Reportagem | Multa, uma constante da vida

Todos os meses, o orçamento de famílias que residem e trabalham em Macau tem um item extra: as multas de estacionamento. Em particular para quem tem de levar e buscar os filhos à escola. Entre 2015 e 2016, só as multas em lugares com parquímetros aumentaram quase 35 por cento

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este mundo há duas coisas infalíveis: a morte e os impostos. Em Macau podem-se acrescentar as multas por estacionamento. Como se não faltassem razões para pôr os nervos em franja a quem conduz, as multas são a cereja no topo de um dispendioso bolo, em especial para as famílias que usam o automóvel para largar e buscar crianças em infantários e escolas.

André O, designer de profissão, até já montou um esquema para contornar a inevitável multa sempre que se desloca à escola das filhas. É necessário trabalho de equipa. “Eu e a minha mulher tentamos ir juntos, para que fique sempre um dentro do carro, para o caso de vir a polícia”, explica. Enquanto a mulher leva, ou vai buscar, as miúdas à sala de aula, André fica no automóvel para discutir com a autoridade. A outra opção é manter-se em circulação, dar uma volta ao quarteirão e apanhar a mulher na volta. Têm de moldar o quotidiano e adaptar-se de forma a contornar uma situação que é recorrente, e que lhes pode dar um desfalque de cerca de três mil patacas no orçamento familiar. O casal não está sozinho neste ardil. “Sinto uma certa perseguição, e tenho vários amigos que já tiveram um prejuízo mensal de 10 a 13 mil patacas”, confessa André.

O designer chegou ao ponto de ter de elucidar um polícia sobre o significado de um sinal de trânsito. “Não sabem distinguir entre um sinal de proibido estacionar, mas que permite paragem temporária, e a simples proibição”, comenta. Como vêem um sinal de proibido, automaticamente assumem que este é absoluto e universal. Já lhe aconteceu recusar sair do lugar onde se encontrava parado. “Estava à espera da minha mulher, que tinha ido levar as minhas filhas ao colégio, num lugar onde podia estar parado. O polícia disse-me que tinha de sair e pôr o carro num estacionamento. Perguntei-lhe onde. Ele disse que havia vários, desafiei-o a vir comigo vermos se encontrávamos um lugar”, lembra, humorado pelo caricato da situação. O agente acabou por desistir e não multou o designer. “Deve ter reparado que era um cidadão complicado de lidar, que não valia a pena estar a chatear-se e lá foi à sua vida sem me multar”, remata. Situações normais numa cidade que viu de Novembro de 2015 para Novembro de 2016 um aumento de 25,96 por cento no total das multas por estacionamento ilegal. Até Novembro do ano passado – os dados mais recentes da PSP – foram passadas 860.924 multas de estacionamento. Tendo em consideração que, no mesmo período, existiam em Macau 250.871 veículos matriculados, isto dá uma média de quase quatro multas por ano por viatura.

Sem opções

Usar automóvel em Macau não é um capricho, mas a única alternativa para muitas famílias. “Utilizo o carro todos os dias para levar as crianças à escola de manhã, depois para as ir buscar ao fim do dia e ainda para levá-las a actividades extracurriculares.” Quem o diz é Maria Sá da Bandeira, mãe de três filhos e jurista de formação. Quando questionada sobre a hipótese de usar os transportes públicos, responde prontamente que é impensável. “Três crianças, mochilas, sacos, termos, materiais disto e daquilo, é impossível. Com horários para sair de um sítio e ir para outro, preciso mesmo do carro”, explica. As dificuldades agigantam-se de forma inversamente proporcional ao tamanho dos rebentos. “Um deles é pequenino – cansa-se, ao fim de algum tempo já não consegue andar, não consegue carregar as coisas”, diz.

É uma história recorrente e, se o movimento é obrigatório, a paragem é um quebra-cabeças. “Não há sítio para parar em Macau e na Taipa, e agora ainda é pior porque as obras são constantes”, explica André O, acrescentando que percebe “que parar em segunda fila congestiona o trânsito, mas não arranjam solução”.

