Vacinação | Taxa em Macau ronda os 94 por cento

A grande maioria das crianças do território está vacinada. Nos últimos 29 anos, houve apenas um caso de sarampo. Há várias maleitas que, na última década e meia, foram tidas como erradicadas pela Organização Mundial de Saúde. Macau sai bem no retrato mundial da prevenção das doenças transmissíveis

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ortugal tinha, à hora de fecho desta edição, 25 pessoas infectadas com sarampo, uma doença que tinha sido erradicada em 2016 depois de um longo período em que os únicos casos detectados tinham sido contraídos no estrangeiro. Só este ano, contaram-se já 95 doentes com o vírus. O país não é caso único: há um surto na Europa que atinge, pelo menos, outros 18 Estados.

A morte de uma jovem portuguesa de 17 anos, na semana passada, com complicações originadas pelo facto de ter sarampo, reacendeu uma polémica que, para a grande maioria, não faz qualquer sentido: há quem opte por não vacinar os filhos, temendo os efeitos secundários da administração de vacinas. Outros fazem-no por convicção de natureza religiosa. No caso da adolescente que morreu, as notícias dão conta de que não tinha sido vacinada por motivos de saúde.

A comunidade médica internacional não tem dúvidas sobre as vantagens das vacinas, desde que haja condições clínicas para a sua administração. Foi a aposta na prevenção que permitiu diminuir drasticamente o número de casos de sarampo, de tosse convulsa ou da devastadora poliomielite. Ainda assim – e à semelhança do que acontece com a administração de antibióticos e de outros medicamentos –, há quem ofereça resistência às vacinas que os governos disponibilizam. Nos Estados Unidos, a questão é muito discutida. A taxa global de vacinação do país ronda os 90 por cento. Nalguns Estados, são obrigatórias, mas há excepções para quem alega questões religiosas.

Em Macau, também há casos de pessoas que preferem não vacinar os filhos. Mas são poucos aqueles que Jorge Humberto, pediatra no território desde 1982, encontrou ao longo da sua vida profissional. “Tive um ou outro caso de um pai ou de uma mãe que mostraram desinteresse em vacinar os filhos, mas não uma verdadeira aversão”, conta ao HM. As reticências resolveram-se com uma conversa, “conseguiu-se que as crianças fossem vacinadas”.

Isabel Marreiros, educadora de infância e directora da Santa Casa da Misericórdia, tem a mesma experiência do pediatra. “Normalmente, em Macau, os pais são conscienciosos”, atesta.

Esta consciência em relação à importância da prevenção tem tradução numérica: de acordo com dados facultados ao HM pelos Serviços de Saúde de Macau (SSM), a taxa de vacinação das crianças do território anda perto dos 94 por cento, o que significa que “já atingiu o nível de vacinação estabelecido pela Organização Mundial de Saúde”.

Ainda assim, o Governo entende que a taxa deveria ser maior. Acontece, porém, que existe o factor mobilidade: alguns recém-nascidos que não são residentes locais regressam ao local de origem dos pais após o nascimento. Não se vacinam em Macau, mas mesmo assim estão incluídos no grupo de naturais da cidade, entrando directamente para as estatísticas.

Obstáculos do passado

Quando Jorge Humberto chegou a Macau, para vir trabalhar para o hospital público, já havia muitas das vacinas que hoje existem, mas faltava “uma determinação superior” em relação à matéria. “Houve até algumas vacinas que foram iniciadas nessa altura, que não faziam parte do programa, e que foram entrando, pouco a pouco, no que é hoje o plano actual.”

Os registos históricos sobre a matéria permitem perceber que a população do território – ou parte dela – começou a ser vacinada em 1840. A prática da imunização começou, na medicina ocidental, no final do séc. XVIII, com a invenção da vacina contra a varíola, que terá chegado aqui também. O programa de vacinação mais completo, explicam os SSM, data de 1982.

Jorge Humberto recorda, dos primeiros tempos de actividade profissional em Macau, certos obstáculos à inovação. “Tivemos alguns problemas da parte da direcção do hospital quando começámos a querer introduzir a vacina para a hepatite B. Tive algumas ‘pegas’ com o director do hospital para o convencer que era necessário institucionalizar a introdução desta vacina”, diz o pediatra, que conheceu muitas crianças com a doença.

O médico conseguiu ver a sua pretensão concretizada. “A partir de certa altura, tornou-se oficial e passámos a dar a vacina da hepatite B a todos os recém-nascidos, da mesma maneira que se dá a BCG contra a tuberculose.” Os dados oficiais explicam que, neste momento, a taxa de vacinação dos recém-nascidos é de 99,7 por cento.

“Guerrinhas houve sempre na aplicação das vacinas mas, pouco a pouco, as instituições foram tomando uma posição, assim como a própria população acaba por aceitar”, constata Jorge Humberto. “De vez em quando aparece um ou outro que se arma em valente, ‘eu não quero dar vacinas ao meu filho’. Mas isto tudo acaba por se vencer.”

Doenças erradicadas

Médico desde 1974, o pediatra lembra-se bem do tempo em que havia muitos casos de papeira, de tosse convulsa, de tuberculose – que “atacava meio mundo” –, de poliomielite também. “Depois foram desaparecendo de circulação. Não vejo uma poliomielite ou uma tuberculose porque as crianças estão vacinadas.” No que toca ao sarampo, os SSM contabilizaram um caso nos últimos 29 anos. “Quanto mais a medicina puder fazer no sentido de evitar esta ou aquela doença, melhor para a criança, melhor para o médico, melhor para todos nós”, afirma Jorge Humberto.

Macau obteve a certificação da erradicação da poliomielite, pela OMS, em 2000. Oito anos depois, foi emitida a acreditação de controlo da hepatite B em crianças, já que a taxa de infecção era inferior a um por cento entre a população com idade igual ou superior a cinco anos. Em 2014, a RAEM obteve a certificação da erradicação do sarampo.

Em 2001, “foi feito um reforço dos cuidados primários de saúde com a criação do Centro de Prevenção e Controlo da Doença”, indicam os SSM. É esta a entidade responsável pela prevenção de doenças transmissíveis e do planeamento do programa de vacinação, em articulação com os centros de saúde.

No ano passado, o programa de vacinação da RAEM resultou na administração de vacinas a 212.262 pessoas. O programa de vacinação antigripal de 2016 a 2017 chegou a 98.040 pessoas.

Serviços de Saúde dizem que plano é abrangente

As vacinas no território são gratuitas para as crianças residentes. As que têm de pagar para poderem ir ao encontro do que está definido no plano de vacinação são em “número muito reduzido”, garantem os Serviços de Saúde de Macau (SSM). “As pessoas que não sendo residentes ou sejam apenas visitantes de Macau podem aceder, por conta própria, à administração de vacinas”, esclarecem em declarações ao HM.

De acordo com as explicações do SSM, o programa de vacinação da RAEM “está no nível dos países mais avançados”. Na comparação com as regiões vizinhas, “verifica-se que os tipos de vacinas existentes em Macau são em maior número, além de que a cobertura, a título gratuito, é também mais abrangente”.

Neste momento, o programa de vacinação de Macau inclui 13 tipos de vacinas. Entre elas encontram-se as mais comuns – tuberculose, hepatite B, tosse convulsa, tétano, difteria, poliomielite, sarampo, rubéola e papeira –, e também vacinas para prevenir doenças como “streptococcus pneumoniae, haemophilus influenzae bacilos (que causa meningite infantil), varicela e cancro do colo do útero”.

As crianças que frequentam creches e estabelecimentos de ensino em Macau devem cumprir este plano de vacinação – à excepção daquelas que, por razões de saúde, não podem ser imunizadas. Isabel Marreiros, directora da Creche da Santa Casa da Misericórdia, explica que “existem instruções, através dos SSM, para que as crianças tenham o quadro vacinal em dia para poderem começar a frequentar a creche”.

A instituição recebe bebés com apenas seis meses de idade que “têm um quadro vacinal diferente de uma criança que entra com dois anos”. É aqui que adquire relevância a questão da imunidade de grupo: ao meio ano de vida, ainda não foi possível tomar uma série de vacinas que já terão sido administradas a crianças mais velhas. Quanto maior for a imunidade de grupo, mais garantias se oferece a quem ainda, por uma questão de idade, não pôde ser vacinado.

“Temos enfermeiras na creche que vão acompanhando a actualização do quadro vacinal da criança. No momento em que se detecta uma falha, avisamos os pais para a colmatarem”, acrescenta Isabel Marreiros, que não se tem deparado com casos em que os pais não cumpram as regras.

Segundo as explicações dos SSM, desde 2014 que os centros de saúde enviam anualmente às escolas técnicos que procedem à administração das vacinas. Mais recentemente, começaram a ser administradas vacinas contra o cancro do colo do útero às alunas do 12.o ano de escolaridade, sendo que a taxa de vacinação é de 92 por cento.

As novas doenças

Com uma vasta experiência no ensino, a trabalhar há quase 40 anos, Isabel Marreiros observa uma significativa evolução no cenário das doenças infecto-contagiosas que, por força da vacinação, foram desaparecendo. Apesar de haver falhas quando o programa de vacinação foi criado e de nem todas elas serem gratuitas, havia muitos pais que estavam dispostos a pagar precisamente por causa da saúde das crianças.

Nos primeiros anos de trabalho da educadora de infância, a dimensão da população ajudava a que o controlo fosse mais fácil. Hoje em dia, a situação é mais complicada, pelo que a vacinação adquire ainda uma maior importância. É que há todo um outro conjunto de doenças transmissíveis que ainda não é possível prevenir.

“As crianças vão de férias, trazem bactérias e vírus que ainda não se manifestaram, chegam à creche e transmitem-nos, proliferam de uma maneira incrível, porque não é controlável. Nestas doenças, o que acontece é que, logo no primeiro caso, avisamos imediatamente os pais, fazemos uma desinfecção total da sala, para não dar azo a que evolua mais”, refere.

Quanto ao que já é possível evitar, os Serviços de Saúde garantem que é para continuar a cumprir “o compromisso com a sociedade para a prestação de um serviço completo e de alta qualidade no âmbito da vacinação pública”, para que não regressem os fantasmas de doenças que, no passado, “eram muito comuns”, como a poliomielite, a difteria e a tosse convulsa.

1 Mai 2017

Reportagem | Os rostos por detrás do investimento do Pearl Horizon

Afirmam que não são ricos. Uns são engenheiros e advogados, outros são reformados e comerciantes. Venderam o que tinham para comprarem uma casa melhor. Quem adquiriu apartamentos em regime de pré-venda no edifício Pearl Horizon, cujo terreno o Governo quer reaver, não sabe o que esperar do futuro

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á cinco anos, o mercado imobiliário parecia promissor. Os empreendimentos no Cotai estavam a ser construídos a todo o vapor e comprar uma casa era visto como o investimento mais acertado a fazer. Na zona da Areia Preta, o edifício Pearl Horizon prometia casas de luxo com vista para a China.

Chan, que trabalha na produção de tofu, nem pensou duas vezes. Ele e a mulher decidiram que era altura de aplicar as poupanças de uma vida. “Quando decidi comprar o apartamento, pensava que o preço das casas ia aumentar continuamente e que o promotor [Polytec] tinha capacidade para fazer o projecto. Não sabia muito sobre a lei, e decidi vender a minha casa antiga para dar a entrada na nova casa”, contou ao HM.

O empréstimo foi pedido e autorizado. O sonho de ter um andar de luxo para si e para a sua família desfez-se alguns anos depois. “Agora tenho de pagar mais de 30 mil patacas por mês ao banco, nem sei quando é que acaba o meu empréstimo. Não tenho qualquer esperança”, assume.

Se os dias de Chan se tornaram agitados, as noites transformaram-se num pesadelo. “Acordo sempre de madrugada e não consigo dormir. Só resta um vazio, para mim tudo isto é como se fosse o fim do mundo.”

Dias hipertensos

Desde que o Governo decidiu reverter o terreno concessionado à Polytec, após ter terminado o prazo de 25 anos de concessão, que as noites dos que compraram as casas em regime de pré-venda se transformaram num pesadelo. Vários investidores que falaram com o HM têm um discurso semelhante: os comprimidos para dormir tornaram-se nos seus melhores aliados.

Sam começa a falar e mostra de imediato todo o arsenal de comprimidos que toma diariamente. As lágrimas caem-lhe do rosto. “Comecei a tomar isto há um ano. Vou à clínica por ter o tratamento gratuito, mas já me disseram que não conseguem curar as minhas doenças e querem passar-me para o Centro Hospitalar Conde de São Januário. Tenho hipertensão e problemas de coração.”

Esta reformada de 60 anos, com quatro filhos, pensou que poderia ter uma casa com as poupanças que conseguiu juntar, mais a ajuda dos filhos. “Agora perdi a casa que tinha e os meus filhos não me vão ajudar a pagar o empréstimo, porque têm de pagar a renda das casas onde vivem. Neste momento tenho uma mensalidade de 30 mil patacas.”

Actualmente, Sam vive com mais quatro pessoas numa casa. Dos quatro filhos, dois ainda estão a estudar. Um deles divorciou-se há pouco tempo e precisa de sustentar a filha.

“Somos vítimas”

A Lei de Terras entrou em vigor em 2013 e poucos adivinhavam o que iria suceder. O Governo e os deputados à Assembleia Legislativa (AL) aprovaram o diploma sem que tenha ficado escrito, preto no branco, o que iria o Executivo fazer no caso de ser o responsável pela falta de aproveitamento dos terrenos concessionados. Havia o passado Ao Man Long e os anos de inércia que se seguiram: quem trabalhava no sector queixava-se publicamente da incapacidade de decisão no seio das Obras Públicas. A apatia que se apoderou de quem tinha de dar andamento a plantas e projectos chegou a ser amplamente debatida na AL.

Nalguns terrenos que, nos últimos tempos, o Governo tentou recuperar, já estavam a decorrer construções, muitas poupanças já estavam a ser investidas, à espera das chaves que iriam mudar vidas.

Sonny é engenheiro e clarifica de imediato: “Nenhum de nós que está aqui é rico, não somos ricos”. Sobre o caso Pearl Horizon, Sonny lamenta que exista a ideia de que quem teve dinheiro para avançar para a aquisição das fracções tem hoje uma vida sem preocupações financeiras.

“Decidi comprar a casa para a minha filha, que ainda está na universidade. Nós é que somos as vítimas de tudo isto. Vendemos casas, pedimos dinheiro emprestado ao banco e muitos de nós ficaram na rua”, vinca. “Ainda estou a trabalhar, ganho cerca de 20 mil patacas por mês e vou precisar de pagar a educação da minha filha.”

Sonny afirma que este foi o caso que mais o fez sentir-se desiludido em relação ao Executivo. “O Governo não nos deu qualquer resposta e não toma uma decisão sobre o que vai fazer. Isso é lamentável. Respeitamos a lei para comprar esta casa, pedimos ajuda a um advogado, mas o Governo ainda vem dizer que temos de cumprir a lei. Não tem em consideração as necessidades das pessoas”, acusa.

Este engenheiro aponta o dedo também aos deputados. “Foi a Assembleia e o Governo que criaram esta lei e que a aprovaram, mas não tiveram em consideração o que poderia acontecer. Deviam ter pensado no futuro das pessoas. Sei que uma mulher morreu há cerca de três meses por causa disto, mas o Governo nunca teve essa percepção.”

Ir à confiança

No debate mais recente da AL, na semana passada, a Lei de Terras voltou a ser tema central de uma discussão que durou quase duas horas. Um pequeno grupo de investidores do Pearl Horizon foi ao hemiciclo em representação das 300 famílias que estão envolvidas no caso. Delia foi uma das pessoas que aplaudiu todas as intervenções dos deputados.

Filha de um casal que tem uma empresa de importação de roupas de grandes marcas do mundo da moda, Delia chegou a trabalhar no Reino Unido e não entende como é que a implementação de uma lei pode originar um problema desta natureza.

“Quando decidimos comprar um apartamento no Pearl Horizon sabíamos que a Polytec é uma empresa listada na bolsa de Hong Kong, e que já tinha construído vários empreendimentos em Macau. Eu própria vivo num prédio construído pela Polytec. Em 2011 foi feito o primeiro pagamento. Naquela altura todos queriam comprar uma casa e muitos estavam a investir”, recorda Delia.

“Em todo o mundo, quando se decide comprar uma casa, é o mesmo sistema. Seguem-se as regras, contrata-se um advogado. A minha família confiou no projecto e no sistema jurídico”, disse ainda.

Choi sabia que comprar uma casa quando o edifício ainda não está totalmente construído poderia ser um risco, tinha conhecimento de casos antigos. Ainda assim, avançou. Tudo apontava para um investimento com um final feliz.

“Sabíamos dos problemas que podiam acontecer com as fracções e perguntámos quando é que poderíamos ter a nossa casa. Quando nos confirmaram a data do início das obras, decidimos comprar. Não percebíamos nada de leis, mas pedimos ajuda a um advogado e o Governo recebeu os nossos impostos. Achámos que isso seria uma garantia”, notou o investidor.

Choi também chora quando conta todo este percurso, iniciado em 2014. “Perdemos a casa e o meu filho de 27 anos já não tem um sítio para morar. Contribuímos com o nosso dinheiro e as nossas reformas. A culpa não é nossa. Agora só podemos pedir ajuda ao Governo.”

Leong, já idosa, vivia num prédio de cinco andares e quis ter uma nova casa com elevador, para poupar as pernas. “Queria viver com os meus filhos num prédio com elevador. Vendi a minha casa e usei esse dinheiro para pagar a primeira tranche do empréstimo. Mas agora aconteceu isto e não sabíamos nada sobre a concessão de 25 anos.” A idosa não se lembra de história assim: “Nunca pensámos que o Governo iria reverter o terreno. Em Macau nunca aconteceram essas coisas”.

A reformada recorda que antes “havia o medo de que o promotor recebesse o dinheiro das pessoas sem acabar a construção do prédio”. Mas, observa Leong, com a Polytec aconteceu tudo de forma diferente.

“O promotor sempre quis construir o prédio e o Governo decidiu recuperar o terreno. O que vamos fazer com o dinheiro que já gastámos? Gastámos o dinheiro que juntámos toda a vida. Estou a falar com as mãos a tremer, comecei a ter problemas de coração”, disse.

Com o processo do Pearl Horizon ainda em tribunal, o Governo afirma nada poder fazer, embora as críticas não parem de chegar. No último debate na Assembleia, vários deputados falaram da falta de tecto de muitos, dos problemas de saúde que se acumulam, de pequenas tragédias que vão acontecendo. Os representantes do Governo disseram apenas que, até ao momento, nenhum pedido de apoio psicológico chegou ao Instituto de Acção Social. Mas do outro lado, a realidade é outra, sem que haja quaisquer perspectivas de futuro ou de recuperação do dinheiro investido. Muitos já deixaram de pagar os seus empréstimos aos bancos, desconhecendo-se a reacção da banca a este episódio que mudou a vida da sociedade e com impactos difíceis de calcular para a própria economia.

7 Abr 2017

Reportagem | Faltam psicólogos forenses em Macau

Há falta de psicólogos de justiça no território. A falha assume maior relevância quando chegam aos tribunais crimes de natureza sexual que envolvem menores. A Assembleia Legislativa está a rever o Código Penal, mas a qualidade da perícia local não parece ser uma preocupação

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau não tem, que se saiba, psicólogos forenses, uma especialidade da psicologia clínica que faz a ponte para a justiça e que pode ser um contributo da máxima importância para os casos que envolvem crimes de natureza sexual. A falha é detectada por vários operadores de Direito com quem o HM falou.

O retrato que aqui se faz acerca desta especialização profissional em Macau é o possível: ou não recebemos resposta a perguntas colocadas há mais de uma semana, ou as respostas são vagas.

Numa troca de emails sobre o assunto, a Associação de Psicólogos de Macau (APM) explica que há membros da organização que são chamados pelos tribunais para a realização de perícias, mas não faz qualquer referência às competências técnicas destes profissionais.

“A nossa associação tem membros que trabalham como psicoterapeutas que poderão ser convidados pelos tribunais como peritos”, diz a presidente da APM, Cintia Chan. “Também temos associados que trabalham em departamentos jurídicos que providenciam serviços de aconselhamento aos funcionários da frente.”

Questionada acerca da formação específica destes psicoterapeutas, a responsável pela associação não se pronuncia. “Tanto quanto sei, há dois psicólogos na Polícia Judiciária (PJ) no campo das investigações criminais, mas nenhum deles é membro da APM”, indica apenas.

O HM tentou, junto da PJ, perceber se estes psicólogos, mencionados por Cintia Chan, têm algum tipo de preparação na matéria, mas a Judiciária não respondeu à pergunta que lhe tinha sido colocada: tem esta polícia psicólogos de justiça? No esclarecimento enviado, diz-se apenas que “na situação de caso envolvendo menor, a PJ faz a devida informação à Direcção dos Serviços de Educação e Juventude ou ao Instituto de Acção Social”.

No site da PJ são especificadas as áreas de trabalho da Divisão de Peritagem de Ciências Forenses, sendo que fica de fora a psicologia. O departamento trabalha em bioquímica, toxicologia, físico-química, balística e documentoscopia. Não há qualquer outra indicação no portal que deixe pistas sobre a presença de especialistas em psicologia forense no seio da Judiciária.

Fazer as vezes

Também os Serviços de Saúde não responderam a tempo da publicação deste texto, pelo que fica por saber com toda a certeza se, entre os profissionais do Centro Hospitalar Conde de São Januário, existem psicólogos forenses ou psicólogos de justiça (definição mais abrangente que inclui não só a avaliação, mas também o acompanhamento posterior). Pelo que o HM conseguiu apurar, não há ninguém com este tipo de formação. No São Januário, existem apenas psicólogos clínicos e há, foi-nos garantido por fonte conhecedora da matéria, psiquiatras que fazem perícia forense. Fica a ressalva da falta de uma confirmação oficial.

O Instituto de Acção Social (IAS) tem um serviço específico de apoio aos tribunais mas, pela resposta que foi dada ao HM, não parece também haver aqui psicólogos forenses, a pergunta específica que tinha sido endereçada e que não foi respondida de forma directa. Por email, fomos informados de que existem no IAS psicólogos “nas áreas da justiça, aconselhamento clínico e educação, e também assistentes sociais com estudos em justiça criminal, etc.”.

Mas, a talhe de foice, o instituto explica que “os relatórios de investigação social que o IAS fornece ao Ministério Público (MP) e aos juízes são redigidos pelos assistentes sociais ou especialistas em aconselhamento”. Esses relatórios, continua, “estão focados principalmente na explicação das relações familiares, apoio social, circunstâncias profissionais ou académicas, situação financeira, etc., das pessoas envolvidas nos casos apresentados”. Não se percebe qual o contributo destes relatórios em termos processuais.

Dada a vagueza da resposta em relação à especialização dos profissionais, perguntámos quantos psicólogos de justiça trabalham no IAS, mas a resposta não chegou a tempo.

Tínhamos ainda questionado o IAS em relação ao papel que desempenha no que toca à perícia em tribunal, na avaliação de arguidos e de alegadas vítimas, em casos relacionados com crimes de natureza sexual. Pela réplica obtida, o instituto presta este serviço apenas no âmbito da reinserção social.

“De acordo com o Código Penal (CP) e com o Código de Processo Penal de Macau (CPP), o Departamento de Reinserção Social sob a administração do IAS é responsável pela implementação de medidas não tutelares e providencia relatórios de contexto social em relação a transgressores, precedentes ao julgamento, em resposta a pedidos dos tribunais e do MP.” O organismo especifica que estes “relatórios de contexto social” podem dizer respeito a reclusos que cumprem pena pelos mais variados tipos de delitos, incluindo crimes de natureza criminal.

Na resposta por escrito, especifica-se ainda que a preparação deste relatórios pode envolver “toda a equipa de profissionais e diferentes inventários”, elencando em seguida uma série de testes usados na avaliação da personalidade de transgressores.

Queixas sem crime

De acordo com o Código de Processo Penal de Macau, “a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”. É no âmbito da perícia que adquirem particular relevância o trabalho e as competências do psicólogo forense.

À semelhança do que aconteceu em Portugal há um par de anos, o Governo decidiu recentemente rever o Código Penal, que data de 1996, em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais. As alterações, que estão a ser alvo de análise em sede de especialidade na Assembleia Legislativa (AL), têm entre os objectivos principais o reforço da protecção de menores. Entre os artigos do CP que sairão reforçados está o abuso sexual de crianças: de acordo com dados fornecidos ao HM pela Polícia Judiciária, só em 2016 foram investigados 11 casos deste tipo de delito, mais de um terço das ocorrências verificadas nos últimos cinco anos (ver texto nestas páginas).

Se foram manifestadas preocupações em relação a crimes como a importunação sexual – a ser introduzido pela nova lei –, com alguns sectores a mostrarem-se preocupados com a possibilidade de falsas acusações poderem levar à condenação de inocentes, certo é que, tanto quanto o HM conseguiu apurar, não foi até agora discutida, no seio da comissão da AL, a qualidade da perícia. Por outras palavras, a lei será em breve reforçada, mas o funcionamento efectivo do sistema não é, aparentemente, uma preocupação de quem legisla.

O abuso sexual de crianças é um dos crimes em que a perícia pode dar um contributo significativo para a decisão tomada por um juiz. Acontece, com alguma frequência, as queixas darem em coisa nenhuma. Os números de Portugal são demonstrativos: em 2014, por exemplo, foram acompanhados mais de 73 mil processos de alegados abusos sexuais de menores por familiares, mas 37.422 foram arquivados.

Não é de todo invulgar que, neste tipo de crime, não existam provas físicas de que tenha sido efectivamente cometido. Os exames médicos não apontam para a existência do delito e não há testemunhas oculares. É neste contexto que a avaliação de um psicólogo forense tem um peso significativo. A perícia evita que, em tribunal, haja uma inversão do ónus da prova e que o arguido tenha de demonstrar a inocência, quando deve ser a acusação a provar a culpa.

O cirurgião certo

Ricardo Barroso, professor universitário em Portugal, é especialista em psicologia clínica e forense, tendo como principal área de investigação o estudo das características e especificidades de agressores, com particular foco em casos de natureza sexual. É ele que nos ajuda a perceber a importância da especialização neste campo da psicologia.

Quando em questão está a palavra da alegada vítima contra o alegado agressor, a participação do perito “é crucial”. “Não cabe ao psicólogo dizer se aquela pessoa é culpada ou não”, acautela. “No fundo, o psicólogo forense é um braço direito, um dos elementos técnicos de apoio à decisão do juiz. O pedido do juiz é, por norma, no sentido de se perceber se o discurso é compatível com os factos.” Ao psicólogo compete averiguar, “através de um conjunto de técnicas e de estratégias”, se o discurso da vítima, por exemplo, “é compatível com os factos da circunstância de abuso sexual”. Por outras palavras, o psicólogo forense ou de justiça averigua sobre a veracidade dos factos.

Esta averiguação é feita com recurso a entrevistas especializadas, “não pode ser uma entrevista qualquer, tem de ser focada”. No caso de abusos sexuais de crianças, exemplo utilizado por Ricardo Barroso, o processo começa com uma entrevista aos pais, sendo que, utilizando “um conjunto de estratégias muito específicas”, é avaliado também “o ajustamento global da criança”. “Há também uma avaliação dos sintomas e das dinâmicas que possam acontecer, uma avaliação do apoio familiar, uma avaliação do risco, se for esse o caso, e o que fazer”, continua o especialista.

“O protocolo dos casos de abuso sexual é muito específico. Para se chegar à conclusão de que o discurso da vítima é compatível com a circunstância ou com factos relacionados com abuso sexual, é necessária uma análise muito grande de um conjunto de informações”, vinca Ricardo Barroso.

Em Portugal, existe um protocolo para a avaliação feita pelos psicólogos chamados a apoiar o sistema judicial. O investigador afirma que se consegue, “com alguma facilidade, diferenciar se o discurso é compatível com a verdade”.

A Ordem dos Psicólogos Portugueses avançou com a especialização dos profissionais que dela fazem parte. A psicologia de justiça é considerada uma “especialidade avançada”. Ricardo Barroso explica por que razão existe esta diferenciação profissional: “Estamos a pegar nos casos mais sensíveis, que têm de ser tratados com pinças”.

Uma analogia com a medicina ajuda a perceber a especificidade da tarefa: nem todos os cirurgiões estão habilitados para intervir em determinadas áreas do corpo humano. Com os psicólogos, a situação é semelhante. “A área forense é muito específica, com muitos contornos, com influências de várias ordens – pessoal, social, cultural e legal.”

O professor universitário recorre, de novo, aos casos de abusos sexuais, realçando que “é uma intervenção muito especializada”, pelo que “nem todos os psicólogos devem pegar neste tipo de casos”. No caso de psicólogos com pouca experiência, “é preferível que encaminhem os casos para colegas mais especializados”. Não é uma área em que se aconselhe “experimentar caminhos e hipóteses”.

Nas realidades portuguesa, europeia e norte-americana, aquelas que Ricardo Barroso melhor conhece, a especialização na área forense faz-se depois de uma formação de base em psicologia. Depois, a “especificidade” das questões que são suscitadas aos psicólogos leva à necessidade de uma “especialização pormenorizada”. “No contexto português, cada vez mais as pessoas vão entrando para uma especialização ao nível do doutoramento”, refere. Dentro da psicologia de justiça, é cada vez mais comum haver ainda quem se especialize em vítimas e quem aposte no estudo de agressores, apesar de ser “importante perceber a dinâmica dos dois”. Em suma, “é desejável que haja uma especialização”, aconselha Ricardo Barroso.

O que diz uma avaliação

Os psicólogos forenses fazem diferentes tipos de avaliação, consoante aquilo que está em causa. Tal como em Portugal, também o Código de Processo Penal de Macau dispõe especificamente em relação à perícia sobre a personalidade, uma área em que estes especialistas são chamados a intervir. A perícia “pode relevar nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção”, lê-se no CPP.

Trata-se de um tipo de estudo que é feito em adultos e, por norma, em adultos agressores, decifra Ricardo Barroso. “É pedida no sentido de perceber como é que aquele indivíduo funciona no quotidiano. É uma análise tripartida: como é que funciona consigo próprio, como é que funciona com os outros e como é que vê o relacionamento com o mundo, a percepção do seu contexto social.”

O especialista explica qual a razão de a perícia sobre a personalidade ser feita apenas em adultos. “Não existe, nas crianças e nos adolescentes, a estruturação da personalidade”, observa. “A personalidade é um padrão de funcionamento relativamente estável. Não é avaliada a personalidade das crianças ou dos adolescentes porque não há este padrão estável.” Para se chegar à verdade com as crianças, é preciso ir por outros caminhos.

Quando em causa estão crianças com mais de 12 anos, não existem, à partida, obstáculos a que sejam ouvidas em tribunal; nos casos em que ainda não perfizeram esta idade, podem ser ouvidas pelos juízes, mas é do entendimento dos juristas que é necessário ponderar bem acerca do contributo que poderão dar para o caso. É preciso saber se têm “capacidade e dever de testemunhar”, um conceito previsto no CPP de Macau.

