Quarentena

[dropcap]P[/dropcap]assar por uma quarentena só na aparência significa quedar-se encerrado num quarto sem janelas e contacto físico com o exterior. Uma quarentena é, sobretudo, uma odisseia interior. Esqueçam o espaço, as geografias ignotas. Hoje dou por mim velejador solitário, errante num mar interno, sem bússola ou GPS, ignorante das rotas, sob um apagado céu, que a razão desconhece. Não há final nem destino. Só um tempo circular, lento e espiralado, que se impõe como amigo em tão parca expedição. E, na surpresa dos percursos, quantas ilhas, quantos monstros, quantas deusas, quantos sustos, que desertos, que aldeias, se expõem nesta nave à deriva sem recursos? As horas derretem-se lentamente de encontro às paredes brancas. Moby Dick! — Afasto estas ideias!

Sou eu, mas sou também, mais que nunca, o que me observa e me julga, o que fero me aquilata e questiona as acções. Estas parecem agora longínquas, como se outro as tivesse cometido. Quem era aquele que lá fora, mergulhado na cidade descrente, andava e falava e duvidava? Em que estava ele realmente naquela hora metido? Alguma coisa, ainda que ínfima, terá valido um pouco a pena, nessa vida de cisterna, na razão flutuante, no arremesso pedante? Finalmente, o que sou eu, neste preciso instante, e o que posso fazer? Nada. Sobra viver.

De todos esses momentos, lembro com especial horror a frequência do deserto. E chamo deserto ao estado de abulia, de embrutecimento, de erosão da vontade, em que o pensamento se detém no vazio, em que absurdo pairo neste limitado espaço, sem uma ideia, um desejo, um qualquer objectivo. E sou eu, unicamente eu, na amável dor desta constância. Tudo se ergue na distância, mas tudo me advém, sem ter real importância. Fico pasmado na cama, fito o tecto e talvez além dele e sinto que não passo desse olhar prisioneiro. E é daí, desse limite impotente, que emerge o desespero. Bem tenta a razão acalmar, dizer “são só uns dias”, mas ao assim consolar, entendo que tal falar ainda mais me atordoa. “Falas de mais”, resmungo, “ó verso de poço sem fundo.”

E outras vozes se detêm, em cacofonia de sentidos e exclamações abrasivas. Quem aqui fala?! Quem grita, quem se revolta, quem obedece, quem padece e quem esmola pelo futuro?! E abúlico esqueço, recostado no vazio, nas margens daquele rio que, lá fora, insiste sempre passar. E sonho que sou ribeiro, afluente do mundo, em constante devaneio, direitinho ao mar profundo.

Revejo mentalmente os quadros de Hieronymus Bosch e vejo que me relatam: sou aqueles seres ambulantes ou eles deambulam em mim. Sou as visões do inferno, a obra do padre eterno, a mulher oferecida, uma leitura sem fim. Refaço em sobressalto as notas de uma sonata, os dedos pelo piano, o inquieto violino. E descubro, naquele tom de avidez, que não a ouvira nunca, salvo este acesso de angústia e danada nitidez. E todos os livros que li, versos que sempre amei, histórias que percorri, ideias que partilhei, se apresentam como ecos de um mundo incompreensível. E resta o sentido vago de um sentido impossível.

Procuro oásis diário, onde erguer a minha tenda, clamo pelo rebanho, que se assume refractário, busco sem cessar a água, a mágoa da salvação. Passaram mais duas horas ou assim reza a clepsidra, tão sedenta de atenção. E, mentalmente, reproduzo esse som que não existe. Pingue sem pongue, somente pingues e os intervalos vazios a marcar a sua vez. E é neles que me sustenho e tento recuperar um laivo de lucidez. Sou, por aqui afinal, o portador dessa luz, a chama infatigável de uma vela descartável, que impiedosa se assombra do meu risível engenho. E de novo, na abulia da cruz, só pasmado me detenho.

Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Mas não é esta janela tão irreal como o ecrã por onde deslizo a esmo e nesse passo me encontro dotado a mais de mim mesmo? E não será a loucura esse mero transbordar? Que parte de mim é essa, em espuma pelo chão, que me esqueci de limpar? Acordo e lavo tudo, inundado de pudor. E saio da abulia, no riso de quem a si já não fia e, finalmente, abre a porta que ficara esquecida no fundo de um corredor.

Lá fora, ao que parece, chora o vento e tomba a chuva. Nenhum tufão se compara ao mal que aqui assoma, à desordem embutida num cérebro quase doente e temente da retoma. E, demente, danço o tango, danço o samba e o bolero. Com companheira invisível, marco os passos, afino as voltas e expurgo o desespero. Será hora de jantar? Fica o tempo, a contradança, a resumir a criança que, por instantes, regressa. Não quero. Não tenho pressa. Só uma sede me abrasa, ao longo destas jornadas. Sonho que volto a casa e em leito ínvio me deito, rodeado de camélias e velas amordaçadas.

Um dia, ainda outro, outro dia se acumula. Maldigo a água do rio, que livre se entrega ao mar. E eu, fechado, sou lago em que teimo navegar. Já não dou pelo poente, só tenho olhos pr’á foz, extingue-se aquela voz, o suplício final de um destino amargurado. Telefono para o jornal. “Está lá”, questiono. “Sim. Está cá.” Desligo mais descansado. Um dia, ainda outro, outro dia se acumula…

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