Manuel de Almeida VozesO viver a existência das palavras AS PALAVRAS “São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas. Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam: barcos ou beijos, as águas estremecem. Desamparadas, inocentes, Leves. Tecidas, são de luz e são a noite. E mesmo pálidas verdes paraísos lembram ainda. Quem as escuta ? Quem as recolhe, assim, cruéis,desfeitas, nas suas conchas puras ?” Eugénio de Andrade (1923/ 2005), poeta. [dropcap]A[/dropcap]o escrever, o que me interessa é estabelecer encontros e desencontros entre diversas realidades. Ou partindo do sentido da reconversão fazer da desorganização uma organização ordenada de palavras, ou fazendo das divergências convergências de encontro de pensamentos, ou da inacção em acção de ideias, ou tornar o invisível, visível da realidade. Uma reconstrução – a sobrevivência. Não gosto de trocar a realidade pelas sombras projectadas ou imagens desfocadas, uma realidade que se transmuta – -, ou uma aversão à ambiguidade. Deixaram-nos na incumbência de interpretar a utilização manipuladora das palavras. Será que estamos a fazer o trabalho de casa? Não haverá uma subserviência ao politicamente correcto. O concreto não é irritante pelo que mostra, mas por aquilo que denuncia. Escrever é de alguma maneira subverter. Faz-me lembrar a história da borboleta – símbolo da metamorfose. A borboleta transforma-se, mas é livre (não há muitos). Vive pouco tempo, mas aproveita-o como ninguém. Defeitos (?) Alguns. Virtudes (?) Muitas – “quem não se contradiz, não diz nada”, então por estas bandas… A quantas metamorfoses já assistimos em Macau? A um número infinitivamente grande. Os portugueses são previsíveis e unânimes. Como se olha nos olhos de quem agiu ou age como se fosse dono? Existem muitas sombras no calcorrear da vida – subporções de ideias ou o obliterar da existência, porque perdemos a ressonância emocional. “Temos a tendência para Ler o que confirma as nossas ideias” – é preciso um esforço maior e saber questionar, já que o tempo dilata-se e a expectativa instala-se, despejamos os destroços enferrujados da memória. As palavras têm o poder de se reflectir como espelhos. As imagens opostas (a realidade) têm leituras invertidas. Cada um de nós é um manual profusamente ilustrado, com páginas soltas, com destinos traçados não que aguardem uma desgraça – com um sentido épico – numa das curvas da vida. As viagens são feitas de reflexões e memórias. Temos de viver menos com exclamações e ilusões e com mais interrogações, sem convenções e preconceitos. Esperam-nos desafios e adversidades. “A nossa capacidade de não ver as coisas é infinita. É que passamos a vida, por irresistível inclinação antropológica, a construir e a pintar mundos para nós mesmos” – na opinião do filósofo norte-americano, Nelson Goodman (1906 – 1998 ) – ,“a nossa indisciplina mental é perdulária”. Vivemos num Mundo de contradições. Há uma certa fragilidade e efemeridade da vida, há uma certa obscuridade do pensamento, o que nos torna almas ansiosas que necessitam de respostas. Ninguém no-las vai dar. Teremos de as saber encontrar. Saberemos (?), o tempo urge. A esperança faz-nos depreciar o presente. A mudança, como sabemos, começa quando começamos a pensar nela. Não nos podemos queixar, não tivemos uma disrupção inesperada, o que não temos de momento é capacidade de construir opostos – pontes -, pensamentos íntimos, é um malogro geracional, continuamos, enfim, uns prestáveis poetas…criamos fissuras para sobreviver, vivemos ainda de crenças, mas a um cidadão, nos tempos que correm, não lhe é permitida a ambiguidade, eu sei que nos conformamos desde que haja compensações. É o dilema da existência… “Os azares das palavras são mais terríveis que os azares do tempo!” Palavras – a sua influência depende de três coisas : “de quem as diz, da qualidade do que se diz e da frequência com que se diz” – as palavras. Segredos omitidos, palavras não ditas, saborear o saber da sabedoria, a insatisfação existêncial das palavras! “ As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um” Almada Negreiros (1893-1970)
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesOs dois modelos de Macau e de Hong Kong [dropcap]E[/dropcap]m Agosto, teve início a segunda fase do cartão de consumo de Macau. Ao contrário do que aconteceu na primeira fase, agora, a Macau Pass vai cobrar uma taxa de 0,5% sobre cada transacção efectuada com o cartão. O intuito original do cartão de consumo foi a promoção do consumo e da economia e, sobretudo, proporcionar um incentivo às pequenas e médias empresas nas quais se apoia o comércio de Macau. Apoiando este sector evita-se o fecho das lojas e garante-se a manutenção dos postos de trabalho. O Governo de Macau investiu cerca de 2,2 mil milhões de patacas na primeira fase do cartão, cuja utilização não estava sujeita ao pagamento de taxas. O valor a aplicar na segunda fase será de aproximadamente de 3,685 mil milhões de patacas. A Macau Pass Company estabeleceu esta taxa de acordo com as práticas internacionais, que obriga os comerciantes ao pagamento de uma percentagem por cada pagamento electrónico. O “Acordo de Prestação de Serviços do Macau Pass” assinado pela Companhia Macau Pass e pelos representantes dos comerciantes estipula que estes serão responsáveis pelo pagamento da taxa sempre que o cartão Macau Pass é usado, taxa essa que nunca deverá ser cobrada aos clientes. A utilização do cartão de consumo criado pelo Governo é semelhante ao Pass Card de Macau, e fica igualmente sujeito ao pagamento de taxas. Solidária no combate à epidemia, a Macau Pass Company não cobrou taxas na primeira fase. O valor de 0,5% cobrado na segunda fase, é mais baixo do que aquele que se aplica aos cartões de crédito. Esta taxa destina-se apenas a cobrir as despesas operacionais e não à obtenção de lucro. Como este valor não pode ser cobrado aos consumidores, vai sair directamente dos bolsos dos comerciantes e reduzir os seus lucros. A epidemia diminuiu o afluxo de clientela, o volume dos negócios baixou drasticamente. Por tudo isto, os comerciantes já estão a lidar com muitas dificuldades e esta taxa ainda veio piorar a situação. A Companha Macau Pass é a única que trabalha com os comerciantes na utilização do cartão de consumo. O aparecimento deste cartão obrigou os lojistas à aquisiçao do equipamento necessário, que também aceita outros cartões electrónicos como o “Cartão Macau Pass” e o “Mpay”. Com o aumento desta quota de mercado, a segunda fase do cartão de consumo já não está isenta das taxas, o que foi naturalmente contra as expectativas da população. No entanto, para a Companhia Macau Pass, os seus lucros provêm da aplicação da taxa. Na primeira fase do cartão a isenção da taxa representou a solidariedade da Companhia para com o Governo de Macau, em tempos de dificuldade. Se a isenção se mantivesse nesta segunda fase, como é que a companhia ia suportar as despesas operacionais? Podemos facilmente perceber que os benefícios de uns, representam os prejuízos dos outros. Mas podemos reflectir sobre esta questão a partir de outro ângulo. O Governo de Hong Kong recusou-se a distribuir dinheiro pela população durante muito tempo. Este ano, após solicitação de muitos sectores, concordou finalmente em distribuir a cada residente a quantia de HK$10,000. Mas, ao mesmo tempo, levantou-se outro problema. De que forma é que este dinheiro ia ser distribuído? O Secretário das Finanças de Hong Kong, Chen Maobo, anunciou que 20 instituições bancárias tinham sido convidadas para prestar assistência na distribuição destas verbas, e que mil milhões de dólares tinham sido reservados para despesas administrativas. Soube-se recentemente que as taxas envolvidas nesta operação não excederiam os HK$500 milhões. 20 Bancos a cobrarem apenas 500 milhões parece ser um bom exemplo. Revela que a atitude da administraçao pública é diferente da atitude comercial do sector privado. Quando se pede a instituições privadas que implementem medidas governativas, quais devem ser escolhidas, quantas serão necessárias, quais os custos operacionais e quem é que tem a responsabilidade de os pagar? Estas questões devem ser pensadas em profundidade. A epidemia continua a existir e ninguém sabe quando irá terminar. Questões relacionadas com a companhia que opera o cartão de consumo, a quantidade de agências envolvidas e a gestão das taxas, lembram-nos que se a terceira fase do cartão de consumo for implementada, será necessário reflectir muito bem antes de o fazer; para que todas as partes se possam sentir satisfeitas. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19 e economia (I) “Mankind does not reflect upon questions of economic and social organization until compelled to do so by the sharp pressure of some practical emergency.” Richard Henry Tawney Religion and the Rise of Capitalism [dropcap]O[/dropcap] grande economista italiano, Federico Caffè, amargamente polémico contra uma ciência económica que fez desaparecer as pessoas por detrás dos números considerava que ser economista, significava colocar o trabalho e o bem-estar das pessoas em primeiro plano. O pensamento económico fazia sentido se o seu objectivo fosse o combate à pobreza, ao desemprego e ao sofrimento da humanidade. Infelizmente, a corrente económica tomou um caminho diferente e continuou a dar prioridade aos números, e orientou as práticas dos governos e dos poderosos, justificando a enorme concentração da maior parte da riqueza do mundo em poucas mãos. Leu a globalização como uma prática em que todos poderiam ganhar, confiando na lógica pura do mercado e na forma como os negócios e as finanças tendiam a maximizar os lucros. A reorganização das cadeias de produção à escala global, procurando lugares no mundo onde fosse possível produzir a menor custo, era vista como uma operação que beneficiaria toda a gente; que aumentaria a capacidade de obter lucros daqueles que detinham o poder e a riqueza; ao mesmo tempo permitiria o desenvolvimento industrial dos países mais pobres e a manutenção de preços mais baixos ao consumidor nos países desenvolvidos; valorizou, do ponto de vista turístico e residencial, talvez para os idosos que lutavam nos seus países para viver das suas pensões, lugares no mundo esquecidos por Deus; ensinou os pobres a tirar o maior proveito possível dos seus recursos naturais, transformando as práticas tradicionais de sobrevivência em agricultura industrial de grande escala, criação intensiva de gado, trazendo também à tona formas de individualismo consumista nesses países, em detrimento de antigos laços comunitários; os indivíduos perdidos nas megalópoles, arrancados das suas aldeias e a possibilidade de viverem do seu trabalho nas suas terras. Tudo se baseia na previsão de crescimento infinito. E quando o crescimento da economia real abranda, o centro da economia desloca-se para as finanças. E as decisões mais importantes para o trabalho e a vida das pessoas concentram-se nas mãos cada vez mais distantes e invisíveis dos senhores do crédito e da bolsa, que são, entre outras, aqueles que sabem utilizar e explorar o poder dos algoritmos melhor e mais rapidamente do que qualquer outro. A crença de que a financeirização da economia continuaria o crescimento atrofiado, foi a forte ideia que fez aceitar esta expropriação gigantesca do poder dos Estados e dos cidadãos. Tudo começou no final da “era dourada”, a era do pós-guerra no início dos anos de1970, quando o aumento da produção também trouxe consigo um aumento do emprego, rendimento e consumo. O aumento do preço do petróleo e das matérias-primas restringiu as margens de lucro, assim como a possibilidade de redistribuição de algumas delas aos trabalhadores. A automação industrial reduziu o emprego necessário para a produção de bens de consumo e de capital. As novas tecnologias de informação e comunicação e a contentorização da logística permitiram manter juntos ciclos de produção que tiveram as suas fábricas espalhadas pelo mundo, numa procura contínua de locais onde o trabalho custou menos e o limiar dos direitos sociais foi mais baixo. O número de consumidores solventes foi reduzido. Fomos confrontados, pelo menos nos pontos altos do desenvolvimento capitalista, com uma crise cada vez mais evidente de superprodução. E é então que a procura do lucro é libertada de qualquer responsabilidade para com os trabalhadores, o território e os países. A única responsabilidade é para com os detentores de grandes participações. Uma transição que nos diz bem, com um certo avanço sobre a mesma análise económica, “Pretty Woman”, o filme mais culto do início dos anos de 1990. Richard Gere e o seu parceiro aprenderam que o dinheiro é feito com dinheiro, e que a produção, a cidade, os trabalhadores são pura sorte no ciclo de valorização do capital. Compram fábricas para as desembrulhar, e transformam a produção material em dinheiro para serem valorizadas nesse circuito de grandes finanças onde em poucos segundos trocam valores iguais ao PIB de todos os países do mundo. A esta concepção abstracta da valorização do capital corresponde uma concepção igualmente abstracta do amor. Na verdade, Richard vai às prostitutas. Então as regras de Hollywood prevalecem sobre a realidade. Richard Gere é demasiado bem-parecido para ser apenas um pedaço de carne, e Julia Roberts é demasiado glamorosa para acabar por ser uma prostituta. E o amor que se torna uma verdadeira relação entre as pessoas é correspondido pelo regresso do especulador, que devolve a fábrica ao antigo patrão, ainda convencido de que para ganhar dinheiro era preciso fazer os trabalhadores trabalhar e produzir bens. Uns finais felizes que a América e a moda ainda queriam ouvir. As coisas, como é bem sabido, não se resolveram dessa forma. As fábricas de Detroit tornaram-se cidades fantasmas. A produção em massa deslocou-se para países sem assistência social e sem sindicatos, onde centenas de trabalhadores podem incendiar-se em armazéns dilapidados. São os Richard Geres não redimidos pelo amor que fazem o dinheiro ir para todo o mundo e continuar a ir para as prostitutas. Os estados competem para interceptar uma parte do fluxo. Ao competir com aqueles que cobram menos impostos, os que reduzem as taxas, os que baixam os seus limiares de bem-estar. Mas era necessário encontrar uma forma de convencer até os cidadãos do Ocidente de que esse fluxo de riqueza também seria bom, que o crescimento da riqueza lhes permitiria manter o seu modo de vida, esse modo de vida americano agora generalizado no mundo, para defender os Estados Unidos, e não só, que também são legítimos para fazer guerras. O recurso à dívida nasce a nível das massas. O que não é apenas um problema para os Estados. Mas é a consequência quase inevitável dos longos anos em que os trabalhadores foram convidados a ganhar menos e a consumir mais. Em que surgiram supermercados em vez de fábricas. Em que a identidade das pessoas passava cada vez mais do trabalho para o consumo. A crise financeira do subprime, das hipotecas desfeitas para que mesmo aqueles que não tinham dinheiro para comprar casas pudesse comprá-las, dos cartões de crédito aparentemente sem fundo, e das hipotecas que nunca foram reembolsadas. Porque a valorização do capital necessita que mesmo aqueles que vêem os seus rendimentos reduzidos, os que perdem os seus empregos, continuem a consumir. Quando termina o sonho de uma melhoria colectiva das condições de trabalho e de vida, e uma vez acabada a era que tinha visto crescer a classe média, os pobres são convidados a ter os sonhos dos ricos. Consumidores em dívida para com os sonhos dos ricos, sonhos que a publicidade e os meios de comunicação social lhes apresentam todos os dias como pré-requisitos para uma vida decente, são, no entanto, a longo prazo, devedores insolventes. E a maioria dos Estados que estão cada vez mais dependentes dos créditos das grandes finanças internacionais estão também a tornar-se rapidamente insolventes. A crise financeira de 2008 resultou da acumulação de insolvência, que acabou por ser determinada pela manutenção do horizonte de crescimento infinito, enquanto os factores que o crescimento real podia suportar estavam a diminuir rapidamente. A resposta foi mais uma vez predominantemente financeira, mas pelo menos nessa altura foi construída alguma forma de cooperação entre Estados e instituições económicas internacionais para encontrar uma resposta coordenada à crise. O governo dos Estados Unidos avançou rapidamente, tendo o ex-presidente Bush convocado o G20 para implementar uma estratégia coordenada para evitar que o colapso do sistema financeiro dos Estados Unidos conduzisse ao colapso de toda a economia global. A liderança política americana parecia estar consciente de que uma catástrofe nascida no interior das suas fronteiras poderia dominar o mundo, e que isto teria efeitos perturbadores na própria economia dos Estados Unidos a longo prazo. Os limites e contradições dessa resposta têm sido examinados há muito tempo. Acima de tudo, o facto de os instrumentos financeiros e as dívidas vivas para travar a crise financeira terem sido depois transmitidos, através de sucessivas políticas de austeridade, aos cidadãos mais pobres, que eram mais do que culpados por essa crise. Mas a diferença fundamental entre essa crise e esta é que a primeira era principalmente financeira, e o restabelecimento da ordem nas finanças parecia e talvez fosse a principal necessidade. A crise actual, por outro lado, nasceu e afecta a economia real e nada é mais real do que a vida das pessoas, bloqueia as formas habituais de produção de rendimento e consumo, e torna-se financeira atirando para as mesas das autoridades monetárias internacionais, finanças globais, nas mesmas listas da bolsa, milhares de mortos e um grande número de actividades produtivas de bens e serviços, bens agrícolas e industriais, comércio e turismo, à beira da falência. E explica porque é que, apesar das injecções maciças de liquidez, da queda drástica das taxas de juro, a bolsa americana continua a estar em vermelho profundo, e as taxas de desemprego nos Estados Unidos estão a aumentar exponencialmente. Nem na América nem na Europa podem os instrumentos monetários e financeiros resolver a crise. Isso já estava a acontecer no mundo antes da Covid-19 e os fenómenos, como o enorme alongamento das cadeias de produção que tinha afectado os salários dos trabalhadores no Ocidente e causado o êxodo de muitas empresas em todo o mundo, o crescimento cada vez mais rápido da China que se tinha tornado o principal motor da economia globalizada e o abrandamento no resto do mundo do ritmo de crescimento tinha reagido com o regresso do proteccionismo. Os deveres, o encerramento das fronteiras às pessoas e em alguns casos também às mercadorias, até a uma verdadeira guerra comercial entre países e continentes. A ideologia win-win do neoliberalismo triunfante, que prometia crescimento e bem-estar a todos, foi seguida pelos “mors tua vita mea”. Jenny Offil num belo e recente romance, “Weather”” “Pergunta. Qual é a filosofia do capitalismo tardio? Resposta. Dois caminhantes vêem um urso faminto a uma curta distância. Um deles tira os seus sapatos de corrida da mochila e calça-os. “Não se pode correr mais depressa que um urso” diz o seu parceiro. “Só tenho de correr mais depressa do que tu”, diz ele.” O Estado, cujo papel económico e social tinha sido negado por Reagan e Thatcher, reaparece juntamente com a reafirmação do nacionalismo. Os soberanistas, a começar por Trump e Johnson, muito mais perigosos que os soberanos fascistas da Europa Oriental, afirmam a primazia da sua própria nação sobre todas as outras, e a defesa dos interesses dos seus cidadãos prevalece sobre todas as outras considerações e faz com que qualquer apelo à solidariedade internacional seja em vão. Este facto tem tido algumas consequências na gestão da própria pandemia. Durante algum tempo Trump e Johnson colocaram a preservação da competitividade da sua economia acima da defesa da saúde dos seus cidadãos e dos cidadãos do mundo. E é o nacionalismo competitivo, para além dos erros de organizações únicas, que provocou o enfraquecimento de todas as instituições internacionais destinadas a proteger a saúde e o ambiente, auxiliando e difundindo a educação e a cultura como a OMS, UNICEF e UNESCO. A Covid-19 e as dificuldades económicas que se seguirão estão destinados, na situação actual, a acentuar estas tendências e a tornar a guerra comercial ainda mais aguda, principalmente entre os Estados Unidos e a China e com todos os vários actores a medir os seus músculos nesta guerra. A começar pela competição selvagem em curso para o controlo das matérias-primas e dos recursos naturais. O petróleo, as florestas e a água estarão no centro da luta com algumas consequências desastrosas para África e para a maior parte da América Latina. O extractivismo, a flexão de cada recurso natural e cultural para a valorização económica capitalista, aumentará de intensidade. E a lógica da globalização continuará inexoravelmente, que tem destruído progressivamente a economia de subsistência, provocando o êxodo para as megalópoles do Terceiro Mundo de milhões de camponeses, concentrando a produção de riqueza no petróleo, nos recursos minerais, no cultivo de produtos exportáveis no Ocidente, na China e na Rússia. Tudo isto é uma das causas generativas do aquecimento global e da desertificação nesses países, bem como de muitas guerras, com a consequência de que alistar-se nos exércitos de ditadores e nas fileiras do Islão fundamentalista ou fugir para o Ocidente são a única forma de milhões de jovens africanos sobreviverem. Se o mundo dentro e depois da Covid-19 for este, a Europa arrisca-se a ficar para sempre à margem. E nenhuma medida financeira pode conseguir resolver este nó que faz da Europa, para não falar de países individualmente, um pote de panelas que colide com panelas de ferro. Para recomeçar, precisa de se repensar e passar realmente da lógica da concorrência, a da compreensão que ainda impede a adopção de medidas comuns sérias e incisivas, para a da cooperação e da solidariedade. Face a isto, pensar em termos puramente financeiros e monetários parece muito limitado. O aumento da liquidez não resolve o problema da insolvência previsível da maioria das pequenas e médias empresas. Deve ser considerada a intervenção directa dos Estados-Membros, apoiada por recursos disponibilizados pela Europa muito acima dos setecentos e cinquenta mil milhões de euros, que garantiriam a protecção dos trabalhadores e das empresas contra a perda de rendimentos resultante da cessação da produção e da actividade comercial causada pela Covid-19, como os agricultores afectados pela doença das vacas loucas e outras catástrofes naturais, ou os habitantes de cidades e aldeias varridas por terramotos ou inundações, foram compensados. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, referiu-se repetidamente à necessidade de um Plano Marshall Europeu. Deve-se recordar que o Plano Marshall foi em grande parte uma transferência directa de recursos dos Estados Unidos para a Europa, os mais fortes e ricos da época, na crença de que era do seu interesse ressuscitar toda a Europa dos escombros da guerra dado ser mercado para as suas exportações, parceiro produtivo na nova economia industrial triunfante e aliado na nova divisão do mundo em áreas de influência. Um Plano Marshall Europeu só é possível se os países mais ricos da Europa, e antes de mais a Alemanha, aqueles que se opõem à mutualização comum da dívida (os chamados Eurobonds, que são muito menos abrangentes do que o Plano Marshall), reconhecerem a necessidade no seu interesse, de os países do Sul da Europa manterem a sua vitalidade económica ao mais alto nível possível. Um caminho decididamente diferente daquele que caracterizou as intervenções em resposta à crise financeira de 2008, que ultrapassou decisivamente a lógica dos empréstimos condicionados à transferência de poder e à redução da despesa pública e do bem-estar, e que viu a Europa dividir-se entre países do Norte e países mediterrânicos com graves consequências para a vida e as instituições sociais destes últimos. Não só da Grécia. As reduções nos cuidados de saúde, educação e investigação são também filhos dessa história. Mesmo os grandes intérpretes da Europa competitiva e orientada para o mercado estão convencidos de que é necessário mudar a arma. O ex-presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi em particular, com o seu discurso no “Financial Times”, explicou que a recessão é agora inevitável, e que a única forma de não se transformar numa depressão sem fim são intervenções estatais decisivas que absorvam, através de um aumento da dívida pública, as crescentes dívidas privadas, dos cidadãos certamente, mas especialmente das empresas e bancos. São convidados a tornar-se um instrumento de política pública, concedendo crédito ao sistema empresarial mesmo sem garantias, mas com a garantia de que o Estado assumirá as insolvências. Alguma esquerda italiana até aplaudiu, saudando o regresso de Draghi, um antigo aluno de Federico Caffè, à órbita cultural do seu antigo mestre. Na verdade, a proposta do “Super Mario”, como muitos meios de comunicação italianos lhe chamam, pareceu a tentativa mais sensata para o regresso à normalidade económica atingida pela crise pandémica, da qual ninguém se sente culpado de forma alguma, nem mesmo aqueles que saquearam a Terra e feriram profundamente os ecossistemas em nome do crescimento infinito do fantasma. Se ninguém for responsável, se tudo o que temos de fazer é restaurar o funcionamento normal da economia, ninguém terá de pagar. E no entanto, mais cedo ou mais tarde, alguém irá pagar pelo aumento das dívidas.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLevar o navio a bom porto [dropcap]H[/dropcap]avia uma canção muito popular no tempo da Revolução Cultural, cujos primeiros versos diziam mais ou menos o seguinte, “A boa navegação depende do piloto e o crescimento dos seres vivos depende do Sol”. Mas, para além do Sol, também é necessário que haja água; de outra forma os seres vivos morrem de desidratação. No que respeita à navegação, o piloto é sem dúvida importante, mas o capitão e a restante tripulação também são indispensáveis, porque impedem que o piloto siga na direcção errada e que choque com um iceberg ou que encalhe nas rochas. Mas se o capitão pilotar o navio e cometer um erro, todos sofrem as consequências. Vou recorrer ao enredo de um filme para me explicar melhor. Um grupo de pessoas apanhou numa carrinha vermelha, à noite, em Mong Kok, Hong Kong. O condutor muito exaltado, conduz a toda a velocidade. Se os passageiros não conseguirem travar o condutor, o deus da morte esperará por eles na próxima curva. No mundo em que vivemos, os países estão constantemente a disputar um jogo de xadrez. A proliferação do populismo e do nacionalismo, associada aos efeitos da COVID-19, está mergulhar o mundo em águas turbulentas. Depender apenas do piloto para garantir uma navegação segura, vai conduzir-nos a um grande desastre. Quando Ho Iat Seng se candidatou às eleições para Chefe do Executivo de Macau, nunca imaginou que teria de vir a lidar com uma das situações mais desafiantes dos últimos 100 anos. Enquanto piloto da RAE de Macau, como é que irá abordar o futuro da cidade? Com o aparecimento de uma terceira vaga de COVID-19, e sabendo nós que antes do final do ano não estar disponível uma vacina, é muito pouco provável que a economia de Macau se comece a erguer nesta segunda metade do ano. De acordo com os dados do Inquérito ao Emprego, a taxa de desemprego dos residentes subiu 3.5% e a taxa de subemprego também cresceu entre 0.5% e 2.6%. Todos os peritos na matéria afirmam que estes valores vão continuara a aumentar. Para já, é impossível prever quando é que esta tendência se começará a inverter. A única esperança é que o Governo Central retome a política de “Vistos Individuais”. O Governo de Macau sustém a economia doméstica através do plano de subsídio de consumo, das excursões locais e da formação subsidiada, finaciados pela reserva financeira acumulada aos longo de anos. O objectivo é apoiar a economia até que a epidemia acabe. Mas que rumo vai tomar Macau a seguir à pandemia? Tanto Hong Kong como Macau adoptaram o sistema político executivo, liderado pelo Chefe do Executivo. Qualquer decisão errada que o Chefe do Executivo tome vai reflectir-se em todos os sectores da sociedade. Este problema agrava-se quando a equipa administrativa é incompetente, ou quando é composta por alguns elementos de extrema-esquerda. As sugestões de que Macau deveria ter uma lei como a Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong, e ver os nomes portugueses das suas ruas alterados, partem precisamente desses elementos extremistas. Quando um navio se inclina só para um lado, é certo que vai ao fundo. Ninguém nega a importância de salvaguardar a segurança nacional, no entanto é preciso ter em conta a eficácia da lei que a deve assegurar. Depois da Lei da República Popular da China sobre a Salvaguarda da Segurança Nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong ter sido introduzida em Hong Kong, as reacções locais e internacionais serviram de barómetro para medir essa mesma eficácia. Pilotar um navio é uma honra e uma responsabilidade. Mas se o piloto não for hábil, e apenas se mantiver no leme por amor ao poder, quer os passageiros quer a tripulação serão as suas vítimas. Deng Xiaoping disse certo dia, “A China tem de manter a vigilância contra as tendências de “Direita”, mas antes de tudo deve combater as tendências de “Esquerda”; as tendências de “Direita” podem arruinar o socialismo, mas as de “Esquerda” também. Quando a extrema-esquerda se cruza com a extrema-direita, o resultado é sempre conflituoso. A COVID-19 é um novo tipo de vírus, que pode ser combatido com vacinas. Mas os virus politicos matam silenciosamente e é muito difícil encontrar uma cura definitiva. Para levar um navio a bom porto, para além do piloto e do capitão, toda a tripulação tem de participar sempre que necessário; caso contrário o navio naufraga e para os seus ocupantes não haverá mais nada para além da morte.
Manuel de Almeida VozesO (des)equílibrio da existência [dropcap]D[/dropcap]esvalorizamos valores – existimos –, há chantagem em vez de princípios, há vassalagem no lugar de dignidade e o mais preocupante é que o debate público está centrado “em pontos específicos, mais formais do que substanciais, mais conjunturais do que estruturais”. Continuamos sem uma estratégia, um esforço intelectual, um código de existência, ou seja, já não somos capazes de produzir sons de ruído. “Não há tempo para desesperar, o desespero é para os privilegiados”- segundo James Baldwin (1924 – 1987) – há uma obstrução do passado. Problemas existem: políticos, sociais, económicos, jurídicos, culturais, laborais, mas nós longe das obsessões por quimeras “empoeiradas” e, sem vontade de um entendimento colectivo de aventura e compromisso, aprendemos a lição – recapitulação da matéria da lição anterior -, sentamo-nos como bons alunos, que sempre fomos, a aprender – de que se deve evitar encenações -, só o palco principal é para os actores. Não se trocam argumentos, atiram-se farpas – fruto dos agasalhos das tertúlias, existe (?), do calor da discussão, ruído (?), dos injustiçados da razão, calúnias (?), das movimentações ocultas, pecado (?) opinião objectiva, idealismo (?), decisões concretas, emoção – “Não procuro esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo”. A reflexão íntima? As conversas nunca deveriam ser desperdiçadas. Onde estão aquelas “desfechadas” e duras falas? Devemos exercitar a emoção. Carregamos paciência. Ultrapassamos facilmente escolhas, curiosidades, destinos, pesadelos, ímpetos, represálias, até à meta final, esperança. A esperança desobstrui os problemas. É próprio das pessoas que entram na velhice contemplar a vida passada, com interesse, e olhar o futuro como uma “desforra” do interesse – é um balanço da “caixa” da vida, o débito e o crédito -, virtudes antigas, novas exigências. A curiosidade da vida – mudanças, contradições, polémicas -, traz consigo vitórias e derrotas. A vivência é difícil e complexa, talvez não estejamos destinados a procurar, apenas a encontrar – possuímos uma qualidade abstracta. O nosso atraso é mais cultural – existência sem destino -, do que material, somos almas dilaceradas pela dúvida, ouvimos as liturgias do poder (uma combinação perfeita entre sagrado e profano), condenámos mas não existimos -, vivemos num mundo de sombras e de ambiguidades. Ajoelhamo-nos ao poder. Temos voz nos bastidores. Poderíamos ter aproveitado este hiato temporal, para arrumar o que esta(va) desarrumado, até porque o destino tem que ser uma ambição, não uma fatalidade. “Não conseguimos reconhecer uma derrota ou o mérito de uma vitória alheia”. Procuramos o estatuto de “Ter”, esquecemos o “Ser” e, à nascença, abandonamos o “Estar”. Muitas histórias, muitos acontecimentos, – fomos perdulários no bem comunitário (relação/confronto), mas mantivemos fidelidade à palavra – os “restos” do passado. Ouve uma paragem no tempo entre o antes e o depois – o chamado “passo em branco”. Na continuidade da “Novidade (1999)”, aceitamos os “factos” com tremor e temor. Soubemos desconstruir o guião social. Fomos interlocutores entre saber e poder. O discurso oficial apostava na franqueza e excluía a intimidade – sem querer quebrar os laços. A palavra no tempo. É nobre, a desconfiança saudável. A memória, a cultura, o conhecimento. Existe – é um fardo pesado —, mentalmente o sentido físico do pesadelo. Porquê? Não soubemos fazer convenientemente o “Luto” e isso deixa marcas futuras. Como sabem existem diversos estágios de um luto. Primeiro, a negação; depois, a raiva; a seguir, a resignação; e finalmente, a aceitação Não nos deixaram ouro, incenso e mirra – levaram na bagagem -, deixaram-nos na “praia”, onde a terra acaba e o mar começa. Aboliram antes de partir o pensamento absoluto do debate e a diabolização do pensamento crítico, ganhámos uma pobreza desenganada, a ironia – foram as prendas, dos rostos ausentes. Existimos fruto da prudência… Não há “reinos” de oposição, desamor, conflitos ou angústia. Este texto é pura ficção, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Não esperem palmas – já não há público na plateia…
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o prazer e as suas dificuldades [dropcap]O[/dropcap] prazer – e vamos assumir o conceito de forma mais geral, onde cabe o sexo e muitas outras actividades – não é fácil de ser conquistado pelas mais variadas razões. Razões pragmáticas a conceptuais fazem parte do debate por quem luta pelo prazer. Inclusive, até por quem não assume posição nenhuma mas, com o seu silêncio, contribui para a complexidade do prazer na contemporaneidade. Passo a explicar como é que o prazer é afectado por três níveis de análise, para simplificar. Corpo. Muitas vezes olham-se para as barreiras mais palpáveis ao prazer procurando o nível de comprometimento do corpo. Existem várias patologias que comprometem o prazer, podem ser problemas anatómicos e até neurológicos. Só que utilizar esta classificação deixa o prazer abandonado num estado de incompreensão, onde é definido pela capacidade sensorial de um corpo que reage e espera por reagir, única e simplesmente. Mente. Depois vem uma visão mais psicológica do prazer, aquele em que o prazer não depende exclusivamente de um estado de corpo, mas de uma disponibilidade mental, cognitiva e emocional, para lhe dar forma. Falando assim parece vago, eu sei. Mas todos os estudos sobre o orgasmo, apontam para uma visão conjunta entre corpo e mente. Os estudos sobre disfunções sexuais também mostram a importância da terapia, o trabalho de desenvolvimento pessoal, em resolvê-los. Que estado mental é, então, desejado? É um estado de aceitação: do corpo que se tem, dos medos que se têm, das ansiedades, receios, desejos e prazeres. Mantenho a definição vaga para não cair em fórmulas rígidas, e mantendo a diversidade de escolas psicoterapêuticas e do entendimento de mente, o prazer depende de um corpo (que não tem que ser perfeito), e da aceitação e desenvolvimento de quem somos, para quê e como. Social. A seguir vem a visão social do prazer, que, como uma matryoshka, a boneca russa, se interpenetra no entendimento do prazer do corpo e da mente. Claro que somos bombardeados por imagens e representações sobre o que é o prazer, mas também somos afectados de forma mais profunda do que isso. O “social” contribui para a forma como podemos ou não assumir e aceitar o nosso corpo e a nossa individualidade dentro dos sistemas de privilégio e opressão vigentes. A interconexão do que se passa cá dentro com o que se passa lá fora não pode nunca ser negligenciada. Quem é que é merecedor de prazer e porquê? Só com esta interrogação é que se pode explorar de que forma é que as estruturas sociais moldam o acesso ao prazer e as formas como ele pode ser vivido. Estes três níveis, e a forma como estão ligados uns aos outros, reforça a necessidade de uma visão integrada (interdisciplinar!) do prazer. Onde o corpo, a mente e a sociedade estão em movimentos perpétuos de ligação. Esta conceptualização também mostra que a luta pelo prazer tem que ser feita por várias frentes. Perceber o nosso estado do corpo é importante, ter disponibilidade para estar em contacto com as nossas dificuldades, fragilidades e recursos é importante, estar pronto para lutar contra a injustiça social também é importante. Só assim é que poderemos libertarmo-nos do velho mito de que o prazer é de alguma forma pecaminoso. Pelo contrário, aceitar que podemos ter prazer é talvez a pré-condição para o bem-estar, não só com o sexo, mas nos pequenos momentos do dia-a-dia. Perceber o prazer e aceitá-lo, talvez seja a peça do puzzle que nos falta para outro tipo de consciência global. E para os que responderão com uma definição de prazer egoísta, tenho a acrescentar que o verdadeiro prazer resulta de uma dinâmica complexa, nada solitária, onde a responsabilidade é partilhada entre o próprio e os outros.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSegunda fase do cartão de consumo [dropcap]E[/dropcap]m Macau, a notícia da semana é o anúncio do recarregamento o cartão de consumo com mais 5.000 patacas. Este valor destina-se a subsidiar o consumo no período compreendido entre 1 de Agosto e 31 de Dezembro. O plano de subsídio ao consumo divide-se em duas fases. A primeira decorreu entre Maio e Julho, durante a qual todos os cidadãos receberem um cartão carregado com 3.000 patacas. Nesta segunda fase, até porque abrange um período maior, o valor sobe para 5.000 patacas. O propósito deste cartão é colmatar o impacto da COVID 19 na economia e, sobretudo, apoiar o pequeno e médio comércio. Na primeira fase foram emitidos 624.000 cartões e o Governo investiu um total de 1.87 mil milhões no mercado. Nesta segunda fase, o cartão mantém um limite diário de 300 patacas, que podem ser gastas no pagamento de bens e serviços, mas que não podem ser convertidas em dinheiro vivo. O cartão nunca pode ser substituído por outro, mesmo em caso de perda. Os detentores de cartões podem recarregá-los num dos 190 postos disponíveis para o efeito. Este apoio ao consumo é uma medida muito benéfica para todos, especialmente para as pessoas que ficaram desempregadas e para àquelas perderam os seus negócios. Esta iniciativa, em conjunto com outras medidas, tem sido vital para apoiar a população mais carenciada. O comércio é também obviamente revitalizado, o ciclo económico mantêm-se e a vida vai seguindo, dentro do possível, o seu curso normal. Desde que Macau continue sem novos casos de infecção, a economia e a vida das pessoas irão melhorando aos poucos. A avaliar pela situaçao actual, é de crer que ainda há-de passar muito tempo até conseguirmos vislumbrar o fim da pandemia. Não será tão depressa que as receitas do Governo, alimentadas pela indústria do jogo, voltarão a aumentar. A revitalização da economia vai depender sobretudo do consumo das pessoas. Só aumentando a confiança dos residentes, pode a nossa economia ir recuperando pouco a pouco. A segunda fase do plano de apoio ao consumo, desempenha este papel. Desde que mantenhamos a distância social, podemos continuar com a nossa vida habitual, idas ao café, ao restaurante, às lojas, etc. Mesmo que gastemos pouco dinheiro, estamos a dar um sinal de confiança no regresso à normalidade, e a dar mostras de que acreditamos que a epidemia irá acabar e a vida vai voltar a ser o que era. Na medida em que este cartão é uma medida chave para incentivar o consumo, manifestamos o nosso apreço por os comerciantes terem ficado isentos das taxas normalmente associadas aos pagamentos electrónicos. Desta forma, os comerciantes são aliviados da carga fiscal. No entanto, temos de manifestar o nosso descontentamento com os comerciantes que aumentam o preço dos produtos, devido à implementação do cartão de consumo. Este comportamento anula o efeito pretendido. Uma estratégia que foi delineada para promover a economia, e ser benefécia para todos, ficará comprometida desta forma. Devemos considerar colocar numa “lista negra” os comerciantes que agem desta forma. Como a epidemia ainda irá durar por algum tempo, há quem se interrogue se irá haver uma terceira fase do plano de apoio ao consumo. Apenas cinco meses nos separam do final de 2021. Se a situação sanitária em Macau se mantiver favorável, e não surgirem novas infecções, a economia irá recuperar pouco a pouco e a pertinência do cartão de consumo irá desaparecendo; mas se surgirem novas infecções, especilmente vindas do exterior, a economia vai ser afectada e o cartão de consumo vai continuar a ser necessário. Na impossibilidade de prever o desenrolar da epidemia, a abordagem cautelosa e optimista para lidar com a situação, será criar uma reserva de dinheiro e fazer os gastos estritamente necessários. O cartão de consumo é temporário e este tipo de estímulo à economia é igualmente temporário. No período que se seguir, a recuperação e o crescimento económico vão continuar a depender do consumo de todos nós. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19, ciência e trabalho (II) [dropcap]H[/dropcap]á uma grande vontade por parte de muitos jovens em alguns Estados-Membros da UE de trabalharem para o bem comum através do serviço público ou civil e que nasceu da experiência dos objectores de consciência, influenciados pelo padre italiano Lorenzo Milani que trabalhou como escritor e pedagogo na escola popular Barbiana, aberta “doze horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano”. A sua actividade educacional com crianças pobres sob os seus ensinamentos levou a várias cartas críticas bem como o seu trabalho, escrito em conjunto com os seus alunos da montanha. A “Carta a um professor” expôs o classismo e a selectividade da escola obrigatória; a “Carta aos capelães militares” e a “Carta aos juízes” foram epístolas públicas como resultado de uma reacção ao “Comunicado dos capelães militares licenciados da região da Toscana” e o seu subsequente processo judicial. É importante considerar a sua afirmação de que a obediência já não é uma virtude. Aqueles que foram para a prisão para afirmar a ideia de servir o seu país não com armas, mas ajudando os fracos e oprimidos, combatendo a miséria e a privação cultural dos países e das periferias urbanas deve ser um exemplo. Os jovens que hoje estão envolvidos em dezenas de projectos sociais e culturais com migrantes, ciganos e crianças pobres pela Europa e mundo devem ser considerados. Serve a quem entender como sendo uma recompensa que lhes permita um mínimo de autonomia pessoal, e que talvez pense que terá uma experiência que lhes será útil para encontrar um emprego, se a economia e a política ultrapassarem o esquema perverso em que o trabalho socialmente útil deve ser livre e voluntário, e o trabalho que vale a pena pagar é o trabalho que é feito para produzir bens que não são tão úteis ou prejudiciais como os usados para fazer a guerra. Mesmo no trabalho físico em fábricas será necessário manter distâncias. Deve ser uma condição para retomar a produção. Para garantir a saúde daqueles que trabalham. Os empresários discutem mais com os políticos e autarcas do que com os sindicatos; os sindicatos e os trabalhadores não confiam neles com razão pois houve greves para que não fossem obrigados a trabalhar na produção de bens não essenciais, e em locais onde a segurança não estava garantida. Afinal, vivemos em um mundo que em Janeiro de 2020 não havia Covid-19 e hoje são milhões de infectados e centenas de milhares de mortos. A incapacidade de decidir sobre quais as zonas vermelhas em determinados países, a fim de não interromper a produção considerada essencial para a competitividade económica, causou centenas de mortes. A Covid-19 torna evidente uma contradição que sempre atravessou o mundo da produção e do trabalho. Que põe em relevo a dialéctica entre as necessidades de lucro, competitividade e a saúde e vida dos trabalhadores. Do ponto de vista dos que trabalham, decidir se trabalha para viver ou para morrer. De repente ou pouco a pouco. O reinício do trabalho deve ser em todo o lado uma oportunidade de ter uma discussão séria sobre a saúde no local de trabalho, abordando, para além da protecção contra o vírus, as condições que fazem com que a doença e a morte acompanhem normalmente a vida das pessoas que trabalham. A questão do distanciamento no local de trabalho pode ser uma enorme oportunidade para os sindicatos e trabalhadores associarem a protecção da saúde a uma re-discussão dos regimes de tempo de trabalho e da organização do trabalho. Se não se quiser que a Covid-19 dure para sempre de forma insidiosa, ou talvez regresse com maior força, nunca mais se conseguirá entrar e sair do trabalho, e começará tudo de novo. Terá de ser concebido um regime flexível de tempo de trabalho, e as suas obrigações contratuais serão as de manter em conjunto as necessidades das empresas e as necessidades das pessoas no trabalho. As necessidades de estudo e de cuidados pessoais e familiares, os seus prazeres e os seus deveres como cidadãos activos e responsáveis. O oposto do pedido feito a muitas categorias de trabalhadores, de uma vontade ilimitada de trabalhar horas extraordinárias, de trabalhar a tempo parcial indefinidamente, de responder sem demora ao apelo da empresa, sem qualquer possibilidade de planear a sua vida para além do trabalho. Mas esta possibilidade será tanto mais forte quanto mais associada estiver a uma redução global do tempo de trabalho. É incrível que, quase um século após a sua conquista, estejamos ainda ancorados a oito horas como horas normais de trabalho, após os extraordinários aumentos na produtividade laboral devido aos avanços tecnológicos, e com aqueles que nos esperam com a intensificação da automatização de grande parte da produção de bens e serviços. Numa situação difícil como esta, é complicado imaginar que a redução das horas de trabalho trará mais emprego, mas será uma forma de defender o que vai além da utilização pura e simples do subsídio de desemprego, licenças e amortecedores sociais. É a premissa para uma distribuição mais justa e mais sensata dos benefícios dos ganhos de produtividade nos próximos anos. A distância no trabalho pode ser, como para o trabalho à distância, uma forma de acorrentar as pessoas ainda mais à lógica de um algoritmo impessoal, aproveitando, para aumentar o ritmo e controlo, a condição de relativo isolamento dos trabalhadores, ou uma forma de expandir os espaços de autonomia, responsabilidade e profissionalismo dos trabalhadores. O trabalhador espaçado verá a sua possibilidade de intervir em processos e produtos, de corrigir erros, de modificar e melhorar a mesma postura do seu corpo em relação às operações. Será mais pessoa, dentro de um processo colectivo. Este aumento de responsabilidade e autonomia deve ser reclamado profissionalmente e também traduzido em salário. Apoiado com toda a formação necessária. Talvez a partir daqui os sindicatos possam encontrar uma forma de entrar na negociação individual, que nos últimos anos tem aumentado muito através de uma relação directa entre o empresário e o trabalhador individual, retirando do processo de negociação quotas salariais cada vez mais substanciais. É necessário tornar transparente o enriquecimento profissional do trabalhador, certificar e valorizar as competências adquiridas através do trabalho e da formação, tentar inverter a história dos últimos anos que esmagou os sindicatos sobre o trabalho padrão, que tinha faltado no fundo do trabalho confiado aos tarefeiros, e no topo da lista, as alterações qualitativas do trabalho. Mas para que isto seja possível, será necessário curar outra ferida existente entre pessoas que trabalham em indústrias e serviços, hospitais e aeroportos com as mesmas tarefas mas com salários e direitos radicalmente diferentes. Nos estaleiros navais, por exemplo, dois terços dos trabalhadores que passavam pelos portões pela manhã fazem parte dos tarefeiros de outros países, e trabalham frequentemente com contratos e salários de romenos, albaneses e polacos. E enquanto a grande maioria dos trabalhadores são sindicalizados, ninguém fala com os trabalhadores das empresas, excepto por vezes o sindicalismo básico. Ainda mais grave, deste ponto de vista, é a situação logística. Os armazéns dos supermercados enchiam-se de trabalhadores mal remunerados e na sua maioria intermitentes. E mesmo nos hospitais havia uma enorme diferença de salários e direitos entre os trabalhadores e os das empresas e outras instituições para as quais a maioria das tarefas era subcontratada. O estreito confronto sindical da reabertura, mais do que nunca, deve ser inclusivo, e recuperar a fragmentação dos contratos e direitos que caracterizaram o antes Covid-19. Uma negociação precisa e articulada, mas que deve ser enquadrada na iniciativa de um novo Estatuto de Direitos. No entanto, estes serão tempos difíceis para os trabalhadores. Muitos verão os seus rendimentos reduzidos, outros perderão os seus empregos e demasiados terão de procurar um novo emprego. Todos serão sujeitos a pesada chantagem, pois ou recomeçam como antes, fazendo o de então, mesmo que seja prejudicial para si e para o ambiente, ou perdem os seus empregos. Os sindicatos teriam de ser incisivos para que os trabalhadores adquirissem o direito de participar nas escolhas de produção da empresa, para terem uma palavra a dizer sobre as mudanças necessárias e para que a produção não prejudique a saúde e o ambiente. Na produção ambientalmente sustentável pode haver mais trabalho, e de melhor qualidade, do que a produção poluente. Por exemplo, o edifício de recuperação e reutilização pode encontrar muito mais espaço do que aquele que cimenta novas partes do território, para onde os abutres do impulso de emergência olham; e tal como nas energias renováveis, para a quantidade de energia produzida, são necessárias muito mais pessoas do que nas centrais eléctricas a carvão e a gás. Será necessário pensar, se não quisermos sofrer as mudanças necessárias, se o acordo verde vai começar, sendo necessário, um grande projecto de formação para permitir aos trabalhadores exercerem o seu direito a ter uma palavra a dizer sobre inovações, produtos e tecnologias. Afinal, este é um requisito fundamental de um trabalho digno. O liberal socialmente responsável como é John Dewey disse que “O trabalho é uma actividade que conscientemente inclui o respeito pelas consequências como parte de si; torna-se trabalho forçado, se as consequências estiverem fora da actividade, como um fim para o qual a actividade não é senão um meio”. Será necessário apoiar com recursos públicos os trabalhadores que decidam gerir sós as empresas abandonadas pelos empresários, nacionais ou estrangeiros, e aqueles que construíram a produção e trabalham nas actividades económicas tiradas a organizações falhas ou ilícitas. O trabalho que pode aumentar imediatamente é o da administração pública. A pandemia suspendeu a desconfiança do trabalho público alimentada pela corrente liberalista e pelos meios de comunicação social que durante anos martelaram os cidadãos com a ideia de que o público é desperdício e o privado é bom. As pessoas tocaram na seriedade, profissionalismo, dedicação dos que trabalham na saúde pública, no espírito de sacrifício e criatividade dos professores que passaram muitos dias sem abandonarem os seus alunos. Condutores de eléctricos e metropolitanos. Os colectores de lixo que continuaram a viajar por cidades desertas com os seus veículos. E por aqueles que, desde os cobardes dos incêndios postos, à polícia, à Protecção Civil, aos milhares de voluntários de associações seculares e religiosas, que se comprometeram a tapar os buracos do sistema de segurança e a não deixar ninguém sozinho. Começam a perceber-se, após anos de propaganda absurda e desviante, como os funcionários públicos em relação à população estão mais presentes que em países de outros continentes. O pós-Covid-19 poderia ser uma boa altura para apresentar as contas e tapar os buracos mais sensacionais. A começar pelas escolas e pelos cuidados de saúde. O último ataque ao público que está a começar é contra a burocracia que está a travar com as suas restrições os grandes projectos de infra-estruturas que devem recomeçar, custe o que custar. É necessário evitar práticas longas e inúteis, mas vale a pena salientar que muitas vezes a causa do cumprimento e do abuso da construção e da paisagem é a mesma, tendo enfraquecido quantitativa e qualitativamente, os números e o profissionalismo, o sistema de protecção com reduções à superintendência e ao planeamento público com cortes de despesas aos gabinetes técnicos e de planeamento territorial das autoridades locais. A fim de recomeçar rapidamente, legalmente e com respeito pelo ambiente e pelo território, haverá também necessidade de investir e contratar. Muitas das questões requerem uma visão e iniciativa europeias. A começar pelas regras necessárias para evitar o dumping salarial e de direitos, que está na raiz tanto das vias de externalização das empresas como da selva contratual que caracteriza o regime de muitos tarefeiros. Tal como o salário mínimo e o rendimento de cidadania só podem ser europeus em perspectiva. As mesmas transformações produtivas e inovações empresariais vão para além da dimensão nacional. As cadeias de produção e de valor atravessam fronteiras. Os sindicatos dos trabalhadores da Europa, cuja ausência, para além das evocações retóricas e da moda, foi o que mais pesou nesta crise, terão de ser construídos rapidamente, a fim de lhes garantir solidariedade e justiça social. No entanto, o trabalho que recomeçar terá de tratar do território, do povo, dos sujeitos mais fracos como prioridade. Reconhecendo neste terreno o trabalho que já existe e o novo trabalho que é necessário e dando-lhe valor. Uma ideia feminina de trabalho terá de se tomar, para vencer o desafio, uma prioridade também entre os homens. O novo mundo, como dizem dois grandes homens como Alain Touraine e o Papa Francisco, será feminino ou não.
João Romão VozesA escola das meninas [dropcap]P[/dropcap]or coincidências da história, ou pelo menos da cronologia, nasci no Maio de 68 e entrei na escola primária em 1974, poucos meses após a Revolução de Abril, no grupo de crianças a quem coube inaugurar o ensino público em regime democrático. Entre outras coisas, as turmas passaram a ser mistas, com rapazes e raparigas na mesma sala, uma característica trivial do ensino contemporâneo, mas radicalmente inovador à época. Ainda assim, lembro-me de que eram apenas quatro as raparigas que faziam parte da minha turma, quase completamente masculina, portanto. Além das turmas, coube-nos também inaugurar as escolas mistas, já que até aí rapazes e raparigas frequentavam a escola primária em edifícios diferentes. Na vila onde vivia, antes do 25 de Abril tínhamos a “escola dos meninos” e a “escola das meninas”, na boa tradição salazarista. Quase 50 anos passaram e agora trabalho numa grande e moderna cidade japonesa, por obra de outras coincidências, do campo da geografia ou de outros fenómenos mais complexos. Também é por vaga coincidência que estou de regresso à escola a tempo inteiro, desta vez como professor, profissão cujo exercício não tinha sequer remotamente planeado mas que se foi posicionando nos incertos horizontes da precariedade contemporânea como uma bastante razoável alternativa para sobreviver confortavelmente em terras nipónicas – ou mesmo noutras, se vier a ser o caso. Foi então nesta outra geografia e neste outro momento histórico que me voltei a confrontar com uma certa banalidade na separação por género dos processos educativos. Neste caso, não é que haja – pelo menos de forma generalizada – escolas especificamente orientadas para rapazes: o que há frequentemente, pelo menos na generalidade das grandes cidades, são escolas de diversos níveis de ensino exclusivamente dirigidas a raparigas. Vou deixar de lado, pelo menos por enquanto, as limitações deste binarismo de género cada vez mais anacrónico e dos problemas que vai levantando (também por cá) e fico-me por algumas das causas e consequências deste fenómeno com que lido agora bastante mais de perto. Surpreendem facilmente quem cá chega as desigualdades de género no Japão, país de reconhecida competência na liderança dos progressos tecnológicos das sociedades contemporâneas: ainda que a tendência seja crescente, são menos de metade as mulheres adultas que participam no mercado de trabalho japonês. Aliás, é frequente remeterem-se à pacatez e ao recato do lar após o casamento, mesmo quando têm níveis avançados de educação e competentes desempenhos profissionais. Tornam-se esposas e eventualmente mães a tempo inteiro. Na realidade, chega a ser difícil encontrar lugares em creches, mesmo tratando-se de um país onde é tradicionalmente baixa a natalidade. O universo laboral é largamente masculino e quando mais se sobe nas hierarquias de decisão, poder e salários, mais acentuada é essa dominação. Não será um caso exclusivamente japonês, no entanto: na realidade, têm fraca expressão histórica na Ásia os movimentos feministas que desde os anos 1960 reivindicam igualdades e liberdades, sobretudo na América e na Europa. Em grande medida, são essas desigualdades que justificam a existência de Universidades (e escolas secundárias, também) só para mulheres: num universo com ampla dominação masculina, a participação activa das mulheres implica a aquisição de competências que ultrapassam largamente os domínios técnicos do exercício de qualquer profissão, requerendo também outro tipo de conhecimentos e práticas, ligados a formas de comunicação, colaboração ou negociação. Em todo o caso, parece haver um longo caminho a percorrer até que estas novas competências tenham impacto efectivo num universo laboral e social amplamente dominado por uma cultura patriarcal que se traduz no controle dos vários poderes de decisão, do espaço doméstico e familiar às estruturas de representação política, passando, naturalmente, pelos postos de trabalho. Não por acaso, há iniciativas legislativas recentes a oferecer significativos incentivos fiscais às empresas que empreguem mulheres – até porque o envelhecimento populacional também gera uma certa escassez de força de trabalho – mas tendem a ser relativamente lentos os impactos destas medidas sobre culturas e estruturas de poder profundamente enraizadas na sociedade. Aliás, mesmo com 50 anos de movimentos feministas na Europa ou na América, a plena igualdade está ainda hoje manifestamente longe de ter sido alcançada. Não posso dizer que conhecesse pouco desta realidade antes de vir viver para o Japão: na realidade, o meu conhecimento era completamente nulo. Mas é numa destas universidades femininas que trabalho actualmente, num belo campus com amplos espaços verdes, arquitectura moderna e tecnologias avançadas, que oferece condições de trabalho extraordinárias. São pouco mais de 5.000 alunas, jovens japonesas diligentes e educadas, sistematicamente compenetradas no seu trabalho, num generalizado ambiente de tranquilidade e gentileza. Já entre os professores, no entanto, a maioria é masculina. E também quando se entra nos topos das hierarquias de direção e administração, a presença feminina é minoritária. Talvez não tivesse sido esse o plano original da corajosa mulher que fundou a universidade há mais de 100 anos, mas é, ainda assim, um contributo visível e relevante para desenvolver futuros diferentes. As improváveis coincidências da história e da geografia acabaram por me proporcionar um muito singular, surpreendente e estimulante projecto profissional, portanto.