A perícia forense para a avaliação da capacidade e dever de testemunhar é pedida no caso em que se duvida das competências cognitivas da pessoa em causa, explica Ricardo Barroso, ou então com crianças mais novas. “Aquilo que se pede é saber se há a noção, naquela criança, de um conjunto de conceitos básicos, o que é fundamental para se perceber a veracidade das alegações.”

Nestas avaliações, o especialista tenta perceber “a fase em que a criança se encontra, se percebe conceitos básicos, como ‘quem, quando, onde, quantas vezes’”. É levada a cabo “uma análise do ponto de vista cognitivo-desenvolvimental”. “Este trabalho faz-se a partir de entrevistas, às vezes até de desenhos, pede-se para contar determinada circunstância, se percebe a sequência. Se ela tiver estas competências cognitivas, tem de contar uma história – a história do abuso – e essa história tem de fazer sentido”, acrescenta o investigador. Ricardo Barroso sublinha que as crianças mais pequenas não relatam “uma história com princípio, meio e fim”, ou seja, há que ir juntando as peças. “Pouco a pouco, vai contar essa história.”

A promessa

Quando em causa estão crimes que envolvem crianças, as avaliações feitas por psicólogos forenses às alegadas vítimas não se fazem numa única entrevista. “Normalmente, são seis sessões demoradas. Este protocolo de avaliação, normalmente, contempla entre seis e oito consultas”, acrescenta o especialista.

O processo de avaliação “envolve avaliar outras pessoas e ter informações de outros avaliadores que não só a criança”. São feitas entrevistas aos pais e a outros cuidadores, e contactos com pessoas que directa ou indirectamente tenham conhecimento do caso, como os professores. “Muitas vezes são os próprios professores que detectam algo estranho na escola e que fazem a denúncia”, contextualiza Ricardo Barroso. “Duvido que, em uma ou duas sessões com a criança, o resultado da avaliação seja muito concreto. Da minha experiência parece-me impossível.”

Depois, há ainda o processo de adaptação das crianças ao psicólogo. “As crianças não passam directamente do colo da mãe para o colo do psicólogo, há uma transição. Às vezes pode pedir-se à mãe para vir connosco, entra na sala, enquanto brincamos e conversamos sobre um conjunto de assuntos.” O especialista diz que, na presença dos progenitores, não se toca no motivo que levou a que o processo de avaliação fosse desencadeado. Quando a criança já está mais preparada, “a mãe sai e a criança fica com o psicólogo ou os psicólogos”. É então que se fala do crime, “quando as crianças estão sozinhas”.

Em Macau, desconhece-se que tipo de protocolo é aplicado e quem é que o utilizará. Questionado pelo HM sobre a falta de peritos nesta área, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura – que tem na sua tutela serviços que contribuem para o sistema de justiça – deixa uma garantia. “Se se constatar que não há, em Macau, determinadas especialidades e se os serviços respectivos nos comunicarem essa necessidade, o Governo, por certo, encontrará soluções”, diz Alexis Tam.

 

 

 

 

Abuso sexual de crianças aumenta

A Polícia Judiciária investigou, nos últimos cinco anos, 199 casos de crimes de natureza sexual. A violação é o delito mais comum: de 2012 a 2016, chegaram à PJ queixas sobre 88 casos. De acordo com as estatísticas fornecidas, segue-se a coacção sexual, com 42 ocorrências. Depois, está o abuso sexual de crianças, com 29 casos contabilizados, sendo que 11 dizem respeito ao ano passado.

6 Abr 2017

Vício | Jogo patológico é um problema invisível na terra dos casinos

Macau é uma cidade onde o jogo é, de longe, o principal motor económico. Com quase 40 casinos em pouco mais de 30 quilómetros quadrados, não é de estranhar que o vício de jogo seja algo endémico no território. O HM foi à procura de quem sofre e de quem trata

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a cidade dos néones, o brilho ofusca aqueles que apostam mais do que podem cobrir. “Se tiver mil patacas, e for obrigado a escolher entre droga ou jogo, escolho o jogo”, revela S., um veterano de vários vícios. Com um historial vasto de consumo de opiáceos, este homem de 58 anos é um fantasma da velha Macau, em que o crime nos casinos era visível e transbordava para as ruas.

Aos 14 anos a vida levou-o a entrar num gang onde vendia e consumia heroína. Foi agiota e fez de tudo um pouco no lado negro que ensombrava o glamour dos casinos. Hoje em dia, com a luz que a regulação fez incidir na indústria, já não dispõe das largas somas de dinheiro que apostava. No passado, como o dinheiro não era problema, o jogo também não.

O destino trocou-lhe as voltas, mas o jogo e a heroína continuam no seu percurso. No entanto, S. não tem dúvidas de que, no menu dos vícios, “o jogo é a sua prioridade”. O seu caso não é único e encaixa perfeitamente no conceito de personalidade aditiva. Algo que não é de estranhar, uma vez que o vício dos jogadores patológicos tem perigosas semelhanças com a toxicodependência.

“Em termos biológicos, cerebrais, o jogo e a droga acabam por tocar na mesma zona do cérebro, acontecem as mesmas reacções químicas, são libertadas as mesmas hormonas, são realidades muito semelhantes.” As palavras são de Marta Bucho, Coordenadora do Centro Feminino da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM). Aliás, estudos indicam que os jogadores também têm sintomas de privação semelhantes, ou seja, ressaca. Em ambos os casos, o cérebro é inundado por serotonina e dopamina, hormonas que regulam o humor, a ansiedade, o humor, o sono, o stress e o prazer. “Normalmente, não temos uma libertação tão forte destes químicos”, explica Marta Bucho.

Quem cai nas malhas do jogo, frequentemente, encontra neste prazer algo que lhe falta na vida. São coisas que andam de mãos dadas. Problemas psicológicos como depressão, traumas, stress, ansiedade e fobias podem ser precursores à adição. Estas pessoas acabam, muitas vezes, por “usar o jogo como forma de auto-tratamento”, explica a terapeuta. O uso de álcool e drogas também servem de meio de medicação, num mosaico aditivo muito complexo de tratar. Pessoas que têm deficit de atenção e hiperactividade fazem parte de outro grupo de risco, vulneráveis ao vício, encontrando no jogo uma forma para se focarem.

Casino omnipresente

Este problema agiganta-se com diversos factores. O sentimento de vergonha, e a aceitação social e cultural são dois elementos explosivos.

“A cultura é um problema, porque entre os chineses há a ideia de que pode ser escondido e que a família consegue resolver a situação sozinha”, conta Elaine Tang, assistente social na Casa da Vontade Firme, uma instituição da Divisão de Prevenção e Tratamento do Jogo Problemático.

Estes factores levam a que, na maioria dos casos, a procura de apoio seja tardia. “Quando procuram ajuda é porque já têm muitas dívidas e o problema é muito maior”, explica. Além disso, a rede familiar incorre no erro de julgar que se pagar as dívidas do jogador, a lição é aprendida. Mas o vício não funciona dentro destes parâmetros. Recusar ajuda a um familiar que esteja desesperado, com agiotas à perna, pode ser o mais aconselhável.

Outro dos problemas é a facilidade de acesso, a conveniência do jogo. Macau tem perto de 40 casinos, espalhados por pouco mais de 30 quilómetros quadrados. Além de ser mais bem visto que o consumo de estupefacientes, o jogo é uma presença constante e a cidade está estruturada para que se jogue. Os casinos facultam quartos, têm caixas ATM estrategicamente colocadas, comida e bebidas grátis. Aliás, a omnipresença é de tal magnitude que a Casa de Vontade Firme está ironicamente ao lado do L’Arc Casino. Ou seja, quem procurar ajuda na instituição, que funciona sob a égide do Instituto de Acção Social (IAS), passa por vários casinos até lá chegar.

Atacar o mal

Elaine Tang, do IAS, destaca a complexidade da questão e a forma como cada caso é único. Quem chega à Casa de Vontade Firme fala com uma assistente social para que sejam aferidos os problemas que enfrenta. De seguida, delimitam-se prioridades na abordagem a cada caso, uma vez que os viciados que ali chegam trazem consigo dificuldades financeiras, familiares, laborais e sociais.

“Pedem largas somas de dinheiro, dizem que pagam em prestações e chegam, também, a pedir que sejamos fiadores para recorrerem a empréstimos” junto da banca, conta Elaine Tang. Obviamente, os serviços não emprestam apoio monetário, mas fazem algo muito mais valioso no longo prazo. “Há pessoas que não têm um conceito do que é o dinheiro, porque nunca tiveram problemas financeiros”, explica a assistente social. Normalmente, este tipo de viciados não apresenta quadros clínicos de consumo de droga, mas não têm noções de poupança. “Tenho um caso de uma pessoa que tem de marcar todas as suas despesas diárias. Depois de seis meses, aprendeu quanto dinheiro precisa para sustentar a família todos os meses”, revela Elaine. Este paciente, com um casamento destruído pelo jogo, vive hoje em dia com o pai e é a ele que confia as suas finanças.

Um dos casos que preocupa a assistente social é o de uma mulher que trabalha exclusivamente para sustentar o vício. Quando sai do emprego, vai para o casino onde passa a noite inteira a jogar, largando as mesas de jogo apenas quando chega a hora de regressar ao trabalho. Este ciclo pode durar três dias seguidos, sem interrupção, até que cai exausta na cama e dorme um dia inteiro. Depois do descanso, o ciclo repete-se.

Na Casa de Vontade Firme não há uma abordagem farmacológica ao vício do jogo. Já no centro de reabilitação da ARTM essa é uma realidade incontornável, uma vez que a doença carece de um reequilíbrio químico. Depois de ser prescrita medicação, começa-se a atacar a desestruturação que o jogo patológico trouxe à vida da pessoa. “Voltamos a puxar os valores como a dignidade, honestidade, porque tudo se foi perdendo com o vício”, explica Marta Bucho.

Inicia-se o processo de ressocialização do doente. Primeiro, tal como nas drogas, é necessário enfrentar a realidade de que a pessoa não deixará de jogar de um dia para o outro, há que proceder a uma redução de danos e a um desmame gradual. O passo inicial é aceitar o problema, só depois se pode ir reduzindo, aos poucos, a frequência com que se joga, a quantidade de dinheiro e o tempo que se passa no casino.

Os estágios seguintes no caminho para a cura são a intervenção psicossocial e a vida em comunidade. Quem entra no centro de reabilitação da ARTM reaprende valores da ajuda mútua, o respeito pelos outros. Outro dos pilares de suporte é a solidariedade e a experiência dos jogadores que se encontram em recuperação há mais tempo.

Números azarados

Elaine Tang conta que conhece jogadores com perdas que ascendem a dois milhões de patacas e que apenas auferem 20 mil por mês. A maioria destes casos chega ao IAS já numa situação complicada de resolver, com agiotas à perna, os pacientes a sentirem-se ameaçados. Com alguma frequência, este tipo de viciados, depois de receberem aconselhamento financeiro, não voltam à instituição.

Os serviços do IAS começaram a registar os casos de viciados em jogo que procuraram ajuda nos seus centros a partir de 2011. Desde então, até 2016, 856 pessoas recorreram aos serviços do instituto.

Quanto à taxa de reincidência, o IAS apenas revelou que o caminho para a recuperação é longo e árduo, e as recaídas muito frequentes.

Um estudo elaborado pelo Instituto de Estudos sobre a Indústria do Jogo da Universidade de Macau revelou que, em 2015, havia 14 mil jogadores viciados, o que representa 2,15 por cento da população. Em 2016, a incidência de pessoas com problemas com jogo era de 2,5 por cento, um ligeiro aumento.

No ano passado, segundo informação da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos de Macau, pediram auto-exclusão dos casinos 351 pessoas. Em contrapartida, as receitas brutas do sector continuam numa curva ascendente.

Mas para que alguém ganhe, outros têm de perder, e há quem perca tudo. Entre a panóplia de casos de adição, os jogadores são os que têm maior tendência para o suicídio, mais significativa do que entre os consumidores de drogas.

Apesar de ser uma realidade pouco estudada na região, a Universidade de Hong Kong fez um estudo que revelou que, em 2003, dos 1201 suicídios registados na cidade, 233 estavam relacionados com problemas de jogo, o que representa quase 20 por cento.

De resto, uma larga fatia dos telefonemas recebidos pela Linha de Prevenção de Suicídio da Cáritas é relativa a desespero nascido nas mesas dos casinos. “Há diversos estudos que apontam que jogo e o suicídio estão muito ligados”, completa Marta Bucho.

Apesar do brilho do Cotai, há uma parte de Macau que sente nas entranhas os excessos que o jogo arrasta consigo.

L., de 46 anos, vai ao serviço extensivo do ARTM na Areia Preta, um centro de redução de danos que distribui seringas e refeições, comer uma sopa e conviver um pouco. Com um largo historial de consumo de heroína, metanfetaminas, álcool e tudo o que vier à mão, o jogo é uma das constantes da sua vida. Partilhou casa com toxicodependentes durante três anos e pensou várias vezes no suicídio. Parecia-lhe a única saída da miséria. Perdeu todo o dinheiro, perdeu a família, e teve dias em que perdeu a vontade de viver. A meio da entrevista ao HM levanta-se para mostrar a identificação para poder usufruir da refeição quente que a ARTM lhe providencia. A vida não lhe corre bem, mas quando fala no prazer que lhe dá um jogo de bacará os seus olhos brilham como os néones.

17 Mar 2017

Lai Chi Vun | Os projectos e as ideias antes das demolições

Muito antes de o Governo decidir deitar abaixo os estaleiros, a povoação de Lai Chi Vun foi alvo de vários projectos vindos do sector privado. A muitos deles, o Governo nunca deu uma resposta, chegando a rejeitar outros. O HM revela três projectos propostos por dois amantes da indústria naval, sem esquecer as ideias de estudantes de Arquitectura

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]ouve uma altura em que se pensou além do vazio virado para o mar. Sobre Lai Chi Vun já muito se criou antes de se decretar a demolição dos velhos estaleiros. Alunos de Arquitectura e amantes de barcos feitos com madeira dedicaram tempo pessoal a estudar e a apresentar sugestões para revitalizar a povoação.

Muitas propostas foram entregues ao Governo, explicadas ao detalhe, ou então foram discutidas em debates públicos nos quais membros do Executivo estiveram presentes.

Para Lai Chi Vun pensaram-se edifícios multiusos, ligações ao Cotai ou ao campus da Universidade de Macau, museus, um parque temático ligado à indústria naval, pequenas moradias. Muitos destes projectos acabaram por ficar na gaveta, pendentes, à espera de uma resposta que nunca chegou. Noutros casos, houve recusas.

Um dos projectos partiu de Henrique Silva. O seu amor pelos barcos levou-o a preparar um projecto conceptual em parceria com uma empresa que se dedica à construção de empreendimentos navais virados para o turismo. A proposta foi apresentada ao Governo no ano passado.

“Este projecto contemplava a existência de oficinas, que é uma coisa que não existe em Macau para quem precisa de manutenção de barcos, um museu e um clube para iates. E ainda uma escola de vela”, explicou ao HM. 

Além disso, “na zona onde ficaria a marina colocar-se-iam vivendas”, para dar uma oportunidade de investimento ao sector imobiliário.

“Criava-se ali uma zona privilegiada, porque o turista que chega de barco não é propriamente uma pessoa pobre, e ficaria ainda com acesso privilegiado ao Cotai. Todos ganhavam, porque o projecto também ajudaria a desenvolver a economia tradicional de Coloane, sem ter de a destruir. Desenvolvia-se um núcleo diferente, com outro tipo de animações”, apontou Henrique Silva.

A ideia era, assim, criar um complexo náutico “de nível internacional”, uma vez que a Doca de Lam Mau, localizada na zona do Fai Chi Kei, é de mais difícil e longínquo acesso. “Mantinha-se a memória do espaço e depois poderiam ser incorporados mais pormenores”, disse ainda.

Parque temático à beira-mar

Tam Chon Ip estudou arqueologia, é freelancer e um apaixonado pela cultura de um território que o viu nascer. Também ele teve ideias que gostaria de ver implementadas em Lai Chi Vun. A abertura de uma espécie de parque temático foi uma delas.

“O nosso plano visava a preservação dos estaleiros para serem mostrados ao público, com a implementação de uma zona de teatro, um espaço público e outro tipo de infra-estruturas. Teríamos elementos não comerciais, com a conservação da arte e cultura. A parte mais importante seria um parque temático com workshops sobre a construção de barcos. Os participantes poderiam vivenciar a experiência da cultura tradicional de Macau”, resumiu ao HM.

Um dos pontos centrais do projecto seria o estaleiro Liuhe, onde foi construída a Lorcha Macau. “Sempre pensei que indústria de construção de barcos se poderia transformar em algo cultural e criativo, em que o lado tradicional e inovador poderiam combinar. É possível optimizar a povoação para os turistas, moradores e residentes. A própria povoação de Lai Chi Vun é um museu ao ar livre.”

Apesar do esforço, Tam Chon Ip acabou por ver algumas das suas ideias recusadas, ao nível de pedido para financiamento. “Temos vindo a promover o projecto e também nos candidatámos a vários apoios, mas alguns projectos não foram aceites, o que criou dificuldades.”

Este amante da história e da cultura chegou a promover uma pequena exposição sobre os estaleiros em Lai Chi Vun, “mas não houve qualquer novidade depois da visita das autoridades”.

Ligação a Hengqin

Em 2013, a povoação de Lai Chi Vun obteve projecção internacional ao ter sido alvo de um projecto desenvolvido por alunos de Arquitectura do Instituto Politécnico de Milão, no âmbito do Prémio Compasso Volante. José Luís Sales Marques, presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau (IEEM), presidiu ao júri, que contou também com a presença do arquitecto Carlos Marreiros.

“Foi feito um concurso aberto a estudantes de pós-graduação de várias universidades, nomeadamente o Politécnico de Milão, a Universidade de Palermo, uma universidade de Singapura e outra do Japão. Nesse concurso os alunos vieram a Macau, estiveram alguns dias cá e fizeram vários levantamentos sobre a zona de Lai Chi Vun e a história de Macau”, contextualizou.

Os estudantes foram orientados pelos professores, fizeram os projectos e apresentaram-nos primeiro em Palermo, e depois em Milão. “Foi uma oportunidade para expor questões importantes do ponto de vista de reabilitação urbana, e procurar soluções arquitectónicas para problemas que existiam e continuam a existir na cidade”, indicou José Luís Sales Marques.

O presidente do IEEM recorda que foram apresentadas “várias soluções”, incluindo a possibilidade de construir uma ligação entre Lai Chi Vun e a Ilha da Montanha, no pedaço de terreno onde funciona o campus da Universidade de Macau.

“Foi um exercício muito válido e interessante, que envolveu muita gente, uma comunidade internacional bem informada. Os trabalhos estão bem fundamentados, há pormenores, e descrição do ambiente e do local. As soluções apresentadas eram destinadas sobretudo ao lazer, que é muito aquilo que o Governo pretende para aquela zona.”

A importância das técnicas

Numa entrevista concedida o ano passado ao HM, Carlos Marreiros revelou alguns detalhes sobre as propostas que o Governo viu, mas sobre as quais nunca reagiu. Foi pensada “a construção de residências de luxo, com apenas três andares, integradas na colina”, sem esquecer a edificação de “uma pequena marina e um museu, incluindo uma super cobertura integrada com a actual estrutura dos estaleiros. A iniciativa privada fazia as suas contas, o Governo adquiria isto e geria-o”.

À data, Marreiros confessou que sobre Lai Chi Vun não havia nada de concreto. “Fizemos estudos, propusemos ao Governo, não há resposta. Havia uma parte para viabilizar a construção, para construir e ganhar dinheiro”, apontou.

Sales Marques entende que já não é possível deixar os estaleiros como eles estão, mas fala sobretudo da necessidade de manter vivas as técnicas de outrora.

“São construções lacustres, que têm uma grande beleza. São estruturas industriais mas feitas com grande plasticidade, e isso também é importante, porque pode servir de inspiração para outras coisas. Os alunos que vieram de Milão ficaram maravilhados com aquela plasticidade, as soluções, o tipo de construção, como se resolviam problemas de arquitectura, com recurso a meios bastante simples.”

As exposições do Prémio Compasso Volante levaram à organização de um debate no Albergue SCM, mas poucas respostas foram obtidas. “A nossa ideia era fazer uma exposição com a associação de moradores da zona, mas não conseguimos encontrar um local para isso [em Lai Chi Vun]. Fizemos então um debate ao ar livre nas instalações do Albergue, em que estiveram responsáveis do Instituto Cultural. Apresentamos as ideias todas na altura”, concluiu Sales Marques.

O presidente do IEEM frisou que “a questão que se coloca é que não há qualquer resposta”. “É importante perceber o que existe na cabeça de quem manda nestas coisas.”

Sales Marques, que se debruçou sobre o estudo de uma importante indústria naval, recorda que nos idos anos 50 e 60 chegaram a morar cerca de 50 mil pessoas na zona do Porto Interior, nas chamadas aldeias flutuantes. Nos dias de hoje parece não haver vontade de preservar essas memórias.

“O que é triste em Macau é que as pessoas não dão valor a essas coisas, ao simbolismo, às coisas que nós fazemos. É pena que, por inacção, tenhamos de chegar ao ponto em que parece que não há alternativa se não a demolição. Aquele deve ser um espaço público, e não deve ser privatizado para a construção de luxo”, defendeu Sales Marques.

10 Mar 2017

Lai Chi Vun | As histórias de uma indústria que morreu

Na pequena povoação de Lai Chi Vun, em Coloane, vivem-se dias de incerteza. Os rumores são muitos e a única certeza é a de que os estaleiros não podem ser deitados abaixo de um momento para o outro. Com a primeira fase da demolição prestes a arrancar, os moradores questionam a ausência de concurso público para esse processo e garantem que, sem os estaleiros, Lai Chi Vun perde a sua alma

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara chegarmos ao lugar onde ainda cheira a mar é preciso descer umas escadas e andar no meio de casas construídas com folhas de zinco, onde os mais velhos descansam. Em Lai Chi Vun a história teima em manter-se viva através de velhas estruturas onde, outrora, foram construídas centenas de barcos por ano. Numa altura em que a primeira fase das demolições dos estaleiros de construção naval se prepara para arrancar, o HM foi conhecer as histórias de quem não quer apagar o passado. Há, pelo contrário, uma vontade de reconstruir um novo presente e futuro, com outras soluções.

Para Lei Kam Seng, não resta hoje mais nada para fazer a não ser garantir a segurança dos estaleiros. Vai a casa num instante para mostrar, orgulhoso, a licença, encadernada a vermelho, que obteve para trabalhar na área. Era um adolescente quando começou uma vida de trabalho árduo.

“Tenho 67 anos, mas ainda tenho o meu certificado. Já não se fazem licenças destas”, conta ao HM, enquanto mostra a sua juventude a preto e branco.

O estaleiro onde trabalhou tantos anos é um dos que será demolido pelo Governo, situado logo no inicio da rua. “Há mais de 20 anos que não construo barcos, trabalhei durante 40 nesta indústria. Quando era jovem eram tempos muito bons, agora é mais duro. Estava a trabalhar, toda a minha família estava ligada a este negócio. Éramos quatro filhos e, graças à indústria da construção de barcos, conseguimos aguentar-nos.”

Numa altura em que o jogo não dominava a economia, construir barcos era uma opção para muitas famílias. “Na altura esta era a indústria com melhor desenvolvimento. Quando era aprendiz, quando os barcos chegavam tínhamos de os pintar e reconstruir e pô-los de regresso ao mar. E podíamos fazer também barcos muito grandes. Só havia um casino nessa altura”, recorda Lei Kam Seng.

Na pequena povoação, a agitação do dia-a-dia era muita. “A povoação foi criada para a construção dos barcos de pesca e para trazer os barcos do mar para terra [para reparações]. Cortavam-se grandes pedaços de madeira que depois eram trazidos para aqui. No tempo em que fui patrão havia muita gente a trabalhar aqui, e havia sempre alguém a fazer comida para nós”, contou Lei Kam Seng.

João Pedro Ho, que mora uns metros mais à frente com a sua mulher, nunca construiu barcos mas, durante anos, esteve numa fábrica de materiais e produtos para este tipo de embarcações. Com oito ou nove anos lembra-se de ir com o pai para a vizinha aldeia de Ka-Ho, onde se faziam trabalhos de carpintaria. Desse tempo, só restam memórias.

“Fazia tudo o que era necessário para os barcos. Agora estou reformado. Quando deixou de haver trabalho, reformámo-nos. Antes vivia em Macau. Comecei com 14 anos, até que tudo isto acabou”, disse.

Durante a entrevista com o HM bebemos um chá verde enquanto olhamos para a frágil estrutura que permanece bem ao lado da sua casa. A mulher mostra-nos as cordas que eles próprios colocaram para segurar algumas estacas de madeira. “Há cerca de três ou quatro anos fiz queixa sobre a falta de segurança da estrutura, mas como ninguém se preocupou, decidimos colocar estas cordas como suporte.”

Apesar da insegurança, João Pedro Ho não quer deixar o cantinho de uma vida. A mulher acrescenta de imediato que uma operação recente à perna, feita em Hong Kong, não o vai permitir mudar-se para outro lugar.

“Disseram-nos para sair daqui, porque é perigoso [a demolição], mas se eu me mudar onde vou viver? Na rua? Não vou sair e vou ficar aqui a olhar para o que vão fazer. Vou prestar atenção.”

Demolição por convite

As notícias sobre o futuro da povoação e dos estaleiros chegam a Coloane a conta-gotas. Os jornais e as televisões ajudam a transmitir informações, mas muitos moradores assumem não fazer a mínima ideia do que se está a passar e do que está para vir.

“A povoação foi criada para a construção dos barcos de pesca e para trazer os barcos do mar para terra [para reparações]. Cortavam-se grandes pedaços de madeira que depois eram trazidos para aqui.”
LEI KAM SENG, ANTIGO CONSTRUTOR DE BARCOS

Um dia, João Pedro Ho viu responsáveis de vários departamentos do Governo, como da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) e da Direcção dos Serviços para os Assuntos Marítimos e da Água (DSAMA), a inspeccionarem o estaleiro ao lado da sua casa. Como tinha dúvidas, resolveu intervir.

“A maior parte das pessoas que vieram aqui não nos disse nada. Vinham aqui olhar para os estaleiros, então fui eu lá falar com eles. Não estão a ser transparentes. Naquele dia calhou eu estar aqui na rua e fui directamente falar com eles. Se não estivesse aqui a prestar atenção ninguém sabia o que se estava a passar”, explicou.

Foi aí que João Pedro Ho soube que as demolições serão feitas através de um convite a uma empresa e não por concurso público. “Eles estavam a ver como iriam demolir a estrutura, e aí eu perguntei: ‘Vai haver concurso público?’ Disseram-me que não, que iria ser por convite directo, porque são necessários pelo menos três meses para preparar um concurso público, e os trabalhos têm de ser feitos antes que chegue a época dos tufões. Disseram-me que o processo seria assim para garantir a nossa segurança.”

O HM tentou confirmar esta informação junto da DSAMA, bem como o nome da empresa que irá fazer a demolição, mas o organismo apenas referiu que todas as informações disponíveis constam nos comunicados de imprensa já divulgados, que não fazem nenhuma referência às informações pedidas.

João Pedro Ho tirou fotografias aos rostos, guardou recortes de jornais. As dúvidas são partilhadas pela esposa e pela vizinha, que entretanto se junta à conversa.

“É evidente que alguém vai fazer dinheiro com estas demolições. Se não fosse para fazer dinheiro, porque o fariam? Não há sequer concurso público para isto. Vai ser um construtor privado”, aponta.

Também o antigo construtor de barcos Lei Kam Seng tem as suas queixas, que não são apenas dirigidas ao Governo. “Há muitas pessoas na associação [Associação dos Construtores de Barcos de Macau-Coloane-Taipa], mas esta deveria ser mais activa.”

“A associação nunca falou connosco. Nunca foi feita uma consulta pública, nunca falaram com quem mora aqui. Não sabemos absolutamente nada. Vivemos aqui e continuamos a não saber nada”, acrescenta Lei Kam Seng.

Nos diversos comunicados emitidos, a DSAMA afirma que muitos dos estaleiros não foram mantidos pelos próprios construtores dos barcos, declaração rejeitada por Lei Kam Seng. “Isso não é verdade. Deveriam deixar as pessoas investir e dar diferentes utilizações aos espaços. Se o Governo permitisse às pessoas investirem, então as pessoas iriam fazê-lo.”

Este antigo construtor afirma que muitos dos que têm falado à comunicação social sobre este assunto já não fazem parte das primeiras gerações de construtores navais e que, por isso, não percebem a essência de Lai Chi Vun.

“Só há uma ou outra pessoa que originalmente fez parte desta indústria, mas todos os outros são só empresários que não compreendem este lugar.”

A China ganhou barcos

Para João Pedro Ho, não foi só o jogo que arrastou consigo todas as outras indústrias. Os estaleiros localizados em Zhuhai, China, começaram a fabricar mais barato e com menos burocracias.

“É uma pena que tudo isto tenha acabado. A partir de uma certa altura a China continuou com a sua indústria de construção de barcos. Não havia trabalho aqui, então muitos foram para a China para continuarem a sua carreira. Além de ser mais barato construir lá, o Governo de Macau manteve uma série de procedimentos que dificultavam a vinda dos barcos para aqui. Deixaram de aparecer, então não havia mais nada para fazer.”

“Queria trazer os estudantes aqui para tirarem fotos e preservarem esta memória. Porque depois já não haverá nada, serão apenas terrenos.”
KOU, PROFESSOR DE HISTÓRIA

João Pedro Ho sabe que, actualmente, há pelo menos um estaleiro em Zhuhai onde ainda se constroem juncos de madeira. “Continuam a construir barcos em Zhuhai e há uma lista de espera. O Governo de Macau não ajuda nesse aspecto e também começou a aparecer muita sujidade no rio, muita areia. Antes o Governo não deu apoio, e antes de tantas mudanças ao nível dos solos, com as obras, era fácil mover os barcos aqui nesta zona.”

O HM chegou a contactar uma das fábricas de construção de barcos na cidade chinesa, mas a promessa de retorno do contacto, com mais detalhes sobre a construção naval do lado de lá da fronteira, não chegou a concretizar-se.

Por estes dias muitos têm aproveitado para visitar o local para verem de perto algo que, em breve, já não deverá existir. Foi o caso de um professor de História, de apelido Kou, que levou a sua turma a conhecer o lugar onde um dia se construíram barcos de madeira.

“Este é um sítio com história e os estaleiros vão ser demolidos, então decidi vir aqui com os meus alunos”, contou ao HM, enquanto segurava um mapa que ele próprio fez da zona. “Queria trazer os estudantes aqui para tirarem fotos e preservarem esta memória. Porque depois já não haverá nada, serão apenas terrenos.”

Kou é mais uma voz que está contra a decisão da Administração. “Gostava que os estaleiros fossem preservados para as próximas gerações. O Governo desenvolveu Macau e a Taipa, então poderia garantir a preservação de Coloane para as próximas gerações, mantendo um espaço verde.”

João Pedro Ho não tem dúvidas. “Estas coisas devem ser mostradas às pessoas”. “A indústria de construção naval em Macau tem uma longa história, e se tudo for demolido vão destruir tudo e já não haverá mais nada”, frisa.