Para juntar mais um problema ao longo calvário que é arranjar um lugar para o carro, os silos de estacionamento, sempre cheios, não são propriamente locais agradáveis. “Basta entrar num para perceber que são utilizados como urinol público, o cheiro é nauseabundo – se a pessoa tem o azar de deixar cair as chaves no chão tem de ir directamente para a desinfecção”. As palavras são de Sérgio de Almeida Correia, advogado, que não entende por que acabaram com muitos lugares de estacionamento em zonas de via pública. O jurista só encontra como explicação o proteccionismo aos concessionários dos silos.

Dois pesos, várias medidas

No entanto, a caça à multa não apanha todas as presas que prevaricam os regulamentos do trânsito. Para o advogado Sérgio de Almeida Correia, o problema não é a existência e o cumprimento da lei. “Há muitas vezes negligência grosseira na aplicação da lei, havendo situações em que há excesso de zelo e outras em que há violação do dever de zelo. Existem dois pesos e várias medidas, consoante o infractor”, explica o jurista. Enquanto não existe tolerância para cidadãos, as autoridades fecham os olhos às infracções de trânsito cometidas por transportes públicos, por autocarros de concessionárias de casinos, por veículos de transporte de turistas e por os mil e um atropelos às normas de tráfego resultantes de obras de construção. Já para não falar das infracções cometidas por quem aplica a lei. “Vi várias vezes a polícia a infligir regras de trânsito, por exemplo, aqui no NAPE param em cima de passadeiras, à saída de curvas, para ir multar carros, mas o próprio veículo deles está em infracção”, conta Sério de Almeida Correia. 

A injustiça salta à vista quando se olha para a impunidade com que camiões e autocarros estacionam na faixa de rodagem para deixar turistas, por exemplo, junto aos casinos no Cotai.

Os próprios autocarros das concessionárias de transportes públicos seriam terreno fértil para multas, caso houvesse essa vontade por parte da polícia. “Basta estar ali na rotunda junto ao Hotel Lisboa para ver como é que eles entram na via depois da tomada e largada de passageiros, e a polícia não actua nessas situações”, comenta o advogado.

Também André O se sente revoltado com a actuação dos autocarros públicos que, simplesmente, “param na via pública”. Na Ilha Verde, exemplifica, “estacionam ao final do dia e ninguém multa”. As motas da polícia passam, multam os carros que estão mal estacionados, e não passam cartão aos autocarros. “Mesmo durante o dia, os autocarros param em segunda fila ali ao pé do Canídromo”, indiferentes ao caos que causam ao trânsito, não usando o recorte na faixa de rodagem onde podem encostar.

Enquanto quem reside em Macau desespera, quem vem jogar não só passa ao lado dos problemas dos que cá vivem, como ainda os potencia. “Nós, os residentes, que temos de fazer a nossa rotina diária dentro da cidade, somos altamente prejudicados com o movimento turístico que aqui há. Somos muito facilmente multados por pararmos o carro, mal estacionado, durante um bocadinho porque temos de ir a correr deixar uma criança, ou porque passou um minuto no parquímetro e não conseguimos naquele momento pôr a moeda”, desabafa Maria Sá da Bandeira. “O Governo parece ter todo o interesse em manter a situação, sem qualquer tipo de preocupação adicional com o prejuízo para o quotidiano das pessoas”, acrescenta.

Quid juris

António Katchi, professor de Direito, também vê na arbitrariedade de tratamento um atropelo dos direitos mais elementares da população. “Mesmo com uma vigilância orwelliana sobre tudo o que se passa na estrada, por meio de radares e de câmaras de vídeo, só uma pequena parte das infracções de trânsito pode ser realmente autuada, processada e punida”, começa por ressalvar. Ou seja, a aleatoriedade é, portanto, praticamente inevitável. Mas esta não significa arbitrariedade. “As autoridades devem definir prioridades para a sua acção de fiscalização, e devem atender aos diversos objectivos e princípios que norteiam, ou devem nortear, a sua acção”, explica António Katchi. O jurista adianta ainda que o objectivo deveria ser a segurança dos transeuntes e dos automobilistas, respeitando “o princípio da prossecução do interesse público, o princípio da justiça, o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da boa fé, etc.”. Como tal, o académico considera as prioridades das autoridades “altamente discutíveis à luz destes padrões”.