Manuel de Almeida VozesO desconforto da vida “Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”. Fernando Pessoa (1888 – 1935) [dropcap]A[/dropcap] vida das pessoas baralha narrativas fáceis, não são novelas, contos – viajar através da vida -, é um longo, sinuoso e árduo caminho. Não somos apenas fruto das nossas escolhas. Outros nela interferem de maneira abusiva, pelo prazer de mandar, desequilibrar, inquietar. Existem também sociedades que esvaziam o “cidadão” da sua capacidade de escolher, transformando-o num simples fantoche, marionete – subjugam-no. São governos malévolos. Ao instinto que sonha, à razão que ordena, à inteligência que observa e compara, à justiça com alma, à ética com rosto, à curiosidade pela inocência do futuro, tudo se perde na ditadura da ilusão. Uma vida com propósito, significado e prazer, é dar voz a mais e melhor política, lutar pela protecção ambiental – não por moda ou em abstracto -, defender o património cultural – material e imaterial -, “enfrentar uma política educativa vocacionada para fomentar o facilitismo e a ignorância”. Devemos exigir um ensino que contribua para formar indivíduos cultos, interessados e activos – seres pensantes – Homens Livres. Já nem falo de Saúde (falta poder de decisão), nem de Habitação (é preciso articular ferramentas). Há “massa”… Há uma máxima de Tolstói, que se aplica a Macau, que nem uma luva e, passo a citar: “há quem passe pelo bosque e apenas veja a lenha para a fogueira”. São intrigantes, complexas, vadias, esdrúxulas certas crónicas de vida – engolir em silêncio, sofrer vinganças sobre ideias, assédio moral, crimes sexuais, enclausurar a ambição, a tortura que atordoa a velhice – os direitos do cidadão não podem depender de uma capacidade tecnológica – , a dor dos catequistas do regime – queixam-se –, mostram um ar deprimido, violência doméstica, viver a utilidade do inútil, o vejetar no mundo subversivo social. Os caminhos a seguir são sempre um dilema. O desconforto, o imprevisível da vida. A grande crise que se vive hoje em dia é uma crise de valores e comportamentos individuais e de vida em sociedade. Não “é a economia, estúpido!”. Existe défice de cultura, educação, ciência, civismo – há uma grande histeria de ignorância e estupidez. Não se ouvem ruídos, mas silêncios, precisamos de uma vida que decline os silêncios. Temos de reavaliar a base espiritual da sobrevivência… Pode-se comprar o coração do povo, mas, espero, nunca se comprará a inteligência da sociedade. Apesar desta permanecer incapaz de perguntar, descobrir, exigir. (Isto são apontamentos dos meus cadernos de tendências, tento reconstruir o pensar, delinear, perscrutar o horizonte – a luz crepuscular da vida –, cheio de omissões e contradições da minha longa caminhada existencial. Permanecer ou atravessar?) Valerá ainda a pena construir espaços (lugar) e tempos ? Não, denotamos já uma expressão de cansaço existencial (um desenraizamento da identidade), é preferível guardar o “silêncio da memória do que o ruído da celebração”. A vida flui – Macau será a morgue onde jazem as ilusões! Lembram-se da história da Fada Oriana, da Sophia? Castigada. Perdeu as asas e a varinha de condão. Só ao tentar salvar uma velha que estava a cair do abismo, mesmo sem asas e varinha, saltou do abismo e agarrou a velha pelos pés. Aí, apareceu a fada rainha que lhe devolveu as asas e a varinha de condão. Perceberam ? É esta a história…
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGordofobia Persistente [dropcap]O[/dropcap] recente confinamento trouxe os mais variados discursos sobre o corpo e o aumento de peso. Desejos de dietas pós-covid estão ao rubro. O tempo de confinamento trouxe ansiedades, muitos desejos de comida e movimento de menos. O sedentarismo não é dos estados mais aconselháveis ao corpo, de facto. Mas é sempre intensa a forma como se teme ser-se gordo, ou engordar. E aqui surge a gordofobia. A construção da gordura como má pode alterar-se com os tempos. Houve épocas em que a gordura era boa de forma mais hegemónica. Agora é que fomos induzidos a pensar que a magreza é um estado último, e que todos estão em algum caminho para alcançá-la. Basta folhear as páginas das revistas e dos jornais para perceber que há pouco espaço para os corpos que não se encaixam nesta visão limitada de beleza. Quantas vezes é que os filmes utilizaram a narrativa da rapariga ‘cheiinha’ que sofre uma transformação e a sua vida muda por completo, e para melhor? Repreender o corpo com gordura, seja das mais variadas formas, só gera mais ansiedade, desconforto e sofrimento. E claro, a tendência de responsabilizar as pessoas pelas suas gorduras torna a conversa demasiado simples. Assumir que a gordura é um produto da vontade desresponsabiliza as dinâmicas socio-culturais que contribuem para o problema também. A gordofobia é uma delas. Já se documentou todo o tipo de discurso de ódio. Desde comentários nas redes sociais até um episódio, no mínimo, caricato, onde cartões foram distribuídos pelo metro de Londres por um grupo que odiava gordura, gordos e tudo o que isso representa. A gordofobia nem sempre é assim tão declarada. A discriminação mais silenciosa está na forma como os espaços foram criados para um tipo de corpo. As cadeiras dos espaços públicos são desenhadas para certas pessoas e as lojas de roupas não servem a todos. Não ajuda, também, que a OMS tenha definido a obesidade como uma epidemia – apesar da intenção ser boa. Esta nomenclatura perpetua a narrativa de que é necessário travar uma guerra química e médica contra tudo o que é gordura. A investigação mostra como esta classificação não incentiva atitudes e/ou comportamentos que ajudem a mitigá-la. Pelo contrário. Ler noticias sobre a epidemia da obesidade faz com que a discriminação contra a gordura aumente. Estas dinâmicas não se ficam pelos meios de comunicação social, ou no simples dia-a-dia. As comunidades profissionais e médicas têm sido acusadas de um viés anti-gordura, sob diagnosticando problemas sérios à conta disso. Os depoimentos são terroríficos. Cancros que não foram diagnosticados atempadamente porque os profissionais assumiram que a queixa apresentada seria resolvida se o paciente emagrecesse. Mesmo sabendo que o índice de massa corporal possa não ser um bom indicador de saúde, persiste a ideia de que as gorduras se associam à preguiça, gula e doença, e as magrezas à energia e saúde. Começou a ser necessário contestar estes estereótipos, e é o que vários activismos estão a tentar fazer; criando novas linguagens e formas de estar. Ainda assim, neste posicionamento onde a gordura é orgulhosamente apresentada, sem desculpas e justificações, percebemos a forma ainda deficiente que a sociedade tem em lidar com a diferença de corpos. É preciso contrair a surpresa e resistência sociais. A aceitação do corpo é importante a vários níveis, seja o corpo grande, pequeno, às bolinhas e nas gradações da diferença. Só com aceitação é que se pode atingir um estado necessário para o bem-estar individual e colectivo. O medo generalizado de que a aceitação da gordura cria mais gordura é despropositado. O mais importante neste momento é lutar contra a tentativa de invisibilizar os corpos – e não cometer a violência de fazer desaparecer as pessoas que neles habitam.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSalários da função pública [dropcap]D[/dropcap]ia 17 deste mês, a comunicação social de Macau anunciou que o Governo não vai cortar os salários nem os benefícios dos funcionários públicos em 2021. André Cheong, secretário para a Administração e Justiça, apelou a que as pessoas não dêem ouvidos aos rumores e que, em conjunto, combatam a epidemia e revitalizem a economia. Recentemente, circulou o boato de que o subsídio de Natal dos funcionários públicos não iria ser pago e que os salários iam sofrer cortes. Num quadro de grande recessão económica, muitos trabalhadores têm os salários reduzidos, outros os salários congelados, há ainda quem esteja de licença sem vencimento e quem tenha perdido o emprego. A crescente vaga de más notícias, combinada com a redução de despesas administrativas não essenciais, deu origem a uma série de conjecturas. As afirmações de André Cheong deram segurança aos funcionários públicos e serviram para acabar com as especulações. Em Macau, os salários dos funcionários públicos são determinados através da ponderação de quatro factores, de acordo com o parecer da “Comissão de Avaliação das Remunerações dos Trabalhadores da Função Pública”. O Governo decide a variação salarial da função pública para o ano seguinte, na segunda metade do ano em curso. A Comissão foi criada em 2012. Sob a alçada da Secretaria para a Administração e Justiça, tem 11 membros designados pelo Chefe do Executivo, entre os quais se encontram académicos, representantes da Câmara do Comércio de Macau, da Federação da Indústria e do Comércio de Macau, da Associação dos Profissionais de Saúde. Conta ainda com a participação de funcionários públicos aposentados, representantes de fraternidades, representantes do Instituto de Investigação em Administração, bem como do Serviços de Administração e Função Pública, etc. O mandato dos membros tem a duração de dois anos. Para se pronunciar sobre os salários do ano seguinte, a Comissão tem de ter em conta a situação financeira do Governo, as tendências dos salários do sector privado, a inflação e o parecer das organizações de funcionários públicos, antes de emitir a sua opinião e submetê-la ao Governo. Como não existe uma fórmula para ponderar estes quatro factores, de forma a determinar os aumentos salariais, há quem diga que este sistema carece de transparência. Assim sendo, uma das soluções seria criar uma fórmula de cálculo em que cada um dos factores correspondesse a uma certa percentagem. Com um método de cálculo claro, seria mais fácil compreender os ajustes salariais da função pública doravante. A sociedade de Macau é muito sensível à questão dos aumentos salariais da função pública. A principal razão é porque se considera que os funcionários públicos são “Bem Pagos”. “Bem Pagos”, quer dizer ter salários mais elevados e mais benefícios do que os trabalhadores que desempenham funções semelhantes. A julgar pelo número de candidatos, podemos ver o quão atractiva é a Função Pública em Macau. Mas existe uma diferença entre “Aumentos Salariais” e ser “Bem Pago”. Os funcionários públicos são bem pagos, em parte porque estão sujeitos a um regime jurídico especial. Este tipo de restrições jurídicas são desnecessárias no sector privado, mas no serviço público são uma necessidade, e os funcionários são obrigados a obedecer-lhes. Por exemplo, a sociedade exige que os funcionários públicos tenham carácter nobre e integridade. Com tal, e de acordo com a Lei Básica, o Chefe do Executivo e os directores dos departamentos têm de declarar publicamente os seus bens, antes de assumirem o cargo. Outros altos funcionários são também obrigados a declarar os bens junto da Comissão contra a Corrupção e do Tribunal, em consonância com o sistema de declaração de propriedade do Governo de Macau. A declaração de bens pode ser supervisionada pelo Governo, mas também o pode ser pelo público em geral. Desta forma, os bens dos funcionários públicos podem ser consultados por todos. Diz-se que todos os funcionários públicos deviam ficar felizes por poderem declarar os seus bens; mas isto é uma questão de opinião e não se pode generalizar. No entanto, quando foi implementado o sistema de declaração de bens, o objectivo foi ficar a conhecê-los publicamente e não ficar a conhecer o sentimento dos seus proprietários. As entradas das salas de entretenimento e de jogo estão vedadas aos funcionários públicos, à excepção dos três primeiros dias de cada ano. Esta proibição garante a integridade dos servidores públicos, mas também os impede de se divertirem. Os funcionários públicos são responsáveis pela implementação das políticas governamentais. Na vida do dia a dia existem muitas normas estabelecidas. Cabe à função pública a responsabilidade de fazer com que o sistema funcione segundo as regras. Quanto melhor desempenhar a sua função, maior apreço terá o Governo. Se os funcionários públicos forem substituídos com frequência, e os novos não estiverem acostumados com os procedimentos, a imagem do Governo sofrerá danos. Pode afirmar-se que uma equipa estável de funcionários públicos é um factor importante para a estabilização da sociedade em geral. Como tal, o serviço público deve ser estável e com o menor grau de atrito possível. Uma das condições que garante um serviço estável é ser “Bem Pago”. No entanto, por serem “Bem Pagos”, os funcionários públicos são alvo de críticas. Com a actual recessão económica, com trabalhadores estão confrontados com o congelamento de salários e com o desemprego. O sector privado não vai aumentar os salários de forma significativa. A influência que esta situação vai ter no ajuste dos salários dos funcionários públicos no ano que vem, é sem dúvida um factor de preocupação social. A formulação e a implementação das políticas do Governo requerem o esforço dos servidores públicos. É evidente que estes dão as boas vindas aos aumentos salariais, mas de momento a sociedade não vai acolher necessariamente bem a decisão do Governo de aumentar a Função Pública. Para ter em linha de conta a opinião da população e simultaneamente manter o estatuto de funcionários públicos “Bem Pagos”, e equilibrar os dois factores “Bem Pago” e Aumento Salarial”, será necessária uma grande destreza e o resultado não vai poder agradar às duas partes. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Covid-19, educação e trabalho (I) “Nothing in life is to be feared, it is only to be understood. Now is the time to understand more, so that we may fear less.” Marie Curie [dropcap]V[/dropcap]ai ser preciso muita ciência e investigação para a saúde das populações e do mundo. O que mais se lamenta, juntamente com os cuidados de saúde, é que tenham sido reduzidas as despesas nos anos infaustos da austeridade neoliberal ou que nos degradámos ao financiar apenas o que prometeram ser útil no presente. Tudo foi reduzido em termos de despesas como a ciência e a investigação básica, que se move a longo prazo e tem como principal interesse alargar as fronteiras do conhecimento. E da ciência, em tempos de pandemia, temos exigido verdades irrefutáveis. Os políticos queriam respostas inequívocas sobre o momento e as consequências da pandemia. Respostas que os libertariam da fadiga e da responsabilidade pelas suas escolhas. Os cientistas mais sérios admitiram os limites dos seus conhecimentos, e afirmaram que a verdade vem muitas vezes de tentativas e erros, e que a ciência séria nunca está livre de dúvidas, e que através destas se aborda a verdade. E que, portanto, a verdade depende do que se quer fazer e para onde se quer ir. E isto foi e é incerto. Na incerteza, o sonho da política tem sido sempre tentar salvar cabras e couves. O melhor cientista para os políticos é aquele capaz de paradoxismos. Salvar vidas e, ao mesmo tempo, assegurar que a economia e os lucros comecem a recuperar o mais rapidamente possível, para no futuro crescer rapidamente e respeitar o ambiente e o planeta. Mas os cientistas que estudaram sem terem de responder a mandatos impossíveis deram as suas respostas. Se não reduzirmos as emissões nocivas para a atmosfera, se não abrandarmos o aquecimento global, não haverá futuro. Que a política faça as suas escolhas a partir daqui. Dar prioridade ao financiamento da investigação para produzir e circular sem poluir. Os políticos que tomem as suas decisões e tentem ganharem o consenso das pessoas, evitando o mal do presente, e planeando um futuro em que a vida ainda seja possível. A mediação entre os impulsos contraditórios, o consenso a curto prazo, o projecto de um futuro habitável é a tarefa de cada um, e é uma empreitada pela qual seremos julgados pelas gerações presentes e futuras. A ciência só pode lançar luz sobre como as escolhas irão pesar no equilíbrio do mundo. É suficiente e progride para sustentar a necessidade de a financiar como merece e para a tornar uma pedra angular essencial do desenho do renascimento. A relação entre a ciência e a política não pode ser apenas a relação entre o poder político e os peritos. Se compreendido desta forma, corre o risco de ser funcional a impulsos autocráticos e tecnocráticos. Afinal, esta é a lógica dominante no actual discurso da Covid-19 em que a única coisa importante é a decisão, desde que se baseie nas opiniões autorizadas dos responsáveis. Colocando de lado o que deveria ser o principal problema, a relação entre ciência e a democracia. Como a ciência, com as suas verdades e dúvidas, pode alimentar o discurso público, e como o discurso público alimenta a ciência. Para que isto aconteça, é necessário um salto qualitativo no nível de conhecimento e educação das pessoas. Isto é difícil e urgente em todo o lado, em que cada país vê a sua população na base das classificações internacionais para os níveis de educação da população adulta e para as competências alfanuméricas básicas, aquelas que permitem até os textos mais simples serem lidos e compreendidos. E num mundo em que as escolhas que orientarão a ciência e a investigação terão repercussões decisivas na vida das pessoas, o aumento dos níveis de conhecimento generalizado torna-se decisivo para a estabilidade da democracia. É necessárias mais escolas para as crianças, jovens e adultos, para recuperarem rapidamente dos desastres causados pelas reduções de despesa na educação no passado recente. Todo o sistema de escolas e universidades, lembrando que os professores puseram em prática acções extraordinárias para continuar a permanecer perto dos alunos no tempo da Covid-19. Desenvolveram conhecimentos