O HM quis confirmar com a DSAMA a data certa para o arranque das primeiras demolições mas, até ao fecho desta edição, não foi obtida uma resposta. O porta-voz dos moradores de Lai Chi Vun, David Marques, acredita que os trabalhos poderão começar entre hoje ou amanhã, mas ontem à noite nenhum sinal de demolição pairava sobre a povoação.

Lai Chi Vun | A história e as razões do fim da indústria

Muito antes de haver jogo e ópio, houve juncos de madeira e um intenso comércio de pescas interno e além-mar. Houve cordoarias que chegaram até à Almeida Ribeiro. Hoje só resta o estaleiro de Lai Chi Vun para contar um pedaço da história da indústria naval em Macau, mas tudo começou há vários séculos. Para o investigador Luís Sá Cunha, a construção naval e as pescas constituíram um ponto fulcral da sociedade e da economia do território.

“O jogo não faz parte do genoma de Macau, só a partir de certa altura. Em 2005 li uma notícia no jornal de que o último barco a ser construído nos estaleiros tinha sido lançado ao mar. Isso foi há pouco tempo! No final dos anos 90 estava tudo a funcionar”, contou ao HM.

Para o investigador, o aparecimento dos casinos está longe de ser a única razão a apontar para o fim da indústria. “Não se conseguiram adaptar às inovações tecnológicas, e aí a culpa foi dos estaleiros. Porque toda a tradição chinesa vive de memória e de tradição de pai para filho, ou de mestre para discípulo. Todas as técnicas e sabedoria eram baseadas na madeira.”

“Não estão a ser transparentes. Naquele dia calhou eu estar aqui na rua e fui directamente falar com eles. Se não estivesse aqui a prestar atenção ninguém sabia o que se estava a passar.”
JOÃO PEDRO HO, MORADOR

Luís Sá Cunha explica também que “a construção naval não tinha planos, era feita com uma grande improvisação”. “Poucos estaleiros conseguiram fazer a implementação dos motores nos barcos. Faziam tudo aqui e os motores eram montados em Hong Kong. Muitos estaleiros na Taipa e Coloane começaram a viver das reparações.”

Depois de um período áureo da indústria, a partir dos finais da década de 90 tudo começa a acabar. Nessa altura havia 19 estaleiros em Macau que faziam 94 barcos por ano, sendo que nas ilhas existiam 16 estaleiros [os que ainda persistem], que faziam 150 barcos por ano. “Um número notável”, considera Luís Sá Cunha.

Além do “conservadorismo” das técnicas, na zona de Lai Chi Vun começou a existir uma grande distância entre a terra e a água, o que dificultou o transporte e recolha de barcos.

Mas o fim do comércio ultramarino também trouxe a crise a Lai Chi Vun. “A partir de certa altura, depois da II Guerra, houve a cessação da emigração chinesa, e já não havia exportações para os chineses ultramarinos. Houve a concorrência do comércio de Cantão. O comércio de Hong Kong, a seguir à II Guerra Mundial, teve uma emergência enorme, e começaram também eles a fabricar barcos, mais modernos.”

Houve depois uma mudança da indústria para Zhuhai. “Os preços começaram a aumentar nesta zona e por isso é que foram todos para lá.”


Uma construção “misteriosa”

Os primeiros estaleiros começaram por aparecer na península e não nas ilhas, e já no século XVIII os mapas faziam essa referência. Os chamados “mandarins”, olheiros da China, chegaram a decretar que não se podia fazer barcos para estrangeiros. Ainda assim, “havia estaleiros que os mandarins não viam”.

Por essa razão, Luís Sá Cunha defende que a “construção naval em Macau é um bocado misteriosa”. “Não houve durante a história muitos registos escritos sobre isso, mas também havia uma certa clandestinidade dos estaleiros. Estes sempre tiveram um estatuto e uma consciência de grande autonomia.”

Isso acontecia pelo facto de os construtores navais dominarem uma técnica que, à época, era bastante desenvolvida. “Eram importantes, mas muitos dos serviços eram clandestinos.”

A partir da década 60 do século XIX os estaleiros começam a desaparecer da península e a ir para as ilhas, devido aos planos de urbanização do governador Ferreira do Amaral. “Criou-se uma zona de epidemias, porque as aldeias não tinham qualquer higiene, as casas eram improvisadas, e as pessoas viviam em barcos que estavam sempre encostados uns aos outros. Albergava também ilegais e piratas, porque a polícia não ia lá. [Até que] entraram em vigor as novas políticas de urbanização de Macau, a partir dos anos 60 do século XIX até ao final do século.”

Permaneceram as estâncias de madeira e alguns estaleiros na península, e quando Ferreira do Amaral mandou construir uma fortaleza e levar a polícia para Coloane, “os estaleiros começam a ser desviados” para as ilhas.

Anos 30, época dourada

Luís Sá Cunha não consegue apontar uma data concreta sobre o arranque da indústria de Lai Chi Vun, que já tinha alguns habitantes e piratas. Na década de 30 do século XX, começa a “época áurea” da indústria. “Dá-se um grande surto da construção naval em Taipa e Coloane, e um desenvolvimento da principal indústria extractiva de Macau, que era a pesca.”

As emigrações dos chineses para países como a Austrália ou Estados Unidos dinamizaram o comércio e as exportações. “O peixe fresco não era o produto mais procurado, mas sim o peixe seco e as conservas.”

Em 1937, “dá-se algo ainda mais importante, que dá mais força a Taipa e Coloane: passam a fazer-se ligações diárias de barcos a motor a óleo, e instala-se o telefone”. É então que, segundo o investigador, as ilhas se tornam ponto atractivo de turismo para as famílias de Macau.

Nos anos 60, a península voltou a ter estaleiros junto à zona do Patane, “com melhores condições”, tendo chegado a existir um total de 40, fora dez cordoarias que se espalhavam pelas ruas.

Preservar é preciso

Para Luís Sá Cunha, a preservação dos estaleiros é importante para lembrar que, um dia, Macau teve uma vida socioeconómica intimamente ligada ao mar, que se traduz até pela toponímia das ruas. O investigador defende que poderia “haver um estaleiro a construir miniaturas que as pessoas poderiam comprar”.

“E porque não estar lá a construir um barco, um junco pequeno, para andar nas águas com os turistas? Havia a necessidade de juntar isto tudo, a toponímia, fazer um percurso marítimo, um itinerário, com todos estes elementos e explicações”, conclui.

1 Mar 2017

Uber e Airbnb | Os desafios e ilegalidades da economia partilhada

Em Macau, à semelhança do que acontece noutras jurisdições, a Uber não assina contratos de trabalho, nem paga dias de férias ou folgas, porque o condutor é apenas um prestador de serviços. Já o website Airbnb tem dezenas de quartos para subarrendar a turistas, uma situação proibida por lei. A chamada economia partilhada existe no território, mas vive à margem da legalidade

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] conceito existe por todo o mundo e mostra-nos uma nova faceta da economia que visa a obtenção de ganhos com a partilha daquilo que não usamos. Na chamada economia partilhada recebemos dinheiro por disponibilizar a nossa casa, o nosso carro ou para cuidar do cão de alguém em troca de um dinheiro extra, existindo já várias aplicações de telemóvel ou websites criados para esse efeito. O problema é que os utilizadores abdicam, muitas vezes, dos seus direitos laborais, como a obtenção de um contrato de trabalho, pagamento de horas extra ou de impostos.

Em Macau, a Uber e o Airbnb são os exemplos existentes dessa economia, mas ambos operam no mercado com diferentes perspectivas. Se a Uber já conseguiu penetrar no mercado de transportes e gerar protestos em prol da sua continuação, apesar de ser considerada ilegal, o Airbnb surge timidamente online, com umas dezenas de quartos e apartamentos para arrendar a turistas a preços, muitas vezes, semelhantes aos de um quarto de hotel.

No caso da Uber, não há contratos de trabalho e, por consequência, não há dias de folgas e de férias pagos, nem existe um limite máximo de horas de trabalho por dia. Quantas mais horas o motorista trabalhar, mais recebe, mas não há um controlo.

Katie Lee, directora de comunicação da empresa para os territórios de Macau, Hong Kong e Taiwan, explicou ao HM como tudo se processa. “A Uber é uma plataforma de serviços, então os condutores são nossos parceiros e não temos empregados, não estabelecemos qualquer salário fixo. Fazemos contactos com os veículos que estão disponíveis e que podem prestar este tipo de serviços. Não temos contratos de trabalho, o que fazemos é estabelecer acordos escritos com os motoristas, contratos de parceria.”

Com 25 por cento dos colaboradores a trabalhar a tempo inteiro, a Uber não tem uma média salarial dos seus motoristas. “Os condutores têm o seu próprio horário e os valores podem variar, não temos números, não temos detalhes”, apontou Katie Lee.

Cabe a cada pessoa decidir quantas horas trabalha e quanto quer ganhar. “Os motoristas não são nossos empregados, são nossos parceiros. Não podem por isso usufruir de benefícios, pois só são estabelecidos contratos de parceria. Trabalham numa empresa, mas com base em comissões. O condutor pode decidir quando quer pôr fim a essa parceria e ficar offline, não tem de contactar a Uber, o condutor tem todo o controlo quanto a isso”, referiu Katie Lee.

Vindos do jogo

No caso de Macau, muitos dos motoristas que trabalham para a Uber foram, um dia, trabalhadores no sector do jogo. “O panorama negativo do sector do jogo fez com que muita gente tenha perdido a oportunidade de encontrar um trabalho, ou ficar a trabalhar na indústria do jogo, e muitos deles são actualmente condutores da Uber. Vemos que mais pessoas em Macau estão interessadas neste tipo de trabalho”, explicou Katie Lee.

Alex (nome fictício) é disso exemplo. O jovem decidiu tornar-se motorista ao abrigo desta plataforma porque sentiu que não tinha mais alternativas. “Trabalhava numa sala VIP de um casino que fechou”, contou ao HM. A Uber disponibiliza dois tipos de pacotes para os motoristas, a tempo integral ou parcial. Alex escolheu o primeiro.

“Aderi ao programa a tempo inteiro, porque precisava. Trabalho 40 horas por semana”, o que, na prática, perfaz oito horas diárias a conduzir passageiros, se pegar no carro cinco dias por semana. Alex conta que chega a fazer cinco mil patacas semanais. “É bom a tempo parcial, mas não integral, porque não temos quaisquer benefícios. A longo prazo não é apropriado porque, com este trabalho, se não conduzirmos não ganhamos.”

Os valores de que fala Alex são praticados um pouco por todo o mundo. Já em Portugal, onde a Uber é legal, os motoristas ganham cerca de 500 euros mensais (cerca de 4400 patacas), pagos a recibos verdes, trabalhando 12 a 16 horas diárias, segundo uma reportagem do jornal online Observador.

Pagar a renda no Airbnb

Quanto à Airbnb, o HM conseguiu confirmar que a plataforma já começa a ser amplamente utilizada em Macau para disponibilizar alojamento aos turistas, mas há um pequeno senão: muitos dos quartos ou apartamentos são arrendados, e quem os publicita no website espera apenas uma ajuda para pagar uma renda cara à revelia do senhorio. Apenas uma utilizadora, que não quis identificar-se, assumiu colocar um quarto no Airbnb para ajudar nas despesas. Vários utilizadores recusaram prestar esclarecimentos perante a evidência de, do outro lado, estar uma jornalista e não uma turista à procura de um quarto.

À luz do regime do arrendamento urbano, é proibido subarrendar um apartamento, mas não há qualquer tipo de controlo sobre isso. Ao HM, Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo, confirmou isso mesmo.

“Não temos meios para implementar medidas contra a plataforma em si, mas estamos perante uma situação em que, se detectarmos pessoas a utilizar apartamentos em Macau para servir de alojamento ilegal a turistas, claro que vamos combater essas acções. Continuamente fazemos a nossa investigação e estamos atentos.”

Se em Lisboa é cada vez mais difícil encontrar uma casa para morar, por estarem quase todas destinadas ao alojamento turístico, o mesmo não se passa em Macau, onde o alojamento de baixo custo demora a aparecer. Ainda assim, os sinais da economia partilhada já se fazem sentir.


“Muitas áreas estão a surgir na ilegalidade”

Economista alerta para inacção do Governo

Albano Martins, economista

Questionámos Albano Martins sobre o novo paradigma económico que determina que é possível ganhar uns trocos apenas com a instalação de uma aplicação no telemóvel. Para o economista, o Governo deveria começar a agir. “Em Macau são menos rápidas e quando entram, entram violando praticamente todas as regras que já estão estabelecidas noutros países. Muitas áreas estão a surgir na ilegalidade porque Macau é ilegal em muita coisa. O Governo deve sempre antecipar-se e deve ter sempre ter os seus fiscais, para garantir que devem antecipar-se os desenvolvimentos e impedir que ocorram de forma ilegal. Isso não está a acontecer.”

Sobre a Uber, Albano Martins assume ter deixado de lado as maravilhas da famosa aplicação. “Os condutores trabalham muitas mais horas do que um trabalhador normal, mas o problema é que nem sempre isso significa ganharem mais. A Uber deveria ser permitida, mas com condições laborais e com regras perfeitamente definidas, de modo a que as pessoas que tenham esses acordos não sejam exploradas ao máximo.”

“É uma forma de se tentar contornar as leis laborais e, ao mesmo tempo, de ganhar dinheiro. É mais uma forma de tentar tirar ao máximo o proveito do trabalho de outrem sem garantir o mínimo de dignidade, e neste momento sou contra”, acrescentou o economista.

Para Albano Martins, os condutores que antes estavam no sector do jogo vão, mais tarde ou mais cedo, perceber os direitos aos quais não têm acesso. “Está tudo a funcionar numa zona de sombra e não me parece que qualquer sociedade deva trabalhar nestas circunstâncias. As coisas devem estar reguladas e as pessoas deveriam ter consciência de quais são as relações laborais que existem.”

Para o futuro, o economista reconhece dificuldades na legalização. “É nessa relação [de prestação de serviços] que é preciso pensar e ver se, mais cedo ou mais tarde, não vai criar mais exploração desenfreada para com aqueles que estão mais desprotegidos. Penso que vão ter muitas dificuldades em serem legalizados num ambiente laboral como é o de Macau”, concluiu.

25 Jan 2017

Ano Novo Chinês | O mundo em movimento

Por estes dias, há milhões de pessoas a viajar na China. E para a China. Apesar das alterações sociais da última década, o ano novo lunar continua a ser a principal festa da família e ninguém quer estar longe de casa. Mesmo que o regresso signifique passar dias em comboios ou na estrada

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão deve ter mais de 20 anos e confessa que, na noite anterior à partida, não dormiu. É entrevistado pela Xinhua e conta que tem pela frente uma viagem de 41 horas. Vai de comboio ter com os pais, que “morreriam de saudades” se, por esta altura, não cumprisse o ritual da reunião familiar.

O homem com quem a agência oficial conversa, logo de seguida, deve andar na casa dos 50. “Claro que tenho saudades de casa”, atira, com as malas na mão. Mostra para as câmaras o que transporta dentro de um saco. “Levo algumas frutas para a minha mãe, tudo importado”, diz, orgulhoso. “Ela já tem 80 anos e não tem dentes. Quero dar-lhe o que há de melhor.”

Os dois entrevistados da Xinhua fazem parte de um grupo de milhões de pessoas que, nas vésperas do ano novo lunar, regressam à terra de origem. “Esta movimentação toda na China é a maior migração interna que se conhece da modernidade”, salienta Fernando Sales Lopes, historiador e mestre em Relações Interculturais.

O modo como a China se desenvolveu nas últimas décadas, com o progressivo abandono das zonas rurais de pessoas que fugiram ao desemprego procurando trabalho nas áreas urbanas, contribuiu em muito para o fenómeno a que se assiste por estes dias.

Aqueles que trabalham e vivem nas fábricas das zonas industriais do país voltam a casa, onde deixaram mulheres e filhos – às vezes, só os filhos. Números de Setembro do ano passado davam conta de que cerca de 61 milhões de crianças foram deixadas nas zonas rurais pelos pais que vão trabalhar nas grandes cidades. Depois há também os que estudam longe da terra natal e que regressam para a entrada do ano novo à mesa dos pais.

A juntar ao grupo da migração, há ainda o da emigração. “Também se deslocam uns milhões do estrangeiro para irem para a China comemorar o ano novo com a família”, observa Sales Lopes.

O ano novo lunar é também festejado fora do país. A data é assinalada em Singapura, na Malásia e noutros países com comunidades chinesas significativas. Londres e São Francisco reivindicam ter as maiores comemorações fora da Ásia. Quase um sexto da população mundial vive em festa a passagem de ano.

Transportes da Primavera

Voltemos à China. As autoridades previam para esta semana um dos grandes picos de viagem do “chunyun”, os 40 dias que compreendem o ano novo lunar e que, numa tradução literal, será qualquer coisa como “transporte da Primavera”. É durante esta semana que regressa a maior parte das pessoas que se encontra longe de casa.

De acordo com as contas do Ministério dos Transportes, estima-se que, diariamente, sejam feitas mais de 80 milhões de viagens até à próxima sexta-feira. Na semana passada – a primeira do “chunyun” –, tinham sido contabilizados 520 milhões, o que equivale a um aumento anual de 3,1 por cento.

Os comboios continuam a ser o meio de transporte favorito, até porque é aquele que fica mais em conta: houve um aumento de quase 22 por cento no número de bilhetes vendidos (61,7 milhões), ultrapassando assim alternativas como as viagens de autocarro ou de avião.

Quanto aos fluxos rodoviários, o ministério diz que as viagens nas principais estradas do país devem aumentar entre oito a dez por cento a partir da próxima sexta-feira, dia em que entra em vigor a suspensão temporária da cobrança de portagens. Até ao dia 2 de Fevereiro, os automóveis não pagam nas auto-estradas, o que faz com que haja um aumento do trânsito um pouco por toda a parte.

Pequim, Tianjin, a província de Hebei, o Delta do Rio Yangtze e, mais perto de nós, o Delta do Rio das Pérolas serão as zonas onde vai ser mais difícil circular, segundo as previsões do ministério.

A Comissão Nacional da Reforma e do Desenvolvimento acredita que, este ano, vão ser feitas 2,98 mil milhões de viagens durante o período entre 13 de Janeiro a 21 de Fevereiro, o que representa uma ligeira subida em relação ao ano passado.

Momento da renovação

Na origem de toda esta movimentação na China está uma explicação de natureza cultural, uma noção cuja origem se perde no tempo. “É o ano novo, a festa da Primavera, é a renovação”, aponta Fernando Sales Lopes, traçando um paralelismo com o Natal. “Em todas as culturas é assim. O ano novo é sempre uma festa familiar. O nosso ano novo não é tão familiar quanto isso porque temos essa reunião da família uma semana antes, no Natal.”

O ano novo chinês, acrescenta, “é uma Primavera, é preparar terras para a sementeira, é preparar tudo para o novo ano, para a abundância, é pedir tudo isso às divindades, pedir felicidade para a família e para que haja comida na mesa”. No tempo em que a China era mais rural, havia uma grande ligação à terra e isso percebia-se nos rituais associados à data. “Hoje uns estarão na terra, outros no meio urbano, e outros ainda estarão noutros sítios do mundo até porque, como sabemos, a emigração chinesa é muito grande”, salienta o investigador.

A festa que aí vem “é um tempo também de respeito pelos ancestrais”. Tudo junto “leva a que seja a grande festa da comunidade chinesa”. O investigador, com obra sobre festividades chinesas, recorda que há outro momento do calendário importante para a família: a Festa da Lua. Ainda assim, não chega aos calcanhares do ano novo.

Os quilómetros que se percorrem, as horas que se passam dentro de um comboio, o tempo de espera nas estações, muitas vezes em condições precárias, explicam-se pelo valor que é atribuído à família na China. E isto apesar de, com o crescimento económico e um ritmo de vida cada vez mais acelerado, a organização social do país estar a sofrer mudanças com consequências também para a relação dentro dos próprios núcleos familiares.

“A família na China é muito valorizada. As famílias chinesas acabam por saber mais quem são e de onde vêm do que nós.”
FERNANDO SALES LOPES, INVESTIGADOR

“A família na China é muito valorizada. As famílias chinesas acabam por saber mais quem são e de onde vêm do que nós”, explica Sales Lopes. “Nós sabemos quem foi o avô e o bisavô, alguns saberão o nome do tetravô mas perde-se a história da família. Nas famílias chinesas não é assim.”

O culto dos antepassados faz com que haja uma grande ligação ao clã e isso acontece independentemente do estrato social. “Poderá parecer algo exclusivo dos ricos, mas não é. Toda a gente tem o seu clã, toda a gente descende de determinado indivíduo que é muito conhecido, ou não, é conhecido na família, mas isso é um factor de união”, vinca o investigador. “A família é um factor muito importante para os chineses, apesar de, às vezes, não parecer, porque a forma como o expressam em público não é tão intensa como a nossa, com muitos beijinhos e abraços.”

Os 40 dias de confusão

De acordo com os arquivos da empresa pública de transportes ferroviários do país, a expressão “chunyun” surgiu pela primeira vez na imprensa chinesa em 1954, para descrever o trânsito intenso que, já à época, se verificava por esta altura do ano novo chinês.

A China sofreu profundas mudanças desde então e também o modo como as autoridades lidam com o fenómeno da migração já não é o mesmo. “Lá vai o tempo em que o fim de ano chinês era comemorado em muito poucos dias. Aliás, era a única folga das pessoas, que trabalhavam o ano inteiro. Hoje é diferente”, diz Fernando Sales Lopes.

A juntar à importância social da festa, está a questão económica, que não se deve apenas ao facto de o país ter uma classe média cada vez mais pujante. “A China enveredou por uma economia de mercado há já alguns anos e, a determinada altura, foi necessário acelerar o consumo interno. A razão para o aparecimento das semanas douradas está aí, na economia. Era preciso que o povo circulasse todo pela China para fazer despesa, para comprar coisas para levar para a família”, explica o investigador. Sales Lopes ressalva que não se trata da componente mais importante do ano novo chinês, mas é um aspecto que não pode ser ignorado.

Os dias que dura o “chunyun” contemporâneo é ainda uma tentativa de evitar um caos ainda maior nas estações de comboios, de camionagem, nos aeroportos e nas estradas. “Por aqui temos meia dúzia de dias, na China são 40, o que é um período importante para as pessoas poderem movimentar-se. É muita gente a viajar”, sublinha. A rede ferroviária de alta velocidade e as novas tecnologias vieram minimizar o impacto, “mas é na mesma uma certa confusão, porque são milhões e milhões de pessoas”.

24 Jan 2017

Violência doméstica | IAS detectou 29 vítimas do sexo masculino

Os homens que são vítimas de violência doméstica em Macau tendem a viver na sombra do medo. Não falam porque não é suposto serem vítimas e muitos temem perder o emprego. O Governo registou 29 casos de violência doméstica que envolvem 11 homens que estão em relacionamentos. Para eles, faltam centros de acolhimento e um diferente tipo de aproximação

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]anhou coragem quando foi expulso de casa. A mulher agredia-o e a família mandou-o embora. Teve de arranjar coragem para começar tudo do zero: era necessário encontrar uma casa e um novo emprego. O estigma, contudo, era maior do que o medo. “Foi difícil para ele, mas depois conseguiu encontrar um alojamento e um emprego. Ganhou confiança para enfrentar o problema e entrar na sociedade.”

A história, descoberta pela Caritas Macau há cerca de um ano, é contada ao HM por Paul Pun, secretário-geral da instituição. O caso deste homem é apenas um de muitos que acontecem no território e sobre os quais pouco se fala. Dados concedidos ao HM pelo Instituto de Acção Social (IAS) revelam que, no ano passado, o sistema de registo central relativo à violência doméstica contou com 29 casos em que as vítimas são do sexo masculino. Onze desses processos dizem respeito a homens que estão em relacionamentos, enquanto 16 casos são sobre rapazes menores de idade. Não foi registado qualquer caso de violência contra idosos ou homens com incapacidades.

Paul Pun garante que há mais histórias por detectar para além dos números oficiais. “Acredito que há mais casos por descobrir, porque os homens que são vítimas de violência tendem a não falar do que se passa e não procuram ajuda. No passado, as pessoas acreditavam que os homens não eram vítimas de nenhum tipo de violência, mas há vários casos a acontecer. Muitas vezes só podem contar aos profissionais, com os quais têm mais confiança. Muitos perdem o emprego”, apontou o secretário-geral da Caritas.

Tendo em conta a sua experiência a lidar com a comunidade chinesa, Paul Pun fala de casos esporádicos, que raramente entram para as estatísticas. “Temos de fazer um maior trabalho para reduzir os casos de violência, incluindo os casos em que os homens são as vítimas. Não encontrei muitos casos de violência doméstica entre famílias, mas os números avançados pelo Governo podem revelar que há mais situações deste género.”

Melody Lu, docente da Universidade de Macau e membro da Coligação Anti-Violência Doméstica, fala da dificuldade que é lidar com estes casos na prática.

“Sabemos que, em Macau, a violência doméstica é predominante nas mulheres, mas não podemos esquecer que as vítimas também podem ser os filhos e os maridos. Quem esteja numa posição mais fraca na família pode ser a vítima e, neste caso, quando as mulheres são mais fortes em termos de personalidade ou têm melhores salários. Mas isso não está reportado. Os homens sentem mais vergonha do que as mulheres em dizerem que sofrem de violência doméstica.”

Os homens “sentem vergonha, sentem que não deveriam ser eles as vítimas”. “Também estão mais esquecidos porque não é suposto que sejam vítimas de violência física ou mesmo psicológica. É mais difícil ver as evidências”, acrescentou Melody Lu.

Homossexuais na penumbra

Anthony Lam, presidente da Associação Arco-Íris de Macau, mostrou-se surpreendido com o número de vítimas registado no ano passado. “É a primeira vez que oiço falar destes números, porque o IAS não contacta connosco. Basicamente não há qualquer tipo de comunicação. Por um lado, é um fenómeno positivo que a legislação sobre a violência doméstica esteja a funcionar em termos práticos mas, por outro, a comunidade gay está totalmente afastada desta lei e há casos de violência que também necessitam de apoio, tanto da parte da associação, como do Governo.”

Se os homens em relacionamentos heterossexuais vivem na sombra do medo, os homossexuais ainda mais. “Há casos escondidos, mas penso que mesmo que os casais homossexuais reportem os casos de violência junto do IAS, como a lei não os protege, o IAS não irá fazer nada para os ajudar”, referiu Anthony Lam.

O presidente da associação que defende os direitos da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero) continua a defender a inclusão dos casais LGBT na lei, numa altura em que se volta a falar da revisão do diploma da violência doméstica.

“Estamos felizes com o facto de o Governo estar a fazer a sua parte, mas diria que não estamos em contacto próximo com a Administração para monitorizar a situação de perto”, sublinhou. “Se me pergunta como podemos melhorar a legislação, a nossa posição mantém-se igual à de há um ano: queremos que os casais homossexuais sejam abrangidos pela lei da violência doméstica. Os casais homossexuais não estão a ser protegidos pela legislação e não há nada que o IAS possa fazer para os ajudar”, frisou Anthony Lam.

Que medidas?

Paul Pun considera que os casos de violência que envolvem homens e mulheres devem ser tratados da mesma maneira pelas autoridades, mas acredita que “a forma de protecção deve ser diferente”.

“Os homens que são vítimas de violência podem perder o emprego. Se as mulheres disserem que são vítimas de violência, continuam a ser protegidas. Em alguns casos, as mulheres tendem a dizer directamente às pessoas, mas os homens têm de se proteger, há uma diferente perspectiva e sentem-se ainda piores. Deve ser feita uma aproximação diferente ao problema.”

Melody Lu fala da falta de acolhimento para as vítimas de sexo masculino. “Em Macau há poucos casos, não porque não há vítimas, mas porque têm vergonha de contar que o são. Quando o IAS toma conta das ocorrências não há uma divisão, homens e mulheres devem ser tratados da mesma maneira. Mas no que diz respeito ao alojamento só temos dois centros, um deles o Centro do Bom Pastor. Não há um centro para vítimas do sexo masculino”, concluiu.

O IAS divulgou os primeiros dados sobre a violência doméstica, após a implementação da lei, em Outubro do ano passado. Foram recebidas 96 queixas só no primeiro semestre do ano, mais do que os casos denunciados em 2015. Quanto às denúncias, foram feitas 80, sendo que envolveram 82 vítimas. No primeiro semestre as queixas foram 96, afectando 97 vítimas.

À data, a presidente do IAS, Celeste Vong, atribuiu estes números ao facto de a nova lei da violência doméstica ter tornado público este tipo de crime.

Celeste Vong disse que as autoridades esperam que as denúncias continuem a aumentar, na sequência da entrada em vigor da lei, e da elaboração de um guia de resposta à violência doméstica destinado a diversas entidades e instituições. Foi criada, em Novembro de 2015, uma linha de apoio às vítimas.


Juliana Devoy | Número de casos vai aumentar este ano

A directora do Centro do Bom Pastor, que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, garante que os casos de violência sobre os homens são menos comuns do que no feminino. “Todos podem ser vítimas de violência, os idosos também. Estou certa de que há casos de homens que são vítimas de violência, mas os números não se podem comparar. Na sua maioria, os homens são os agressores e as mulheres as vítimas.” Independentemente disso, garante que os casos deverão voltar a aumentar este ano. “Seria necessário fazer uma investigação comparativa todos os anos para saber se há ou não um aumento de casos. Penso que os casos ao longo dos anos têm sofrido uma flutuação, mas não diminuíram, e não me parece que o número de casos vá diminuir este ano. Pelo contrário, penso que vão aumentar. As pessoas vão sentir mais confiança em falar.” Juliana Devoy acredita ser necessária mais formação junto dos agentes da autoridade, para que saibam mais facilmente identificar os casos de violência doméstica. “Espero que haja uma melhor formação dos polícias na identificação dos casos e mais encorajamento junto das vítimas para que possam reportá-los. Esperamos que, em breve, haja uma diminuição da violência doméstica, mas não acho que vá desaparecer para sempre. Na maior parte dos lugares onde a lei foi testada surgiram novos casos de violência, com pessoas que ganharam coragem para denunciar as situações.”

17 Jan 2017

Reportagem | Multa, uma constante da vida

Todos os meses, o orçamento de famílias que residem e trabalham em Macau tem um item extra: as multas de estacionamento. Em particular para quem tem de levar e buscar os filhos à escola. Entre 2015 e 2016, só as multas em lugares com parquímetros aumentaram quase 35 por cento

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este mundo há duas coisas infalíveis: a morte e os impostos. Em Macau podem-se acrescentar as multas por estacionamento. Como se não faltassem razões para pôr os nervos em franja a quem conduz, as multas são a cereja no topo de um dispendioso bolo, em especial para as famílias que usam o automóvel para largar e buscar crianças em infantários e escolas.

