o Plano de Desenvolvimento Quinquenal foi cumprido em 80 ou 90 por cento, por exemplo. Como se chegaram a estes valores? O que se cumpriu, e como? Serviu quem, e o quê? Esta segunda-feira houve outro exemplo crasso no debate sobre a área dos Assuntos Sociais e Cultura. Falou-se dos gastos na saúde e aí, novamente, o mistério. Ao Ieong U apenas disse que 45 por cento do orçamento vai para pessoal médico, 25 por cento para a compra de medicamentos. E os valores? E as diferenças entre público e privado? Não se sabe. Entre 1999 e hoje apenas soubemos o orçamento do Centro Hospitalar Conde de São Januário uma única vez, no ano de 2015. Ficou a promessa, por Alexis Tam, de divulgação dos orçamentos posteriores, mas até hoje nada. A maior parte dos deputados assobia para o lado quando estas frases são proferidas na Assembleia Legislativa. Se a transparência é o mote deste Governo, então que se leve isto a sério.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesVisibilidade lésbica – na pandemia [dropcap]O[/dropcap] dia 26 de Abril foi oficialmente adoptado para celebrar a visibilidade lésbica em Portugal. Há muitas estórias e histórias que levam a que o dia da visibilidade lésbica seja celebrado em diferentes dias em diferentes lugares do mundo (incluindo países asiáticos?). Dizem activistas e investigadoras que foi em 2008, por causa da ligação e união que a internet possibilitou, que se começou a homogeneizar uma data e a sua (ainda) importância. E agora, como é que se vive a visibilidade lésbica em pandemia? No mês que ainda se discute a liberdade discutem-se também os direitos e liberdades de amar quem se quer. Na figura da mulher, a assumpção heterossexual continua a ser imediata. Isto é verdade nos contextos interpessoais, e também institucionais, nos hospitais, nas escolas, e em geral, na esfera pública. Assume-se que as sexualidades não-heteronormativas são uma minoria e uma excepção. As mulheres que amam outras mulheres continuam apagadas do discurso e das narrativas. As mulheres solteiras do passado, que se calhar viviam com a amiga, continuam nos armários da história que se conta. Ainda hoje, a mulher continua a sofrer as consequências de obtenção tardia de direitos, de discriminação de género e de pouca representatividade política. Tornar as mulheres lésbicas visíveis ainda é muito necessário. Por este lado do planeta as lutas são outras, porque as formas de visibilidade são outras também. Na complexidade da globalização dos direitos sexuais e das suas formas de expressão em contextos de repressão política e social, a internet continua a ser um modo de partilha para comunidades re-imaginadas. No dia-a-dia, lá fora, continua a não se dar visibilidade a formas de afecto lésbicas. Mas, num artigo publicado em 2017 na revista científica Sexualities, relatam-se novas formas de apresentação a contribuir para a visibilidade lésbica em Taiwan. As mulheres que adoptam o estilo masculino coreano mainstream estabelecem uma nova subcultura que está intimamente ligada com as lutas LGBTQI; fazendo uso da sua popularidade, também na China, Hong Kong e Macau. Em tempo de pandemia esta visibilidade, na rua, nas interacções, e nos símbolos, está ameaçada. Para um lado do planeta, em que a luta toma formas mais expressivas, e em outros lados menos, vai ser preciso redefinir esta visibilidade para a nova esfera pública que a pandemia obriga. A distinção entre esfera pública e privada está cada vez mais comprometida quando somos obrigados a ficar em casa para ajudar a travar a evolução de uma doença infecciosa. Onde colocamos a nossa máscara social de afirmação identitária? Por baixo de uma máscara sanitária, a dois metros de distância? Vai sempre fazer sentido falar da visibilidade lésbica, até quando o conceito de visibilidade não nos é garantido nas formas que nos eram conhecidas. Ainda é cedo para perceber como é que a pandemia nos vai afectar globalmente e como é que afecta os direitos sexuais em particular – muita gente está obrigada a confinamento em lugares não-seguros onde estes direitos não lhes são garantidos. Os dias de visibilidade vão ser mais necessários do que nunca. Pode ser que neste contexto particular as esferas privadas e públicas consigam formar-se numa nova dicotomia menos contrastante. E assim tornar o conceito de cidadania íntima ainda mais relevante, onde o pessoal, o social e o político conseguem envolver-se para alimentar sociedades mais justas e igualitárias.