na área do ensino à distância, e para muitos foi a primeira vez, dentro de um sistema que não estava preparado, e não os preparou para estas tarefas. Mas, ao mesmo tempo, revelou ainda mais profundamente o quê e quão fortes são as desigualdades que pesam nos processos de aprendizagem. A educação à distância tornou mais evidente o que era conhecido, ou seja, o quanto as diferenças sociais das famílias (rendimento, conhecimentos) pesam sobre o presente e o futuro das crianças. Mesmo antes, ter ou não ter o seu espaço para estudar e brincar era um indicador decisivo do sucesso escolar. A aprendizagem à distância fez-nos tocar brutalmente com as nossas mãos em pontos sensíveis, colocando impiedosamente à frente dos nossos olhos crianças que tinham o seu quarto, computador, “tablet” e pais que os podiam acompanhar discretamente no seu percurso, e crianças que tentavam navegar em ferramentas que tinham a oportunidade de utilizar pela primeira vez, em salas cheias e com pais que estavam preocupados em fazer muito mais, como combinar o almoço com o jantar, e ajudar os seus filhos a navegar. Especialmente porque nunca tinham navegado antes. Uma diferença que marca uma discriminação de classe em todo o lado, e que é ampliada em muitos países e em certas áreas de um mesmo país. Entre cidades e zonas interiores, de acordo com as margens que ainda dividem os níveis e as possibilidades de ligação e de competências digitais das pessoas dentro de cada país. Em muitos casos, o ensino à distância amplifica as formas de transmissão do conhecimento, que estão na base da dificuldade da escola em ser verdadeiramente inclusiva. Disciplinarismo, ensino do individualismo, a lição frontal como uma forma quase exclusiva de transmitir conhecimentos. O clássico de “Eu ensino a minha disciplina e os alunos têm de aprender”. A forma como sempre se dividiram alunos e de contrastar o tempo inteiro, as experiências de cooperação educacional, a boa escola que tentou partir da experiência dos estudantes e do conhecimento do seu contexto social, dos pais trabalhadores, agricultores e desempregados. É maravilhoso como os professores de boas escolas têm tentado manter uma relação colegial com os seus colegas e propor aos estudantes caminhos que levam em conta a sua experiência mesmo em condições tão difíceis. Os que tentaram fazer a escola inclusiva mesmo à distância. Mas aqueles que tentaram utilizar a educação à distância neste sentido têm um desejo desesperado de regressar à sala de aula, de estar à frente dos rostos dos seus alunos. As tecnologias didácticas inovadoras são uma ferramenta indispensável para acompanhar os estudantes a manterem o sentido crítico e a inteligência activa num mundo onde as imagens e as palavras dos meios de comunicação, desempenharão um papel cada vez mais importante nas suas vidas e no seu trabalho futuro, mas uma ferramenta que de forma alguma pode substituir a comunidade educativa que é construída na relação presencial entre professores e estudantes. O regressar à sala de aula, onde desde o princípio se ensinou a ideologia da tecnologia que compreende e tudo resolve. A moda da passagem do século, que pregava o ensino à distância como o grande recurso do futuro, capaz de substituir a educação obsoleta em presença, felizmente está em crise, mesmo nos Estados Unidos onde nasceu. Retornar a classes mais pequenas para o número de alunos e maiores para o espaço disponível, em escolas capazes de utilizar o território como um recurso educativo. Os campos, parques, praças, muros e arcos das aldeias como lugares de ensino. Abertos durante o dia e a noite para permitir a presença de crianças e jovens em grupos mais pequenos, e aberto às necessidades de conhecimento dos adultos. E talvez até mesmo valorizando, tornando-o no eixo da recuperação educacional, o que aprenderam em casa. As coisas que aprenderam sobre o vírus e as vidas dos membros da família. Manter a ciência conjuntamente com a literatura e a arte que abrem a imaginação. Conceber um novo humanismo a partir da escola. Para isso será necessário exaltar e não reduzir a autonomia da escola como comunidade educativa e como capacidade de se relacionar com o território em que está inserida. Fora e contra qualquer processo de corporatização, que nos últimos anos tem sido favorecido por ter concebido a autonomia como uma forma de reduzir os custos escolares, obrigando as escolas a procurar recursos no “mercado”. E também acentuando a desigualdade de desempenho e resultados entre as escolas, com base nas diferenças de riqueza e rendimento dos locais que as acolheram. A precariedade de uma parte substancial do pessoal, o baixo reconhecimento económico do pessoal docente e do pessoal técnico e auxiliar, numa altura em que se pedia a todos que aumentassem a sua carga de trabalho, foi a outra razão para a crise de autonomia escolar. A escola pós-covid-19 vai precisar de pessoal estável e digno. Uma tecnologia adequada a estas tarefas terá de ser utilizada como um instrumento, que só pode ser uma tecnologia própria e concebida para ser inclusiva e não divisiva. Será necessário dinheiro, mas também para isso precisamos de um novo pensamento económico capaz de privilegiar a produção de homem para homem em detrimento da produção de bens para consumo, ou mesmo de bens – a indústria da guerra – que as pessoas destruam. Mesmo no trabalho, a distância tem enfatizado as divisões e desigualdades. Tal como com os estudantes, aqueles que trabalham foram divididos entre os que podem trabalhar a partir de casa e os que não podem. Entre os que cuidam e actualizam os algoritmos da Amazon e os da linha de montagem do armazém, ou circulam pela cidade em carrinhas, bicicletas e ciclomotores. Entre aqueles que fazem trabalho intelectual a partir do seu quarto e os que ficam no hospital, cara a cara com os doentes. Entre os gestores que podem dar ordens mesmo remotamente e os trabalhadores que têm de produzir e transformar a matéria-prima. Na maioria das situações, a possibilidade de trabalhar a partir de casa é proporcional aos níveis de rendimento, conhecimento, e por vezes até poder. A distância também passa entre os que trabalham a partir de casa com um nível médio-alto de autonomia e os que trabalham a partir de casa como uma engrenagem que os direcciona para o detalhe. Entre os profissionais e os trabalhadores na Internet. Entre os que têm uma bela casa e têm um trabalho que os recompensa e gratifica, e os que vivem em espaços confinados e desligam a Internet para fazer face às despesas. E entre aqueles que são homens e mulheres. Porque trabalhar a partir de casa não atenua mas enfatiza as diferenças de género. A coincidência do local de trabalho e local de vida para muitas mulheres significava acrescentar ao trabalho o peso quase exclusivo do trabalho de proteção. Um peso enorme quando em casa há crianças que já não vão à escola, idosos que não são auto-suficientes, membros da família com deficiências, e juntamente com o apoio institucional, desapareceu também a possibilidade de utilizar a ajuda doméstica e “babysitters” e mesmo práticas de auto-ajuda a nível parental e de vizinhança. Não poder sair de casa reforçou em muitos casos as correntes que as ligam a homens violentos. Não é coincidência que os pedidos de ajuda dos centros não-violência tenham aumentado em mulheres espancadas. Acima de tudo, devemos aceitar as desigualdades e a fragmentação do mundo do trabalho, que a própria crise da Covid-19 trouxe à luz do dia. Descobrimos dramaticamente que o fundo de despedimento e os sistemas de segurança social em vigor não cobrem todo o trabalho. E que são precisamente os empregos que eram realmente “essenciais” nesta fase, os prestadores de cuidados que zelam pelos idosos e que permitem que muitos deles escapem ao pesadelo de residências de cuidados de saúde ou lares de terceira idade, os trabalhadores agrícolas que lhes era permitido fornecer os alimentos quando tudo estava ainda em aberto, uma grande parte dos trabalhadores do comércio alimentar que permaneceram disponíveis, e aqueles que trouxeram às casas necessidades básicas de bicicleta ou motocicleta, e especialmente mulheres trabalhadoras, que limparam e higienizaram hospitais e lares muitas vezes com protecção sanitária improvisada, e que são precários, instáveis, sem direitos e muitas vezes dependentes de empregadores e cooperativas que lhes pagam contribuições por menos de metade do trabalho efectivamente realizado. As formas de extensão a muitos sectores do fundo de despedimento e os subsídios temporários não são suficientes para os tranquilizar quanto ao futuro. O reinício deve ser acompanhado de medidas para resolver estas intoleráveis desigualdades. A começar pelos migrantes, sem cujo trabalho se perdem as colheitas de frutas e legumes de grande parte dos países. A solução deve ser a sua regularização imediata, quebrando a espiral perversa sobre a qual as máfias e corporações prosperam. Isto foi dito por um empresário em frente ao seu grande campo de alcachofras não colhidas que “contrataria migrantes que se encontram nos centros e que querem e precisam de trabalhar, mas não lhes pode dar um contrato se não estiverem pelo menos legalizados. Mas a legalização só poderá ser feita se tiverem pelo menos um contrato de trabalho”. A prorrogação das autorizações de residência até ao final do ano não resolve o problema estrutural e não dá qualquer garantia às pessoas que se tem vindo a explorar como trabalhadores durante anos, recusando-se a considerá-los cidadãos. Regularizá-los é o movimento para dar alguma certeza à produção agrícola e retirá-la da influência mafiosa em muitos países, com benefícios a longo prazo também na condição de trabalhadores de cada país. Mas esta condição vai para além do trabalho agrícola. Não muito diferente é a situação dos migrantes que trabalham na logística, na construção civil, nos muitos empreiteiros da mesma indústria. A regularização deve afectá-los a todos. E é uma questão de civilização e de respeito pela dignidade humana, ainda mais do que económica. O segundo é o salário mínimo de que o próprio Papa Francisco falou. Um salário para todos os trabalhadores, começando pelos “invisíveis”, que fazem serviços essenciais para a vida das comunidades. Os muitos no trabalho de ajuda, em casas, empresas de limpeza, em tarefas que muitas vezes permitem a sobrevivência de famílias inteiras, os muitos “trabalhadores” qualificados que inserem dados nas máquinas da economia virtual, os muitos trabalhadores independentes ligados a uma cadeia que muitas vezes nem sequer consegue ver quem está a puxar os cordelinhos. O “irregular” da cultura, precário e mal pago, que são os que disponibilizam o património cultural do país às pessoas. Os trabalhadores da indústria do entretenimento, talvez o mais ocasional e intermitente de todos, que pagam por cada contribuição de desempenho para uma pensão que nunca amadurecerá. A garantia de um salário digno para todos é também a base para a construção de um novo sistema de previdência social que estende o gozo dos direitos agora totalmente disponíveis apenas aos trabalhadores que são regularmente enquadrados e contratados. Tem havido muita discussão sobre os rendimentos da cidadania, os seus méritos e limitações. Acima de tudo, a forte condicionalidade que exigiria dos pobres uma vontade de trabalhar em qualquer lugar, perto ou longe, excluindo qualquer possibilidade de construir um projecto de vida próprio. Há mesmo quem pense em utilizar a Covid-19 para reforçar a chantagem. Alguns agricultores europeus e americanos gostariam de os enviar para trabalhar nos campos, talvez de graça e talvez deixando os migrantes nos centros de acolhimento, que gostariam de trabalhar por um salário justo e com um contrato decente, ou para os enviar para as emergências do vírus. Ao invés, seria tempo de se voltar a pôr a mão na consciência de forma a alargar o valor de combate à pobreza, que a Covid-19 corre o risco de aumentar dramaticamente, bem como construir projectos educativos e culturais que, para além de dinheiro para sobreviver, se preocupasse em fazer as pessoas repensar o futuro, com percursos individualizados, valorizando o pleno trabalho para preencher as lacunas. O que uma gestão pura através de algoritmos e esquemas largados a partir de hierarquias burocráticas superiores não permite. É necessário dissolver a ambiguidade que resulta de se ter mantido indevidamente unido a luta contra a pobreza e as políticas laborais activas. Além disso, seria paradoxal se, ao mesmo tempo que se apela justificadamente a uma ajuda incondicional à Europa, os países continuassem a subordinar a ajuda aos pobres a condições muitas vezes irrealistas, sempre chantageantes tendo em conta que até final de 2020 podem morrer cerca de doze mil pessoas por dia como consequência da crise de fome originada pela pandemia da Covid-19.
Carlos Morais José A outra face VozesSob o céu de Palmyra [dropcap]P[/dropcap]assara por Palmyra mas de Palmyra não saíra. Um esgaço de gente, eu, somente, a espaçar entre os doentes. Palmyra nunca ficava para trás e nós — que bem para a frente andávamos! Talvez às voltas, em círculos vários, complexas ovais, mas ali estava de novo Palmyra, sob as nossas sombras esticadas; e a noite que se aproximava; e o suão se levantava. E em Palmyra dormiria. Ali atendia o dia. A noite pertencia à lei. Todas as noites as passei em Palmyra. Vagueei sob arcos e arcadas, grandes portas e escadas, visitei ruelas, lojas, tabernas. Conheci os donos das esquinas, os senhores dos bairros. Era, amiúde, convidado para jantar. Conheci mulheres e elas conheceram-me, embora a nenhuma me vinculasse por me saber mera passagem. Todos os dias saía de Palmyra e me metia ao caminho. Talvez de um forte, talvez do mar, de um porto. Sonhava barcos no dorso do meu camelo. E comandava embalado toda uma tripulação. Pensava na cidade onde pretendia atracar. Teria ela mar ou um mero rio? Depois sentia um solavanco maior, um bramido e despertava do meu devaneio. A besta acabava de se ajoelhar, já noite crua, às portas da cidade de Palmyra, não muito longe da Fonte Eterna, de onde tantas vezes olháramos o contraluz do castelo e, num gelo súbito, tremêramos. Estava em Palmyra e outra noite se estendia à minha frente. Um velho recolhia cacos. Interpelei-o: “Velho Mestre, apresenta-me à rainha. Ouvi que ela ordena sobre Persas e Romanos e ainda outros povos cujo nome é terrível e não se deve pronunciar”. O velho aquiesceu. Nessa noite, adormeci sossegado na taberna. Mas outro dia espairecia e ao caminho eu me fazia. E para Leste me dirigi, para Leste indiquei o meu olhar. Desta vez fi-lo sozinho, oscilante no dorso de meu dedicado animal. E, em devaneios, sob o sol ainda tépido da manhã, o velho do nada me aparecia e me dizia ter a rainha anuído a meu tão ousado intento. E o coração pulsava desmedido sob a pele, pois já longe me julgava. Forte bramido: meu camelo que ajoelha e eu acordo em terra de Palmyra, lá no seu largo outonal. Ali aterro em solo quente, ainda oscilante da viagem, mas quente fornalha, a escaldar, quase miragem, não fossem reais as armas que estendidas me esperavam. E, por detrás de estandartes, de homens de várias artes, soldados e generais, ministros e sicofantes; sem manobra de intenção, surge impávida a rainha. “Dizem-me que queres sair de Palmyra e não o consegues. Todos os dias, porém, o tentas. Levas a tua magra tenda e ala pelo deserto, que preferes a esta cidade. O que pretendes de mim?” “Que intercedas junto aos deuses que me tramam. Morfeu e a sua dama. Os deuses dos caminhos desta terra, os do deserto, os da falta de água.” “Vai-te, homem. Sai da minha cidade. Ninguém quer ouvir o teu resmungo, a acidez da tua língua estrangeira, a rigidez desse discurso, as várias cores dos teus costumes.” E gargalhava. E assim, sob tochas, me levaram à rua e da rua ao largo e do largo às muralhas onde o meu camelo me esperava. O dia já despontava. E montado por mim dei. Tinha finalmente a esperança, sagrada por ordem real, de me afastar de Palmyra. E tão crente, tão seguro, estava de por fim poder partir que — mal ordenei ao bicho: “Oriente!” — dei por mim logo a dormir. Sonhava com a cidade que eu tanto desejava e via Palmyra ao fundo, chorosa e definhada. Lá para trás, ficava. Palmyra, a santificada, a da fonte sempiterna, a sempre núbil do deserto. E por toda a noite errei. Devo ter dado voltas e revoltas, ter voado da gangrena ao desespero, editado ânsias de corvos e prateleiras de ícones abandonados. Era o mundo um cemitério. Vasto, orgíaco de morte. Acordei num bramido de joelhos. Era ainda em Palmyra onde, do pesadelo, o nobre animal me acoitava. Havia uma porta entreaberta e um guarda, que generoso acolhia: “Entra, palerma. Todas os dias…: para onde tanto vais?…” “Tenho um encontro prometido em Samarra. Mas em Palmyra sempre me vejo e dela não consigo sair. Quando me afasto de Palmyra, logo adormeço e sonho, desemboco em devaneios e sempre por mim dou de volta, a esta mesma cidade. Tentei o chá, o café, as raízes interditas. Mas sempre os devaneios me tomam. Diz-me — tu que vês os homens e as mulheres a passar —, o que posso eu fazer?” “Continua a tentar, rapaz. Todos dias. Mantém pronta a tua tenda. Alguma vez o camelo te levará para Oriente e te depositará ainda estremunhado no mercado de Samarra, onde cumprirás o teu encontro. Ninguém te poderá acusar de chegares atrasado ou de não teres firmemente tentado. “Entretanto, devaneia no dorso do teu animal e pelo teu pé nas travessas desta cidade. O que poderás fazer é devanear: de dia pelo deserto e de noite pelas tabernas de Palmyra.” O guarda, que era um crente, acrescentou ainda: “A bondade divina permitiu a miríade dos seres e das manias. Por isso, também para a tua doença haverá um lugar sob a roda do céu.”