André O, designer de profissão, até já montou um esquema para contornar a inevitável multa sempre que se desloca à escola das filhas. É necessário trabalho de equipa. “Eu e a minha mulher tentamos ir juntos, para que fique sempre um dentro do carro, para o caso de vir a polícia”, explica. Enquanto a mulher leva, ou vai buscar, as miúdas à sala de aula, André fica no automóvel para discutir com a autoridade. A outra opção é manter-se em circulação, dar uma volta ao quarteirão e apanhar a mulher na volta. Têm de moldar o quotidiano e adaptar-se de forma a contornar uma situação que é recorrente, e que lhes pode dar um desfalque de cerca de três mil patacas no orçamento familiar. O casal não está sozinho neste ardil. “Sinto uma certa perseguição, e tenho vários amigos que já tiveram um prejuízo mensal de 10 a 13 mil patacas”, confessa André.

O designer chegou ao ponto de ter de elucidar um polícia sobre o significado de um sinal de trânsito. “Não sabem distinguir entre um sinal de proibido estacionar, mas que permite paragem temporária, e a simples proibição”, comenta. Como vêem um sinal de proibido, automaticamente assumem que este é absoluto e universal. Já lhe aconteceu recusar sair do lugar onde se encontrava parado. “Estava à espera da minha mulher, que tinha ido levar as minhas filhas ao colégio, num lugar onde podia estar parado. O polícia disse-me que tinha de sair e pôr o carro num estacionamento. Perguntei-lhe onde. Ele disse que havia vários, desafiei-o a vir comigo vermos se encontrávamos um lugar”, lembra, humorado pelo caricato da situação. O agente acabou por desistir e não multou o designer. “Deve ter reparado que era um cidadão complicado de lidar, que não valia a pena estar a chatear-se e lá foi à sua vida sem me multar”, remata. Situações normais numa cidade que viu de Novembro de 2015 para Novembro de 2016 um aumento de 25,96 por cento no total das multas por estacionamento ilegal. Até Novembro do ano passado – os dados mais recentes da PSP – foram passadas 860.924 multas de estacionamento. Tendo em consideração que, no mesmo período, existiam em Macau 250.871 veículos matriculados, isto dá uma média de quase quatro multas por ano por viatura.

Sem opções

Usar automóvel em Macau não é um capricho, mas a única alternativa para muitas famílias. “Utilizo o carro todos os dias para levar as crianças à escola de manhã, depois para as ir buscar ao fim do dia e ainda para levá-las a actividades extracurriculares.” Quem o diz é Maria Sá da Bandeira, mãe de três filhos e jurista de formação. Quando questionada sobre a hipótese de usar os transportes públicos, responde prontamente que é impensável. “Três crianças, mochilas, sacos, termos, materiais disto e daquilo, é impossível. Com horários para sair de um sítio e ir para outro, preciso mesmo do carro”, explica. As dificuldades agigantam-se de forma inversamente proporcional ao tamanho dos rebentos. “Um deles é pequenino – cansa-se, ao fim de algum tempo já não consegue andar, não consegue carregar as coisas”, diz.

É uma história recorrente e, se o movimento é obrigatório, a paragem é um quebra-cabeças. “Não há sítio para parar em Macau e na Taipa, e agora ainda é pior porque as obras são constantes”, explica André O, acrescentando que percebe “que parar em segunda fila congestiona o trânsito, mas não arranjam solução”.

Para juntar mais um problema ao longo calvário que é arranjar um lugar para o carro, os silos de estacionamento, sempre cheios, não são propriamente locais agradáveis. “Basta entrar num para perceber que são utilizados como urinol público, o cheiro é nauseabundo – se a pessoa tem o azar de deixar cair as chaves no chão tem de ir directamente para a desinfecção”. As palavras são de Sérgio de Almeida Correia, advogado, que não entende por que acabaram com muitos lugares de estacionamento em zonas de via pública. O jurista só encontra como explicação o proteccionismo aos concessionários dos silos.

Dois pesos, várias medidas

No entanto, a caça à multa não apanha todas as presas que prevaricam os regulamentos do trânsito. Para o advogado Sérgio de Almeida Correia, o problema não é a existência e o cumprimento da lei. “Há muitas vezes negligência grosseira na aplicação da lei, havendo situações em que há excesso de zelo e outras em que há violação do dever de zelo. Existem dois pesos e várias medidas, consoante o infractor”, explica o jurista. Enquanto não existe tolerância para cidadãos, as autoridades fecham os olhos às infracções de trânsito cometidas por transportes públicos, por autocarros de concessionárias de casinos, por veículos de transporte de turistas e por os mil e um atropelos às normas de tráfego resultantes de obras de construção. Já para não falar das infracções cometidas por quem aplica a lei. “Vi várias vezes a polícia a infligir regras de trânsito, por exemplo, aqui no NAPE param em cima de passadeiras, à saída de curvas, para ir multar carros, mas o próprio veículo deles está em infracção”, conta Sério de Almeida Correia. 

A injustiça salta à vista quando se olha para a impunidade com que camiões e autocarros estacionam na faixa de rodagem para deixar turistas, por exemplo, junto aos casinos no Cotai.

Os próprios autocarros das concessionárias de transportes públicos seriam terreno fértil para multas, caso houvesse essa vontade por parte da polícia. “Basta estar ali na rotunda junto ao Hotel Lisboa para ver como é que eles entram na via depois da tomada e largada de passageiros, e a polícia não actua nessas situações”, comenta o advogado.

Também André O se sente revoltado com a actuação dos autocarros públicos que, simplesmente, “param na via pública”. Na Ilha Verde, exemplifica, “estacionam ao final do dia e ninguém multa”. As motas da polícia passam, multam os carros que estão mal estacionados, e não passam cartão aos autocarros. “Mesmo durante o dia, os autocarros param em segunda fila ali ao pé do Canídromo”, indiferentes ao caos que causam ao trânsito, não usando o recorte na faixa de rodagem onde podem encostar.

Enquanto quem reside em Macau desespera, quem vem jogar não só passa ao lado dos problemas dos que cá vivem, como ainda os potencia. “Nós, os residentes, que temos de fazer a nossa rotina diária dentro da cidade, somos altamente prejudicados com o movimento turístico que aqui há. Somos muito facilmente multados por pararmos o carro, mal estacionado, durante um bocadinho porque temos de ir a correr deixar uma criança, ou porque passou um minuto no parquímetro e não conseguimos naquele momento pôr a moeda”, desabafa Maria Sá da Bandeira. “O Governo parece ter todo o interesse em manter a situação, sem qualquer tipo de preocupação adicional com o prejuízo para o quotidiano das pessoas”, acrescenta.

Quid juris

António Katchi, professor de Direito, também vê na arbitrariedade de tratamento um atropelo dos direitos mais elementares da população. “Mesmo com uma vigilância orwelliana sobre tudo o que se passa na estrada, por meio de radares e de câmaras de vídeo, só uma pequena parte das infracções de trânsito pode ser realmente autuada, processada e punida”, começa por ressalvar. Ou seja, a aleatoriedade é, portanto, praticamente inevitável. Mas esta não significa arbitrariedade. “As autoridades devem definir prioridades para a sua acção de fiscalização, e devem atender aos diversos objectivos e princípios que norteiam, ou devem nortear, a sua acção”, explica António Katchi. O jurista adianta ainda que o objectivo deveria ser a segurança dos transeuntes e dos automobilistas, respeitando “o princípio da prossecução do interesse público, o princípio da justiça, o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc.”. Como tal, o académico considera as prioridades das autoridades “altamente discutíveis à luz destes padrões”.

Se estamos, ou não, na presença de uma violação do princípio da igualdade, como se diz em legalês, a doutrina diverge. Para Sérgio de Almeida Correia, o princípio fundamental tem como propósito defender a equidade em casos de maior relevância, que vão além de uma infracção administrativa aos regulamentos de trânsito.

Maria Sá da Bandeira, jurista de formação, entende que a violação do princípio da igualdade é evidente. “O princípio da igualdade diz-nos que, para situações iguais, tratamentos iguais, para situações diferentes, tratamentos diferentes. Mas estando nós a falar de situações diferentes, por se tratarem de interesses com prioridades distintas, penso que aí o princípio da igualdade é violado”, comenta. Maria aproveita para acrescentar que “o interesse dos residentes de Macau tem de ser, em muitas situações, posto à frente do interesse turístico da cidade”.

A circunstância das pessoas se encontrarem entre a espada e a parede, a terem de infringir um regulamento de trânsito para conseguirem deixar os filhos na escola, pode representar outra situação digna de análise jurídica.

António Katchi considera que “se uma pessoa comete uma infracção em circunstâncias que não lhe permitiriam actuar de outra maneira, então dificilmente se poderá dizer que agiu com culpa”. Para o académico, poderá alegar-se que a pessoa agiu em estado de necessidade, o que representa uma causa de exclusão da culpa. “Noutros casos poderá alegar-se que a pessoa se encontrava numa situação de conflito de deveres, ou seja, o acto da pessoa nem sequer chegou a constituir um facto ilícito, pois o cumprimento do dever exclui a ilicitude do acto”, explica António Katchi.

Independentemente das interpretações jurídicas, das considerações filosóficas, ou da posição dos astros, tudo indica que as odisseias com o estacionamento vão continuar. O facto é que está nas mãos do Governo local resolver a situação. Porém, a Medalha de Valor que o Executivo entregou recentemente ao comissariado do Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública parece indicar que no paraíso está tudo bem.


Arquitecto Nuno Soares defende plano estratégico de mobilidade

Punir sem procurar soluções para a situação complicada que hoje se vive no trânsito não vai resolver o problema, considera o arquitecto Nuno Soares. Para o urbanista, as autoridades de Macau devem pensar num plano estratégico de mobilidade e não estarem à espera do metro ligeiro, sistema que, de resto, não vai resolver todos os dilemas de quem tem de se deslocar no território.

Na origem de tudo, contextualiza Nuno Soares, “está um cenário em que a população de Macau está a crescer, a população da Taipa e de Coloane também continua a aumentar”. Em Seac Pai Van foram colocadas muitas famílias, recorda, e “o crescimento normal urbano da Taipa faz com que haja obviamente muitas mais pessoas a viverem lá”.

Acontece que a grande maioria dos serviços públicos e muitos empregos continuam a ser na península. “Os movimentos pendulares têm aumentado nos últimos anos, por via do crescimento da população e desta expansão urbana na direcção da Taipa e de Coloane.”

O fenómeno também se regista em sentido contrário, por causa dos residentes que trabalham nos casinos. “Há um stress que está a ser provocado na rede de transportes públicos. Os autocarros têm mais pessoas a usá-los e há mais necessidade de transporte individual porque, ao fim e ao cabo, as pessoas estão mais longe do seu local de trabalho”, observa.

O resultado destas modificações no tecido social e económico está à vista: “Temos em Macau uma rede viária que é das mais congestionadas ao nível mundial. Há efectivamente um problema de escoamento de trânsito e de falta de lugares de estacionamento para a quantidade de carros.”

Para o urbanista, a única forma de se tentar dar a volta ao texto, neste momento, é um plano estratégico de mobilidade. Quando o metro estiver a funcionar, “obviamente que vai ajudar porque vai ligar a península ao Cotai”, mas não vai fazer com que Macau passe a ser o paraíso da mobilidade. E porque ainda faltam vários anos até que o metro seja uma realidade, há que minorar os problemas. “Precisamos claramente de um plano de mobilidade que ajude a gerir as diferentes redes”, propõe Nuno Soares.

A solução possível

O arquitecto explica como é que se faz um plano destes. Em primeiro lugar, há que perceber o que está em causa. “Há aqui um sistema de transporte público, um sistema de shuttle bus e um sistema de transportes individuais”, indica. Existem ainda situações de pico, aponta, dando um exemplo pessoal. “Quando levo a minha filha à escola de manhã, há um congestionamento provocado pelas escolas. Há um congestionamento provocado por edifícios singulares onde trabalham muitas pessoas”, indica.

Juntando estes aspectos, “tem de se organizar os sistemas e resolver os momentos em que há entropia”, um exercício que tem de ser feito de “uma forma sistemática completa”. A solução “não é milagrosa”, mas ajuda em muito, entende o urbanista.

Em termos práticos, e pegando no exemplo do sistema de autocarros públicos, Nuno Soares sustenta que tem de ser feita uma alteração. “Muitas das nossas linhas são históricas, ou seja, são linhas cujo percurso é feito há muitos anos. Não são muito objectivas. Os turistas queixam-se muito, quando chegam a Macau, que é difícil usar os autocarros porque não estão organizados como um metro, ou seja, com uma linha periférica, com a linha central, com a linha transversal”, analisa. Há que fazer uma racionalização, apostar na criação de corredores e tornar “os percursos mais evidentes, mais fluidos”, mas de “uma forma integrada em toda a península”.

Quanto ao tratamento das situações de pico, o urbanista recupera a situação que se vive à porta das escolas. Os estabelecimentos de ensino não estão circunscritos a uma só zona pelo que, antes de mais, é necessário fazer estudos pontuais – que deverão, no entanto, ser parte de uma abordagem sistemática.

“Um dos problemas é largar as crianças e voltar a recolhê-las, o ‘drop-off’. As escolas têm de ter concessionadas zonas de drop-off, zonas onde os pais param para largarem as crianças e as recolherem. Em situações de pico, esta solução aumenta muito a fluidez”, defende.

Falta de alternativas

Mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão ter de começar a usar menos os carros que têm na garagem e optarem por outras soluções, porque “temos motas e carros a mais”. O urbanista, que anda de bicicleta sempre que pode, é defensor de alternativas aos transportes privados, mas diz também que “uma estratégia só de punição, de tornar as coisas mais caras, não vai resolver” o problema.

“Se temos regras temos de as implementar, mas temos de pensar em respostas. A solução não deve estar na punição. O Governo deve pôr-se como alguém que resolve, alguém que identifica problemas e que toma medidas para os solucionar, não só como alguém que pune quem não cumpre”, afirma. “É muito importante que o Governo assuma este papel.”

O arquitecto não está contra o aumento do valor para a utilização de veículos pessoais, mas as acções neste sentido não podem ser desacompanhadas de alternativas. “Tem de ser um conjunto de medidas que, ao mesmo tempo que se desincentiva o uso do transporte individual, se incentiva o uso do transporte colectivo. O Governo tem de fazer aquilo que lhe compete – melhorar a rede e as condições”, conclui.

NÚMEROS
  • 25,96% foi o aumento das multas de estacionamento entre Novembro de 2015 e Novembro de 2016
  • 860.924 é o número de multas de estacionamento nos primeiros 11 meses de 2016
6 Jan 2017

Imprensa | Bancas em risco de extinção. Títulos exclusivamente online daqui a dez anos

Macau corre o risco de se tornar num dos poucos territórios do mundo sem venda de jornais e revistas nas bancas tradicionais daqui a um punhado de anos. A era digital e os conteúdos online gratuitos ditam esse fim. Os velhos comerciantes mantêm as bancas que herdaram da família, com lucros magros

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ada banca tem o nome de família que vem dos tempos em que ainda não havia Internet e os jornalistas escreviam à máquina as notícias que seriam impressas. Já são raras mas persistem, sobretudo no Leal Senado. O negócio é fraco e quase não dá lucro, dizem os comerciantes com quem o HM falou. A existência de uma política de subsídios à imprensa portuguesa e chinesa permite que todos os conteúdos dos jornais estejam disponíveis online na íntegra, sem que o leitor tenha de fazer subscrições. Sem um mercado publicitário forte que sustente a imprensa, a era digital promete chegar ainda mais depressa do que o próprio futuro.

Apesar de as bibliotecas públicas estarem cheias de idosos a ler jornais, a verdade é que são poucos os que vão comprar o jornal diário à banca do costume, logo pela manhã. Chan Lam Kei, proprietário da banca “Chan Lam”, situada no Leal Senado, diz que as condições de negócio mudaram muito.

“A banca tem 60 anos de história e tem o nome do meu avô. A venda de jornais caiu duas vezes, com a consulta na Internet e a televisão com noticiários durante todo o dia. Só a geração mais velha é que tem o hábito de ler jornais com um copo de chá na mão, nos restaurantes de yum cha”, conta.

“Deixei de fazer entregas de jornais porque não há subscrições e não há praticamente jovens a comprar jornais, só o fazem para realizar os trabalhos de casa. Trabalhar neste sector é difícil, o horário de trabalho é longo. Não vão haver jovens a quererem fazer este trabalho”, acrescenta.

Na zona do Leal Senado persistem quatro bancas de jornais, mas outras quatro fecharam nos últimos anos, recorda Chan Lam Kei. Além da banca localizada na zona da Praia Grande, começa a ser raro encontrar um sítio que venda jornais.

Yan Kuanzhi, com quase 80 anos, é o dono da banca Wa Kei, na Almeida Ribeiro. Também para ele os tempos têm sido difíceis. “A banca era propriedade dos meus pais. O volume de negócios caiu cerca de 80 por cento.”

A chegada das lojas de conveniência, que também vendem jornais em chinês e inglês, “afectaram o negócio”, aponta o comerciante. As novas medidas de controlo do tabaco também. “A proibição de fumar fez com que a venda tenha caído 90 por cento. Ganho umas dezenas de patacas por dia. Não temos dinheiro e dependemos do que recebemos do Governo para sobreviver”, frisa Yan Kuanzhi.

Os livros da China

Uns passos mais acima, bem perto da Livraria Portuguesa, está Chong, proprietário da banca “Kuong Kei”, um negócio que começou nos anos 60. Chong não paga impostos pelo seu negócio porque o Governo resolveu isentar as bancas desse pagamento, mas antes pagava duas mil patacas por ano.

Apesar do panorama negro das bancas de jornais, Chong ainda tem um laivo de optimismo. “A Internet não afectou muito porque há sempre conteúdos que não se conseguem ler online, como os artigos de opinião ou os contos. Mas também é verdade que os jovens raramente lêem jornais.”

Chong revela que os turistas, ao invés dos jornais, preferem comprar livros de teor político que fazem algumas críticas ao Partido Comunista Chinês e que não se vendem no interior da China.

O jornal com maior número de circulação é o jornal Ou Mun, existindo outros títulos de língua chinesa como o Jornal do Cidadão ou o Jornal Va Kio. São ainda vendidos, com uma menor tiragem, jornais em língua portuguesa e inglesa, bem como alguns títulos de Hong Kong.

Até ao fecho desta edição não foi possível obter reacções das direcções dos jornais de língua chinesa sobre o esperado fim das tradicionais vendas em banca, e de como isso poderá afectar a fatia da população que ainda não consegue ler as notícias à distância de um clique.


Títulos exclusivamente online daqui a dez anos

O analista Larry So apresenta um futuro algo dramático para os jornais impressos, sejam eles chineses, portugueses ou ingleses: daqui a dez anos restará nas bancas um ou dois títulos, sendo que todos os outros passarão a estar disponíveis apenas online.

“Essa é uma tendência inevitável, e acredito que nem mesmo a política dos subsídios do Governo consiga evitar isso. Apenas um ou dois jornais irão sobreviver no seio da comunidade. E o resto dos jornais serão online. Isso irá acontecer dentro de dez anos”, disse ao HM.

O panorama não deverá ser diferente para o nicho luso. “Os jornais portugueses enfrentam o mesmo problema que os jornais chineses. Talvez daqui a uns anos haja apenas um jornal português e um inglês à venda. A circulação dos jornais ingleses e portugueses é muito baixa. Os jornais chineses de pequena dimensão são subsidiados, mas não é suficiente para a sua sobrevivência.”

O fim das bancas tradicionais de venda de imprensa poderá representar um problema para uma velha geração que não se soube adaptar ao computador. “Estamos a entrar na era digital e há muitos media que começaram a mudar para o online. Essa é uma das razões para o decréscimo da imprensa. A segunda razão é que temos jornais em formato papel mas têm distribuição gratuita. Com todos estes novos formatos temos uma queda. A geração mais velha está habituada a ler as notícias em papel e necessita de ter este meio para se informar. Isso poderá trazer alguns problemas à geração mais velha, que costuma ir às bibliotecas ler os jornais”, referiu Larry So.

O académico considera que o fim das bancas não trará um decréscimo da liberdade de informação e de expressão. “Isso não significa que os media online não irão manter essa liberdade de expressão e de publicação. É algo que não depende do formato de publicação. Haverá algumas limitações junto da sociedade. Tudo dependerá das políticas e da atitude do Governo em querer que se mantenha a democracia e a liberdade de expressão.”

Dez por cento de leitores

Agnes Lam, docente da Universidade de Macau (UM), realizou um inquérito em 2002 que dava conta de 60 por cento de leitores diários de jornais impressos. Anos depois, esse número baixou para dez por cento.

A académica e ex-jornalista fala de uma baixa circulação da imprensa. “Os valores de circulação dos jornais não ajudam à maioria dos títulos, e não geram lucros directos, são muito baixos. A importância de um jornal vai tornar-se menor e penso que poucos jornais hoje em dia têm verdadeiros lucros. Talvez o Ou Mun ou um título português.”

Ainda assim, Agnes Lam acredita que “há características importantes nos media tradicionais. “Prestam mais atenção aos factos, ajudam a criar uma agenda junto da sociedade. Isso é importante para a sociedade. Este é um factor fundamental para a democracia.”

Em Hong Kong, território com mais títulos e um forte mercado publicitário, onde não há subsídios públicos atribuídos aos media, o panorama é bem diferente, apontou Agnes Lam. A aquisição do South China Morning Post pelo milionário chinês Jack Ma fez dele um título gratuito online, mas nem por isso deixou de ser publicado em papel.

“A situação em Macau é diferente. Temos mais jornais chineses, mas penso que esta indústria não é muito normal, pois um proprietário de um jornal tem também alguma influência política. Muitos dos proprietários não se preocupam com a leitura que os jornais irão ter”, concluiu Agnes Lam.

5 Jan 2017

Saúde | Tatuadores operam sem fiscalização e licenças especiais

Em Macau, as lojas de tatuagens abrem portas sem uma licença específica, enquanto nas redes sociais proliferam páginas de tatuadores que se oferecem para fazer o trabalho em casa, sem qualquer fiscalização. Tatuados e tatuadores pedem legislação que garanta a higiene e o controlo de doenças

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]iago ostenta num dos braços uma tatuagem feita em Macau há alguns anos, numa loja que, no fim de contas, não era bem uma loja. Tiago nem sequer sabe se essa loja, localizada no rés-do-chão de um prédio, tinha licença para ter as portas abertas.

“É uma habitação que foi alterada para ser uma loja de tatuagens, mas não sei se tem autorização ou não. Não sei se tem licença, é uma espécie de apartamento T2 localizado no rés-do-chão, sem qualquer publicidade ou visibilidade cá para fora. Só quem sabe é que lá vai.”

A experiência vivida por Tiago, fotógrafo e designer, radicado no território há alguns anos, é comum para quem decide fazer uma tatuagem em Macau. Se é verdade que, nos últimos dois anos, houve vários espaços a abrir portas, com alguma qualidade, a verdade é que continua a não existir legislação específica para esses serviços. Não existem, assim, quaisquer regras quanto à legalização do espaço, a utilização de materiais e equipamentos ou até quanto à idade mínima para fazer uma tatuagem. É comum vários tatuadores – chineses, portugueses ou filipinos – promoverem o seu trabalho nas redes sociais e realizarem tatuagens em casa do cliente, sem que haja qualquer fiscalização.

Tiago teve um pequeno azar, que poderia ter sido grande: após ter feito a tatuagem, teve uma pequena infecção, que tratou em casa. “A minha tatuagem tem vindo a perder a cor e quando fiz os retoques finais infectou um pouco em algumas partes. Não fui ao hospital, desinfectei em casa com água e um creme. Se fosse mais grave, talvez tivesse de ir ao hospital.”

É por isso que defende que deveria haver uma legislação específica para um sector que está a crescer e que vive no vazio em termos legais. “Penso que as coisas deviam ser abertas e legalmente mais fáceis, também não sei se é fácil ter licença para isso. Devia haver uma maior fiscalização e alguma licença especial, porque é um trabalho quase cirúrgico, são usadas agulhas. Se a tatuagem não for bem feita é uma maneira de transmitir doenças, até mortais. Como é óbvio, o Governo devia fiscalizar e andar mais em cima disso. Da parte das pessoas que fazem tatuagens, deviam investir mais em material de topo, investir na qualidade, para que os trabalhos sejam melhores”, sustenta o fotógrafo e designer.

Uma espécie de cosmética

A falta de legalização dos tatuadores e das lojas não é um problema exclusivo em Macau. Em Hong Kong, o panorama é semelhante e é bastante fácil encomendar um trabalho deste género através das redes sociais. Em Portugal chegou a existir um projecto de lei na Assembleia da República, que não avançou. Um estudo de 2016, elaborado pela Comissão Europeia, mostra que é escassa a legislação sobre tatuagens e a formação de quem as faz. Há 60 milhões de europeus com tatuagens no corpo, mas ficou provado que 60 por cento dos pigmentos usados em tintas são “azo” pigmentos, ou seja, com o passar do tempo poderão originar problemas cancerígenos. Muitas das tintas não são, sequer, fabricadas apenas para a realização de tatuagens.

Mandarim Wong, que há dois anos abriu a ZZ Tattoo, aprendeu a tatuar com um amigo. Por norma recebe um cliente a cada dois dias, tendo falado de um mercado que, apesar de recente, já está saturado.

“Há muitos artistas que prestam serviços na casa dos clientes e levam o seu próprio equipamento. Não têm lojas e não é difícil encontrar este tipo de tatuadores. Existem muitos. Em Macau não é preciso licença para ser artista de tatuagens. O Governo também não exige licença. Sou uma tatuadora e não tenho qualquer licença, porque é difícil ter uma licença própria para este sector”, contou ao HM.

“Em Hong Kong, na China e em Macau as lojas de tatuagem não precisam de uma licença específica, e muitas têm licenças como se fossem lojas de cosmética”, referiu Mandarim Wong, que defende, contudo, ser necessária alguma regulamentação.

“Concordo que é preciso alguma legislação para regular o sector das tatuagens porque, para fazer uma tatuagem, é necessária uma anestesia, e esse é um tipo de medicamento. Sei que houve clientes que sofreram algumas alergias cutâneas depois de fazer tatuagens.”

Grace Punx, da Muse Tattoo, também defende novas medidas. “Pensamos que o Governo poderia providenciar algum tipo de licença como uma opção para as lojas de tatuagens, por forma a mostrar aos clientes que seguimos padrões profissionais em termos de segurança e higiene.”

Nesta loja, em operação desde 2014, “todos os tatuadores são profissionais treinados que seguem padrões de higiene semelhantes aos das lojas do Reino Unido ou dos Estados Unidos”. Quanto ao equipamento, “é esterilizado antes e depois da sua utilização”, confirmou Grace Punx.

Rui Furtado, médico cirurgião e ex-presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa, também defende a implementação de regras. “Penso que deveria haver uma supervisão para esse tipo de actividade. Agora, como poderá ser feita não faço ideia, uma vez que eles não são médicos, enfermeiros ou pessoal de saúde. Pelo menos deveria ser feita uma supervisão aos locais onde se fazem as tatuagens, pelos Serviços de Saúde. Julgo que é difícil controlar isso.”

O HM inquiriu os Serviços de Saúde e o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) quanto à atribuição das licenças. Apenas o IACM confirmou que não atribui licenciamento a este tipo de lojas. Até ao fecho desta edição não foi possível obter uma resposta por parte da direcção de serviços liderada por Lei Chin Ion.


“A qualidade não é nada de especial”

Apesar de estarmos perante um mercado em crescimento, a verdade é que a qualidade das tatuagens continua a não ser a desejada por muitos dos aficionados. Susana Torres, designer, é peremptória: “Em Macau fiz uma tatuagem há 15 anos e fiquei tão mal servida que nunca mais tive coragem de repetir. A maioria que fiz foi em Hong Kong.”

“Em Hong Kong a oferta é imensa, os artistas são vários e de muito talento. O meu tatuador, por exemplo, é da África do Sul. Existem lojas de tatuagens em Hong Kong em que a lista de espera é de quase um ano para certos artistas. Em Macau há casas de tatuagens há muitos anos, mas são muito fracas”, acrescentou a designer.

Susana Torres põe completamente de parte a possibilidade de atravessar as Portas do Cerco para fazer este tipo de trabalhos, mas garante que há muitas pessoas a procurarem Zhuhai para fazerem algo mais ligado à cosmética, como sobrancelhas permanentes.

“Antes de fazer uma tatuagem, e se estou num sítio que não me é familiar, tento ver primeiro o traço do artista. Aqui em Macau, até há pouco tempo, não havia nenhuma loja em que eu confiasse o meu corpo, pois os traços que apresentavam eram realmente muito fracos. Os tatuadores safam-se em termos básicos e pouco mais.”

Apesar de referir algumas lojas recentes com um nível mais superior, Tiago defende que “a qualidade não é péssima, mas não é nada de especial, se compararmos com Hong Kong e com o que estamos habituados a ver na Europa ou até em Taiwan, na Tailândia. Esses trabalhos não se comparam nada com o que é feito aqui. Muitas vezes não se investe no material, nas tintas.”

Jorge Tavares, jogador de futebol, tem tatuagens em várias partes do corpo, muitas delas feitas em Portugal. Nunca fez uma tatuagem em Macau, nem pensa fazer.

“Conheço pouco a situação em Macau. Colegas meus e pessoas conhecidas optam por ir fazer tatuagens em Hong Kong, os valores são mais elevados mas vale a pena pela qualidade do trabalho. Ainda há o receio de tatuar em Macau. Ainda há muita coisa para explorar. Dificilmente farei uma tatuagem aqui, é uma área que não é muito explorada. Não há o passa-palavra em termos de qualidade e higiene. Aqui temos pessoas com tatuagens e sem grande conhecimento da matéria”, disse ao HM.

Susana Torres acredita que, em termos de fiscalização de qualidade e até de higiene, cada pessoa deve escolher bem o seu tatuador. “Há imenso pessoal que publicita o trabalho no Facebook e que faz tatuagens em casa. O fazer uma tatuagem em casa não torna o trabalho mais perigoso. Tenho tatuagens feitas em minha casa que seguiram todos os códigos de higiene. Isso passa um pouco pela experiência de quem vai ser tatuado e saber o que se deve ou não fazer.”

4 Jan 2017

Análise | O mundo no ano novo

Enquanto a Síria arde, a Europa explode e lança estilhaços de nativismo e xenofobia que alimentam radicalismo político. Na Ásia, joga-se um complicado xadrez, a olhar para o outro lado do Pacífico. 2017 tem a oportunidade de arrepiar caminho em relação aos erros do ano anterior, mas os sinais não apontam nesse sentido

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ano começou com rajadas de tiros numa discoteca em Istambul que resultou na morte de 39 pessoas e em 65 feridos. O período festivo já tinha sido manchado a sangue em Berlim, quando um camião entrou numa feira de rua ceifando a vida a 12 pessoas, e ferindo mais de 50. Já vimos isto no passado, tanto no Bataclan em Paris, como na Promenade de Nice, modus operandi e resultados semelhantes. Seguindo a máxima de que o ódio gera mais ódio, o medo do terrorismo, a grande ressaca do globalismo e as falhas do neoliberalismo têm alimentado um populismo nativista que ameaça a paz e a coesão europeias. No meio da onda de medo há uma crise de refugiados que tem sido tratada com uma falta de humanismo que reforça a ideia de que nunca aprendemos com a história. Neste domínio, é imperioso uma resposta una e eficaz das instituições europeias, no plano internacional. Tanto na política externa de segurança, como na resposta à crise humanitária dos refugiados.