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesJustiça online [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 1 realizou-se um julgamento online no Distrito de Daya Bay, em Huizhou, na China. O caso teve maior impacto por se tratar de um crime mediático. A história conta-se em poucas palavras. O réu publicou, num chat, um anúncio de venda de máscaras que não existiam. O anúncio esteve online de 16 de Janeiro a 8 de Fevereiro, e defraudou duas vítimas num montante que ascendeu a 3.950 renminbi. O réu admitiu a sua culpa. Foi condenado a sete meses de prisão e a uma multa de 3.000 renminbi. Nesta altura, não é surpreendente que certas pessoas publiquem notícias falsas na Internet, nomeadamente anúncios sobre venda de máscaras que na verdade não existem. Mas a realização de um julgamento online já é um assunto que merece alguma atenção. Um julgamento online (OLT sigla em inglês), requer uma ligação por cabo. Se o sinal estiver normal o OLT decorre sem problemas. No entanto, se houver uma interrupção do sinal, como é que se lida com a situação? Nos dias de hoje, existem muitas empresas e instituições cujas redes têm de funcionar em pleno, por exemplo, as redes bancárias. Se os tribunais implementarem os OLTs, de que requisitos de rede vão necessitar? Terão de estar equiparados aos das redes bancárias? A identidade das partes é outra questão que se coloca. Durante o julgamento, as partes podem ver-se presencialmente e, portanto, a possibilidade de falsificação ou substituição é baixa. No entanto, no OLT, cada uma das partes tem de se basear nas imagens que aparecem no ecrã do computador. Será esta situação praticável? Antes da realização de um julgamento online o tribunal tem de perguntar às partes envolvidas se concordam com este formato. Ao darem o seu consentimento, concordam que não haverá espaço para qualquer tipo de falsificação. No entanto, vale a pena considerar a forma de efectivamente impedir qualquer tipo de falsificação ou de substituição. Um julgamento criminal é diferente de um julgamento cível. O propósito de um julgamento cível é a indemnização da parte lesada, enquanto no caso criminal se trata de condenar alguém que transgrediu de alguma forma o código penal. Quando a culpa é apurada, o réu é condenado. A prisão é uma das várias condenações possíveis. Portanto, uma das situações a ter em conta é a possibilidade de o réu fugir após a condenação. Se não forem tomadas medidas compulsivas com antecedência, a possibilidade de o réu fugir aumenta. Aqui a questão a ter em conta é como evitar que o réu escape à justiça depois da sentença proferida. Se estivermos perante o julgamento de um crime menor, em que a pena por norma não vai além de uma multa, o formato do julgamento online parece ser mais adequado. No entanto, perante um crime grave, como o homicídio, em que a condenação inevitavelmente levará o réu à cadeia, este formato pode proporcionar a fuga que, como é óbvio, deve ser evitada. É compreensível que os julgamentos online sejam mais compatíveis com os casos cíveis, onde as condenações não implicam por regra a perda da liberdade do réu, mas sim o pagamento de multas. Claro que, se a multa for muito elevada, o réu também poderá fugir para não ter de a pagar. Existe ainda outra questão legal digna de consideração. Se o queixoso e o réu arguirem sobre uma prova, como é que essa prova deverá ser examinada? A modernização dos tribunais deve estar em linha com a evolução da ciência e da tecnologia, e no contexto da actual pandemia em que se deve manter o distanciamento social, a realização de julgamentos online parece ser uma boa medida. No entanto, se não houver regulamentação adequada e instalações compatíveis com este modelo, a concordância das partes envolvidas na sua realização não será suficiente. Além disso, a falta de domínio deste tipo de tecnologias por parte dos funcionários dos tribunais, também será um problema. Esta falha fará com que a eficiência do julgamentro online seja diminuída. Assim sendo, para que se possa realizar eficazmente um julgamento online as partes envolvidas e o tribunal deverão ter apoio de técnicos informáticos. Este apoio deverá ser prestado tanto ao nível do software como do hardware. Imagine-se que durante o julgamento o computador se avaria, terá de existir outro para o substituir imediatamente. Além disso, o julgamento online tem de ser gravado, não só como medida de prevenção em caso de falha informática, mas também para se criar um registo no caso de uma das partes querer recorrer. Macau é uma cidade pequena com uma população relativamente pequena; a procura de julgamentos online é baixa. Claro que, perante esta pandemia, a situação pode mudar. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Santos Filipe VozesSurpreendidos? [dropcap] M[/dropcap]acau é uma terra para trabalhar e enriquecer. E o dinheiro é o valor máximo, acima de qualquer outro. Repito, acima de qualquer outro. Podemos ouvir juras disto e daquilo todos os dias e críticas a quem pensa de maneira diferente. Mas todos sabemos que as críticas de hoje são as nossas palavras de amanhã se para isso nos pagarem. Macau é assim, uma terra que vale pelo dinheiro para quase todos. E nesse aspecto não terá mudado muito com a transição. A questão é que se podia esperar um comportamento diferente numa altura excepcional como a da pandemia. O cartão do consumo veio mostrar que não… Os supermercados não terão sido propriamente afectados pela covid-19. Até tomaram medidas de contenção de despesas como redução do horário de trabalho e encerramento de alguns espaços, para levar os clientes para outros. Resultado: grandes filas para pagar, que contrariam aquela coisa do distanciamento social. Ninguém quis saber. Agora com o cartão de consumo, os supermercados aproveitaram imediatamente para subir os preços. Ninguém ficou surpreendido. Mas eu não esperava tão cedo uma homenagem ao Tufão Hato, a fazer-nos lembrar da subida do preço da água. Nestas alturas vemos sempre o melhor da sociedade. Estamos todos cheios de amor e queremos ter um país forte, mas por uns cobres não temos problema em atentar contra os valores nucleares da “harmonia social” e da “estabilidade interna”. Fica-nos tão bem… E mesmo que não fique, pegamos nos lucros e vamos ao cirurgião fazer uma plástica para retocar. Mou man tai!
Salomé Fernandes VozesDireitos em falta [dropcap]T[/dropcap]alvez seja para tentar compensar pelos parcos dias de férias assegurados pela lei das relações de trabalho que o dia 1 de Maio é feriado em Macau. De resto, tem a sua dose de hipocrisia a RAEM celebrar o dia do trabalhador quando há uma falta de direitos laborais flagrante no território. Este ano podem não ter existido protestos nas ruas, mas isso está longe de significar que tudo está bem. Continuam a vir ao de cima casos em que a entidade patronal não cumpre sequer o que está estabelecido na lei. Há empregadores que precisam de ser lembrados de que dar emprego a uma pessoa não é fazer-lhe um favor: é uma relação em que ambos beneficiam, e há direitos e deveres de parte a parte. Só se pode imaginar quantas irregularidades passam à margem sem serem detectadas, já que lei não faz mais do que abrir a porta ao silêncio e a fiscalização fica muito aquém do desejado. Não é aceitável que o despedimento sem justa causa seja legal. E tudo piora nos casos que envolvem trabalhadores não residentes, por vezes sujeitos a condições que se aproximam de escravatura moderna, as quais não denunciam face ao risco constante de terem de abandonar o território num curto espaço de tempo se a relação laboral terminar. A lei sindical precisa de avançar, e com ela o direito à organização e à participação em greves. Mas o trabalho legislativo não pode ficar por aí se o Governo quiser que as pessoas consigam usufruir na prática dos direitos que estão estabelecidos.
João Luz VozesLatrina mental [dropcap]A[/dropcap] diferença entre uma ideia e bosta pode parecer ténue aos afortunados de fraco olfacto. Quando a diferença é difícil de identificar podemos estar na presença de uma ideia de estrume, adubo natural que fertiliza o campo dos conceitos escatológicos. Macau é terreno fértil onde abunda este tipo de composto mental. As coisas que se ouvem e lêem nesta pastagem, não raras vezes, são uma espécie de clister intelectual, as primeiras gotas de um dilúvio castanho. Há coisa de dias, não importa onde, nem por quem, li algo que, à primeira vista, me fez rir às gargalhadas e depois me encheu de desgosto. Não querendo antecipar o suspense quanto às fedorentas pérolas, deixem-me que vos guie pela