Se estamos, ou não, na presença de uma violação do princípio da igualdade, como se diz em legalês, a doutrina diverge. Para Sérgio de Almeida Correia, o princípio fundamental tem como propósito defender a equidade em casos de maior relevância, que vão além de uma infracção administrativa aos regulamentos de trânsito.

Maria Sá da Bandeira, jurista de formação, entende que a violação do princípio da igualdade é evidente. “O princípio da igualdade diz-nos que, para situações iguais, tratamentos iguais, para situações diferentes, tratamentos diferentes. Mas estando nós a falar de situações diferentes, por se tratarem de interesses com prioridades distintas, penso que aí o princípio da igualdade é violado”, comenta. Maria aproveita para acrescentar que “o interesse dos residentes de Macau tem de ser, em muitas situações, posto à frente do interesse turístico da cidade”.

A circunstância das pessoas se encontrarem entre a espada e a parede, a terem de infringir um regulamento de trânsito para conseguirem deixar os filhos na escola, pode representar outra situação digna de análise jurídica.

António Katchi considera que “se uma pessoa comete uma infracção em circunstâncias que não lhe permitiriam actuar de outra maneira, então dificilmente se poderá dizer que agiu com culpa”. Para o académico, poderá alegar-se que a pessoa agiu em estado de necessidade, o que representa uma causa de exclusão da culpa. “Noutros casos poderá alegar-se que a pessoa se encontrava numa situação de conflito de deveres, ou seja, o acto da pessoa nem sequer chegou a constituir um facto ilícito, pois o cumprimento do dever exclui a ilicitude do acto”, explica António Katchi.

Independentemente das interpretações jurídicas, das considerações filosóficas, ou da posição dos astros, tudo indica que as odisseias com o estacionamento vão continuar. O facto é que está nas mãos do Governo local resolver a situação. Porém, a Medalha de Valor que o Executivo entregou recentemente ao comissariado do Departamento de Trânsito do Corpo de Polícia de Segurança Pública parece indicar que no paraíso está tudo bem.


Arquitecto Nuno Soares defende plano estratégico de mobilidade

Punir sem procurar soluções para a situação complicada que hoje se vive no trânsito não vai resolver o problema, considera o arquitecto Nuno Soares. Para o urbanista, as autoridades de Macau devem pensar num plano estratégico de mobilidade e não estarem à espera do metro ligeiro, sistema que, de resto, não vai resolver todos os dilemas de quem tem de se deslocar no território.

Na origem de tudo, contextualiza Nuno Soares, “está um cenário em que a população de Macau está a crescer, a população da Taipa e de Coloane também continua a aumentar”. Em Seac Pai Van foram colocadas muitas famílias, recorda, e “o crescimento normal urbano da Taipa faz com que haja obviamente muitas mais pessoas a viverem lá”.

Acontece que a grande maioria dos serviços públicos e muitos empregos continuam a ser na península. “Os movimentos pendulares têm aumentado nos últimos anos, por via do crescimento da população e desta expansão urbana na direcção da Taipa e de Coloane.”

O fenómeno também se regista em sentido contrário, por causa dos residentes que trabalham nos casinos. “Há um stress que está a ser provocado na rede de transportes públicos. Os autocarros têm mais pessoas a usá-los e há mais necessidade de transporte individual porque, ao fim e ao cabo, as pessoas estão mais longe do seu local de trabalho”, observa.