Infelizmente, na ressaca do Brexit e do crescimento de movimentos nacionalistas, a União Europeia parece caminhar no sentido da dissolução, numa altura em que os povos europeus mais precisam de unidade. “É necessário repensar o projecto europeu”, comenta o especialista em ciência política Rui Flores. Apesar da ascensão do eurocepticismo, as sondagens mostram que as pessoas continuam a apoiar o projecto europeu. Mas a Europa não tem correspondido com a agilidade necessária aos desafios com que se depara. O facto é que as próprias fundações do federalismo europeu parecem em risco, sendo este o tempo para agir. Situação que aflige Rui Flores, uma vez que o investigador não está certo “que tenhamos homens à altura do momento”.

Enquanto a Europa se prepara para ir a votos, a crise dos refugiados prossegue. Esta semana, mais de mil migrantes tentaram forçar entrada por Ceuta, numa sangria que parece não ter fim. O conflito sírio criou cerca de cinco milhões de refugiados, sendo que metade encontraram refúgio em solo turco. Um santuário/tampão comprado politicamente pela União Europeia, mais preocupada em acalmar oposições internas populistas do que em encontrar uma situação mais decente do ponto de vista humanitário.

Médio Oriente continua a arder

Entretanto, o Iraque continua a ser assolado por atentados como se fosse um facto natural com pouca, ou nenhuma, cobertura mediática, ou ultraje solidário nas redes sociais. Parece ser um facto incontornável da vida.

Um pouco a nordeste, prossegue uma das maiores crises humanitárias da região. A Síria continua a ser campo de batalha de uma guerra proxy entre grandes blocos bélicos e económicos, enquanto desperdiça sucessivos cessares-fogo com mais bombardeamentos. Em vez de se procurar resolução internacional, ou de se seguir a via diplomática, Aleppo continua a ser terraplanada, sem dó nem piedade, pelas aviações russa e do regime de Bashar al-Assad, indiferentes à distinção entre civis e grupos rebeldes. O regime sírio é um aliado de Moscovo, ao passo que Washington viu na guerra civil uma oportunidade para depor al-Assad, e controlar as vias de transporte de gás natural e petróleo. Pelo meio proliferou o ISIS, nascido do caos e do desacerto dos serviços secretos norte-americanos e da indiferença dos outros players internacionais.

Entretanto, o Iémen é palco de uma batalha sangrenta e silenciosa entre o Irão e a Arábia Saudita, com o conflito xiita/sunita a tomar o palco iemenita desde a tomada do poder pelos Houthis, um subgrupo xiita. Ora, aos sauditas não lhes agrada ter um país controlado por um grupo xiita à porta. Como tal, tem continuado uma campanha de bombardeamentos quase indiscriminados, arrasando escolas e hospitais, com a total indiferença das Nações Unidas, que perdem credibilidade a cada dia que passa. A assinatura do acordo nuclear do Irão não deixou Riade satisfeita, o que leva a um relativo fechar de olhos por parte de Washington, com enorme prejuízo para a decência e para o povo iemenita.

Efeito Trump

Pelo caminho surge uma wild card sem equivalente histórico no panorama internacional. Ainda antes da eleição, Donald Trump já tinha questionado a utilidade das Nações Unidas, além de romper com a solidariedade militar com membros da NATO. Declarações que deixaram Vladimir Putin com um sorriso de orelha a orelha. Há uma ambivalência na posição do Presidente eleito norte-americano em relação a Moscovo. Se, por um lado, parece confortável com a proximidade com Putin – desde a sucessiva troca de elogios, ao fechar de olhos à intervenção russa nas eleições –, por outro a nomeação do General James Mattis para secretário da Defesa parece indicar outro caminho. Mattis é um militar que afina pelo velho diapasão neocon que quer há muito invadir o Irão. Acrescentando a isto a vontade expressa de Trump em rasgar o acordo firmado pela administração Obama com Teerão, os tempos adivinham-se perigosos para o equilíbrio da região.

Seguindo uma lógica de relativa indiferença em relação à ONU, Trump nomeia Nikki Haley, uma crítica da campanha do magnata, como embaixadora para o organismo internacional. A nomeação foi uma concessão política à ala mainstream do Partido Republicano, que foi pulverizado pelo fenómeno Trump, e uma resposta à crítica de que não havia mulheres nas suas nomeações. Sem qualquer experiência no plano internacional, as suas posições em termos de política externa são desconhecidas. Tirando ser contra o acordo nuclear iraniano, um marco diplomático com elevado consenso no Conselho de Segurança da ONU. “As estruturas são feitas por quem lá está”, comenta Rui Flores. Isso significa que a ONU depende dos estados-membros que, por sua vez, são chefiados pelos partidos que estão no poder. Para o investigador, “isso faz com que, por vezes, não se defendam as instituições de forma efectiva”.

Europa a votos

Entretanto, 2017 será um ano de importantes cartadas eleitorais. Enquanto nos países do leste europeu Putin continua a exercer influência como se a União Soviética nunca tivesse sido dissolvida, o centro da Europa prepara-se para ir às urnas. A própria sobrevivência das instituições de Bruxelas parece estar em perigo com os movimentos eurocépticos a ganharem peso. Em França, a possibilidade de Marine Le Pen chegar ao Palácio do Eliseu continua real. Apesar das últimas sondagens retirarem a liderança à líder da extrema-direita francesa, a imprevisibilidade dos tempos, os votos de protesto contra o establishment, a questão do terrorismo, não podem ser negligenciados como factores decisivos. Não vivemos tempos de primazia da lógica ou dos velhos conceitos políticos. Quem diria há um ano que Donald Trump ganharia a eleição à Casa Branca ou que o Brexit vingasse? Eram resultados impensáveis, logo, a eleição francesa terá de ser vista com cautela, ou poderemos estar na eminência de um Franxit. Portanto, para derrotar Le Pen, parece que a alternativa mais viável é a aliança dos partidos do centro, provavelmente em torno do candidato da direita moderada François Fillon.

Também a Alemanha vai a votos para escolher chanceler para os próximos quatro anos. Igualmente a braços com o crescente populismo, a ainda chanceler Angela Merkel apresenta-se como a candidata para derrotar o crescimento da extrema-direita no país. Os democratas cristãos, que estão no poder, sofreram duros golpes nas eleições regionais de Setembro, em particular no estado Mecklenburg-Western Pommerania, bastião de Merkel, onde foram ultrapassados pela Alternativa para a Alemanha, um movimento de extrema-direita. Apesar de não ter chances tão boas como Marine Le Pen, Frauke Petry, também conhecida como Adolfina, deverá conquistar assento no parlamento germânico, marcando o retorno sinistro da extrema-direita ao Bundestag. Para Rui Flores, o principal desafio de Merkel prender-se-á com a “necessidade de alargar a coligação, de forma a garantir estabilidade governativa”.

Embrulhadas lusófonas

Entretanto, a turbulência no Brasil tem tudo para continuar em 2017, com a possibilidade bem real de eleição indirecta, em particular a manter-se a insatisfação popular e a crise económica.

Temer continua numa posição frágil, envolvido no caso Lava Jacto, não sendo de estranhar que seja afastado do poder para responder em tribunal. Mesmo que escape à justiça, apesar de ser mencionado nas delações dos executivos da Odebrecht, Temer vê a sua popularidade decrescer de dia para dia. Grande parte da população não lhe reconhece, sequer, legitimidade para estar no poder. Entretanto, cresce o fosso entre o que a população exige do poder político e a realidade que se vive em Brasília. 2017 não será pêra doce para os brasileiros.

Na África de língua portuguesa, destaque para Angola: 2017 é o ano em que tudo vai mudar para que, provavelmente, tudo fique mais ou menos na mesma. Sabe-se já que José Eduardo dos Santos, há quase 40 anos no poder, não vai ser o candidato do MPLA nas eleições deste ano, que deverão realizar-se em Agosto. No passado, o chefe de Estado angolano chegou a colocar a possibilidade de se afastar da política activa, não tendo cumprido a pretensão; desta vez, designou um sucessor. É o actual ministro da Defesa, João Lourenço.

As eleições gerais – presidenciais e legislativas – foram anunciadas durante uma reunião do comité central do MPLA, sob orientação de José Eduardo dos Santos. O último sufrágio do género em Angola, país que vive com fortes desigualdades sociais, realizou-se a 31 de Agosto de 2012, tendo o MPLA sido declarado vencedor, com mais de 71 por cento dos votos.

A novela coreana

Na Ásia, não se perspectiva um ano fácil. O Mar do Sul da China continua a ser motivo de discórdia entre várias nações asiáticas, com Pequim no centro de disputas territoriais sem fim à vista. Depois, a contribuir para um ano de poucas certezas, a situação na península coreana: as notícias que chegam de Pyongyang não são animadoras para a região, com as promessas belicistas nucleares de Kim Jong-un; em Seul, a situação política já conheceu dias melhores.

A Coreia do Sul vai escolher um novo Presidente até 20 de Dezembro de 2017. A lei em vigor impede a reeleição de Park Geun-hye, que terá, assim, cumprido apenas um mandato à frente dos destinos do país. O Presidente eleito deverá ser empossado a 25 de Fevereiro de 2018. Herda uma nação com poucas razões para acreditar nos seus políticos, depois da polémica que, de acordo com as notícias mais recentes, parece longe de resolvida.

Esta semana, Park Geun-hye, a Presidente destituída, quebrou um mês de silêncio sobre o escândalo de corrupção em que estará envolvida, refutando as acusações que lhe são feitas. Diz que se tratam de “invenções e falsidades”, explicando que foi vítima de uma armadilha em torno da fusão de duas empresas afiliadas da Samsung, caso no centro das investigações.

O destino de Park está nas mãos do Tribunal Constitucional, que tem ainda 180 dias para confirmar a destituição ou para lhe devolver o poder. Entretanto, foi detida na Dinamarca a amiga da Presidente que está no centro do caso de alegada corrupção. É esta mulher que terá agido em conluio com Park Geun-hye para extorquir dinheiro e favores de algumas das maiores empresas do país.

A instabilidade política na Coreia do Sul tem relevância não só para a situação da península, dividida pela fronteira mais militarizada do mundo, como também para a própria equação geopolítica entre os Estados Unidos e a China. Num momento em que não se sabe qual será a futura postura de Washington em relação à região Ásia-Pacífico, é desde logo desfavorável que os tradicionais aliados da Casa Branca se encontrem em convulsões internas.

A China em mudança

Mais perto de nós, a Norte, a China prepara-se para um decisivo Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC). Cinco anos depois da escolha de Xi Jinping para liderar a estrutura – e, consequentemente, os destinos do país –, são esperadas mudanças no topo do PCC, uma vez que várias das principais figuras políticas deverão, por causa da idade, sair da política activa.

Dos sete membros do Comité Permanente do Politburo, cinco atingem 70 anos. Apesar de não haver uma regra escrita em torno da idade limite para o exercício de funções políticas no país, desde o pós-maoísmo, com Deng Xiaoping, que tem sido esta a norma.

Para já, não se sabe quem vão ser os substitutos daqueles que saem. Há apenas uma certeza: serão homens da máxima confiança de Xi Jinping que tem acabado com as aspirações políticas de pessoas que, em tempos, chegaram a estar bem colocadas na corrida ao poder. São os efeitos colaterais da forte campanha de luta contra a corrupção.

Além de estar em jogo como vai ser constituído o Comité Permanente do Politburo, o congresso será também decisivo para se perceber quem serão os sucessores da dupla Xi Jinping e Li Keqiang, daqui a cinco anos. Na China, o caminho faz-se a um ritmo próprio.

Ainda antes do importante congresso do PCC, Xi Jinping é o anfitrião da próxima cimeira das economias emergentes dos BRICS. Os líderes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul reúnem-se em Setembro, em Xiamen. Pequim assume este ano a presidência rotativa do grupo.

A difícil Hong Kong

Na relação com as regiões administrativas especiais, Pequim tem uma pedra no sapato que, de ano para ano, tem vindo a tornar-se mais dolorosa: Hong Kong. O ano na antiga colónia britânica começou com cerca de cinco mil pessoas na rua, num protesto contra a destituição de quatro deputados da ala pró-democrata. O calendário foi substituído, mas a tónica de 2016 deverá manter-se, com a sociedade dividida em relação ao futuro político da região.

O Governo Central fez entretanto saber que não vai autorizar a utilização de Hong Kong como “uma base para a subversão” contra a China Continental ou para prejudicar a estabilidade política. Os líderes do país estão cada vez mais preocupados com a força que o movimento independentista de Hong Kong – resultado directo do fenómeno Occupy – tem vindo a ganhar na cidade.

Em 2017, há um factor importante para a relação entre a China e Hong Kong, e para a vida da própria região administrativa especial: este é o ano de eleições para o Chefe do Executivo. É consensual, entre os analistas, que um dos problemas políticos do território tem que ver com a ausência de força política dos líderes no poder desde a transferência de soberania, em 1997. Para já, na sucessão a C.Y. Leung, estão na corrida o magistrado Woo Kwok-hing, mais próximo dos liberais, e Regina Ip, profissional das lides políticas com ligações a Pequim. A secretária-chefe para a Administração, Carrie Lam, o ex-presidente do Conselho Legislativo, Jasper Tsang, e o antigo secretário para as Finanças, John Tsang também deverão ser nomes em cima da mesa.

Tudo tranquilo

Se Hong Kong é motivo de preocupação para Pequim, já Macau não deverá causar dores de cabeça de maior. Dezassete anos depois da transferência de administração, e com excepção de dois grandes processos judiciais por corrupção, as autoridades da RAEM parecem estar em sintonia com as directrizes da capital. A começar o novo ano, Chui Sai On prometeu seguir as orientações de Pequim, e “unir e orientar toda a sociedade” para “amar a pátria e Macau”, e garantiu o respeito pela autonomia da cidade.

O ano que agora começou deverá ser positivo para a principal indústria do território, com a retoma dos últimos meses a apontar para números mais sustentáveis no universo dos casinos.

Quanto à vida política, 2017 é ano de eleições para a Assembleia Legislativa. Não se esperam grandes mudanças naquilo que é hoje a composição do órgão legislativo, mas há que ter em consideração que a nova lei eleitoral traz desafios em termos de campanha, sobretudo para os candidatos com máquinas mais modestas.

No que diz respeito a matérias judiciais, este ano vai ficar a saber-se do destino do antigo procurador da RAEM – o julgamento em que Ho Chio Meng vai acusado de mais de 1500 crimes está já a decorrer. O processo conexo deste caso de corrupção, em que vão ser julgados empresários, familiares e antigos colaboradores do ex-líder do Ministério Público, tem início a 17 de Fevereiro.

Se por cá tudo bem, a instabilidade será o signo de grande parte do resto do mundo para o ano que ainda agora começou. Vivemos tempos loucos e, como disse o filósofo francês Rousseau, ser são num tempo de loucos é, em si mesmo, uma insanidade. Que prevaleça a razão.


António Guterres | Dar uma hipótese à paz

No discurso de ano novo, António Guterres, o secretário-geral da ONU, disse que quer que 2017 seja o ano em que “a paz vem em primeiro lugar”. Com o mundo a implodir com várias crises como a Síria, a Coreia do Norte e o Iémen, Guterres interrogou-se como poderá ajudar “os milhões apanhados nos conflitos e que sofrem com guerras que não têm fim à vista”. Numa mensagem profundamente pacifista, o português lembrou que ninguém ganha e todos perdem com as guerras que assolam o planeta. A eleição de Guterres tem sido um tónico para os diplomatas das Nações Unidas que vêem nele uma figura unificadora, um político capaz de gerar consensos. Para o investigador Rui Flores, “tudo dependerá da sua capacidade para se relacionar com os países que dominam a organização internacional”. A rematar, no primeiro discurso enquanto líder das Nações Unidas, Guterres acrescentou que “aquilo a que aspiramos como seres humanos, dignidade, esperança, progresso e prosperidade, só podem ser alcançados em paz”.

3 Jan 2017

Universidade de Macau | Colégios residenciais não são consensuais

Foi uma das grandes novidades da mudança da Universidade de Macau para a Ilha da Montanha: os alunos têm de viver um ano nas instalações que o estabelecimento de ensino disponibiliza. Alguns concordam com a medida, mas há também quem não veja vantagens num sistema que não dá aos alunos a possibilidade de escolha

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que a Universidade de Macau foi viver para a Ilha da Montanha que os alunos do primeiro ano são obrigados a viver, durante um ano lectivo, no campus da instituição de ensino superior. Se para os alunos que vêm de fora a obrigatoriedade não coloca, pelo menos numa primeira fase, problemas de maior, para os estudantes locais a situação pode ter contornos caricatos. Deixa-se a casa da família na península e passa-se a viver num campus a 20 minutos de distância.

Quando o projecto do novo campus da UM foi apresentado, a medida causou alguma desconfiança – mas não a suficiente para travar as intenções de quem manda na universidade. Na altura, falava-se em entre oito a 12 colégios residenciais no campus.

Na apresentação que consta do site oficial da instituição académica, explica-se que “os estudantes de diferentes contextos, áreas e anos de estudo são colocados no mesmo colégio residencial”. Para a UM, esta solução de acomodação permite aos estudantes “organizarem e participarem juntos em vários tipos de actividades, receberem educação fora da sala de aula, crescerem com uma perspectiva transversal em termos culturais, desenvolverem um forte espírito de responsabilidade social, boas capacidades de comunicação e espírito de equipa”.

Liberdade garantida?

O HM falou com um antigo assistente de um colégio residencial que, para este texto, prefere identificar-se apenas pelo apelido: Chan. Este ex-responsável pelo apoio aos estudantes não considera que a liberdade esteja a ser colocada em causa, porque “todas as universidades têm as suas regras”, mas reconhece que, por enquanto, os objectivos da UM não estão a ser atingidos. São “objectivos grandiosos” e, pelas palavras de Chan, nem todos os alunos estão dispostos a contribuir para a elevada finalidade da instituição.

Em relação ao convívio e ao espírito de camaradagem, o entrevistado reconhece que os colégios residenciais – construídos num campus de grande dimensão – “não conseguem criar um ambiente [académico] e a universidade é responsável por este facto”.

Numa entidade que pretende chamar cada vez mais alunos de fora para o campus, sobretudo da China Continental, coloca-se ainda a questão da diferença de formas de estar entre quem é de cá e quem está longe de casa. “É verdade que os alunos locais têm diferentes hábitos em relação aos outros”, reconhece Chan que, ainda assim, considera que “os colégios têm as suas vantagens e benefícios, pelo que vale a pena frequentá-los”.

Os estudantes que chegam do Continente, descreve, “têm um sentido de pertença mais elevado” ao local que passa a ser a casa. Já os alunos locais têm tendência a encarar os colégios residenciais como sendo “um dormitório”, uma vez que têm as suas redes sociais e familiares fora do campus na Ilha da Montanha.

O antigo assistente fala ainda de um grande investimento da UM nestes colégios e o retorno que, segundo diz, “não é alto”. “A universidade tem pensado muito em formas de os alunos se dedicarem mais a este sistema”, garante. “Quer que os alunos façam mais. Muitos alunos aprendem de forma passiva. A culpa não é totalmente da universidade”, afiança.

A lógica do dormitório

Fernando Leong, natural de Macau, a frequentar uma licenciatura na Universidade de Macau, explica que os alunos locais não são particularmente entusiastas em relação às actividades promovidas pelos colégios residenciais. Mas conta também que aqueles que vieram de fora – sobretudo da China Continental – gostam dos programas que são oferecidos.

Concluído um ano a dormir no campus, os estudantes podem sair – e, diz a experiência de Leong, a maioria dos jovens de cá volta para casa. Há também quem não seja de Macau e procure uma solução de habitação mais próxima da cidade e dos seus residentes.

“Há pouca gente que gosta de morar nos colégios residenciais. Pessoalmente não aprecio. Mas é obrigatório e, se os alunos não morarem no campus, não podem graduar-se na universidade. É por essa razão é que estou a viver lá. Só quem já tem uma licenciatura é que pode pedir a isenção de residência”, diz.

“Os colégios não conseguem moldar a personalidade dos alunos”, acrescenta ainda Fernando Leong. “Não tenho muito contacto com professores nos colégios, tenho mais na universidade. Mas é preciso participar nas actividades dos dormitórios para ganhar alguns créditos no final de cada semestre.”

Uma colega de Leong, do terceiro ano, que preferiu não ser identificada, atira, a começar, que “o modelo não é razoável”. Em causa não está apenas a questão da residência obrigatória no campus, mas também o facto de os alunos “terem de cumprir muitos requisitos e entregar trabalhos de casa”.

“Semanalmente, temos de dormir pelo menos quatro noites no dormitório. Quando entramos e saímos do colégio temos de cumprir um método de verificação, temos de usar um cartão para entrar e sair”, relata. “Temos de frequentar uma disciplina que se chama ‘University Life’, que dura quatro anos, e que está ligada à vida do colégio residencial. Se os alunos saírem do colégio ao final do primeiro ano de licenciatura precisam de participar em mais actividades, em jantares do colégio”, continua a estudante. “Todos os semestres temos de cumprir um número de actividades. Tenho um amigo que perdeu uma parte dos estudos porque não cumpriu os requisitos do colégio.”

Quanto ao ambiente destas estruturas, diz a aluna que “tudo depende dos alunos e dos tutores”. No seu caso, “os tutores raramente realizavam actividades”. “Muitas vezes não conhecemos os alunos que moram nos quartos ao lado. Muitas vezes me pareceu estar a morar num dormitório e não num colégio residencial.”

Da China aos States

Quem tem como vida profissional orientar estes colégios residenciais tem uma perspectiva bem diferente sobre a matéria. É o caso de Liu Chuan Sheng, orientador do colégio Chao Kuang Piu, que não só vai buscar às mais prestigiadas universidades internacionais fundamentos para justificar a existência destas estruturas, como recua no tempo, e vai ao encontro da história da China para fornecer argumentação adicional.

Para Liu Chuan Sheng, o sistema de colégios residenciais “é uma parte essencial da formação e diferente das faculdades”. Por outras palavras, “o colégio residencial dedica-se à formação da personalidade e dos interesses dos alunos, focamo-nos nos estudantes e este é um aspecto que as universidades comuns não são capazes de ter em conta”.

O modelo, destaca, foi adoptado “há centenas de anos em Oxford e em Cambridge, e foi também adoptado por universidades americanas”, país que, de resto, serve em várias matérias como fonte de inspiração para a universidade pública de Macau. “O nosso colégio residencial começou bastante tarde, mas já tem uma escala significativa na Ásia.”

O orientador assegura, no entanto, que foram feitas muitas alterações, pelo que não se trata de uma cópia do que se faz lá fora. “A maior mudança que fizemos foi a adopção do modelo de colégio residencial com a tradição chinesa, que começou no tempo do Confúcio, onde os professores conversavam com os alunos. Até ao ano 1100 ou 1200, foram criados quatro grandes colégios residenciais que contaram com mais de mil alunos. Foi uma pena que, na dinastia Ming, este sistema tenha sido abolido”, lamenta. “Já não existe este tipo de academias ou colégios na China.”

Quanto ao ambiente que se vive nos colégios, o orientador assegura que são promovidos almoços e jantares, onde se produzem discussões académicas, o que permite aos estudantes travarem conhecimento uns com os outros.

Mais de tudo

Para já, a grande falha do sistema, reconhece Liu Chuan Sheng, tem que ver com o número de tutores. “A Universidade de Cambridge conta com mais de 100 tutores de várias áreas, mas a UM ainda não tem tantos. O que a UM está a fazer é a ligar as faculdades com os colégios residenciais. O nosso colégio tem cerca de 80 professores vindos de várias faculdades para o almoço e o jantar.”

O orientador deixa uma ideia do que é a vida no colégio residencial Chao Kuang Piu: “Todas as quintas-feiras, depois de almoço, há uma hora reservada para um pequeno seminário onde convidamos professores de várias universidades para uma apresentação. Mas os alunos, de Macau ou do interior da China, têm pouca curiosidade. Ainda assim, penso que cada vez mais estão a alargar os seus conhecimentos”.

Os alunos estrangeiros – que, no campus da Taipa, tinham um contacto maior, até pela dimensão da própria universidade – estão agora separados, o que não facilita, segundo o que HM apurou, a adaptação a uma realidade nova que fica a milhares de quilómetros de casa. Liu Chuan Sheng admite que “é desnecessário fazer esta separação”, embora diga também que a mistura de estudantes de diferentes nacionalidades e origens é uma prática comum nos Estados Unidos e no Reino Unido.

“Há muitos aspectos onde temos de fazer mudanças, é preciso eliminar algumas regras”, concede, sem entrar em detalhes. “Há muitas actividades, os alunos e os professores estão ocupados, e para os colégios residenciais alcançarem um equilíbrio e poderem fazer melhor são necessários mais recursos humanos e um maior apoio dos alunos”, remata.

14 Dez 2016

Efeméride | Motim 1-2-3 aconteceu há 50 anos

O projecto de construção de uma escola na longínqua ilha da Taipa mais os dias quentes da Revolução Cultural levaram a que parte da comunidade chinesa se tenha revoltado contra a Administração portuguesa no ano de 1966. Jorge Fão começava a carreira como funcionário público; António Cambeta tinha acabado de chegar. Hoje recordam dias difíceis que já não voltam

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á 50 anos aconteceu no centro histórico de Macau o que hoje seria impensável: pessoas foram mortas a tiro, foram arrancadas pedras do chão para servirem de armas e estátuas de personalidades portuguesas foram derrubadas. Tudo começou no dia 3 de Dezembro de 1966, com um motim desencadeado pela comunidade chinesa que demoraria cerca de dois meses a ser sanado e que só seria totalmente resolvido com a chegada ao território do Governador Nobre de Carvalho.

Viviam-se na China os tempos da Revolução Cultural, imposta por Mao Zedong, e em Macau sopravam ventos comunistas. O longo embargo à construção de escola, na Taipa, ligada ao Partido Comunista Chinês, levou a que um grupo de pessoas tenha despoletado um motim contra a Administração portuguesa.

Jorge Fão, ex-deputado e actual dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), tinha na época pouco mais do que 18 anos. Com uma maioridade atingida à força, pois precisava de trabalhar, Jorge Fão tinha acabado de ingressar na Função Pública e trabalhava nas instalações do antigo tribunal. Recorda um motim que começou com um episódio aparentemente sem importância.

“Queriam construir uma escola na Taipa e o administrador das Ilhas na altura, de apelido Andrade, mandou embargar a obra. Dizia que não tinha licenças e claro que as pessoas fizeram barulho. Mas isso alastrou porque demos oportunidade. Nós, portugueses, não tivemos sensibilidade para perceber a situação política da China”, recorda Jorge Fão ao HM.

António Cambeta chegou como militar a Macau em 1963. Quando o motim explodiu nas ruas, já trabalhava numa empresa de navegação na Avenida Almeida Ribeiro e tinha uma namorada chinesa, hoje sua mulher. Recorda os momentos negros em que os acontecimentos da Revolução Cultural se fizeram sentir em Macau.

“Os chineses andavam muito saturados da Administração portuguesa e da forma como eram tratados. Eram rebaixados em tudo e para tratarem de qualquer assunto junto da Administração tinham de pagar por baixo. Até então estavam calados, mas o episódio da escola e o início da Revolução Cultural fizeram com que tudo desse uma volta”, contextualiza. “Os comunistas reuniram-se perto do hospital Kiang Wu, na véspera do dia 1 de Dezembro, e nessa noite saíram para o centro da cidade. Morava nessa altura na Rua Coelho do Amaral e à hora de jantar ouvi um grande barulho. As pessoas começaram a mandar vir contra os portugueses. Fui à janela e vi que era esse grupo de comunistas a fazerem barulho. Estava a jantar em casa da minha namorada, chinesa, e fiquei ali.”

Começou então a perceber que viriam tempos difíceis para os portugueses. “Apanhei o autocarro e o condutor disse-me: ‘Hoje ainda entra, mas amanhã já não pode apanhar o autocarro, porque temos ordens superiores para não vendermos nada aos portugueses’. Aí já havia a separação entre as duas comunidades. Fui para casa almoçar e já não voltei para o serviço.”

Mortes na Rua Central

Numa altura em que Macau não tinha governador, Mota Cerveira, comandante militar em funções, não soube travar o avanço da revolta. “Os chineses aproveitaram e fizeram uma série de manifestações em Macau e na Taipa, e exigiram a demissão do administrador das Ilhas e do comandante da PSP. Começaram a disparar, mataram-se umas pessoas, uma triste memória”, frisou Jorge Fão.

Fão recorda o momento em que lhe passaram uma arma para as mãos, para se defender de eventuais perigos. “Aquilo foi um barulho infernal durante vários dias. Aquilo foi piorando, de tal maneira que gerou tumultos por todo o lado. Armaram os funcionários públicos e deram-me uma espingarda daquelas antigas, com cinco munições, para nos protegermos. Quiseram invadir a esquadra da polícia, na Rua Central, com camionetas a subir a rua. Houve disparos de metralhadora e fizeram recuar as pessoas. Depois invadiram o Leal Senado e derrubaram uma estátua do Coronel Mesquita.”

As mortes que ocorreram na Rua Central (oito mortos e algumas centenas de feridos), causadas por disparos de polícias portugueses que tentaram evitar a confusão, geraram ainda mais revolta. “Com a morte dos chineses, a maioria da população comunista em Macau ficou revoltada. Nas Portas do Cerco havia muitas pessoas ligadas à Revolução Cultural que queriam invadir Macau. Isso poderia ter sido evitado se o administrador das Ilhas não tivesse prolongado por tantos anos a construção da escola chinesa”, diz António Cambeta.

No Leal Senado e na Avenida da Praia Grande derrubaram-se estátuas. “Muitos deles eram chineses ultramarinos e foram para o Leal Senado, mandaram a estátua do Coronel Mesquita abaixo, mandaram livros para o chão, e foram para a conservatória, onde é hoje a Santa Casa da Misericórdia. Queimaram tudo. Depois partiram um braço à estátua do Jorge Álvares. Depois a polícia, como não tinha qualquer preparação, começou a largar gás lacrimogéneo. A partir daí todos os restaurantes e lojas não vendiam nada aos portugueses, foi um período com muita tensão. Muitos portugueses pediram para levar as suas coisas para Lisboa”, recorda o antigo militar.

A solução do Governador

Nomeado Governador, Nobre de Carvalho chegou ao território sem saber o que, de facto, se estava a passar. “Apanhou o motim sem saber como nem porquê e conseguiu resolver o assunto com a ajuda de Carlos Assumpção [antigo presidente da Assembleia Legislativa]. Admiro que uma pessoa com um posto militar elevado tenha conseguido salvar o território. Ele aceitou as condições impostas pelos chineses, indemnizou as famílias dos membros que foram mortos com os disparos. Assinaram uma declaração de arrependimento. Constava que o exército chinês estava aqui ao lado, pronto a entrar no território”, afirmou Jorge Fão.