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesCem anos de mudanças [dropcap]O[/dropcap] filósofo da antiga China, Lao Tzu, disse, “A felicidade e a desgraça andam de mãos dadas. A felicidade traz muitas vezes consigo o infortúnio e o infortúnio está sempre escondido na felicidade”. Todas as coisas deste mundo têm aspectos positivos e aspectos negativos, à semelhança dos polos positivo e negativo das forças electromagnéticas. Os acontecimentos encaminham-se na direcção positiva quando chegam ao extremo da negatividade. A positividade e a negatividade são duas faces da mesma moeda, não forças opostas como Hegel nos demonstrou através da sua dialéctica. Toda a gente sabe discorrer sobre a razão, mas apenas muito poucos agem de forma razoável. O egoísmo daqueles que detêm o poder mergulha o mundo na confusão e na inquietação. As obras de Orwell, “O Triunfo dos Porcos” e “1984” ultrapassaram largamente a ficção, foram antevisões do mundo em que vivemos. Só aqueles que fizeram uma leitura aprofundada destas obras podem entender a verdade subentendida nas entrelinhas e por isso evitarão cometer os erros descritos nestes textos “ficcionais”. A pandemia de COVID-19 tem vindo a assolar o mundo nos últimos seis meses. Enquanto escrevo este artigo, há registo de mais de 13 milhões de infectados a nível global e o número de mortos anda perto dos 600.000, e isto para não falar do enorme abalo económico que já se faz sentir por toda a parte. Este vírus não apareceu do nada. Se surgiu na natureza ou se foi criado em laboratório, é um enigma que só pode ser desvendado pelos cientistas através de estudos aprofundados sobre o seu processo de mutação. Mas esta pandemia trouxe consigo grandes mudanças a nível planetário, para além de todo o sofrimento que já causou. O Partido Comunista da China foi fundado em 1921, apenas dois anos depois do Movimento do 4 de Maio (1919), o mesmo ano em que Sun Yat-sen estabeleceu o Governo Nacional em Guangzhou (Cantão). No plano internacional, 1918 foi o ano do fim da I Guerra Mundial e da fundação da Liga das Nações, impulsionada pelo então Presidente americano Woodrow Wilson. Quer estivéssemos na China ou na Europa há cem anos atrás, a vida seria certamente mais difícil do que é agora. No entanto, a vitalidade e as crises florescem em tempos difíceis, o que comprova a filosofia de Lao Tzu. Volvidos 75 anos do final da II Guerra Mundial, e 40 e tal anos após a China ter implementado a política de reformas e de abertura, parece que a Humanidade deixou de celebrar os tempos de paz. O barril de pólvora, constituído pela situação geopolítica de Médio Oriente persiste e o Museu Hagia em Istambul vai voltar a ser uma mesquita. O ping-pong diplomático entre a China e os Estados Unidos vai tornar-se uma guerra comercial. Hong Kong, desde há muito distinguida com o título de “Pérola do Oriente”, está actualmente desfeita em pedaços tão afiados que facilmente cortará as mãos dos que lhe estão próximos. E, mais, sob o domínio dos nacionalismos e dos populismos o mundo está a tornar-se um local muito perigoso. Deng Xiaoping disse que o progresso das reformas não podia ser revertido, porque voltar atrás nos conduziria a um beco sem saída. A COVID-19, as frequentes cheias, os diversos tremores de terra, as pragas de gafanhotos, a lei de segurança nacional em Hong Kong, o conflito Sino-Indiano, a contenda Sino-Americana….são testes constantes à sabedoria e perseverança da nação chinesa. O resultado positivo ou negativo que daqui pode advir dependerá apenas da responsabilidade colectiva do povo chinês. A 15 de Julho, os visitantes que cruzarem as fronteiras entre Macau e a Província de Guangdong deixam de ser submetidos a quarentena obrigatória. Com esta decisão espera-se trazer alguma dinâmica à economia das duas regiões, num cenário em que ainda existe receio de propagação da COVID-19. Nos 20 anos que decorreram após o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tem vivido quase exclusivamente da indústria do jogo, e nunca reflectiu sobre as consequências de depender economicamente de um único sector. Nestes últimos seis meses em que se tem feito sentir o impacto da pandemia, o Governo da RAE e a população devem ter compreendido a realidade actual de Macau. Posto isto, 2020 é o ano decisivo para que Macau procure pelas suas mãos próprias a mudança, ou então para que fique à espera de ser mudado.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBondage japonês [dropcap]O[/dropcap]p Kinbaku e o Shibari costumam ser indiscriminadamente utilizados para se referir ao bondage de tradição e arte japonesas. Para os mais cuidadosos, existem diferenças entre os dois conceitos, Shibari refere-se à arte japonesa de amarrar alguém, enquanto que o Kinbaku se refere a esta mesma prática com ligação emocional associada. Tudo começou com uma forma particular de amarrar prisioneiros com complexos nós e posturas, para assegurar que os prisioneiros ficavam imóveis. Depois, reza a história, que esses oficiais levaram os nós, e as formas de amarrar, para outros contextos, digamos, mais sexuais. O bondage ocidental está longe de ser tão bonito como o japonês. Enquanto que o ocidental faz uso de apetrechos mais comuns, como por exemplo, algemas, o oriental usa as cordas e nós intrincados criando verdadeiras composições humanas de tensão e sensualidade. Rapidamente que o interesse pela prática disparou, tanto por aficcionados do BDSM como também por artistas. Mas esta é uma prática que precisa de mestria, não é para qualquer um. Como em muito do que se conhece da cultura japonesa, exige estudo, dedicação e sensibilidade para fazê-la acontecer. Muitos viajam até ao Japão para aprender com os mestres durante anos, e aos poucos começam a exportar os seus ensinamentos, seja para praticar no quarto ou em performance. Já existem livros, escolas, centros e grupos de estudo por este mundo fora. Mas muitos dos mestres nesta arte de amarrar queixam-se do perigo da apropriação ocidental superficial e rápida. Esta não é uma actividade que se aprenda num workshop de curiosos de fim-de-semana. O processo deve ser longo, moroso e dedicado, para quem quiser dominar esta arte de amarrar. Amarrar o outro, neste contexto, tem que ser de forma controlada e cuidada. Dizem os especialistas que são necessários cuidados para não magoar os amarrados – que depois serão pendurados nas mais incríveis posturas. As posturas depois dependerão das dinâmicas de poder que ali existam e do propósito último da prática. A maioria dos que escrevem sobre a experiência de serem amarrados concorda que há dor e prazer associados. A contenção e suporte que as cordas dão são qualquer coisa que nunca haviam sentido. Não só se entregam à pessoa que está a tratar do assunto, mas às cordas, deixando-as suster a fragilidade e vulnerabilidade pessoais. O risco de lesões está sempre lá. Dizem os especialistas que a comunicação tem que ser rápida e atenta para prevenir o pior. O diálogo e a negociação são muito importantes em qualquer prática BDSM, não só para garantir a segurança, mas para a total entrega e confiança na prática e entre os praticantes. Se o consentimento não existir, só fica a violência, e isso de kinky, não tem absolutamente nada. Apesar do bondage contemporâneo já incluir este shibari/kinbaku, esta foi uma recente aquisição pela cultura BDSM. Foi com a globalização e intercâmbio – onde as redes sociais contribuíram bastante para isso – que se começou a assistir a um diálogo intercultural do sexo e das práticas kinky mais fora da caixa, inspiradas nas mais variadas tradições culturais. Curiosamente, no Japão, o shibari/kinbaku é muito mal visto, porque, tudo o que é relacionado com o sexo, as gentes ainda têm muita dificuldade em encarar. Com sorte que os interessados nas práticas de bondage o trouxeram para uma nova visibilidade – o que outrora foi uma forma de tortura, e, agora, uma possível forma de dominação sexual e de arte.
Manuel de Almeida Vozes“Macau Património Mundial da Humanidade” – 15º Aniversário O CENTRO HISTÓRICO DE MACAU foi inscrito na lista do Património Mundial, na 29a Sessão do Comité, em 15 de JULHO de 2005. [dropcap]E[/dropcap]m 1513, os portugueses chegaram à China, à ilha de Tamão – “a ilha de veniaga” (que significa , ), situada no delta do Rio das Pérolas, numa frota comandada por Jorge Álvares. A 17 de Junho de 1517, partiu de Malaca, rumo à China, a primeira embaixada portuguesa à corte de Pequim, numa armada comandada por Fernão Peres de Andrade, levando a bordo, como embaixador, Tomé Pires. Esta embaixada tinha como objectivo oficializar e aprofundar os contactos com a China. Apesar de algumas desavenças, conflitos, fricções e mal entendidos – como o édito imperial de 1522, que ordenava o encerramento do porto de Cantão à navegação de estrangeiros, com a consequente suspensão do comércio marítimo, a qual trouxe sérias dificuldades financeiras ao governo da província, que foi de mal a pior, os portugueses estabeleceram-se em Macau em 1553, fruto do estreitamento das relações comerciais sino-portuguesas e do reconhecimento dos serviços prestados – a armada lusa conseguiu acabar com os piratas e os rebeldes dos mares do sul da China. As viagens transoceânicas entre o Ocidente e o Oriente são o primeiro passo da globalização – o que levou o historiador português Luís Filipe Barreto a escrever – “Entre os séculos XV e XVII começa a nascer toda uma estrutura de vida à escada mundial. Nascem os primeiros elementos de um comércio mundial com implicações na restante economia, bem como os primeiros traços de uma cultura mundial que troca, entre o Ocidente e o Oriente, o Norte e o Sul, ideias e livros, mas também alimentos e costumes”. Para Malyu Newitt, Professor Emérito no King’s College de Londres, Portugal foi “o primeiro Estado de dimensão mundial”. O estabelecimento permanente e duradouro em Ou Mun (A Porta da Baía), fruto do diálogo e compreensão entre pares, abriu um novo período nas relações luso-chinesas. A cidade começa por se equacionar, desenhar, construir, numa pequena colina em dois espaços urbanos que se estruturam em Macau: a cidade chinesa, ou bazar, e a cidade cristã, ou europeia. “De início, fizeram apenas umas dezenas de cabanas de palha, mas passado algum tempo, à medida que os artífices e comerciantes que procuravam lucros fáceis transportavam para lá tijolos, telhas, madeiras e pedras, construíram casas e tomou forma de uma povoação que atraía muitos navios para aí ancorarem, tudo à custa de outros ancoradouros que caíam em desuso” – segundo Guo Fei, em Crónica Geral de Guangdong. Em 1563, Macau atingia já uma dimensão considerável, cerca de 900 pessoas, excluindo crianças, a par de vários milhares de malaquenhos, indianos e africanos. A primeira igreja, dedicada a St. António, data de 1558 e a primeira escola, fundada pelos Jesuítas, data de 1572. Num clima de cooperação e bom entendimento, com um povo empenhado e empreendedor, a cidade cresce e Macau torna-se a placa giratória das rotas marítimas que ligavam a Índia, o arquipélago malaio, a China e o Japão – Macau ponto de encontro, cidade de abrigo. Em 1654, D.João IV atribuí-lhe o título de Cidade do Santo Nome de Deus de Macau. Resultado do diálogo e intercâmbio cultural entre o Ocidente e o Oriente, Macau conseguiu construir uma simbiose única multicultural, um testemunho vivo da assimilação e da coexistência das culturas orientais e ocidentais – foi essa vivência, tolerância e entendimento que fizeram “O Centro Histórico de Macau” membro da Lista do Património Mundial da UNESCO. Falar de Património não é discorrer sobre um tempo fechado ou um acervo do passado, é uma memória presente, que deve salvaguardar o futuro. Templos, fortalezas, igrejas, casas… para os residentes mais distraídos e que ainda não conseguem recitar de cor os trinta lugares eleitos da nossa cidade, nunca é demais relembrar: Casa do Mandarim, Casa de Lou Kau, Casa Garden, Edifício do Leal Senado, Santa Casa da Misericórdia, Ruínas de S.Paulo, Igreja de Santo António, Igreja de S. Domingos, Igreja de Santo Agostinho, Igreja e Seminário de S. José, Igreja de S. Lourenço, Igreja da Sé, Fortaleza do Monte, Fortaleza da Guia, Templo de Na Tcha, Templo de A-Má, Templo de Sam Kai Vui Kun, Quartel dos Mouros, Cemitério Protestante, Antigas Muralhas de Defesa, Teatro D. Pedro V, Biblioteca Sir Robert Ho Tung, Largo de St. Agostinho, Largo da Companhia de Jesus, Largo de S. Domingos, Largo da Sé, Largo da Barra, Largo do Senado, Largo do Lilau e, por último, mas não menos importante, a Praça de Luís de Camões, o local de homenagem e de romagem ao tão amado poeta, constituem o , inscrito na lista do Património Mundial, na 29a Sessão do Comité, em 15 de Julho de 2005, há precisamente 15 anos. A zona classificada como património desenvolve-se ao longo de um itinerário que começa no extremo sudoeste da península, no Templo de A-Má, percorrendo uma parte da cidade, em direcção a nordeste, até chegar à Casa Garden e ao Cemitério Protestante. O único monumento fora desse itinerário é constituído pela Fortaleza da Guia, com um dos ex-libris da cidade, o Farol da Guia, ladeado pela sua Capela – num total de 30 monumentos/locais. A malha urbana classificada alberga uma história, humana e social – é um grande artefacto cultural da humanidade -, são cinco séculos de um conteúdo colectivo de diálogo. O Centro Histórico de Macau foi designado como o 31º sítio do Património Mundial da China – tornando-se o Celeste Império o terceiro país com maior número de Sítios de Património Mundial inscritos no mundo, logo após a Itália e a Espanha e antecedendo a França. Segundo a Carta de Nara, aprovada nesta cidade japonesa em 1994, a classificação de um monumento a Património Mundial da UNESCO tem por base dois parâmetros fundamentais: a autenticidade e a integridade. Penso que em Macau nos temos esquecido destes pormenores. A história económica, bem caracterizada, condicionou a evolução urbana e arquitectónica da cidade. Numa primeira fase, as sedas e os produtos cerâmicos, o tráfico do ópio, os cules e o ouro numa fase posterior e, finalmente, o jogo. Este, apesar de ter trazido algum desenvolvimento económico e bem-estar à população, tem descaracterizado a vida e alguns valores e ferido a geografia sentimental de Macau. Em finais do século XVI, o comércio prospera, a população aumenta. Fixam-se alguns elementos da nobreza ultramarina portuguesa, intensifica-se a instalação de missionários e padres e a radicação de pescadores chineses. Era uma cidade de ruas tortuosas, sem um planeamento e ordenamento prévio e uma estrutura consolidada, já com alguns núcleos populacionais bem definidos. Sem adoptar qualquer modelo de raiz europeia ou chinesa, é este diálogo existencial que leva Austin Coats, no seu livro A Macao Narrative a escrever “só em Macau se experimenta a extraordinária sensação de estar num momento no tempo Ling Fong e dez minutos depois no Teatro D. Pedro V, cada qual constituindo enfática expressão de civilizações díspares, sem contudo produzirem qualquer choque cultural”. A cidade cresceu, aparentemente desorganizada, sem uma estrutura orgânica, fruto do pragmatismo da dinâmica comercial. Durante o século XVII, surge a arquitectura civil europeia, sobretudo de tradição portuguesa, resultado das experiências bem sucedidas na Índia e Malaca, e alguns imponentes edifícios públicos – Misericórdia, Leal Senado, Hospital de S.Rafael, a par do desenvolvimento de uma arquitectura de tradição chinesa, sobretudo em novos projectos habitacionais. É nesta época que se constrói o novo Templo Kun Yam Tong e se renova o Templo de Ma Kok Miu, na Barra. No século XVIII, a fisionomia de Macau alterou-se significativamente do ponto de vista político, social, urbano e populacional. A abertura do porto de Cantão aos estrangeiros levou à fixação de várias companhias europeias na cidade. Instala-se em Macau uma alfândega chinesa, para controlar o acesso ao estuário do Rio das Pérolas e cobrar impostos. É um século de abertura a novos conceitos arquitectónicos, construções de uma certa monumentalidade, erguem-se de uma nobreza – ocidental e oriental – endinheirada. Rasgam-se novas estradas e planeiam-se novos arruamentos. Constroem-se os Templos de Kuan Tai Ku e Lin K’Ai. A cidade expande-se para fora dos limites habituais da sua geografia inicial, criam-se aterros e, finalmente, pensa-se, programa-se e criam-se novos modelos regulares de ordenamento. Macau ganha uma nova configuração com novos edifícios, residências, teatro e igrejas. No princípio do século XX, Macau tinha já uma população de cerca de 66 mil habitantes e foi no último século também, que a cidade deu um grande salto quantitativo, não tanto qualitativo, em consequência não só da comercialização do ouro, mas sobretudo devido ao primeiro contrato de concessão do jogo. Criou-se uma rede viária e um plano urbanístico. Melhoraram-se as infra-estruturas e as estruturas portuárias e aéreas, remodelaram-se alguns edifícios públicos, militares e igrejas e definiram-se algumas regras de gestão municipal. A cidade ganha uma nova fisionomia – estende-se, alarga-se, respira (?). As alterações lavradas nos últimos anos no tecido económico e social do Território – Macau foi entregue sem um suspiro, sem um sobressalto, sem um remorso, nas mãos do deus jogo (depois da liberalização do jogo, o sofrimento) – foram bruscas, impensadas e nefastas. Para alguns agentes económicos, o Património é ainda um obstáculo ao desenvolvimento e modernização do Território, quando na verdade é um dinâmico agente de progresso, um espaço de reflexão e preparação e, sobretudo, uma plataforma da identidade colectiva. Três exemplos concretos que o património de Macau está ao abandono. – não há visão, não há estratégia -, o Convento da Ilha Verde está decadente – já houve projectos, já houve intenções -, abandonaram-nos, é triste. Deixar construir prédios com 90 metros de altura nas fraldas da Colina da Guia é um atentado. Em 2008, quando construíram o Gabinete de Ligação do Governo Popular Central na RAEM, com 88 metros, já foi mau, deixarem construir ao seu lado esquerdo um prédio de habitação privado, com 90 metros, foi um erro crasso – alguém será julgado por essas atrocidades e atentado ao património público? E o desenho, em ‘socalcos’ da torre mais alta, deixa imaginar que foi intencionado, para poder ser facilmente ‘fatiado’, se necessário fosse, mas a exígua queixa tarde chegou… Repetir o erro é gravíssimo. A arquitectura deve trazer soluções, não interrogações, deve conciliar, dialogar com o que já cá está, e bem, com a Natureza, com a população. Aqueles monstros- não têm outro nome – ali na Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues, ficarão para sempre cravados na alma da população, como tumores de um passado inconsciente, a subordinação de poderes económicos ao bem colectivo. E a esperança morre, ao ter sido, há bem pouco tempo, divulgada a autorização para a eclosão de mais outro mesmo ao lado, ficando a vista para o primeiro farol do Oriente barrada, quedando-se como um pouco estimado bibelot. Quem se preocupou com o habitat natural daquelas encostas, antes sobranceiras ao mar, da florestação exótica que restava da antiga praia do mangal, e que dava abrigo a dezenas de espécies de aves, aos esquilos? Tudo esventrado! Ou a ideia será, afinal, desbravar tudo o que é autóctone e natural, que ali vive imperturbável há décadas, e, eis senão quando, enviesando as leis, deixar construir arranha-céus a quem esteve longo tempo, sabe-se lá, à espera de melhores dias (?), e depois, a modo de conclusão (in)feliz, fazer um asséptico cimentado corredor enfeitado com plantas de estufa trocadas regularmente, para o bem e desfrute da população, claro!? Onde estão os jovens defensores de tantos ideais, que registam orgulhosos e reclamam subsídios para mais e mais associações com nomes que berram promessas? Onde estão as pessoas que gostam e conhecem verdadeiramente a sua cidade? Um outro caso – poderia dar mais alguns exemplos, já percebi que não há grande poder de encaixe, as pessoas são fúteis no pensar e estão mais atentas ao que se lhes murmura no telemóvel do que ao que os seus olhos deveriam ver e acontece, inexoravelmente, à sua volta -, na esquina da Rua 5 de Outubro com a Travessa dos Faitiões, existem duas casas seculares com uma torre prestamista, não conhecem, não se faz nada pela sua preservação – a ignorância é pura e dura – nessa rua há mais património, conhecem (?), quais são as verdadeiras intenções (?) Abandono… é o mais simples. Preservar não é, definitivamente, um verbo na ordem do dia. Macau é uma cidade de contrastes, de confluências, de diálogo, de coexistência, cidade de cor, luz, movimento, de odores, sabores, sons, um bem plural, inscrito na lista do Património Mundial da Unesco. O Património Cultural é um elemento base da identidade – aos jovens uma palavra de incentivo e mobilização – vamos todos preservar de forma construtiva, activa e consciente. É preciso educar os olhos e os afectos. Envolver os mais novos na sua cidade, nas decisões, cativá-los para a beleza, fazê-los pensar e contar-lhes a História. Macau, per capita, a cidade mais rica do Mundo, dizem! Inaudito! Somos ricos em quê? Absoluta incongruência. Que testemunho visível e invisível deixamos aos nossos e aos que nos procuram e de quem tão dependentes estamos? O futuro é um longo e sinuoso caminho feito de muitos anos…