O resultado destas modificações no tecido social e económico está à vista: “Temos em Macau uma rede viária que é das mais congestionadas ao nível mundial. Há efectivamente um problema de escoamento de trânsito e de falta de lugares de estacionamento para a quantidade de carros.”

Para o urbanista, a única forma de se tentar dar a volta ao texto, neste momento, é um plano estratégico de mobilidade. Quando o metro estiver a funcionar, “obviamente que vai ajudar porque vai ligar a península ao Cotai”, mas não vai fazer com que Macau passe a ser o paraíso da mobilidade. E porque ainda faltam vários anos até que o metro seja uma realidade, há que minorar os problemas. “Precisamos claramente de um plano de mobilidade que ajude a gerir as diferentes redes”, propõe Nuno Soares.

A solução possível

O arquitecto explica como é que se faz um plano destes. Em primeiro lugar, há que perceber o que está em causa. “Há aqui um sistema de transporte público, um sistema de shuttle bus e um sistema de transportes individuais”, indica. Existem ainda situações de pico, aponta, dando um exemplo pessoal. “Quando levo a minha filha à escola de manhã, há um congestionamento provocado pelas escolas. Há um congestionamento provocado por edifícios singulares onde trabalham muitas pessoas”, indica.

Juntando estes aspectos, “tem de se organizar os sistemas e resolver os momentos em que há entropia”, um exercício que tem de ser feito de “uma forma sistemática completa”. A solução “não é milagrosa”, mas ajuda em muito, entende o urbanista.

Em termos práticos, e pegando no exemplo do sistema de autocarros públicos, Nuno Soares sustenta que tem de ser feita uma alteração. “Muitas das nossas linhas são históricas, ou seja, são linhas cujo percurso é feito há muitos anos. Não são muito objectivas. Os turistas queixam-se muito, quando chegam a Macau, que é difícil usar os autocarros porque não estão organizados como um metro, ou seja, com uma linha periférica, com a linha central, com a linha transversal”, analisa. Há que fazer uma racionalização, apostar na criação de corredores e tornar “os percursos mais evidentes, mais fluidos”, mas de “uma forma integrada em toda a península”.

Quanto ao tratamento das situações de pico, o urbanista recupera a situação que se vive à porta das escolas. Os estabelecimentos de ensino não estão circunscritos a uma só zona pelo que, antes de mais, é necessário fazer estudos pontuais – que deverão, no entanto, ser parte de uma abordagem sistemática.

“Um dos problemas é largar as crianças e voltar a recolhê-las, o ‘drop-off’. As escolas têm de ter concessionadas zonas de drop-off, zonas onde os pais param para largarem as crianças e as recolherem. Em situações de pico, esta solução aumenta muito a fluidez”, defende.

Falta de alternativas

Mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão ter de começar a usar menos os carros que têm na garagem e optarem por outras soluções, porque “temos motas e carros a mais”. O urbanista, que anda de bicicleta sempre que pode, é defensor de alternativas aos transportes privados, mas diz também que “uma estratégia só de punição, de tornar as coisas mais caras, não vai resolver” o problema.

“Se temos regras temos de as implementar, mas temos de pensar em respostas. A solução não deve estar na punição. O Governo deve pôr-se como alguém que resolve, alguém que identifica problemas e que toma medidas para os solucionar, não só como alguém que pune quem não cumpre”, afirma. “É muito importante que o Governo assuma este papel.”

O arquitecto não está contra o aumento do valor para a utilização de veículos pessoais, mas as acções neste sentido não podem ser desacompanhadas de alternativas. “Tem de ser um conjunto de medidas que, ao mesmo tempo que se desincentiva o uso do transporte individual, se incentiva o uso do transporte colectivo. O Governo tem de fazer aquilo que lhe compete – melhorar a rede e as condições”, conclui.

NÚMEROS
  • 25,96% foi o aumento das multas de estacionamento entre Novembro de 2015 e Novembro de 2016
  • 860.924 é o número de multas de estacionamento nos primeiros 11 meses de 2016
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