Também João Botas, jornalista e autor de vários livros publicados sobre a história de Macau, destaca o papel que Nobre de Carvalho teve neste período. “Só soube do que se estava a passar pelo Governador de Hong Kong e foi difícil tentar inteirar-se de tudo. Foi tudo uma bola de neve que era impossível controlar de outra forma. Poderiam ter sido evitadas algumas mortes”, nota ao HM. “Nunca teve o apoio oficial do Governo português e aí não foi fácil para Nobre de Carvalho. Fala-se da humilhação pela forma como ele resolveu o assunto, mas não vejo assim. Bem ou mal, com a ajuda de elementos da comunidade chinesa, resolveu um assunto que foi dramático e que poderia ter tido consequências”.


Palestra acontece amanhã na Livraria Portuguesa

Há cerca de três anos que o jovem activista Sou Ka Hou começou, por sua iniciativa, a estudar o que aconteceu há 50 anos no dia 3 de Dezembro de 1966. O antigo presidente da Associação Novo Macau decidiu pegar em meses de pesquisa e escrita, e realizar uma palestra para lembrar à população que um dia os chineses saíram à rua para lutar por algo em que acreditavam. “A história que os residentes de Macau devem conhecer: meio século sobre o turbulento motim 1-2-3” é o nome da palestra que irá decorrer na Livraria Portuguesa no domingo, entre as 15h e as 18h, e que contará com vários historiadores e académicos que se debruçam sobre o tema.

Ao HM, Sou Ka Hou lamenta que as escolas não ensinem o motim 1-2-3 aos mais novos. “As pessoas de Macau conhecem pouco a história local e este motim é considerado um dos acontecimentos mais representativos da história de Macau. Quero aproveitar este momento para atrair o interesse das pessoas, sobretudo dos mais jovens, deixando-os conhecer a história a partir deste assunto, para que depois tenham interesse sobre outros assuntos importantes”, diz.

“Parece-me que a sociedade não é mais pacífica e que ainda existem algumas confusões, e este acontecimento pode levar as pessoas a pensar, para que a sociedade avance. É uma pena que os manuais da história de Macau não falem disto, além de não registarem outros episódios da história”, defende ainda o actual membro da Juventude Dinâmica de Macau.

Sou Ka Hou recorda que a maior parte das associações tradicionais de cariz político, como a União Geral das Associações de Moradores (Kaifong), surgiu após o 1-2-3.

“O 1-2-3 demorou cerca de dois meses e aconteceu num lugar pelo qual muitas pessoas passam todos os dias. Mas poucos sabem que lá aconteceu este motim. Quando estava a investigar sobre isto percebi que este assunto estava muito próximo de nós, pois todos os dias passamos no Leal Senado. É uma grande inspiração pessoal e também para a sociedade, pois no passado reunimo-nos em conjunto para lutar por alguma coisa. Todas as associações foram fundadas após esse episódio. Há a ideia de que as pessoas de Macau muitas vezes não falam e não reagem a questões injustas, achamos que os locais são sempre indiferentes, mas segundo a história não foi sempre assim. Mas as escolas agora não nos ensinam isso. As pessoas de facto lutaram por algumas coisas”, rematou o activista.


Motim 1-2-3 trouxe “maior visibilidade às associações”

Para o investigador Fernando Sales Lopes, o motim 1-2-3 serviu sobretudo para dar mais poder às associações de matriz chinesa que já existiam, como a Associação Comercial de Macau e os Kaifong (associação de moradores).

“O pós-1-2-3 acaba por trazer outra estabilidade, Macau foi-se preparando a pouco e pouco para a transição de poder, apesar de faltarem ainda três décadas. Sempre houve um poder chinês e um poder português, e havia sempre uma negociação diária”, afirma.

“Depois do 1-2-3 houve um reforço do poder das entidades chinesas. Ho Yin, entre outros, teve um papel relevante neste período. As relações diplomáticas entre a China e Portugal só voltaram a ser restabelecidas após o 25 de Abril de 1974 e só estes capitalistas patriotas desempenhavam o papel de intermediários. Este papel de intermediários entre o poder português e a China acaba por vir a ganhar mais força, acabam por ser embaixadores e tornam-se líderes da comunidade chinesa. As associações chinesas, em vez de estarem fechadas numa comunidade, passaram a intervir no cenário público com mais poder.”

Apesar da importância do motim, o investigador afirma que o 1-2-3 foi “um acontecimento ligado ao contexto da altura. “Em Macau sempre fomos um porto de abrigo e fomo-lo para os chineses. Revoluções políticas na China sempre houve.”

Para o jornalista João Botas, autor de livros sobre a história do território, “é de facto um dos períodos significativos e marcantes da história de Macau”. “Foi naturalmente fruto do contexto, a história não se repete. Estamos a falar de um período, a consequência do que se passava politicamente na China, da Revolução Cultural, e que mais cedo ou mais tarde acabaria por chegar a Macau e a Hong Kong”, conclui.

2 Dez 2016

Hong Kong | Portugueses ponderam criação de associação

São jovens, com vidas organizadas e trabalhos sólidos. A comunidade portuguesa em Hong Kong é pequena, mas bem resolvida. O desemprego em Portugal contribuiu para um novo fluxo de emigração para a região vizinha. Procuram-se agora pontos de encontro

[dropcap style≠’circle’]Á[/dropcap]lvaro Monteiro está em Hong Kong há dois anos e meio e é um caso especial. Para começar, tem uma profissão que é, no mínimo, diferente: é treinador de esgrima. Depois, chegou à antiga colónia britânica através de Macau, o que não acontece com a maioria dos portugueses que, nos últimos anos, decidiram passar a viver aqui ao lado.

Desde que Hong Kong é Hong Kong que há portugueses na região. As primeiras – e mais expressivas – vagas de emigração tiveram como ponto de partida o outro lado do Delta, em alturas atribuladas da vida política e social de Macau. A comunidade teve importância, ficou para a história de um território que se transformou em metrópole. Hoje, ainda se vive de um certo passado, mas há uma nova comunidade a nascer dentro da comunidade. São os sub-30, como lhes chama o cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong.

Pelas contas de Vítor Sereno, há cerca de 30 mil cidadãos com passaporte português na antiga colónia britânica. “Mas imagino que, entre a comunidade expatriada e a comunidade tradicional, andem à roda dos 5000.”

É no equilíbrio entre as duas comunidades que o cônsul-geral e o cônsul honorário, Ambrose So, desenvolvem o trabalho que fazem na região vizinha. Tenta-se a aproximação entre as duas comunidades: a tradicional, com sede sobretudo no centenário Club Lusitano, e a expatriada, espalhada um pouco por toda a cidade, sem um ponto de encontro concreto.

Destino de trabalho

Hong Kong apareceu na vida dos portugueses com quem o HM falou por motivos profissionais. Nem todos eles chegaram directamente de Lisboa, mas poucos são aqueles que fizeram as malas e aterraram com espírito de aventura.

Voltamos a Álvaro Monteiro, que tropeçou em Hong Kong por causa de Macau. O treinador de esgrima tem cá a viver um dos melhores amigos. “Fui visitá-lo, estive um mês por cá, vim visitar Hong Kong e surgiu uma proposta de trabalho nessa altura. Foi por acaso”, conta.

O acaso dura há mais de dois anos e é um acaso feliz: “Faço aquilo que sempre quis fazer e encontrei essa oportunidade aqui na Ásia. Na Europa, principalmente em Portugal, não é assim tão fácil viver da esgrima. Por cá, está a crescer de uma forma muito interessante – em Hong Kong, na China, em Singapura, no Japão. É um mercado que está a crescer”.

Marcos Melo Antunes viveu alguns meses em Macau há mais de uma década, mas passou por outros continentes antes de chegar a Hong Kong, onde está há já seis anos. A trabalhar numa multinacional, a região serve-lhe essencialmente de base. A empresa “precisava de reforçar a equipa na Ásia, estava em grande crescimento na China, no Japão e na Coreia, e utiliza Hong Kong como uma plataforma para lidar com esses países”, explica.

A experiência “tem sido boa”, porque “Hong Kong oferece várias coisas que uma grande cidade cosmopolita oferece”, destaca. “Tem sido uma experiência interessante e intensa. Hong Kong, a par de outras grandes cidades como Nova Iorque ou Londres, é uma cidade com grande actividade e pode chegar-se facilmente a vários países aqui à volta.”

Melo Antunes corresponde ao perfil mais comum dos portugueses que, nos últimos anos, se mudaram para Hong Kong. Quando pisou a região na qualidade de representante do Estado português, há quase quatro anos, Vítor Sereno encontrou “uma comunidade expatriada muito ligada às profissões liberais”.

“Houve um boom de emigração de Portugal pós-2010, 2011, muitos deles vieram para esta zona do mundo, adaptaram-se muito bem. Muitos deles estão na área da banca, do IT, na área financeira, nas grandes empresas multinacionais, e foi essa comunidade que eu vim encontrar”, descreve Vítor Sereno.

Há seis anos, quando Marcos Melo Antunes saiu da Europa, “havia um pequeno grupo de portugueses, jovens empreendedores, muita gente ligada ao trading”. Havia também “pessoas que tinham vindo à procura da sua sorte – porque tinham ouvido dizer que havia pouco desemprego –, tinham vindo à procura de novas oportunidades e encontraram-nas aqui”.

Não é “um grupo expressivo, mas são alguns”. Melo Antunes já viu pessoas a aterrar, outras a partir. “Algumas começam a chegar com o interesse das empresas chinesas na economia portuguesa, nas áreas da electricidade, dos transportes – há já portugueses ligados a essa área. Há também grupos portugueses, como a SONAE, que fizeram investimentos na China e que trouxeram pessoas para cá.”

Uns aqui, outros ali

Em termos de vida social, Marco Melo Antunes relaciona-se com expatriados de vários locais, sendo que alguns deles são de Portugal. Já Álvaro Monteiro, o treinador de esgrima, conta que, neste momento, não tem nenhum contacto com portugueses – o único que conhecia e que o ajudou a adaptar-se à cidade mudou-se para o Médio Oriente. O círculo de amigos faz-se com pessoas de outras nacionalidades.

Mathias Simão, osteopata, está em Hong Kong há cerca de dois anos. Chegou à cidade depois de um ano a viver na Malásia e, em termos profissionais, dificilmente podia estar melhor. “As pessoas em Hong Kong procuram a osteopatia. São das classes média-alta, alta, e estão preocupadas com tudo o que é a saúde e a forma física, pelo que estão bastante abertas à osteopatia.” A antiga colónia britânica tem ainda a vantagem de ter comunidades de língua inglesa, o que é importante para um profissional com um diploma do Reino Unido.

Simão explica que se dá com “pessoas das mais diferentes origens”, uma realidade à qual esteve sempre habituado, até porque nasceu em França. “Há relativamente poucos portugueses. Estou à espera de integrar o Club Lusitano, mas a comunidade portuguesa está bastante dispersa.”

É a pensar nesta realidade que Vítor Sereno gostaria que Hong Kong tivesse uma associação de portugueses, projecto que está já a ser pensado por Gonçalo Frey Ramos, o português deste texto com mais anos de casa: são quase 11 a residir na região.

O cônsul-geral recua no tempo para uma contextualização: o primeiro contacto com Hong Kong, à chegada, mostrou-lhe “uma comunidade muito tradicional, muito respeitada, muito assente no Club Lusitano, criado em 1866, foi o segundo gentlemen’s club de Hong Kong”. Associado ao clube, destaca, “existem várias figuras – como o Comendador Sales, Sir Roger Lobo – que fizeram muito pelo nome de Portugal em Hong Kong, antes e depois do handover em 1997”.

Acontece que a outra comunidade – a expatriada – “não se revê muito naqueles princípios”, explica. O Club Lusitano de que o osteopata Mathias Simão está à espera tem ainda critérios de admissão que o tornam pouco acessível. “A primeira vez que festejei o Dia Nacional, percebi que havia outro tipo de comunidade, uma comunidade expatriada muito mais nova. Há aqui uma espécie de outra comunidade dentro desta comunidade e tentei aproximá-las.”

Desejo de ano novo

Vítor Sereno acrescenta que, quase quatro anos depois e com uma mudança de direcção do Club Lusitano pelo meio, há hoje um maior contacto. Mas, ainda assim, faz falta um outro tipo de presença organizada.

“Para 2017, tenho o desejo que se constitua a associação dos portugueses em Hong Kong e que esta associação se coordene com o Club Lusitano, mantendo esse lado tradicional, essa âncora. Que esta comunidade tradicional – que tem as suas raízes no Club Lusitano e a quem Portugal muito deve – se mescle com esta nova comunidade, que aparece todos os meses, todos os dias, e que é constituída pelos sub-30, como lhes chamo”, aponta o diplomata.

O cônsul esteve há pouco tempo num almoço com esta nova geração. “Éramos cerca de 100, entre senhoras grávidas, bebés a chorar, miúdos pequenos, uma grande algazarra que contrasta um bocadinho com o formalismo que existe no Club Lusitano. É entre formalismo e informalismo que devemos conformar a nossa comunidade em Hong Kong”, defende.

Neste almoço esteve Gonçalo Frey Ramos, “o elemento agregador desta comunidade”, forma como Vítor Sereno descreve o jovem licenciado em Gestão, a trabalhar na área dos vinhos.

Frey Ramos decidiu mudar-se para Hong Kong há mais de uma década, depois de um ano a viver em Xangai, onde esteve ao abrigo do então programa Contacto. “Em 2008 conheci a minha mulher. Curiosamente não é de Hong Kong, é japonesa, e entretanto tivemos duas filhas – a Maria e a Elena”, relata. Completamente integrado, conhece muitos portugueses, em especial os que chegaram nos últimos anos.

“A comunidade portuguesa é muito diversa, há vários grupos de pessoas, mas que se relacionam todos bem”, diz o autor de uma página no Facebook destinada especialmente aos cidadãos portugueses residentes na região.

Gonçalo Frey Ramos está a trabalhar na ideia da criação da associação de portugueses. “Há muita gente que não se revê no Club Lusitano, uma instituição bastante antiga que foi fundada numa altura em que a comunidade portuguesa tinha muita força e era uma das mais importantes”, afirma. “Hoje em dia, faz sentido [criar uma associação], porque não há nenhum sítio que acabe por juntar todos os portugueses”, diz. “Existe a vontade de que haja um sítio onde se possam encontrar, que saibam que, se forem ali, estão lá portugueses. Para algumas pessoas, seria uma solução muito válida.”

Se tiver pernas para andar, a associação será constituída por elementos de uma comunidade muito bem resolvida. “Estão muito bem orientados. Normalmente, as empresas para onde vêm trabalhar oferecem bons contratos, a própria integração social deles e das famílias é feita a priori, não é feita a posteriori com recurso ao consulado, à última hora, ou ao consulado honorário”, explica o cônsul Vítor Sereno. Há um “vínculo histórico de seriedade e de competência” da comunidade portuguesa em Hong Kong que está para durar. Agora com a ajuda dos sub-30.

Macau da saudade

Fica a uma hora de viagem, mas não é um destino procurado com frequência pelos portugueses que vivem em Hong Kong. Macau serve, sobretudo, para matar saudades de casa.

“Desde que estou cá em Hong Kong tenho tido pouco contacto com Macau. Pensava que, vivendo aqui, ia ter uma relação mais próxima”, admite Marcos Melo Antunes, que residiu no território durante alguns meses há mais de uma década.

“A verdade é que as comunidades não se relacionam. Vou a Macau com amigos portugueses de quatro em quatro meses para uns jantares, vamos comer comida portuguesa. Tenho pessoas conhecidas em Macau mas que vejo muito raramente e os portugueses de Macau vêm a Hong Kong, mas não há uma relação muito forte entre os portugueses” das duas regiões.

Melo Antunes, que trabalha numa multinacional na antiga colónia britânica há seis anos, relata que “os portugueses que chegam a Hong Kong têm curiosidade, vão visitar Macau”. Mas, acrescenta, “esperava uma maior relação, uma relação que não vejo, não sinto, não está presente”.

Mathias Simão confirma a descrição de Marcos Melo Antunes: “Vou de vez em quando a Macau, uma vez de seis em seis meses, pela gastronomia portuguesa”. O osteopata confessa que, quando visitou o território pela primeira vez, ficou surpreendido com o facto de haver pouca gente a falar português. “Pelo que vejo aqui, Macau acaba por ser um destino, mas só de vez em quando, para comprar algo de Portugal ou para ir comer qualquer coisa. Não será um destino ao qual se vai com frequência.”

Já Álvaro Monteiro, que começou a vida em Hong Kong depois de um mês de férias em Macau, faz uma visita mensal ao território. “É um bocadinho de Portugal aqui na Ásia, sinto mesmo isso. Dá para falar a língua, o que, para mim, é espectacular, porque estou sempre a falar inglês. Dá para comer comida portuguesa e estar com amigos”, descreve o treinador de esgrima.

21 Nov 2016

EUA | Incertezas sobre candidato vitorioso nas vésperas da eleição presidencial

Nem uma, nem o outro são figuras mobilizadoras. Ela porque é a continuidade de um certo sistema; ele porque rompe com tudo, sobretudo com valores que, aos olhos de muitos, devem ser preservados. Na contagem decrescente para a eleição mais importante do ano, há dúvidas sobre os resultados. Ainda assim, tudo aponta para que a democrata Hillary Clinton seja a sucessora de Barack Obama

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] um homem com tanto carisma que mereceu, quase a título de incentivo, o Prémio Nobel da Paz. Nas últimas eleições em que os Estados Unidos mudaram de Presidente, era só certezas: Barack Obama conquistou multidões, dentro e fora do país, e a escolha para ocupar a Casa Branca representava uma certa América, mais livre, mais contemporânea, mais despida de preconceitos.

Desta vez, a história é outra. Há desilusão nos Estados Unidos com o processo que termina – ou começa – amanhã, dia 8 de Novembro. É o que sente Ricardo Alexandre, jornalista da Antena 1, que por estes dias está nos Estados Unidos a acompanhar a recta final da campanha e a tentar perceber o que é que, afinal, vêem os eleitores norte-americanos em Hillary Clinton e Donald Trump.

“Há desânimo, sim”, conta o jornalista ao HM. “Por um lado, todo o processo é muito longo e, por outro, os dois principais candidatos são uma espécie de mal-amados.” Ricardo Alexandre desdobra a ideia: o candidato republicano “não sabe ser político”; já a candidata democrata “está na política há muito tempo”. “Foi uma imagem que me transmitiram e que, creio, ilustra bem o ambiente geral”, diz o repórter que, entre outras paragens, foi a El Paso, no Texas, e à vizinha Ciudad Juárez para saber o que pensam as pessoas que ali vivem de uma das ideias mais polémicas de Donald Trump – a construção de um muro na fronteira com o México para impedir a entrada de ilegais.

Deste lado do mundo, atento a todas as informações que vão sendo publicadas sobre a eleição presidencial norte-americana, o especialista em relações internacionais Rui Flores concorda com o problema da falta de empatia dos dois principais candidatos: Donald Trump é “um caso de amor ou ódio” e Hillary Clinton é vista como “mais do mesmo”.

“As sondagens também demonstram isso. É a campanha que mais ódios levanta. Os eleitores vão votar sem grande convicção. Vão provavelmente mais convictos os eleitores de Donald Trump – ele fez a sua campanha claramente para o homem branco, que tem sofrido com a crise económica, com o fecho de fábricas no centro dos Estados Unidos”, observa Flores. Ricardo Alexandre acredita que será Hillary Clinton a vencedora mas, se o desfecho for outro, então será “a vitória do homem branco”. Do homem como palavra para ser do sexo masculino. “É que nem sequer é o homem e a mulher brancos. É apenas o homem branco porque ele, de facto, alienou muito do voto feminino”, vinca Rui Flores.

Do contra ao igual

Donald Trump ganhou tempo de antena com um discurso do contra: contra o livre comércio, contra a emigração, contra muitos dos valores que são dados como certos – ou que, até à data, eram dados como certos – pela maioria dos norte-americanos em particular e pelo mundo em geral. “É um discurso de isolamento da América e esse discurso tem chão por onde crescer porque, de facto, destina-se a um eleitorado que tem sofrido muito com a globalização nos últimos anos”, nota Rui Flores.

O discurso sobre a emigração foi, provavelmente, o que mais chocou, continua, para recordar que não se está perante um fenómeno novo, exclusivo dos Estados Unidos. “As pessoas revêem-se nesse discurso, que é feito também na Hungria, com Viktor Orbán, que é feito em França, com Marine Le Pen. O populismo associado ao nacionalismo veio para ficar, muito como consequência da crise financeira, económica e social que começou em 2008. Isso tem-se visto um pouco por todo o lado – quer a extrema-direita, quer a extrema-esquerda a subirem nos parlamentos, em várias eleições que têm decorrido um pouco por toda a Europa.”

Nem o populismo de Trump, nem a promessa de profissionalismo político de Hillary Clinton foram, no entanto, capazes de se traduzirem em discursos dinamizadores de massas, concorda o analista. “Não me parece também, ao mesmo tempo, que haja uma mensagem de esperança num mundo melhor nestes dois candidatos. Hillary Clinton será mais do mesmo, Donald Trump tem um discurso de ruptura mas que não mobiliza mais do um segmento – importante, naturalmente – que é o homem branco”, diz.

Oh Ohio

A possibilidade de o discurso destinado ao homem branco vencer num país que, há duas eleições, se congratulava por ter escolhido um Presidente – o primeiro – negro não está, nas vésperas do sufrágio, totalmente eliminada. O jornalista Ricardo Alexandre acredita que Hillary Clinton sairá vencedora e Rui Flores também, mas a vida da candidata democrata complicou-se na passada semana.

Num processo com contornos muito específicos – o sistema é indirecto e colegial –, são necessários 270 votos eleitorais para se ganhar a eleição. “Até este momento, as coisas estão a correr bem para Hillary Clinton”, aponta Rui Flores, numa análise feita durante este fim-de-semana. “Após uma semana de algum desgaste, por causa da reabertura do inquérito do FBI [no caso dos e-mails] à candidata, há basicamente dez estados onde não é claro quem poderá ser o vencedor. Desses dez estados, há cinco verdadeiramente importantes”, prossegue.

Rui Flores olha para os dados e destaca a importância das sondagens ao nível estadual, para explicar que a democrata venceria sem os dez estados indecisos, aqueles que “podem cair para um lado ou para o outro, para o campo democrata ou para o campo republicano”.

O especialista não deixa de ressalvar que, “nos últimos anos, internacionalmente, tem havido algumas surpresas com as sondagens” e dá o exemplo recente do Reino Unido com o Brexit. Mas, para que Donald Trump seja eleito, acrescenta, serão necessárias muitas surpresas eleitorais em alguns estados essenciais.

“O estado mais fraco para Hillary Clinton – daqueles em que as sondagens mostram que ela está à frente – é o Colorado, que dá apenas nove votos eleitorais para o colégio eleitoral. É um estado interessante, porque Donald Trump fez campanha na semana passada e focou a sua atenção”, anota. “Para Donald Trump ganhar, era preciso que o Colorado caísse para o seu lado e todos os tais dez estados onde não é claro quem vai ganhar caíssem todos para o lado dele.” À hora a que Rui Flores falava ao HM, Hillary Clinton tinha assegurados 272 votos eleitorais, “o suficiente para ganhar”.

Neste exercício de contabilidade e previsões cabe ainda um fenómeno interessante das eleições presidenciais norte-americanas: o Ohio. “É um estado que tem sido, desde 1964, o barómetro da América. O estado não é muito grande – tem apenas 18 votos eleitorais – mas, desde 1964, o candidato que ganha no Ohio é o candidato que ganha as eleições.” Ora, no caso em análise, as sondagens mais recentes demonstram que, nesse estado, provavelmente Donald Trump irá ganhar. “É por isso que muitos candidatos fazem campanha no Ohio, porque quem ganha lá, ganha as eleições. A acontecer a vitória de Trump no Ohio e a de Hillary Clinton a nível nacional, as eleições terão essa piada: acabar com o mito de que quem ganha no Ohio, ganha as eleições”, alerta Rui Flores.

Apoios e jornais

Ainda na análise às sondagens, o especialista em relações internacionais vinca que demonstram uma enorme diferença entre os dois campos no que toca ao eleitorado. “Hillary Clinton é mais popular nas grandes cidades, tem sondagens muito favoráveis em Nova Iorque, na Califórnia, em Massachusetts, na Pensilvânia, no Illinois, no Michigan. São estados democratas em que as sondagens demonstram que vão votar massivamente em Hillary Clinton e são estados que quase lhe garantem a eleição”, indica. Já Donald Trump “é um candidato mais rural, tem os estados mais pequenos da América rural, são quase todos sólidos republicanos, e tem o Texas – que é o maior –, é um estado sólido para ele.”

“Se tivéssemos de apostar, diríamos que Hillary Clinton vai ganhar”, diz Rui Flores, que enumera também outros factores a ter em conta nisto de se tentar ser Presidente da primeira economia do mundo, como o facto de a candidata democrata “ter gasto muito mais do que Donald Trump”. “Conseguiu movimentar mais dinheiro e receber mais fundos para a sua campanha, o que é um sinal da capacidade que tem de atrair apoiantes que lhe dão dinheiro para a campanha.” Não deixa de ser curioso o facto de vários artistas plásticos terem contribuído para o movimento pró-Hillary, com dinheiro e com a organização de leilões de obras em que Clinton aparece retratada.

Rui Flores fala ainda de “outro sinal importante de que Hillary Clinton continua à frente”: o número de jornais que estão com a candidata. São 53 a favor da democrata, contra um que apoia expressamente Trump. “Desde 1998, a tendência dos jornais é estarem do lado do vencedor. A excepção foi a reeleição de George W. Bush, em 2004, em que mais jornais apoiaram John Kerry do que o então Presidente.”

E depois?

A eleição acontece depois de uma campanha rica em acusações mútuas, umas mais graves do que outras. Mentiras e verdades, sexo, o (des)respeito pelas mulheres, o caso dos e-mails – houve de tudo nos confrontos entre os dois candidatos principais. Nos 90 minutos de um dos debates televisivos entre Hillary Clinton e Donald Trump, o candidato republicano acusou 26 vezes a adversária de estar a mentir. Já a democrata recorreu ao argumento dez vezes.

“O grande desafio do vencedor destas eleições é congregar a nação americana, que vai sair daqui muito dividida. Vamos ver se, no caso de vitória de Hillary Clinton, Donald Trump vai cumprir a promessa de não reconhecer os resultados eleitorais”, diz Rui Flores, acerca da possibilidade levantada, no mês passado, pelo candidato. “Isso trará muitos problemas ao sistema político, à credibilidade internacional dos Estados Unidos e poderá fazer prolongar a instabilidade no país.”

Depois, há ainda a investigação do FBI aos e-mails de Hillary Clinton. “Há quem considere que director do FBI violou as regras que dizem que deve ter um comportamento equidistante e deve tentar não influenciar politicamente o resultado das eleições. Ao reabrir a investigação pôs em causa, de certa forma, a independência desta instituição. E isto vai ter consequências para o futuro: a investigação não vai estar concluída até terça-feira. O que vai acontecer a essa investigação quando Hillary Clinton for eleita, se for eleita?”, lança o analista. “Toda esta campanha afecta as instituições americanas.”

Os chineses gostam dele

É um fenómeno que tem sido acompanhado de perto nas últimas semanas pelo South China Morning Post: há muitos chineses a viverem nos Estados Unidos que são fervorosos apoiantes de Donald Trump. O facto poderá colocar em causa o retrato deixado por estudos e pesquisas, que indicam que cerca de 50 por cento dos asiáticos a viverem em solo norte-americano são democratas ou simpatizantes, sendo que apenas 28 por cento dizem ser republicanos. A euforia em torno de Trump, lê-se nas declarações que o jornal de Hong Kong foi recolhendo, tem que ver sobretudo com o tipo de valores que o empresário candidato a Presidente tem estado a defender durante a campanha: “a família” e “medidas fortes contra a emigração ilegal” são ideias que agradam aos sino-americanos que fazem parte, por exemplo, do movimento “Chinese Americans for Trump”. Também têm caído bem na comunidade as promessas de cortes fiscais e “pôr os cidadãos americanos em primeiro lugar”. Há quem entenda ainda que o republicano representa “valores asiáticos” como “o pragmatismo, o trabalho árduo e a honestidade”. O receio de que os Estados Unidos possam vir a ser palco de um ataque terrorista, a inércia atribuída à Administração actual na luta contra os inimigos e a oposição a Obama também funcionam a favor de Trump no seio dos sino-americanos – muitos deles pensam que o Partido Democrata, com as suas políticas em relação à homossexualidade, minou os valores tradicionais. A “política aberta de emigração” arruinou a economia e a ordem do país, dizem estes chineses com nacionalidade americana, que têm saído à rua para demonstrar o entusiasmo pelo candidato republicano.

Tanto faz para Pequim?

A China é um tema clássico nos debates entre candidatos e Pequim tem consciência disso. Nesta corrida, a questão chinesa colocou-se logo no primeiro confronto televisivo entre Hillary Clinton e Donald Trump. Nenhum deles poupou a China – terá sido, de resto, o único assunto em que estiveram de acordo. De repente, eis a pergunta: qual será o mal menor para a segunda economia do mundo? Li Keqiang, o primeiro-ministro chinês, não tardou a dar a resposta: a relação entre Pequim e Washington é para ser cada vez melhor, independentemente de quem saia vencedor das eleições de amanhã. É nisso que, pelo menos publicamente, o Governo Central está interessado. No exercício de crítica à China, os analistas entendem que Donald Trump é o melhor: acusa o país de ter roubado postos de trabalho aos Estados Unidos, de ter contribuído para a desvalorização da moeda no âmbito do comércio global e de ter falhado no controlo exercido sobre a Coreia do Norte. Já Hillary Clinton não surpreendeu – ao contrário do oponente, há muito que se sabe que censura o modo como Pequim lida com os direitos humanos e até mesmo a forma como a China está organizada em termos políticos. Na Administração de Obama, foi vista como sendo uma figura essencial nas tentativas de controlar a influência crescente de Pequim na Ásia.

7 Nov 2016

Adopção | Legislação de Macau condiciona decisões

A lei da adopção e os seus contornos longos e penosos têm sido alvo de críticas em Macau. Além dos processos normais, o facto de as mães menores não poderem decidir do futuro dos filhos é uma questão polémica, que preocupa quem trabalha na área

 

[dropcap style≠’circle’]L.[/dropcap] tinha 15 anos quando engravidou. Se, no início, não tinha intenção de ter a criança, ao assistir à maternidade de uma colega da mesma idade mudou de ideias. Contra a vontade dos pais, resolveu ter o filho. Mas o dia-a-dia com um bebé não era o que julgava e, logo nos primeiros meses, a realidade fez-se sentir. L. não mais queria o filho. Os avós decidiram tomar conta da criança, mas a solução encontrada não resultou da melhor forma.

Aos 18 anos, agora maior e com poder legal para dar a criança para adopção, L. entregou o filho a um centro de acolhimento, visto ninguém mais o desejar. Meses depois, os avós sentiram saudades do neto que, afinal, tinham criado até aos três anos. Foram à instituição, pegaram na criança e levaram-na para casa. Mas, e mais uma vez, a ideia não foi viável no seio desta família. Alguns meses depois, e já habituado a estas andanças, o filho de L. voltou a uma instituição para, mais uma vez, ficar à espera de ter uma família.