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEstados Unidos saem da OMS [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 6, o Governo dos EUA notificou oficialmente o Secretário Geral das Nações Unidas António Guterres, da saída do país da Organização Mundial de Saúde (OMS). Esta decisão pôs fim à filiação que os Estados Unidos tiveram durante 72 anos na OMS. De acordo com os estatutos desta organização, a saída dos membros requer aviso com um ano de antecedência; assim sendo, os Estados Unidos saem oficialmente da OMS a 6 de Julho de 2021. A OMS foi criada em 1948 e tem sede em Genebra, na Suíça. É um organismo das Nações Unidas. Como se pode verificar pela sua Constituição, o objectivo da OMS é “garantir que a saúde das pessoas de todo o mundo seja a melhor possível”. A OMS responsabiliza-se pela saúde a nível global, promove a prevenção e o controlo de epidemias e de doenças endémicas e fornece os meios da incrementar a saúde pública. A OMS tem actualmente 194 estados membros. Com a saída dos Estados Unidos, no próximo ano passará a ter 193. Para a OMS é importante ter o maior número de membros possível. Os fundos da Organização são obtidos através de cotas e de doações. As contribuições obrigatórias são pagas pelos estados membros; variam consoante a população e a riqueza de cada estado. Estas contribuições representam cerca de um quarto dos fundos da OMS, o restante é obtido através de doações voluntárias dos membros. Em 2019, os Estados Unidos doaram à OMS cerca de 400 milhões de dólares, valor que representa cerca de 15 por cento do orçamento da Organização para esse ano. A saída dos EUA vai representar um sério golpe nas finanças da OMS. Após a publicaçao desta notícia, várias personalidades fizeram ouvir a sua opinião: Anders Nordstrom, antigo Director Geral da OMS, declarou: “Estamos profundamente preocupados com a possibilidade do crescimento da tensão política internacional, numa altura em que precisamos mais do que nunca de solidariedade global.” A Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, afirmou: “Perante uma ameaça global, é necessário fortalecer a cooperação e solucionar os problemas conjuntamente. Devemos evitar decisões que enfraqueçam a cooperação internacional. Insistimos para que os Estados Unidos reconsiderem esta decisão.” O ministro alemão da Saúde considera esta decisão “um lamentável passo atrás na área da saúde internacional”. Não é surpreendente que Trump tenha promovido a saída dos EUA da OMS. Já tinha havido avisos nesse sentido. A questão principal é porque é que ele o quis fazer. Os Estados Unidos começaram a perder o controlo da epidemia nos finais de Março. Trump passou a culpar a OMS pelo sucedido, acusando-a de ter ocultado informação, o que terá levado a Casa Branca a não ter tomado as decisões atempadas para prevenir a propagação da doença e, nessa altura, suspendeu o financiamento à OMS. Actualmente, o número de infectados nos Estados Unidos já ultrapassou os 3 milhões e já morreram mais de 130.000 pessoas. É também certo que os números vão continuar a aumentar; por este motivo é natural que Trump queira atribuir a responsabilidade à OMS, sobretudo tendo em vista as eleições para a Presidência, que se avizinham. A Senadora Elizabeth Warren, ex-candidata à Presidência dos EUA, disse: “A decisão do Presidente de retirar os Estados Unidos da OMS durante a epidemia global, afastou-nos dos nossos aliados, enfraqueceu a nossa liderança a nível internacional e é uma ameça à saúde do povo americano.” Lamar Alexander, Presidente do Comité do Congresso para a Saúde, afirmou que esta decisão pode vir a atrasar a descoberta da vacina e insistiu para que fosse revertida. O candidato democrata Joe Biden afiançou que, se for eleito, fará regressar os Estados Unidos à OMS no primeiro dia de exercício do seu mandato. De momento, os Estados Unidos retiraram-se da OMS e recusam-se a colaborar com instituições internacionais no combate à epidemia. Esta atitude só vai piorar o problema sanitário, não vai ajudar os Estados Unidos. Este comportamento irresponsável vai certamente afectar a pesquisa da nova vacina; e mais grave ainda, esta retirada cria um precedente. Um mau precedente que pode levar outros países a seguir-lhe o exemplo, abrindo as portas à lenta desintegração da cooperação global. Nenhum país pode combater sozinho esta epidemia; a unidade e uma resposta conjunta são as únicas formas de resolver o problema. A decisão dos Estados Unidos tem como única consequência o seu isolamento. Esta atitude revela que os Estados Unidos não compreendem esta máxima sobre a política – “A política é compromisso e cooperação”. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
António Saraiva VozesQuem descobriu o Brasil, ou Uma Dúvida [dropcap]E[/dropcap]stando a acabar a revisão do meu livro “As Árvores na Cidade” tive uma dúvida de “última hora” sobre a exacta classificação do salgueiro de ramos amarelos: era o Salix x sepulcralis var. chrysocoma, ou o Salix x salamonii var. chrysocoma? No site “The Plant List”, tido como “a referência” dos nomes científicos das plantas indicava-se que Salix x sepulcralis era um sinónimo e o nome aceite era Salix x salamonii. Os Jardins de Kew Ora eu tinha visto há algum tempo no site dos Jardins de Kew – os quais são os mais completos/conceituados a nível mundial (1) – o nome de Salix x sepulcralis, indicando inclusive onde tinha aparecido; e assim quis voltar a esse site – seria que teria lido apenas parte do texto e assim havido algo que me escapasse? E por tal voltei ao site dos Jardins de Kew, procurando esclarecer a minha dúvida. Um artigo sobre a descolonização Qual não foi o meu espanto, porém, quando verifiquei não conseguir encontrar nenhuma “brecha” para pesquisar as espécies pelo seu nome – o que anteriormente nesse site era muito fácil-, mas sim um grande artigo do director científico dos Jardins, Alexandre Antonelli intitulado “It’s time to decolonise botanical collections” (artigo que copio a seguir para que o leitor possa, independentemente do que vou referir, fazer o seu juízo). Fiquei espantado e chocado. Então a política tinha aqui chegado? Sim porque a razão de ser dos Jardins Botânicos em geral, e de o Kew em particular (uma criação da era Victoriana, iniciado em 1840) é o de conservar/ aclimatar nos seus países as plantas que os botânicos-exploradores foram encontrando nos vários continentes – de preferência vivos (por vezes em estufas, pois, o clima outra coisa não permite), mas se tal não for viável herborizados. Quem descobriu o Brasil? ou fazendo pouco caso da ciência Ora Antonelli (um brasileiro), começando por contestar que o Brasil tivesse sido descoberto pelos portugueses em 1500, pois, segundo ele, o país já era habitado por milhões de pessoas (o que é uma falsidade pois não existia o “Brasil”, apenas centenas de tribos, com falas e costumes diversos e guerreando-se entre si, nomeadamente com curare) – continua negando também que as plantas tropicais tivessem sido “descobertas”, pois essas plantas já eram conhecidas e utilizadas pelos aborígenes há muito. Um discurso que seria admissível numa conversa de “chofer de táxi”, mas que não se pode aceitar da parte de um botânico. De facto, essas plantas foram “apresentadas ao mundo” por botânicos intrépidos que viajaram por todo o globo em busca de novas espécies (2); e porque esses botânicos, provenientes de vários países europeus, dispunham – ou foram construindo – uma botânica sistemática e organizada, que definia rigorosamente os termos científicos que descrevem as plantas e as agrupava de acordo com as suas características (nomeadamente o tipo de flor). Tal método permitiu que fossem comparados os resultados e experiências dos diversos países e zonas do globo; e assim hoje na China, em Portugal, ou na América, quando falamos de uma planta sabemos do que estamos a falar. E assim as tais descobertas, por muitas aspas que lhe queiram pôr, fizeram com que os conhecimentos sobre determinada planta passassem de ser das poucas centenas dos membros da tribo para património de milhões de homens e mulheres Uma pseudo “nova política” E, continuando, Alexandre Antonelli enuncia como frutos dessa “nova política” dos Jardins de Kew, o ensaio de duas espécies alimentares (o inhame selvagem em Madagáscar e a falsa bananeira na Etiópia), e o mapeamento das espécies úteis na Colômbia; e a digitalização das suas coleções. Ora para tal não é preciso “descolonizar” – o ensaiar numa região de plantas provenientes de outras geografias foi o que as potências coloniais sempre fizeram através da história (em Portugal desde o tempo dos Romanos e dos Árabes). Sobre esta troca de plantas teve lugar uma Exposição muito interessante orientada pelo professor José Eduardo Ferrão, “A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses”, exposição da qual resultou um livro com o mesmo nome. E se não tivesse havido essa troca muitos povos e países não teriam hoje de que viver, ou só poderiam suportar pequenas populações. P. ex., para o Brasil os portugueses levaram o café, a laranjeira, inhame, canela, jaca, fruta-pão, vinha, arroz, manga, a bananeira… para Angola a mandioca, o arroz, o feijão, o ananás, o milho, a batata doce, a bananeira, o limoeiro…E quanto à digitalização das coleções tanto um governo comunista como fascista ou democrático a poderia fazer. Mas, alto! Antonelli não fica pela digitalização – os textos e descrições vão ser “revistos” “and by examining and updating the western-centric labels we use to describe these items”. Habilitações ou Etnias? E Antonelli continua dizendo que vai aumentar o número de funcionários de diversas etnias entre os funcionários dos seus Jardins. Eu pensaria, na minha ingenuidade, que para a admissão de pessoal os critérios seriam as qualificações e a experiência dos candidatos – e que em igualdade de habilitações, obviamente, não se fizesse distinção de cor – mas parece não ser assim. Até porque os textos e descrições vão ser “revistos” “and by examining and updating the western-centric labels we use to describe these items”. E se este artigo começa com uma dúvida acaba com uma certeza. Pensava eu que as intrusões da ideologia na ciência tinham acabado com Galileu, há 400 anos (e pelas quais, aliás, já o Papa João Paulo II pediu desculpa). E que assim a botânica era “irrespective of politics” – e veja-se que nem a revolução russa de 1917 nem a chinesa de 1949 haviam tocado neste ponto. Assim para mim fico com a certeza de que o artigo de Antonelli, um membro influente da sociedade, revela uma alteração profunda de mentalidades, para pior e não para melhor; e que sob a aparência de “modernidade” é um triste sinal de regressão. …. (1) Estes Jardins têm uma área de 120 hectares (e várias grandes estufas); nele são cultivadas cerca de 28 mil espécies diferentes de plantas e de fungos, tendo além disso mais de 7 milhões de plantas herborizadas e uma biblioteca com 750 mil volumes. O número de funcionários é de cerca de 1.100. (2) Exploradores que Antonelli de certa forma apouca com a seguinte frase: “Colonial botanists would embark on dangerous expeditions in the name of science but were ultimately tasked with finding economically profitable plants.”
Hoje Macau VozesStanley Ho, o último “Socialista Utópico” Chamaram-lhes “socialistas utópicos”, designação que muito confundiu porque, na realidade, foram empresários donos de recursos exorbitantes e em nada tinham em vista o estabelecimento de regimes socialistas. No ocidente contemporâneo tiveram a sua génese na revolução industrial e logo viram ser do seu interesse que a enorme riqueza que geravam deveria ser dispersada. Fosse directamente por via de melhores condições para quem contribuía para a geração da mesma riqueza, fosse em infra-estruturas colectivas que proporcionariam mais eficiência e riqueza, fosse ainda pela confiança do poder público no estabelecimento de parcerias para assegurar bens públicos convencionais, em moldes necessários e desejáveis. Em verdade, antes de se falar de sustentabilidade, os “socialistas utópicos”, estiveram logo imbuídos do verdadeiro sentido de sustentabilidade social no modo de gerar riqueza. O prestígio que disso resultava era necessariamente incontornável em todos os sectores. Distinguem-se claramente dos recentes neoliberais porque viam com interesse a sociedade como um todo e não discriminavam a sua participação nos bens públicos apenas em função do rendimento directo que retirassem de cada investimento. Foi exactamente dessa falta de definição e de contorno de condições materiais que resultou a designação de “utópico”. Havia a confiança de que o retorno far-se-ia num circuito mais abrangente, com maior participação e, consequentemente, maior capacidade de reciclar e multiplicar a riqueza. Naturalmente, no mesmo circuito das participações, era também fácil detectar e identificar a emergência dos factores adversos. Foram também essas organizações laborais que estiveram mais bem preparadas na Europa para fazer face às dificuldades do período entre as guerras mundiais, mas que acabaram por não sobreviver às transformações dos tempos seguintes. Para alguns “verdadeiros” socialistas (os chamados “científicos”) essa foi a forma de capitalismo tolerada porque assumia várias responsabilidades sociais para com a classe trabalhadora. Para outros “verdadeiros” socialistas, os “socialistas utópicos” foram os verdadeiros reaccionários às mudanças sociais. Da muita riqueza obsoleta ou delapidada, o último reduto foram as colecções de arte que vinham reunindo, que muitos conseguiram manter estoicamente a final, como se aí permanecesse a essência de tudo o que foi possível gerar e permanecer de valor. Portugal recorreu e dependeu desse modelo de ordenamento territorial na sua administração colonial. O exemplo que mais corresponde à génese europeia talvez tenha acontecido no arquipélago de São Tomé e Príncipe, mas foram as versões mais tecnológicas e as infra-estruturas mais contemporâneas que proliferaram e sobreviveram nas restantes colónias. A então “colónia”, depois Território de Macau sob Administração Portuguesa, não foi alheio a esse modelo de administração, mas com as necessárias adaptações, que resultaram exactamente do facto de Macau nunca ter sido, em verdade, uma colónia. Efectivamente foi apenas a reboque da Conferência de Berlim que Macau passou a integrar uma homogeneização grosseira do modelo colonial. Todavia um território que ficava demasiado longe e isolado e onde os parceiros sempre foram locais e sempre foram capazes. Todavia o fim administrativo, assim como o compromisso entre parceiros, foram os mesmos. Isto é, assegurar a administração, os bens públicos convencionais, e desenvolver. A era global desses modelos de administração há muito que se extinguiu, teve revoluções pelo meio, mas acabou por dar lugar aos modelos neoliberais que passaram a tomar conta de bens públicos. Foram esses os novos parceiros em quem confiámos a reabilitação das nossas cidades, mas com quem já não vamos poder contar para a reabilitação do nosso ambiente e do nosso clima, pelo mesmo motivo de que o retorno do investimento nesse bem público não é imediato, sequer esses parceiros partilham esse compromisso. Em Macau, mesmo em mudanças de liberalização e em vazios de aptidão para infra-estruturar, manteve-se o legado de antigos “compromissos” de “socialismo utópico” do Dr. Stanley Ho. Efectivamente o facto de o imposto sobre o jogo da SJM ser ligeiramente inferior às restantes concessionárias prendeu-se exactamente com o “compromisso” de realizar trabalhos de dragagem para manter navegáveis os canais marítimos de Macau. O mesmo parceiro que certamente teria aderido a possíveis sinergias e a outras contrapartidas no Porto Interior que o empreendimento Ponte-Cais 16 podia e devia ter gerado, e da mesma forma que o mesmo magnata já aderira no modelo de empreendimento do Projecto dos Lagos Nam Van, se melhor aviso tivesse sido produzido nesse momento. Parceiro que certamente se sentaria à mesa para discutir o que está ao alcance de cada um fazer, depois dos agentes da urbanização neoliberal terem ocupado o espaço de inundação do delta do Rio das Pérolas e de a hidrologia ter passado a fustigar Macau sem dó nem piedade. Mais ninguém com meios próprios o passou a fazer, e Macau deixou de ser lugar de “utopia”. Resta concluir se esses “socialistas utópicos” não mais tiveram razão de existir, ou se a administração pública não soube mais como os usar, para aquilo que é sua atribuição, mas apenas não tem como fazer sozinha. Por ocasião da epidemia COVID-19, o Chefe do Executivo teve necessidade de invocar a responsabilidade social junto das demais concessionárias de jogo. À semelhança de outros “socialistas utópicos” o Dr. Stanley Ho deixou também uma colecção de arte, cujas características são inconfundíveis.