mirabolante tese que pretende resolver o elevado preço da carne de porco em Macau, ao mesmo tempo que elimina o valor das terras numa cidade faminta de espaço, com uma das maiores densidades populacionais do planeta. Junta-se uma pitada dos chavões locais, como diversificação económica (faltou a Grande Baía) e está feito. A teoria é adorável, pura, inocente, faz florir um canteiro. Imagine que o Governo decide dedicar a zona X dos Novos Aterros à pecuária, mais propriamente à criação de porcos. Sim, provavelmente a mais cara pocilga do mundo. Cometendo o risco de bater o recorde mundial da sensualidade impressa, vou citar a empreitada de construção directamente do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-Estruturas, seguido de um breve trecho de prosa dessa bíblia da suinicultura que é a publicação “Vida Rural”. Porque não andamos aqui a brincar. “A Zona X do Novos Aterros Urbanos ficará localizada” entre coisas, “com uma área de cerca de 320 000 m2”, e destina-se principalmente à zona de instalações públicas e de habitação”. Coisinha para custar mais de 816 milhões de patacas. Imaginem quantos quilos de febras se compram com este balúrdio. Antes de passar ao Evangelho de São Bácoro, deixem-me informar que sou do Alentejo, a Meca do Porco Preto. Um dos segredos desse mítico e mundialmente apreciado suíno é a sua dieta forte em bolota. Será que alguém vai propor o cultivo de sobreiro, aka chaparro, na zona Y? Nasceria um novo princípio: “Dois Aterros, Um Chavascal”. Fica a sugestão. Outra questão por responder é como aplacar dois dos mais poderosos lobbies e negócios, não só da região, mas do mundo inteiro, construção e imobiliário, a favor de algo que se pode importar. Não podemos adquirir espaço, terras, ao exterior, uma ideia que escapou aos inúmeros facínoras expansionistas que escreveram a sangue as mais tristes páginas da história mundial. Imagine-se o expansionismo guiada pela fome de costeleta. E como o prometido é devido, aqui vai a citação do “Vida Rural”: “As porcas, de forma natural, desmamam os leitões e são depois colocadas com os varrascos durante 30 dias. Para os leitões nascerem entre Março e Abril terão de ser colocadas à cobrição entre Novembro e Dezembro”. Ouro vertido em prosa, em doses equivalentes de despropósito e lirismo. Quase 3000 caracteres vertidos e só ainda vou num tópico. Acho que me entusiasmei. Permita-me a rápida guinada para uma verborreia que a falta de senso levou ao corte editorial. Acredite, caro leitor, a quantidade e qualidade do excremento que ouvimos e lemos é de tal ordem que seria possível erguer um Taj Mahal fecal todas as semanas. Mas esta catedral merdosa merece um lugar de pódio. Imagine que a pandemia da covid-19 crescia para níveis de filme apocalíptico protagonizado pelo Bruce Willis. Este é o ponto de partida para o impressionismo de Belle Époque deste Claude Merdet, para a fragância do nosso Cócó Chanel. Se Macau vivesse um cenário de grande extinção em massa devido ao coronavírus, com ruas como valas comuns, ou pior, com uma situação económica de incalculável prejuízo para as PME, um dirigente associativo achou no absurdo a solução. Quiçá, um ávido leitor de Albert Camus, pronto para achar significado de vida no despropósito. Este senhor acha boa ideia o Governo substituir os trabalhadores das PMEs por heróis anónimos vestidos com fatos NBQ, aqueles que vimos em desastre nucleares como em Fukushima, vestimenta híbrida entre alienígena e fato espacial. Imaginemos como seria o dia-a-dia de uma loja ou pequeno restaurante, com empregados em fatos hazmat ao estilo “Breaking Bad”, mas com outro tipo de culinária. Onde é que estes estabelecimentos iriam arranjar clientes, e mesmo se existissem, até que ponto do desejo de comprar é superior ao amor à vida? Não lembro de ver roulottes de bifanas, ou lojas de sopa de fitas em Chernobyl. Às tantas, a série documental ocultou esses bravos guerreiros atómicos. Defecados estes dois montes de fumegantes ideias, acabei também por largar uma flatulência cerebral. Semanalmente, despejar nesta nauseabunda página os grandes êxitos das ideias de merda que, imunes à vergonha, conhecem a luz do dia e transformam o espaço público numa latrina de festival de Verão. Mas talvez isso seja demasiado cruel com o estimado leitor, para a minha sanidade mental e saúde pública da população.