Esta é uma das histórias contada por Juliana Devoy, directora do Centro do Bom Pastor, que acolhe mães e crianças vítimas das agruras da vida. O caso não se passou na instituição que lidera, mas acompanhou-o de perto e é uma das muitas histórias que fazem com que não desista de lutar para que mães menores de idade, e que não reúnam condições afectivas e familiares para poderem criar os seus filhos, possam ser legalmente aconselhadas a proporcionar “o bem maior da criança e entregá-la para que outra família a possa acolher”.

Da sua experiência enquanto responsável pelo centro que acolhe estas menores, muitas vezes, antes de contarem à família que engravidaram, passam por ela casos, uns felizes, outros menos, de situações em que, quem acaba por perder são as crianças.

“O pior destas situações é que, quando nos procuram [as mães menores], não as podemos tranquilizar e dizer para ficarem descansadas que os bebés podem ter acesso a uma família”, desabafa Juliana Devoy ao HM.

Para a responsável, a história que inicia este texto é o exemplo que dá força para que haja “a necessidade de uma legislação capaz de encaminhar os bebés para adopção com rapidez, de modo a que este tipo de situações possa ser evitado”, na medida em que “a lei tem de proteger estas crianças que também têm o direito a uma família”.

Uma questão de justiça

Terem de crescer entre famílias em que não são bem-vindas e casas de acolhimento “é absolutamente injusto” para estas crianças, porque não lhes dá a oportunidade de terem a “sua família”, um lugar que lhes possa ensinar o amor e a aceitação.

Juliana Devoy não hesita em dar o exemplo da vizinha Hong Kong. “Ali não há qualquer constrangimento legal no que respeita à idade para dar uma criança para adopção. Se a mãe for menor e não tiver condições, os pais podem assinar pela filha, mediante testemunhas”, explica. No entanto, e mesmo nestes casos, “há um limite de tempo que lhe é dado para reflectir e ponderar a decisão, e não é um limite aberto como em Macau, mas sim restrito a alguns meses, de modo a não acumular sofrimentos, nomeadamente para a criança”.

A lei de Macau, para a responsável, “é sempre a favor dos pais ou do adulto e esquece o direito da criança”. Devoy dá exemplos de adultos que passaram a meninice e adolescência em centros de acolhimento, porque ou nunca foram formalmente dados para adopção, ou porque, quando foram, já tinham chegado à adolescência e “ninguém os queria”.

“É preciso ter o bem estar da criança e a possibilidade de ter uma família e de criar laços afectivos fortes como base da apreciação legal das situações”, defende ao HM, porque “os pais não podem cuidar deles, mas também não os dão para adopção”.

Mãe é mãe, mas…

Se a necessidade de uma família é evidente também para a psicóloga Goreti Lima, quando se fala de mães menores as reticências começam a aparecer. “São mães e, como tal, o ideal seria que existisse ajuda no sentido de as seguir no que é este seu novo papel”, afirma. Para a psicóloga, não nos podemos também esquecer dos direitos da mãe, “porque uma mãe é sempre uma mãe e isso é insubstituível”.

No entanto, também sublinha que uma criança precisa de se sentir segura e o vai e vem entre instituições “não é, de todo, uma forma de crescimento saudável”. “O facto de estas crianças serem institucionalizadas, independentemente da idade que têm, vai ficar marcado. Quando é abandonada pelo seu primeiro grupo de pertença, por si não é saudável, e quando isso acontece repetidamente, a situação piora muito”, explica.

No entanto, e dada a realidade efectiva de que existem menores incapazes de cuidar dos filhos, que consideram que as crianças “um fardo”, há que encaminhar os casos para uma análise mais profunda e individual, porque, “nestas situações, é necessário ter como prioridade o bem da criança, e a possibilidade de desenvolver os afectos e relações que a vão acompanhar e estruturar”. Assim sendo, “nestes casos, quanto mais cedo a criança tiver a possibilidade de ser adoptada melhor”, remata Goreti Lima.

Maturidade em mudança

Quando se fala neste assunto, o que está em causa é a maturidade. Esta é a ideia defendida por Paul Pun, secretário-geral da Cáritas Macau. Se, num primeiro momento, Paul Pun considera que a maioridade deveria definir o momento em que se atribui a capacidade a uma mãe para dar um filho para adopção, o responsável tem também em conta as mudanças sociais que ocorrem permanentemente.

“Se há uns anos uma pessoa de 16 anos não era considerada madura para poder tomar estas e outras decisões, com o tempo isto tem vindo a mudar”, entende. “Neste momento, o que considero mais aconselhável é que este assunto venha a discussão pública para que se possa reflectir acerca dele e das mudanças que possam ter ocorrido, a nível social, capazes de conferir maturidade suficiente a estas jovens para que possam tomar uma decisão com este tipo de peso, que terão de carregar para o resto da vida”, afirma ao HM. Para Paul Pun, o que deve ser discutido é que se, nos dias que correm, uma pessoa com 16 anos pode ou não ser capaz de tomar este tipo de decisões, “e esta é a discussão que deve vir a público, mesmo a nível legal”.

 

 

 

 

 

Pau de dois bicos

“A questão da menoridade da mãe é, de facto, um problema ao nível legal”, afirma o advogado Miguel de Senna Fernandes ao HM. “Há casos, por exemplo, em que estas mães menores nem têm pais”, aponta. São situações em que se coloca a questão do que fazer com as “duas crianças”, o que é um “problema muito sério”. No entanto, para Senna Fernandes, Macau tem um mecanismo, que pode não ser o ideal, mas que abarca este tipo de situações.

“Dentro do sistema legal actual de Macau, esta mãe não pode decidir quanto ao futuro da criança, por não ter idade para isso. No entanto, o tribunal pode nomear um tutor para fazer esse tipo de acolhimento”, explica ao HM. O advogado recorda que, para mães com menos de 15 anos, esta tutela faz com que sejam acolhidas juntamente com os seus filhos. “Claro que isto são casos extremos em que nem a mãe tem pais.”

Para o advogado, “a mãe que é menor não pode decidir por si e a lei é muito clara”, mas Senna Fernandes admite a possível flexibilização do sistema, sem deixar de frisar que tal terá de depender, e muito, da própria eficácia dos serviços. “Se quisermos arranjar um sistema mais expedito, mais flexível e mais prático, sem esquecer o que está em causa e também os direitos da própria mãe, temos de rodear isto de muitas cautelas, porque não deixam de ser mães menores que, à luz da lei, não têm capacidade para este tipo de decisões.”

 

No (a)colher também está o ganho

A questão das famílias de acolhimento também se destaca no contexto da adopção. Para Juliana Devoy, esta “terá sido uma opção já colocada em cima da mesa, mas que acabou no abandono”. Da sua experiência, na génese do desinteresse, nomeadamente por parte das autoridades, está, por um lado, o facto de haver poucas pessoas interessadas – talvez pela falta de sensibilização e conhecimento – e, por outro, a exigência e rigor em excesso dos requisitos.

“É necessário que se comece a pensar que isto é um assunto importante porque, até agora, o assunto da adopção não se tem desenvolvido muito na medida em que, e aparentemente, não afecta muita gente.” As pessoas lesadas, além das crianças institucionalizadas, são os pais que aguardam a adopção e que não são uma grande parte da sociedade, conclui a responsável pelo Centro do Bom Pastor.

 

Esperas que nunca mais acabam

Contactado pelo HM, o Instituto de Acção Social (IAS) salienta a importância crescente no que respeita aos processos de adopção da região e afiança que “está muito atento ao procedimento e à revisão da Lei da Adopção, pelo que coopera activamente nos referidos trabalhos”. De acordo com os dados do IAS, desde 2000 até Junho de 2016, de entre os casos com pedido de adopção cujos processos de emparelhamento foram tratados pelo instituo, “69 deles referem-se a pedidos locais e seis a pedidos do exterior, encontrando-se esses casos a aguardar o respectivo emparelhamento de crianças pelo IAS”. A duração dos processos “depende das necessidades reais das crianças a serem adoptadas e dos outros factores, pelo que não se pode definir uma duração para todos os casos”, justifica o organismo.

4 Nov 2016

Esplanadas são raras no território. IACM cauteloso na atribuição de licenças

Estar sentado ao ar livre e partilhar mesa com um ou dois amigos enquanto se petisca ou bebe qualquer coisa é costume transversal às culturas que habitam Macau. Mas os espaços para isso são cada vez menos. As autoridades não facilitam o processo de licenciamento e os critérios são pouco claros

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem em Zhuhai, Shenzhen ou Hong Kong, mas são raras em Macau. São as esplanadas, locais de partilha de refeições, cafés ou chás, leitura de livros ou jornais e, acima de tudo, espaços fora das quatro paredes do quotidiano onde a conversa é sempre bem-vinda.

O HM foi saber o que motiva a ida à esplanada. O Outono acabou de chegar, o calor e humidade dão tréguas e as filas à espera de mesa para almoçar a “apanhar ar” começavam a aparecer.

A azáfama era muita, no café Caravela, para almoçar, beber café ou comer um pastel de nata. Do outro lado da rua, os restaurantes de gastronomia local tinham igualmente as esplanadas cheias de clientes de origem chinesa. O hábito de comer na rua é transversal às culturas do território. A elas juntam-se os turistas que amontoam caixas de pastéis de nata que vão saboreando por ali.

Macau isolado e entre paredes

“É importante ter uma esplanada para as pessoas poderem aproveitar o ar livre, fumarem, conversarem, estarem na rua e verem quem passa ou mesmo desfrutarem da natureza”, diz ao HM Alberto Pablo, administrador do café Caravela. O responsável aponta que, à volta de Macau, é comum encontrar este tipo de equipamento: “Basta ir a Zhuhai, e está cheia de esplanadas, e esplanadas bonitas, com estrados, cordas, vasos com plantas, etc. Tudo instalado em ruas cuidadas, que não estão em ruínas e que não têm ratos e baratas a correrem de um lado para o outro”, diz.

Para o administrador de um espaço que oferece um equipamento “tão desejado” seria importante que as políticas da China Continental se espalhassem por Macau, de modo a haver “mais beleza, mais vida”. “Uma coisa é as pessoas estarem dentro de quatro paredes; outra coisa seria, por exemplo, os próprios políticos passarem de carro e verificarem que há turistas, há portugueses e chineses, todos sentados em esplanadas e a conviverem entre eles”, ilustra, em tom de esperança.

As dificuldades no licenciamento, para Alberto Pablo, não estarão tanto associadas ao preço, apesar de considerar que a restauração está cada vez mais sujeita ao somar de custos. “A maior parte dos comerciantes, se fossem autorizados a colocar esplanadas, avançaria pelo pedido de licença. O problema é que não são autorizadas”, afirma.

Um bem comum

Do lado de cá do balcão e já de prato servido está Sérgio Perez. Para o macaense, a esplanada é um espaço de eleição porque “é menos formal para se conversar e, por outro lado, está em contacto com o céu”, explica ao HM. “Principalmente na hora do almoço e em dias de trabalho, as pessoas gostam de ter uma quebra de modo a saírem do ambiente do escritório.”

Para o residente, as esplanadas em Macau existem, mas são poucas e “seria positivo apostar mais neste tipo de espaços”. As questões que se podem colocar, nomeadamente relativas ao clima – um território com um Verão muito húmido e quente –, acabam por ser facilmente contornáveis. “Estive em Las Vegas, no deserto, com um calor enorme, mas há todo um sistema de refrigeração que permite às pessoas estarem ao ar livre”, conta.

As esplanadas ao lado de Sérgio Perez estavam cheias. Dadas as características gastronómicas, a clientela era, na sua maioria, de origem chinesa. “Basta olhar à volta e vemos que está tudo cheio, entre chineses e portugueses” constata, ao mesmo tempo que recorda outros tempos de Macau. “Nós tínhamos bastante disto [esplanadas]. Lembro-me do princípio dos anos 80 em que existia uma zona só de esplanadas em frente ao antigo tribunal. Apesar do território ter sofrido muitas mudanças, a raridade destes espaços tem, agora, tudo que ver com uma questão de licenciamento e planeamento.”

Duas mesas ao lado, estava Lina Ramadas a ler o jornal. A residente que “gosta de ali estar, especialmente nesta altura do ano”, considera que “poder fumar é uma maravilha e estar ao ar livre é outra”. Entretanto, Irene Abreu entra no restaurante porque não havia lugar cá fora. “É pena que as autoridades de Macau não permitam mais espaços destes, ao ar livre”. Recorda uma noite, na Taipa, em que “havia umas mesinhas cá fora e estavam ali pessoas interessadas em beber por ali uma cerveja, mas a polícia apareceu e, pura e simplesmente, mandou recolher as mesas”.

“As pessoas tentam, mas penso que, devido a reclamações por causa do barulho, acabam por não ser permitidas”, explica Irene Abreu. Mas “há espaços onde não vive muita gente onde isso também acontece”, ilustra, sublinhando ainda que é uma pena não haver mais esplanadas porque “as pessoas gostam”. A residente dá como exemplo a vizinha Hong Kong, onde estes equipamentos estão, normalmente, cheios. “Vou a Shenzhen e a Cantão e são cidades cheias delas e cheias de gente”, desabafa.

Irene Abreu não entende este “tabu em Macau em que parece que as pessoas que estão à frente destes assuntos têm medo”. “Este é o único local do mundo que não investe em esplanadas por causa do medo dos governantes”, atira.

Uma questão de tradição

A tradição das esplanadas é também abordada pelo arquitecto João Palla. “Macau já teve muitas esplanadas”, diz ao HM ao lembrar os tempos vividos nos anos 80 e 90. “Antigamente, não havia tantos aparelhos de ar condicionado como há hoje, nem havia a mania de estar tudo enfiado nos espaços interiores como há hoje”, o que não impede que “aqui ao lado, em Zhuhai, haja muitas esplanadas e as pessoas usufruam delas e da vida ao ar livre”.

João Palla fala do passeio repleto de espaços exteriores onde as pessoas podiam sentar-se e comer, e que ia do Porto Interior à Barra. “Eram sítios de convívio, não só de portugueses, mas também da comunidade chinesa que ali convivia”, ilustra.

Para o arquitecto, todas as pessoas gostam de estar ao livre, não obstante se colocarem questões relativas ao clima. “Macau cresceu muito em altura e há menos ventilação ou arejamento e, hoje em dia, é uma cidade mais quente pelo que, se existir um ou dois graus a mais, isso faz a diferença”, explica. No entanto, este não é motivo para que não haja esplanadas: “Há vários sítios no mundo que têm tanto sistemas de refrigeração, como de aquecimento neste tipo de equipamentos, de modo a que sejam usados em condições mais adversas”, afirma o arquitecto.

“A ideia de que os chineses só gostam de ar condicionado é uma falsa questão”, considera João Palla, convicto. “Se formos à zona norte vemos muitos cafés com mesinhas cá fora em que as pessoas estão ali a tomar o pequeno-almoço, por exemplo. No Porto Interior também ainda há uma ou outra, resquícios de coisas que faziam parte da cidade.”

A dificuldade em fazer jardins e esplanadas na RAEM é uma preocupação, mas este tipo de equipamentos tem de existir. “São necessários a todos e há sempre espaço para fazer estas estruturas”, afirma. João Palla refere, a título de exemplo, as obras que ultimamente estão em curso e que visam o alargamento de passeios, pelo que as esplanadas também são uma questão de desenho, de política e de vontade”.

Quando são pensadas, “as cidades têm de ir para além dos espaços de construção, os espaços cheios, e ter em conta os espaços vazios, como praças, esplanadas ou jardins. É neste contraponto que está o equilíbrio”, conclui o arquitecto.

3 Nov 2016

Fundações aumentaram nos últimos anos, mas especialistas afastam criação de lei avulsa

Nos últimos anos o número de fundações privadas tem crescido em Macau, sendo que muitas delas, sobretudo as que estão ligadas ao sector da educação, recebem milhões em fundos públicos. Muitas não advogam pela transparência. Ainda assim, alguns defendem que não é necessária uma regulamentação própria

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] visita dos medalhados olímpicos chineses a Macau, na semana passada, gerou reacções efusivas junto dos que sempre sonharam estar perto das estrelas do desporto chinês. Mas o evento ficou marcado pelo cheque chorudo que estrelas como Fu Yanhui receberam: 14 milhões de patacas dadas por entidades e personalidades privadas.
A Fundação Henry Fok, que há muito não era notícia, destacou-se ao doar cerca de cinco milhões de patacas. Um valor que o advogado Sérgio de Almeida Correia diz não compreender, apesar de se tratar de uma entidade privada, gerida com fundos também privados.
“Não sei a que propósito deram esse cheque, porque estamos a falar de atletas de alta competição, que já recebem bolsas do Governo chinês e têm condições especiais de treino. Não sei porque Macau faz contributos deste tipo”, disse ao HM.
Criada em 2002, a Fundação Henry Fok, empresário de Hong Kong falecido em 2006, é uma das mais antigas de Macau, um território que na última década viu aumentar o número de fundações privadas. Hoje são cerca de 30, número bastante mais baixo do que as mais de cinco mil associações existentes.
Apesar de serem entidades privadas, constituídas com dinheiros privados, a verdade é que muitas delas ganham milhões em fundos públicos, sobretudo da Fundação Macau (FM) ou outros fundos governamentais.
É o caso de todas as fundações que sustentam as universidades privadas de Macau, como a Universidade de Ciências e Tecnologia (MUST), Universidade de São José (USJ) ou a Universidade Cidade de Macau (UCM). Os números são tornados públicos porque a FM os publica no Boletim Oficial (BO), mas os relatórios e contas destas fundações e toda a sua contabilidade estão muitas vezes afastados dos olhos do público.
A título de exemplo, a FM concedeu, no segundo semestre deste ano, cerca de 11 milhões para a Fundação da MUST, dinheiro que serviu para pagar o plano anual da universidade para 2013. Já a Fundação da UCM recebeu 36 milhões. A UCM é detida pelo deputado e líder da comunidade de Fujian, Chan Meng Kam, que tem também uma Fundação com o seu nome, criada em 2014.
Há ainda outro punhado de Fundações criadas na área da cultura das quais pouco ou nada se sabe. A título de exemplo, existe, desde 2004, a Fundação da Natureza Mundial de Macau, ou, desde 2008, a Fundação Monumentos. Desconhecem-se os projectos que desenvolvem ou o seu funcionamento.
Para o advogado Sérgio Almeida Correia, é necessária uma maior transparência no funcionamento destas instituições, ainda que sejam privadas. E dá um exemplo.
“O caso do subsídio dado à Fundação da Universidade de Jinan gerou uma enorme polémica porque ninguém sabia porque é que se estava a atribuir uma verba daquelas. É precisa transparência em relação ao Governo e ao funcionamento da AL, esse é o principio geral de bom governo e administração. Não acho que deva existir um regime especial para as fundações, mas seria bom que seguissem os princípios gerais, que já existem, mas que nem sempre são seguidos. Deveriam ser fiscalizadas o que parece que neste momento não está a acontecer. Não há transparência suficiente nem há fiscalização suficiente.”
Sérgio de Almeida Correia salientou ainda o facto de muitos documentos serem de difícil acesso à população. “É muito difícil ter acesso a documentação e muitas vezes um advogado ou um cidadão não consegue aceder a determinado processo. Existe uma cultura de sigilo na Administração e no Governo que é uma coisa muito pouco recomendável e saudável. Essas coisas poderiam ser revistas.”
Agnes Lam, docente da Universidade de Macau (UM), defende que o escrutínio deve ser maior caso a Fundação receba dinheiros públicos. “A Fundação Henry Fok, por exemplo, é privada e não podemos exigir uma maior transparência quanto ao seu funcionamento, porque tem matriz familiar. Apoiam algumas actividades sociais e também projectos culturais. Têm os seus órgãos sociais e têm uma regulação interna. Mas em relação a todas as Fundações que recebem fundos públicos temos de exigir uma maior transparência, deviam publicar relatórios anuais, como se de uma empresa se tratasse, com a publicação dos seus relatórios e contas nos jornais”, defendeu a também ex-candidata às eleições legislativas ao HM.
“Se quiser abrir a Fundação Agnes Lam com o meu dinheiro e fazer caridade com isso, penso que não deve haver (tanta regulação), porque as pessoas têm de ter essa liberdade”, referiu ainda.

Lei não é necessária

Actualmente o Código Civil regulamenta a criação de Fundações, sendo que o seu funcionamento e até fiscalização está dependente dos órgãos sociais da entidade. Especialistas ouvidos pelo HM defendem que não é urgente uma lei avulsa para regular as Fundações.
“Não creio que seja importante criar esta lei”, defendeu o advogado Miguel de Senna Fernandes. “Se no futuro a criação de Fundações levarem a situações que não constam na lei, então aí sim justifica-se o tratamento legal. Neste momento julgo que não se justifica uma lei avulsa para a regulamentação das Fundações.”
Também o jurista António Katchi “não consegue ver a necessidade de tal lei”. “Quer as associações ou Fundações privadas são amplamente reguladas pelo Código Civil. É claro que, tratando-se de entidades privadas, estes regimes jurídicos deixam uma ampla margem aos seus órgãos internos para a definição, execução e fiscalização das suas actividades, e penso que assim deve continuar”, defendeu. antonio katchi
O jurista, docente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), referiu apenas que a atribuição de subsídios deve acabar caso seja notada algum tipo de ilegalidade. “Se uma Fundação não fizer nada ou quase nada em prol da população, não podem certamente os poderes públicos obrigá-la a fazer mais; podem, sim, cortar-lhe subsídios e outros benefícios que, nos termos da lei, dependam da sua utilidade pública. Em todo o caso, é em primeiro lugar ao Governo e à Administração Pública dele dependente que compete satisfazer as necessidades colectivas. O Governo não deveria deixar ninguém ficar dependente da boa vontade de entidades privadas”, rematou.
Para Agnes Lam, cabe à FM, a grande financiadora destas entidades e projectos privados, avaliar o cumprimento da lei. “A legislação ainda não está pronta para a questão das Fundações. Em Portugal existem imensas Fundações sobre as quais existem poucas informações. Temos que ter cuidados em relação a isso. A FM recebe dinheiro público, dos casinos, e têm de ser muito mais transparentes.”

Cultura, Educação e Direito| Os exemplos Badi e Rui Cunha

A Fundação Badi é a segunda mais antiga de Macau. Criada em 1990, dois anos depois da Fundação Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), a Fundação Badi quis ser desde o primeiro momento uma organização sem fins lucrativos para o desenvolvimento da criança em Macau e na China. Os seus fundadores foram Badi’u’llah Farid e Shidrokh Amirkia Bagha.
“Esta família vivia em Macau nos anos 90 e queriam fazer algo por Macau e também pela China, então criaram a fundação e também tem, desde 1996, escritórios em Pequim. Foi fundada a pensar na questão prática, na criação de uma organização sem fins lucrativos, mas também havia a visão de que a fundação poderia apoiar o desenvolvimento na China. O objectivo desde o início era ter programas em Macau e na China”, explicou ao HM Victor Ali, director-executivo da Fundação.
Para além dos programas educativos que desenvolve com escolas e universidades, na RAEM e também na China, a Fundação Badi gere a Escola das Nações, na Taipa, hoje com 600 alunos. Em 2006 recebeu das mãos do Governo um terreno para a sua construção.
“A fundação tem quatro trabalhadores a tempo inteiro, sendo que três deles estão focados no trabalho com as escolas e em conjunto com a DSEJ, e também com as universidades. Temos o apoio do Governo, a DSEJ deu-nos o terreno para a construção da escola das nações e um apoio financeiro para a construção do nosso campus. Nos últimos anos a DSEJ também nos atribuiu muitos subsídios que tem permitido à escola crescer”, disse ainda o responsável.
A Fundação Badi é uma das poucas entidades do género com presença online, onde publica os seus relatórios anuais. Também a Fundação Rui Cunha, criada em 2012, sempre quis ser reconhecida junto do público pela defesa da cultura e do Direito local. Filipa Guadalupe
“Esse é um dos princípios que norteiam a Fundação desde o início. Os fundos são totalmente privados, vêm em exclusivo do fundador (Rui Cunha), ele gosta que a comunidade saiba para onde vai o dinheiro. O dr. Tubal Gonçalves faz relatórios mensais e depois temos o relatório anual, e tudo é escrutinado em assembleia de curadores. Isto funciona como uma empresa”, explicou Filipa Guadalupe, coordenadora do Centro de Reflexão Estudo e Difusão do Direito de Macau (CREDM).
Filipa Guadalupe, jurista, também defende que não é necessário criar uma lei avulsa para regulamentar o funcionamento das Fundações. “As associações e fundações têm estatutos e regulamentos, os quais são obrigados a cumprir. Cabe aos associados, numa associação, fiscalizar, e nas fundações aos órgãos sociais, os curadores. Cabe aos órgãos internos fazer a fiscalização. Se têm apoios privados ninguém tem nada a ver com isso, mas se vierem de entidades públicas, no caso da FM, cabe a esta ver se o dinheiro está a ser bem investido.”
“Quando há associações ou Fundações que são “sustentadas” com apoios públicos é normal que a sociedade se questione. No nosso caso a FM só nos apoiou em um ou dois livros, de Direito, e fomos obrigados a publicar o livro no período a que nos propusemos e a devolver o dinheiro caso sobrasse. Connosco esse mecanismo funcionou. Deverão fazer o mesmo com outras fundações.”

Cronologia das fundações locais

1988 – Fundação STDM
1990 – Fundação Badi (detém a Escola das Nações e gere outros programas educativos)
1996 – Fundação Sino-Latina (criada por Gary Ngai para promover as relações entre a China e a América Latina)
Fundação Católica para o Ensino Superior (detentora da Universidade de São José)
Fundação Kayiwa (sem fins lucrativos, está ligada à Fundação de Hong Kong, criada por Kayiwa Kawuma, conselheiro católico e familiar vindo do Uganda)
1998 – Fundação da Deusa A-Má (gestora do Templo de A-Má)
2000 – Fundação Song Qing Ling Macau (em memória da segunda mulher de Sun Yat-sen)
Fundação para o Desenvolvimento da Cultura e Educação de Macau
2002 – Fundação Henry Fok (com projectos na área da educação e cultura, criada pelo empresário de Hong Kong Henry Fok)
2004 – Fundação da Natureza Mundial de Macau
Fundação da MUST (detém a MUST)
2005 – Fundação Stanley Ho para o Desenvolvimento da Medicina (apoia estudos na área da medicina)
Fundação para o Desenvolvimento da Aviação Civil
2006 – Fundação Kuan Iek Macau
2008 – Fundação Monumentos
2009 – Fundação de Beneficência do Banco da China
2011 – Fundação para a protecção da herança cultural étnica chinesa
Fundação da Universidade Cidade de Macau
2012 – Fundação Rui Cunha (estabelecida pelo advogado Rui Cunha)
Fundação Stanley Ho (com sede em Portugal, criada em 1999, com investimentos na área do imobiliário, banca e produção vinícola)
2013 – Fundação Cultura da China
2014 – Fundação de Beneficência Neng Care Macau
Fundação de Arte Ling Ge (criada pelo artista chinês Qian Lingge com um capital de 10 milhões de patacas, pretende promover a cultura chinesa. Com projectos culturais na Ilha de Hengqin)
Fundação Chan Meng Kam (estabelecida pelo deputado e líder da comunidade de Fujian Chan Meng Kam)
2015 – Fundação Budista
Fundação Galaxy Entertainment (criada pela operadora de Jogo com fins beneméritos)

5 Set 2016

Monarquias Asiáticas | Saída do Imperador japonês sem influência

Persistem na Ásia cinco monarquias que têm sabido manter-se sem grandes alterações ao longo dos tempos. Poderá a vontade de abdicar do Imperador japonês Akihito mudar o panorama? Dois analistas garantem que vai levar tempo até que as sociedades comecem a questionar a existência da democracia

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]kihito está cansado. A liderar o poder imperial japonês desde 1989, anunciou há semanas a vontade de abdicar antes da sua morte, o que poderá obrigar a uma revisão da Constituição japonesa, que permite a sucessão do Imperador apenas em casos de falecimento. Um inquérito realizado no país confirmou que cerca de 90% da população está de acordo com a abdicação.
Democracia estável, com Shinzo Abe a encabeçar o Governo, o Japão enfrenta neste momento a possibilidade de ter de alterar uma tradição que se tem mantido inalterável ao longo dos séculos. O poder imperial é simbólico, sem intervenção directa na política, mas muito respeitado pela população japonesa.
Países como a Tailândia, Butão, Malásia e Camboja continuam a ter monarquias, sendo que, para dois analistas contactados pelo HM, o impacto das mudanças no Japão nesses países será mínimo.
“São coisas que levam muito tempo a modificar-se porque há uma cultura institucional, porque se pensa que estas coisas são imodificáveis”, defendeu Arnaldo Gonçalves ao HM. “Não vai ter um impacto de maior. As monarquias estão vivas, de boa saúde e vão continuar. Caso haja uma sucessão do filho mais velho no Japão a transição vai ser pacífica, porque o Imperador é uma figura simbólica. Não vejo grandes modificações”, acrescentou o especialista em Relações Internacionais.
Para George Wei, docente da Universidade de Macau (UM) e especialista em ideologias políticas, vai demorar algum tempo até que a monarquia, enquanto instituição, comece a ser questionada, tal como já acontece na Europa.
“É menos desafiante uma alteração às monarquias na Ásia por comparação ao Ocidente, porque no Ocidente os cidadãos estão mais habituados a sistemas democráticos e há escândalos associados às casas monárquicas. Muitas pessoas começam a pensar que não é necessário um sistema democrático. Na Ásia a tradição ainda é muito forte para a maioria das pessoas”, referiu ao HM.
O docente acredita que os asiáticos ainda não chegaram à fase em que começam a duvidar do sistema monárquico. “No Japão, por exemplo, caso haja problemas que o Governo não consegue resolver, o Imperador pode ter um papel decisivo ao intervir no processo de implementação de políticas. E o processo em países asiáticos como a Tailândia é muito semelhante.”

O rei-sol do século XXI

As monarquias asiáticas têm em comum o facto da população continuar a idolatrar o rei ou o imperador como se de um Deus se tratasse. Se na Tailândia uma ofensa ao rei Bhumibol pode dar direito a prisão, no Butão, pequeno país enfiado nas encostas dos Himalaias, a população venera o rei Jigme Khesar Wangchuk e a sua esposa, Jetsu Pema, que criou inclusivamente uma conta na rede social Facebook.
É por isso que, aos olhos de George Wei, o anúncio do Imperador Akihito vai manter a tradição como ela sempre foi. “Não me parece que haja um grande impacto ou que isso vá afectar a monarquia enquanto instituição. Muitas pessoas adoram este sistema, porque gostam que haja um imperador e respeitam-no. Habituaram-se a ter um imperador ou um rei”, explicou.
Apesar do respeito que existe para com a instituição, é certo que a população começa a defender uma modernização da monarquia e dos seus costumes, como referiu Arnaldo Gonçalves. “É uma questão de adaptação da cultura monárquica japonesa aos desafios do século XXI. As pessoas têm emitido declarações que mostram que estão de acordo com isto. O Imperador está moribundo e na Tailândia a mesma coisa.” rei tailandia
Arnaldo Gonçalves ressalva, contudo, o facto de uma reforma constitucional poder ser difícil de implementar. “No Japão essas reformas são difíceis, porque há uma câmara alta e uma câmara baixa e por isso as duas têm de estar maioritariamente de acordo para se fazer qualquer reforma. Essa é uma questão que se vai pôr mais tarde ou mais cedo, porque tem de se resolver o problema. O imperador tem de se arrastar na sua debilidade porque desempenha uma função institucional? Para a maioria das pessoas isso não faz sentido.”
George Wei deixa, no entanto, um alerta. A obrigatoriedade de rever a Constituição poderá levar o governo de Shinzo Abe a fazê-lo olhando para outros objectivos. “Não sei se será bom para o governo japonês rever a Constituição, porque as verdadeiras intenções da revisão visam dar ao governo mais poderes para a expansão militar do país. Em relação à Casa Imperial não vejo grandes alterações a acontecer, porque se trata de um sistema que funciona bem”, concluiu.

O problema do bom-vivant – Tailândia com obstáculos na sucessão

Há seis anos já era um assunto tabu, ao ponto da revista The Economist ter escrito sobre o assunto e não ter enviado a edição para o país. A fraca saúde do rei Bhumibol e o problema da sucessão, pelo facto do herdeiro, Maha Vajiralongkorn, ser considerado playboy e ligado a escândalos, continua a ser um assunto sensível aos tailandeses.
Com quase 90 anos, no poder desde 1946, o rei Bhumibol tem sido uma peça fundamental para equilibrar muitos dos conflitos políticos e sociais que têm ocorrido no país. Bhumibol tornou-se rei quando a monarquia era considerada uma instituição irrelevante, mas soube conquistar a confiança da população no equilíbrio das várias forças políticas.
Se as mudanças no poder imperial japonês não vão trazer consequências de maior, a verdade é que a morte de Bhumibol pode gerar um novo panorama de difícil resolução.
“Há uma Junta Militar e com a nova Constituição estou a vê-la ficar no poder, pelo menos, nos próximos dez anos. Isto porque é um factor de estabilidade e um ponto de equilíbrio entre os dois grandes grupos que dividem a classe política tailandesa. O rei tem uma autoridade natural, porque está há muito tempo no poder, conviveu com vários primeiros-ministros, é adorado pela população”, frisou Arnaldo Gonçalves.
Maha Vajiralongkorn é um homem de 64 anos e o seu nome não pára de ser associado a escândalos. Divorciou-se recentemente da terceira mulher, que surge num vídeo em topless, feito quando ainda era princesa.
“O candidato a rei não tem essa imagem (de seriedade, como o pai), é visto pela população como um indivíduo imaturo, um bom-vivant, alguém que faz uma vida fora do quadro ético e moral da monarquia. Se for colocado no poder, se estará à altura das responsabilidades, essa é uma grande interrogação. Vamos ver na Tailândia como vai ser, tenho algumas dúvidas de que o príncipe tenha alguma maturidade”, explicou Arnaldo Gonçalves.

24 Ago 2016

Jogo | Campeonatos online “podem ser via” para a diversificação

A inclusão de jogos online na diversificação das actividades turísticas de Macau e por parte dos casinos é uma ideia a considerar por parte da Associação Grow Up eSports. Se noutras paragens o jogo no ecrã é um desporto a ter em conta, em Macau não é reconhecido como tal. Um negócio de milhões, com profissionais qualificados e uma modalidade ainda sem concepção legal ou operacional para integrar o negócio dos casinos, mas que não deixa de dar cartas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s jogos online são actualmente uma indústria de milhões. Milhões em gente e dinheiro. Já há atletas dos ecrãs e equipas especializadas. Para uns é um desporto, para outros nem por isso, mas na RAEM as cartas estão dadas para que, no futuro, se abram portas a uma actualização da indústria do Jogo e do Turismo.
Em Macau há pelo menos uma entidade empenhada em fazer valer uma nova modalidade na caminhada para a diversificação do turismo e das áreas associadas ao Jogo. Numa sociedade cada vez mais ligada à rede, e em que a vida física dá tantas vezes lugar a uma outra dentro de ecrãs, a Associação Grow Up eSports quer abraçar esta nova tendência no seu lado “saudável”. A Associação sem fins lucrativos, “filha” da homónima em Portugal, tem como objectivo “o desenvolvimento de actividades atentas às novas tendências e que promovam as preferências de entretenimento digital de uma comunidade maioritariamente jovem, incentivando a participação em eventos sociais e competitivos”, como afirma o presidente, Fernando Pereira, ao HM.
A Grow Up eSports, que teve início em terras lusas em 2002, conta por lá com cerca de mil membros e é reconhecida oficialmente pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) “como uma das Associações mais inovadoras de Portugal”. Em Macau, a competição virtual ainda está longe de ser vista como uma actividade desportiva, muito menos capaz de colocar desporto e Jogo no mesmo saco. Em resposta ao HM, o Instituto do Desporto (ID) afirma que “a prática do desporto visa a promoção da saúde física e mental enquanto que o Jogo pode trazer efeitos adversos à mesma”, lê-se.
No entanto, Fernando Pereira juntou-se a Frederico Rosário, membro da Associação, e os dois estão de mãos na massa. Para o presidente é claro que “a tendência dos Desportos Electrónicos como nova forma de entretenimento é inquestionável”. Numa actualidade em que o tempo dos mais jovens é passado em grande parte a jogar Playstation, telemóvel ou computador, é altura de assegurar que esta prática – em vez de acrescentar maleitas sociais – possa entes representar, com a ajuda de entidades como a Grow up, uma prática “saudável e que os benefícios da mesma sejam devidamente aproveitados”.

Perícia VS Sorte

De modo a diversificar também o público e o leque de apostadores daquela que é a indústria rainha da RAEM, Fernando Pereira realça que “as apostas em eSports já estão a começar a ser vistas como uma alternativa às tradicionais slot-machines”. Para o presidente da Associação de jogos online esta é uma área que pode vir a colorir com outros tons não só o tipo de apostas no Jogo, como ainda vir a representar uma área apelativa para faixas mais jovens, sendo que “além de serem acerca de jogos que os próprios jogam ou seguem em casa, são totalmente dependentes de habilidade e não do acaso”.
Também é baseado na habilidade que Frederico Rosário fala ao HM. Para além de membro da Associação, Frederico é um jogador. “Não sou profissional, sou um jogador amador”, apresenta-se. No entanto também lhe é óbvio que “enquanto nas máquinas, que já nem dão moedas mas sim o recibo para quem ganha, o apostador apenas depende da sorte, se falarmos de jogos online não estamos a apostar nas habilidades dos jogadores que são conhecidos”.
Para Frederico Rosário os jogos agora implicam aptidões de processamento cognitivo. “Já não é como no Super Mário”, jogo em que deu os primeiros passos na consola. “Os jogos agora podem incluir cerca de 780 acções por minuto”, diz, enquanto ilustra a complexidade que se vive no mundo virtual. Num minuto, o jogador tem que falar com a equipa de que faz parte e fazer um número de acções conjugando os instrumentos de que dispõe para atingir os objectivos.

Outros hábitos

Frederico Rosário é filho de um engenheiro e lembra-se de, aos dois anos, o pai “ter comprado a máquina” com que jogava na altura Super Mário. Se hoje em dia os jogos são muitas vezes apontados como alguma conotação anti-social, dado o número crescente, apesar de indefinido, de jovens que cada vez mais se fecham nos seus quartos ligados à rede, para este jogador o contentamento não é disfarçado quando fala nos tempos de meninice.
“Quando havia tufões os miúdos juntavam-se todos a jogar.” Agora esta vertente social acontece de outra forma. “Enquanto jogamos em rede não são raras as vezes em que acabamos por partilhar com os outros elementos da nossa equipa o que nos vai acontecendo na vida”, afirma o jogador. Por outro lado, Fernando Pereira refere ainda que, ao trazer os jovens para competições destas modalidades online, também se está a trazer estas pessoas para o convívio social.

Um desporto para fazer vida

Frederico joga por lazer mas também começa a participar em torneios. Em vésperas de competição em Hong Kong, já considera que “se passar a primeira etapa já é um vencedor”. Também é de vencedores que se trata quando se fala das competições online dirigidas por profissionais. “Cada vez mais se pode viver de jogos online.”
Em Macau já há quem o faça e participe nas equipas da China. E não se está a falar de tostões de ordenado. “São pagos cinco ou seis milhões ao ano”, afirma o jogador. No mundo da rede, que não se vê, existem equipas – como a Coreia do Sul, por exemplo – que, tal como no futebol, “roubam os melhores jogadores com contratos mais prometedores. “Quem é bom vai sendo contratado por equipas que pagam cada vez mais”, ilustra.
Para Frederico é como qualquer outro desporto. Há treinadores, equipas e mesmo nutricionistas e psicólogos para manterem em forma estes atletas virtuais. “Macau costuma ser mais lento do que os outros”, afirma, e a Grow Up quer trazer as modalidades para serem por cá disputadas como se faz nos outros sítios. “Acho que um dia o ID vai ver o nosso trabalho e reconhecer que somos uma Associação de desporto”, afirma o jogador.
Trazer a Macau cada vez mais eventos dentro dos parâmetros das competições online e com eles atrair os vizinhos espectadores da Coreia do Sul, China e Japão e das regiões de Taiwan e Hong Kong é um objectivo mais que definido da Associação. Tal como nos desportos com atletas de carne e osso, também aqui uma “grande maioria dos entusiastas destes jogos gosta de assistir aos seus ídolos jogar, tal como acontece em qualquer outra modalidade desportiva”, afirma Fernando Pereira.

Casinos de olho aberto

Frederico Rosário refere ainda que o MGM Cotai já pensou nesta área e o Studio city também estará a fazer o mesmo. O HM tentou resposta das operadoras, mas não conseguiu até ao final da edição. Ainda assim, o entusiasmo dos casinos é reiterado pelo presidente da Associação.
“Os casinos têm-se demonstrado muito abertos à introdução de eventos de eSports nas suas arenas, pois está comprovado serem espectáculos com elevada projecção, tanto offline como online.”
Para o promotor desta modalidade, é fundamental que as operadoras que queiram manter a sua relevância apostem nas novas tendências e comuniquem na língua que os seus possíveis futuros clientes comunicam. “Neste momento, essa língua são os eSports.”
Em Las Vegas, um outro epicentro do sector do Jogo que muito trouxe a Macau, “já existe a vontade de se avançar com esta componente de apostas”, como esclarece Fernando Pereira.

Dúvidas

Até este momento, Davis Fong, académico da área do Jogo da Universidade de Macau, “não consegue ver que exista ainda um modelo legal e operacional de cariz internacional capaz de regular esta área nos casinos. É necessário para Macau que existam estas molduras operacionais e legais em que o território se possa apoiar para eventualmente levar o jogo virtual ao casino. Mas “ainda é cedo” para que isso aconteça em Macau.
Para o investigador, o mercado local “ainda é muito pequeno e, por outro lado, ainda não há uma empresa de tecnologia local envolvida nos jogos virtuais”. Por isso, antes da existência de uma configuração legal e de uma estrutura económica dedicada ao desenvolvimento de meios necessários a esta área, não será fácil o seu estabelecimento no território. Davis Fong não põe de parte que no futuro possa ser uma área a considerar por cá.
Fernando Pereira alerta, por seu lado, para esta necessidade que também já foi pensada em Vegas. “Antes que isso seja possível, é necessário que todo um sistema de regulação e inspecção de jogos seja colocado em prática, de forma a que possa haver controlo sobre possíveis batotas, doping, ou mesmo resultados combinados”, remata.

Números

20 milhões de USD em prémios monetários no evento “The International 2” é o montante que bate todos os recordes estabelecidos até à data em iniciativas do género

200 milhões de RMB definido para 2016 definidos pela World Cyber Arena na China

670 milhões de internautas envolvidos

370 milhões de jogadores

325 milhões de USD em patrocínios em 2016

800 milhões de USD em patrocínios previstos para 2019

32 milhões de espectadores sendo que 8,2 milhões são telespectadores concorrentes

16 Ago 2016

Obras | Construções afectam negócios na Praia Grande e São Lourenço

Restaurantes, cafés e pequenas lojas queixam-se da diminuição de clientes que as obras nas zonas da Praia Grande e São Lourenço têm vindo a causar. As ruas estão abertas e a circulação torna-se difícil para moradores, residentes e trabalhadores. Comerciantes pedem mudança no sistema

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]nde antes havia passeio há agora placas de madeira cheias de lama bem à porta dos estabelecimentos comerciais. A situação é comum na zona da Praia Grande, onde o rebuliço comercial e empresarial acontece todos os dias, e também na zona de São Lourenço, junto à sede do Governo.
Quem ali passa diariamente depara-se com dificuldades de circulação de pessoas. As ruas ficaram ainda mais pequenas para os veículos e quem anda a pé tem de fazer manobras para não cair em buracos ou escorregar. Quem tem vindo a sofrer com esta situação são as pequenas lojas situadas na zona, que já se queixam de uma quebra de clientes.
“Arrancaram com muitas construções nesta área. Claro que a nível de clientes afecta, noto muito menos pessoas aqui do que antes. Também não é nada conveniente para turistas e moradores que passam por aqui todos os dias, com a lama, a chuva e tudo isso”, disse ao HM Mathew, da loja Manna Cookery, que vende comida para fora.
As construções que neste momento decorrem na Praia Grande e em São Lourenço são da responsabilidade da Sociedade de Abastecimento de Águas de Macau (SAAM) e da Companhia de Electricidade de Macau (CEM). Para Mathew, deveria haver uma melhor gestão dos projectos a realizar nos espaços públicos, para evitar incomodar quem cá mora e quem procura visitar as zonas tradicionais do centro de Macau.
“Penso que deveriam programar melhor as construções e têm de fazer os trabalhos mais depressa, porque pelo que tenho notado demoram muito tempo. Pelo que vejo, num dia trabalham apenas uma ou duas horas.” obras
Uns metros mais à frente, Ron, gerente do Café Terra, também se queixa das más consequências para o seu negócio. “O barulho incomoda e muitas vezes as viaturas até causam algumas situações perigosas, porque a rua está cortada mas têm de passar as pessoas e também os veículos. É uma situação que não traz bons resultados para quem faz negócio nesta zona, como é o nosso caso. Noto que temos menos clientes do que antes. Não há nada que possamos fazer em relação a estas obras, porque têm a ver com empresas e têm de as terminar no prazo previsto. Mas o facto de haver tantas construções ao mesmo tempo cria um mau ambiente para residentes e turistas”, disse Ron, defendendo que o sistema precisa de ser alterado.
Ron considera que este é um problema do sistema, porque as instalações das electricidades e água “estão sempre a ser alvo de alteração”. O responsável do Terra diz que as ruas estão sempre a ser abertas e “parecem fazer uma obra de cada vez”.
“Deveriam alterar o sistema porque não é bom, e depois demoram muito tempo. Mas não sei o que poderemos fazer para alterar este grande problema, que afecta não apenas os negócios, mas toda a gente.”
Para Flora Che, dona da Cakepuccino, o maior inconveniente é ter de se deslocar no meio da confusão para ir buscar os produtos de pastelaria que vende na sua loja e que são entregues semanalmente.
“Temos o problema com os fornecedores, que não conseguem parar mesmo em frente à nossa porta e temos de ir buscar os produtos de pastelaria mais longe e isso não é muito conveniente para nós. Pelo que vejo tratam-se de obras que não deveriam demorar tanto tempo, o Governo deveria explicar melhor a situação. Deve haver uma melhor gestão nestas obras”, disse a responsável pela Cakepuccino, que tem vindo a registar uma quebra de clientes para cerca de metade do habitual.

“Todos estão afectados”

Na Praia Grande, onde além de um supermercado, uma padaria e restaurantes existem escritórios de advogados, dezenas e dezenas de pessoas passam diariamente num pequeno corredor criado de improviso. Com as fortes chuvas os trabalhadores das obras vêem-se obrigados a esperar algum tempo até que as intervenções no solo possam continuar.
Herculano Dillon, proprietário do restaurante de comida macaense Lagoa Azul, garante que a culpa da falta de clientes não é pela má qualidade de comida. Ali continua-se a fazer a boa alheira portuguesa e o Bafasá, entre outras iguarias. A verdade é que, desde que as obras na rua começaram, as mesas custam a encher-se de clientes à hora do almoço, quando antes era difícil encontrar uma mesa livre.
“Sinto menos 50% de clientes no restaurante, mas isso não é por causa de não ter coisas bem feitas (aponta para o menu). Aqui há coisas bem feitas. Todos se sentem afectados por isto, mas é algo que tem de ser feito. São obras privadas, fizeram tudo de uma vez, espero que daqui a umas semanas tudo esteja concluído.” obras
Contudo, Dillon, macaense, disse recordar-se de outros tempos em que o cenário das obras nas vias públicas de Macau era bem mais complicado. “Apesar de tudo, penso que a gestão das obras está a ser melhor feita do que antes, porque antigamente cada empresa abria a rua e na semana seguinte outra empresa voltava a abrir e actualmente o sistema melhorou. Apesar de estarmos a ser afectados, eles estão de parabéns”, defendeu. “Espero que o negócio volte ao normal, mas a questão é: quando é que estas obras acabam? Há sempre algumas condicionantes, como a chuva. São coisas que têm de ser bem planeadas, já foi pior, e penso que este Secretário é muito competente, apesar de todas as críticas. Ele não pode fazer tudo”, disse Herculano Dillon, referindo-se ao Secretário para as Obras Públicas e Transportes, Raimundo do Rosário.

Chan Meng Kam questiona Governo

Apesar do optimismo de Herculano Dillon, (ver texto,principal), o deputado Chan Meng Kam é uma das muitas vozes que não felicita os responsáveis pelas obras que actualmente ocorrem na zona da Praia Grande, São Lourenço e em toda a Macau.
Numa interpelação oral apresentada na Assembleia Legislativa esta semana, o deputado chamou a atenção para aquilo que considera ser uma falta de coordenação entre os vários projectos.
“São férias de Verão e estamos outra vez no auge anual do escavar das ruas”, começou por dizer o deputado no hemiciclo. “Na verdade, em Macau é tudo muito esquisito. Os esgotos de drenagem, os esgotos pluviais, as câmaras de pompa e as obras nas vias, entre outras empreitadas similares, são asseguradas pelas Obras Públicas e pelo Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), e cada um faz as suas. No caso do Metro Ligeiro, intervém numa parte o Gabinete para as Infra-estruturas de Transportes (GIT), mas a totalidade é assegurada pelo GDI, mas ambos pertencem ao nosso mesmo pequeno Governo. Macau faz a diferença, por cá “não são grandes os templos, mas são muitos os monges” e “mais um incensório é mais um diabo”, portanto, se esta má prática se mantiver por muito mais tempo, situações caóticas semelhantes à do trânsito da Taipa só podem ser cada vez mais!”, apontou Chan Meng Kam.
“Apesar de estarem psicologicamente preparados, os residentes ficaram surpreendidos com o número de obras públicas: 485 neste ano, 99 durante as férias de Verão, 35 na Taipa e destas, 8 são de grande dimensão”. Chan Meng Kam alertou ainda para o facto de na Taipa estarem “várias ruas vedadas”.
“Há residentes que dizem: ‘Moro na Taipa há várias décadas. Mas, de repente, já não sei andar nem conduzir aqui, é impossível sair’. Há outros que suplicam ‘nossos queridos dirigentes, podem poupar-nos a isto?”, afirmou.

12 Ago 2016

Incêndios | Já há cinco vítimas mortais dos fogos que fustigam o país Portugal a arder

Mais parece um disco de terror riscado que a cada chegada do Verão teima em tocar. Chamas consomem Portugal repetidamente e reduzem recursos a cinza, desalojam gente e forçam os soldados da paz a dias e noites frente a frente com o inferno

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]no após ano, o Verão português inflama. As televisões abrem o telejornais com o que vai restando de Portugal a arder. É a voracidade das chamas a ganhar terreno, a destruir florestas, casas e tudo o que lhes passa pela frente. Quem de fora vê, observa rostos incrédulos e em choque dos que vivem o drama e a força inesgotável dos bombeiros, os soldados da paz que, sem mãos a medir, tentam fazer o que podem para que os estragos não sejam ainda maiores. Este ano o cenário mantém-se. Portugal está a arder e as labaredas não poupam terreno.
Ontem eram 34 os concelhos em “risco máximo” de incêndio em Portugal continental. A informação foi dada pela agência Lusa, tendo em conta a informação do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). O Instituto colocou também em risco ‘Muito Elevado’ e ‘Elevado’ de incêndio vários concelhos de todos os 18 distritos de Portugal continental.
O número de operacionais no terreno a tentar combater os nove maiores focos de incêndio do continente era de 960 e as chamas lavravam nos distritos de Aveiro, Braga, Guarda, Porto e Viana do Castelo, de acordo com a informação disponibilizada pela Autoridade de Protecção Civil.

De lés a lés

De norte a sul, Portugal arde. Em Aveiro estavam em curso três incêndios, sendo que o maior estava localizado no concelho de Arouca, onde 206 bombeiros combatiam as chamas, apoiados por 48 meios terrestres. Ainda em Aveiro, as chamas atingiam o concelho de Santa Maria da Feira, localidade de Canedo, com 56 operacionais no terreno apoiados por 14 viaturas e também na localidade de Real, com 52 operacionais e 16 meios terrestres.
Em Viana do Castelo há igualmente três incêndios de dimensão considerada significativa. O maior é no concelho de Vila Nova de Cerveira, localidade de Covas, onde 183 operacionais e 61 meios terrestres combatem o fogo que começou na tarde de domingo e tinha, no fecho desta edição, duas frentes activas.
Em Travanca, no concelho de Arcos de Valdevez, estavam 167 operacionais e 55 viaturas. A Protecção Civil destaca ainda o fogo com duas frentes activas em Igreja Vilar Murteda, combatido por 93 operacionais e 27 veículos.
O incêndio mais recente teve início na terça-feira, poucos minutos antes da meia-noite, no distrito da Guarda, na localidade de Pena Lobo. O fogo com duas frentes é combatido por 75 operacionais e 19 meios terrestres.
Em Braga, as chamas lavram, desde o início da noite de terça-feira, em Encourados onde estão 70 operacionais, e no distrito do Porto são 58 os operacionais que combatem as chamas em Milhundos, no concelho de Penafiel.
Para já, há registos de duas vítimas mortais no território de Portugal continental e que ocorreu na segunda-feira em Valongo. Uma das vítimas era um homem de 57 anos e a sua morte deveu-se a uma paragem cardio-respiratória na sequência das chamas que ameaçavam casas e fábricas perto do prédio onde vivia. A outra é um homem entre os 40 e 50 anos, vigilante do Parque Dormes, Santarém, que ardeu e cujo fogo destruiu ainda duas viaturas dos Sapadores.

Jardim queimado

Este ano nem o chamado jardim de Portugal escapou. À parte do continente, a ilha da Madeira está a ser assolada pelas chamas e, ontem, até ao fecho desta edição já tinha feito três vítimas mortais. As mortes tiveram lugar na terça-feira, segundo fonte do Governo Regional da Madeira, e ocorreram na zona da Pena, na freguesia de Santa Luzia, sendo moradores de duas das residências atingidas pelo fogo.
Os incêndios que deflagraram pelas 15h30 de segunda-feira no Funchal provocaram ainda dois feridos graves, cerca de mil desalojados, entre residentes e turistas, muitas casas e um hotel, o Choupana Hills, foram consumidos pelas chamas, tendo o fogo descido à cidade do Funchal na noite de terça-feira. O centro histórico de S. Pedro é descrito na imprensa nacional como um cenário dantesco.
As autoridades tiveram ainda de evacuar dois hospitais, estando cerca de 600 pessoas num Regimento de Guarnição, 300 no estádio dos Barreiros e 50 no centro cívico de São Martinho.
Cerca de 135 efectivos, 115 oriundos de Lisboa e outros 20 dos Açores, foram enviados para a Madeira para reforçar as equipas no combate aos incêndios.

Do outro lado

O Partido Ecologista “Os Verdes” exigiu ontem que seja decretada a situação de calamidade na sequência dos incêndios que lavram no Funchal, considerando que podem ser accionados junto da União Europeia pedidos de apoio.
Em comunicado, o colectivo regional da Madeira diz que “a situação dramática decorrente da propagação” do incêndio no Funchal, “atingindo o seu núcleo histórico, destruindo centenas de habitações e pondo em perigo milhares de pessoas e património inestimável”, tornou-se “um verdadeiro drama sem par na história dos incêndios nos últimos cem anos em Portugal”, em declarações citadas pela Lusa.
Segundo “Os Verdes”, além dos impactos sociais e económicos destes incêndios e da dimensão humana dramática que revestem, “estes têm ainda impactos ambientais profundos com uma perda de património natural, de biodiversidade e de património paisagístico que levarão muitos anos a recuperar”.

Mão humana

As causas para o que está a acontecer e que se repete ano após ano são variadas. Desde as altas temperaturas, ao descuido humano até mesmo à intenção de atear as chamas por diversos motivos são sempre pontos em cima da mesa.
No entanto, e para o Comandante Operacional de Agrupamento Distrital do Norte, Paulo Esteves, 35% dos incêndios florestais que fustigam o Alto Minho deflagraram à noite e “têm mão humana”.
“É fácil de ver que há mão humana quando se reportam incêndios nocturnos na ordem dos 30% a 35%. Termos seis focos no espaço de um quarto de hora, em quatro freguesias seguidas do concelho de Ponte de Lima, é um facto”, referiu aquele responsável.
Paulo Esteves, que falava em conferência de imprensa no Centro Distrital de Operações de Socorro (CDOS) de Viana do Castelo, adiantou que “o número de ignições” registadas nos últimos dias do Alto Minho “é que está na génese de tudo”.

Portugueses testemunham a dor de ver a terra a arder

Denisa Alencastre vive em Macau e é natural da Madeira. Estar a ver as chamas na terra que a viu nascer é fonte de preocupação e tristeza. Em jeito de alívio, refere ao HM “felizmente com a família está tudo bem”. A informação que tem acerca do que se está a passar vem do feedback por parte da família.
“Sei de pessoas que tiveram de abandonar as suas casas porque o fogo estava demasiado perto” e que só no despertar de ontem é que saberiam se ainda tinham casa para viver, conta.
Para esta madeirense, a situação que se está a viver “não é de agora” e “sempre foi um problema”. Denisa relembras os incidentes dramáticos de 2010 com o temporal e incêndios e agora a “história repete-se”. Na sua opinião, o mais grave que se regista no momento prende-se com o facto das chamas estarem “mesmo no centro do Funchal”.
“É uma verdadeira dor de alma”, desabafa a madeirense enquanto ilustra que “parte do colégio perto de S. Pedro ardeu e a escola secundária na Pena também”, instituições que frequentava. São as memórias que ardem.
Já Alice Dias assiste ao comer da sua bonita Serra do Gerês repetidamente. Natural de Arcos de Valdevez, a jovem que está em Inglaterra conta ao HM a “muita raiva e tristeza” que sente.
“Tristeza pelos danos causados, por saber que chegarei lá em breve e em vez de ver o verde lindo do meu Minho vou encontrar tudo negro, coberto de cinza”, explica a uma semana antes de voltar à terra mãe para umas pequenas férias. Por outro lado, Alice Dias não concebe brandamente o facto de ter noção que a “população idosa é posta em risco e tem de ser repetidamente deslocada por motivos de segurança”. A raiva que sente é por “saber que muitos dos incêndios começam por mão criminosa ou descuido”.
O contacto com quem está em casa é permanente e “quem lá está diz que é o inferno”. Os locais que tão bem conhece, como a Serra do Soajo e muitas áreas do parque natural da Peneda Gerês, “estão reduzidos a nada, ardeu tudo”.
O cenário é repetido e Alice já “perdeu a conta às vezes” que viu a sua terra arder. Para a jovem minhota, o maior dos problemas reside na ausência de prevenção. Neste sentido, ilustra com a necessidade “de mais limpeza florestal”. Por outro lado, e volta a referir, está “a mão criminosa”, sendo Alice a favor de penas pesadas para quem incorre neste tipo de crimes. É a destruição de hectares de terreno, da sua fauna e flora e do pouco património das aldeias que ainda vivem isoladas, remata com tristeza e desânimo. S.M./A.S.S.

Governo reage

Perante a situação, o Primeiro-Ministro português António Costa fez uma interrupção nas suas férias e recusou a existência de qualquer problema na eficácia da resposta aos incêndios, sublinhando que “o dispositivo tem estado a responder às ocorrências de acordo com aquilo que é o padrão normal”.
As declarações foram dadas num encontro com os jornalistas acompanhado pelo comandante operacional nacional da Proteção Civil, a Ministra e o Secretário de Estado da Administração Interna e citado na Lusa.
No entanto, Costa não deixou de sublinhar que perante “picos extraordinários”, como os que aconteceram no domingo e segunda-feira, existiram “dificuldades na resposta”, referindo-se o Primeiro-Ministro ao alerta emitido para ajuda internacional. Mas
António Costa recordando a “grande reforma no sector da protecção civil” realizada há dez anos, classificou como “essencial” a reforma da floresta. “É altura de, dez anos volvidos, não perder mais tempo para fazermos aquilo que é essencial fazer, a reestruturação da floresta de forma a termos uma floresta mais resistente, mais sustentável”, defendeu, considerando que esta é uma prioridade política a que terá de ser dada execução “tão rapidamente quanto possível”.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o Primeiro-Ministro acordaram em conjunto deslocar-se à Madeira.

Soldados com pouca paz

“Não há dois fogos iguais”, diz o bombeiro Rui ao HM. “Há pequenos focos de incêndio onde tudo se consegue fazer e há outros com várias frentes e que são autênticos infernos”.
Chega ao ponto de haver corporações inteiras a fugir e a abandonar o material e as mangueiras, homens adultos a chorar de pânico. É a descrição do homem que vê os Verões ocupados com este cenário e que lá está para apaziguar agruras alheias.
Em jeito ilustrativo, refere que já esteve num incêndio em que os soldados da paz estiveram lá 38 horas seguidas em trabalho, “sem qualquer descanso ou paragem”.
As dificuldades são muitas e ninguém quer saber dos bombeiros voluntários no Inverno, afirma Rui, que faz da vida uma divisão entre o dia a dia normal e o combate das chamas. O bombeiro diz ao HM que “são necessários mais carros, mais fardas, mais homens e mulheres”. São estas pessoas que saem de um trabalho remunerado e da segurança e conforto familiar para ajudar outros, que por vezes até “os tratam mal quando lá chegam”.
Rui é da zona centro, mas corre o país onde for preciso. Relativamente aos apoios aos bombeiros voluntários, refere que “até há câmaras que dão apoio ao voluntariado, mas não é o caso desta”.
Para Rui é frustrante ter que passar por estes episódios ano após ano sem que nada mude. “Todos os anos se fala sobre as obrigações dos proprietários e os erros continuam a ser os mesmo”, afirma. Isto, aliado a “um péssimo ordenamento territorial, queimadas fora de prazo e sem controlo e a terras completamente ao abandono e sem acesso”, que acabam com o ramalhete por detrás da tragédia anual.
Para o bombeiro o cenário é claro: “há muitos interesses dos produtores de papel, dos que gerem meios aéreos e até de alguns dirigentes dentro dos bombeiros” para que tal continue a acontecer.

11 Ago 2016