João Romão VozesA ver passar os comboios [dropcap]V[/dropcap]ivi a infância e a adolescência numa simpática vila com inusual dinâmica económica e certo ambiente cosmopolita, surpreendentes sobretudo porque a minha vida começou ainda em tempos de ditadura: indústrias intensivas no sul de um país pouco dado a industrializações, produtos agrícolas e minérios que do Alentejo vinham desaguar à foz do rio e aproximar-se das redes internacionais destes comércios, uma fronteira internacional e suas inevitáveis traficâncias, turismos exploratórios que ainda mal anunciavam a emergência dessa nova indústria da exploração massiva do território que estava opor desenvolver. Os comboios paravam sempre duas vezes nessa vila, na estação mais a norte e no apeadeiro a este, o fim da linha antes do rio e dos territórios das Espanhas. Hoje pouco resta destas coisas: o comboio já só para uma vez, desde que fechou o apeadeiro, já não se extraem os minérios do Alentejo, os produtos agrícolas têm outras formas de distribuição, as fábricas fecharam, a União Europeia quase eliminou os contrabandos e já nem os barcos sobem o Guadiana como soíam. Vem desde cedo, portanto, a minha predilecção pelos comboios. Há documentos dessas primeiras experiências na ferrovia, entrando no apeadeiro e saindo na estação, ou vice-versa, que o meu pai teve a sabedoria de me proporcionar em devida altura e em quantidades generosas. Frequentemente íamos de bicicleta, ele a pedalar e eu sentado atrás. As terras pequenas têm esta característica, de todos nos conhecermos, para o bem ou para o mal, mas provavelmente para sempre. Por isso o revisor deixava que eu entrasse no comboio e seguisse viagem até à outra paragem da Vila, enquanto o meu fazia o percurso na bicicleta e me recolhia à chegada. Por coincidências da vida, vivo hoje no alto de um prédio com vista privilegiada para uma parte importante da infraestrutura ferroviária de uma grande cidade japonesa, onde o comboio é um meio de transporte essencial no quotidiano de mais de um milhão de pessoas que a habitam, ou de 3 milhões que ocupam a região circundante. Vejo as múltiplas linhas dos comboios locais e regionais, no seu movimento de permanente ligação entre a cidade e as suas periferias, e o viaduto com a linha especial para o “Shinkansen”, o comboio de alta velocidade que liga Hiroshima a Osaca e a Tóquio (a este) ou a Fukuoka (a oeste). Como na maior parte do mundo mais desenvolvido (e ao contrário do que se foi fazendo em Portugal), no Japão não se deixou de investir – e muito – na ferrovia e nos transportes públicos à medida que se foi enriquecendo. Da minha varanda tenho sobretudo ampla vista sobre toda a plataforma logística intermodal para a circulação de mercadorias. Já só vejo a carga pronta e metida nos contentores mas posso adivinhar esses conteúdos e observar como chegam e como partem os objectos destes tráficos permanentes e sistemáticos, as longas composições de carruagens em movimento lento em partida ou chegada, a ligação aos camiões e carrinhas que fazem a ligação com a cidade, a intensidade desta circulação que marca também o ritmo da economia. Talvez por isso me tivesse surpreendido esta paisagem nas semanas iniciais: o movimento era pouco ou quase nenhum, os contentores alinhados e imóveis pareciam inúteis, aquela imensa infraestrutura parecia desproporcionada, desnecessária e despropositada pela sua inutilidade. Era, afinal, apenas mais um sintoma da omnipresença deste vírus que condena o planeta à imobilidade: com lojas e restaurantes fechados, indústrias remetidas a serviços mínimos e uma economia de mercado em que os mercados fecharam, nenhumas razões havia para meter barcos ao mar ou contentores nos carris. Foi preciso esperar mais de um mês, até a cidade e o país começarem gradualmente a levantar as restrições à mobilidade, para testemunhar desde a varanda a azáfama habitual do comércio de mercadorias em larga escala, as sucessivas transfusões de produtos diversos que nos vão satisfazendo o quotidiano. Não há como olhar para os comboios para ver como vão as economias. Não foram só as cargas, os contentores e as logísticas associadas: foram também as pessoas que voltaram a encher as composições do “Shinkansen”: aumentou o número de carruagens e observo como vai gente sentada em quase todas as janelas, depois de semanas a ver passar comboios tristes e vazios, mas ainda assim em movimento para este e oeste. Os comboios locais e regionais também ganharam súbita nova vida, as estações estão cheias, as pessoas voltam a circular para escolas, empregos e lazeres, ainda que não se baixe totalmente a guarda e se mantenham as diligentes e protectivas máscaras a tapar os rostos. Há mais para ver, no entanto, nestas grandes estações ferroviárias, comuns na Ásia, que as empresas de transporte transformam em grandes espaços comerciais para ajudar a financiar o custo da mobilidade. À medida que os comboios recuperavam a actividade habitual, reabriam também as largas dezenas de restaurantes e lojas da estação principal de Hiroshima e voltava a actividade aos dois imponentes hotéis ali instalados, com o movimento de automóveis e autocarros a assinalar o lento regresso do turismo. Um turismo doméstico, é bom de ver, que apesar de se ter reduzido a propagação do vírus até valores quase nulos, não é ainda caso para se abrir fronteiras ao turismo internacional. Parece que na Europa se vêm as coisas de outra maneira – mas desde o início desta pandemia que os exemplos que vêm da Europa são pouco menos que aterradores.
Manuel de Almeida VozesSolilóquio mudo Sim, na minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite Clarice Lispector (1920 – 1977) [dropcap]H[/dropcap]á uma melancolia guardada nos olhos da população. Incomoda-me ver as pessoas de olhos baixos –excluídas da vida. Sou um leitor de olhares. Ensinou-me uma voz amiga. Não há estímulos, sensações, não se vive, estamos soterrados. Há um grande desassossego. Não falam deles – trocam palavras, não ideias – falam do Outro. Falam das desilusões do Outro, das obsessões do Outro, dos seus pensamentos, dos seus erros. Não é o seu conhecimento que eleva a sua opinião, é a sua ignorância. Não sabem gerar pensamento ou estimular o debate de ideias. Não são eles é o Outro. E quem é o Outro? É conciliador e dialogante, mas falta-lhe decisão, determinação e coragem – não se rende e nunca desiste. “O Homem não é mais do que a série dos seus actos” – como afirmava o filósofo alemão Georg Hegel (1770 – 1831). A Arte de desconversar é mesmo um fim em si – é uma arte! Criticam por o burro ir ligeiro e eles a pé. Surpreendem-me através da ocultação de conversas, ligadas ao imaginário do Outro, produzindo um jogo de tensão e reflexão entre o visível e o invisível. Mas todas essas conversas combinam uma boa dose de paixão, amor e obsessão. Existe o medo de dizer uma mentira, não a verdade. Não há inocência nas conversas, há sobrevivência. Vivemos de apontamentos. Bisbilhotice e má língua criticam uns, outros falam em difamação e vingança. E, em lugar da distância, descobrimos a proximidade. Aceitam a plácida contrariedade e a crença nas virtudes da modéstia. São almas dedicadas a ser governadas pela vida alheia. A crise que vivemos não explica tudo. Explica as falhas humanas, as ambições, todas as assimetrias, comportamentos, maldades, erros. Faltou capacidade para prevenir e remediar – não remendar -a crise. Os governos mundiais, fora raras excepções, são metáforas da crise. Gosto desta gente, queixa-se tão pouco, mas há gritos nas trevas – a rua quando espreita assusta, o medo e a solidão, começaram a fazer parte do nosso alfabeto, os dias ganham cor, ainda guardamos memórias de luz e sombra. Há um crítico(ar) da erosão, um simples percalço não um fim. Sobre a solidão, “não é estar só é o estar vazio”. Há um texto lindíssimo de Rainer Maria Rilke (1875 – 1926) que diz o seguinte: “Devemos permanecer silenciosos e solitários e pacientes para acolher em nós a graça de uma hora que a muitos não chega a revelar-se, porque neles há demasiado rumor e uma escassa ordem. Tudo depende afinal, de aprender a ligar-se àquilo que é grande, àquilo que vivemos apenas no coração e que nada pode turbar. Se nestes momentos de grande recolhimento e elevação compreendemos que a vida está naquilo que, palpitante e solene, se move em nós e nos deslumbra com lágrimas que brotam do profundo mais luminoso, então a modesta confusão que nos circunda ainda, o ordinário e o turbulento que corre não poderão já fazer-nos desanimar”. O destino pode ser rumo, mas também fado – palavras obedientes -, não gostamos de coisas que nos fazem sofrer, precisamos de nos perder para nos encontrar. Vivemos muito à superfície, precisamos de uma vida que decline o medo, o silêncio – como dizia o poeta Cristovam Pavia “só há uma saída pelo fundo”.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesExteriorizando sexo [dropcap]S[/dropcap]exo em pé, no tapete, no lavatório ou na banca da cozinha. As pessoas na cama, não são as mesmas fora dela. Há vários factores que influenciam esta dinâmica. No mês do orgulho LGBTQI+, esta discrepância torna-se mais óbvia. Muita gente não consegue gozar de liberdades plenas para se entreter com os prazeres da cama, muito menos assumi-las fora das quatro paredes de um quarto. Ou até fora das paredes de uma casa: pode não haver espaço para as formas de expressão lá fora, para viver o sexo que nos faz mais sentido. Ainda se sabe e se sente a pouca aceitação da diversidade sexual, até em países liberais. Nota-se também a persistência em não se falar sobre sexo. A ideia que as pessoas têm do sexo e a forma como as pessoas fazem sexo e têm prazer com isso, continua a ser muito alienígena em muitos contextos. Nestes anos de escrita sobre o sexo tenho-me familiarizado com, e divulgado a literatura sexual que o mundo nem sempre acompanha. Porque perceber o estado da sexualidade fora da cama, e fora de casa, é ainda uma missão muito pertinente, se quisermos atacar as desigualdades associadas a ela. A educação sexual teria um papel muito importante em desmistificar as assumpções retrógradas que o sexo ainda tem. Mas a educação sexual é um produto socio-político e, por isso, pode estar revestido de ideologias partidárias. Não assumem uma posição humana, quiçá, universal, do prazer. Nestes programas, a enfase continua a ser na contracepção, ignorando por completo o prazer. A masturbação é tabu, o orgasmo é tabu. Puxando pela procriação, o prazer do sexo torna-se tabu. E essa tendência de deslegitimar o sexo continua a ser um tópico preocupante, mas deveras interessante, desde que entrou na esfera pública, com Freud. A psicanálise não foi bem recebida em muitos contextos, apesar do seu vocabulário ter sido apropriado pelo senso-comum. Muitas das ideias chave, para a época, e ainda agora, são difíceis de ser digeridas. Isso acontece porque nos afastámos do sexo desde há muito tempo, e tornámo-lo num artefacto exterior à vida, de forma utilitária e descartável. Deixámos de perceber o sexo e o corpo, que sabe de desejo, para trás. Reinam-se as vidas humanas no dualismo cartesiano persistente. Preza-se tudo o que acontece com a razão, inteligência e pragmatismo, mas nunca com o corpo. O corpo que talvez sinta de formas que não nos são inteligíveis de ser explicadas. As ideias que começaram com Freud ainda são polémicas e suscitam interesse porque o sexo ainda tem esse caracter incompreensível. Aliciando o comum mortal com ideias e sensações pelas quais nunca passámos antes. Este potencial do sexo raramente salta para o exterior. Porque ainda não soubemos como fazê-lo. Da mesma forma como criamos divisões entre o corpo e a mente, criámos divisões entre o sexo e tudo o resto, desvalorizando a forma como o sexo afecta as nossas identidades, as nossas formas de estar com a vida, a forma como encaramos o prazer num mundo progressivamente mais competitivo e rápido. Claro que podem existir algumas orientações de como contornar esta tendência, mas não devem ser confundidas com receitas de fácil aplicação. O caminho pode ser lento e longo guiado pela honestidade e simplicidade do prazer. Exteriorizar o sexo dentro dos nossos eixos de significado é um processo tão simples que se torna deveras complexo, com todas as forças que nos obrigam a contrariar aquilo que de mais puro o sexo tem para oferecer.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPatentes e açambarcamento [dropcap]R[/dropcap]ecentemente o jornal Guardian informou que os Estados Unidos tinham adquirido uma grande quantidade de Remdesivir, um medicamento para tratamento da covid-19, tendo provocado a indignação da comunidade internacional. O Remdesivir é fabricado por uma farmacêutica americana, a Gilead Sciences, Inc. O Guardian salientava que os EUA tinham comprado mais de 500.000 doses, o que equivale à quase totalidade da produção da empresa durante os meses de Julho, Agosto e Setembro. O açambarcamento tornou o medicamento indisponível para o resto do mundo. Depois da publicação da notícia, e da confirmação da fidedignidade das fontes, a Organização Mundial de Saúde (OMS) assegura que todos os membros irão ter igual acesso aos tratamentos. Embora os EUA tenham anunciado que abandonavam a OMS, a organização continua a cooperar com os Estados Unidos. No momento em que escrevo este artigo, ainda não havia confirmação dos resultados da OMS, mas o Secretário de Estado Norte-Americano Para a Saúde e Recursos Humanos, Hazard Alex Azar, afirmou que Trump tinha chegado a um acordo para assegurar que as farmacêuticas americanas iriam obter autorização para serem as primeiras a colocar no mercado medicamentos para combater o novo coronavírus. O modelo dos Estados Unidos é obviamente “Prioridade aos Americanos”, o que exclui as necessidades dos outros países. A compra da quase totalidade da produção do Remdesivir durante os próximos três meses, faz com que os pacientes dos outros países não possam aceder ao medicamento e fiquem com as vidas em risco. As declarações de Alex Azar receberam críticas de diversos círculos políticos e universitários: O primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, afirmou que, se os Estados Unidos continuaram com este procedimento, poderá vir a haver consequências negativas inesperadas. Peter Horby, Professor da Universidade de Oxford, Reino Unido, salientou que o Remdesivir provou ter efeitos benéficos no combate à doença durante a fase experimental, mas que, para além dos Estados Unidos, participaram na experiência o Reino Unido e o México. Ohd Yaqud, lente sénior da Universidade de Sussex, Reino Unido, afirmou que o comportamento dos Estados Unidos indica a falta de cooperação com outros países e organizações, que terá como consequência um arrefecimento das relações internacionais e afectará acordos e direitos de propriedade intelectual. O açambarcamento do Remdesivir pelos americanos, faz-nos temer pela saúde dos pacientes de outros países. Sem este medicamento, como é que os médicos podem garantir o tratamento dos doentes? O Reino Unido e o México sentem-se particularmente lesados porque participaram na pesquisa e na experimentação do Remdesivir. A experência foi bem sucedida, mas estes países não têm acesso ao medicamento. Esta atitude revela a pouca consideração que os Estados Unidos têm pelas vidas dos cidadãos dos outros países. Sabemos que cada vida é única e que não pode ser substituída, não é ético escolher os que vão ser salvos e os que serão condenados. Se esta atitude for sancionada vai imperar a lei do mais forte e a convivência pacifíca entre os seres humanos chegará ao fim. Claro que os medicamentos são um caso especial. Muitos países têm legislação que proibe a exportação de medicamentos em situações de epidemia, para garantir que todos os seus cidadãos tenham acesso ao tratamento. Neste caso, os Estados Unidos compraram todo o stock, não lançaram mão da legislação para proibir a saída do medicamento. Este comportamento dos Estados Unidos não tem precedentes. O problema é urgente e tem de ser resolvido. O Remdesivir não vai estar disponível fora da América. Ainda vai levar tempo até se descobrir uma vacina. Se a vacina for descoberta nos Estados Unidos, nada nos garante que o mesmo não volte a acontecer. Existe alguma forma de resolver o problema da distribuição de medicamentos? Uma das formas mais eficazes seria estabelecer um sistema de “licenciamento obrigatório” que facultasse a todos os países a produção do Remdesivir para abastecer as suas populações. E isto teria de se verificar, quer a Gilead Sciences, Inc. desse ou não o seu consentimento. Seria uma permissão legal para a produção mundial do medicamento. É claro que teriam de ser pagos os direitos à Gilead. Falta saber que percentagem estabeleceria. A questão chave da lei de protecção da propriedade intelectual é a garantia dos direitos sobre a invenção. Os inventos devem estar disponíveis ao público, em qualquer parte do planeta. O novo produto pode continuar a aperfeiçoar-se e renovar-se. É claro que este novo produto deve ser devidamente pago. Sem um pagamento adequado, todos os recursos e tempo que o cientista investiu teriam sido em vão. A cópia e o uso indevido da invenção constitui uma violação da lei de propriedade intelectual. Para proteger os inventores criaram-se as patentes, que devem ser compradas por quem quiser produzir os produtos. O seu valor deve ser calculado de forma equilibrada de maneira a incentivar a criação e a produção global. Esta nova epidemia tornou-se um problema a nível interenacional. É compreensível que os países que queiram produzir o Remdesivir paguem a patente à Gilead. Para os países, será sem dúvida um enorme fardo económico o pagamento continuado de patentes muito altas até que a epidemia termine. No entanto, o estabelecimento de uma patente baixa fará crer que a indústria farmacêutica não é capaz de garantir os lucros do sector. Se isto vier a acontecer, de futuro, os cientistas e a indústria não estarão dispostos a investir mais recursos na busca de novos medicamentos para combater a pandemia. A procura de um preço razoável da patente é um problema complexo. Novos medicamentos podem tratar doenças novas, mas os novos medicamentos têm de estar protegidos por uma patente. As patentes destinam-se a assegurar o lucro da indústria farmacêutica. O licenciamento obrigatório para a produção do Remdesivir pode ajudar a solucionar o actual problema de falta de stock, mas permanece a questão de como calcular o valor da patente. Se não se estabelecer um valor razoável, a pesquisa da vacina contra o novo coronavírus será afectada e a data da vitória da Humanidade sobre a covid-19 pode vir a ser adiada. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk