Hoje Macau ReportagemIndústria do jogo é fruto proibido por Pequim Situado no sul da China, Hainan ambiciona ser o centro de entretenimento do país, com resorts luxuosos, praias de areia branca e marisqueiras à beira-mar, enquanto cobiça o fruto proibido por Pequim: abertura de casinos [dropcap]A[/dropcap] nível económico, há muitos sítios na China melhores”, admite Han Zhongfei, taxista natural do nordeste chinês e radicado há três anos em Sanya, principal destino balnear de Hainan. “Mas a vida aqui é mais saudável”, diz, e acrescenta: “Há muita gente que vem a Hainan para recuperar a saúde e fica por cá”. Beneficiando da localização insular, clima tropical, baixa densidade populacional e natureza quase intacta, num país industrializado e com metrópoles densamente povoadas, Hainan popularizou-se pelo turismo de saúde e bem-estar. Contudo, com um produto interno bruto ‘per capita’ de 7.688 dólares – abaixo da média nacional de 9.794 dólares -, a ilha ficou aquém do sucesso de outras regiões com o estatuto de Zona Económica Especial, como Guangdong ou Fujian. Para a elite empresarial de Hainan, os casinos seriam o atalho para finalmente impulsionar a economia local, assimilando o modelo económico de Macau, o único sítio na China onde o jogo de azar é legal. “Devido à localização insular, Hainan pode ser pioneiro a testar qualquer indústria”, defende à agência Lusa Sun Keyu, vice-director geral do Hainan Resort Software Community, ‘hub’ tecnológico situado na capital da província, Haikou. “Propomos que empresas e indústrias de Macau sejam realocadas para Hainan. Os dois territórios poderiam compartilhar as receitas fiscais”, nota Sun, referindo-se à abertura de casinos. “Teríamos que regular a indústria, mas não existem razões para a interditarmos”, diz. “Penso que o Governo Central mantém a mente aberta”. Caso de estudo A aspiração dos empresários terá sido alimentada por um caso ambíguo envolvendo o Sanya Bay Mangrove Resort. Em 2013, o hotel passou a disponibilizar jogos de bacará, num esquema que parecia contornar a proibição do jogo: os clientes compravam fichas e trocavam os ganhos por serviços no hotel, produtos como iPads e joias, ou obras de arte, mas não podiam converter directamente em dinheiro. A operação foi encerrada, em 2014, quando promotores locais acusaram o ‘resort’ de infringir a lei chinesa, que condena até três anos de prisão quem gere uma casa de jogo. Mas, no ano passado, um tribunal de Hainan decidiu que o esquema não violou a lei e libertou os funcionários envolvidos. O desfecho levou a agência noticiosa Bloomberg a avançar que pelo menos cinco ‘resorts’ estavam a preparar operações do mesmo género com o aval das autoridades. Volvido um ano, contudo, a Lusa testemunhou que as mesas de bacará não voltaram ao Mangrove Resort – nem foram dispostas em nenhum outro hotel da ilha. A própria gestão do ‘resort’ é enfática: “O jogo [de azar] é proibido na China, especialmente na província de Hainan”, diz o relações públicas, Gerry Li. “Ouvimos dizer que podia haver mudanças, mas até hoje isso nunca aconteceu”, acrescenta. Mesas tabu Jia Kang, antigo director da Academia Chinesa de Ciências Fiscais, um influente ‘think-tank’ próximo do Governo Central, nega também que, num futuro próximo, casinos possam ser abertos em Hainan, ou em outra parte da China. “A abertura de casinos é estritamente proibida”, esclarece o académico à Lusa, apesar de reconhecer que a legalização do jogo de azar traria vantagens para o país, permitindo arrecadar receitas fiscais e desenvolver o turismo doméstico. Dezenas de milhares de milhões de dólares saem todos os anos do continente chinês em perdas em casinos no exterior. Só Macau registou um aumento de 14% por cento das receitas do jogo, em 2018, para 302,846 mil milhões de patacas. A proibição fomenta ainda a abertura de casinos ilegais, alimentando a corrupção e o crime organizado. “Sofremos de todos os problemas associados ao jogo, mas não beneficiamos em nada”, admite Jia. O académico lembra que persistem barreira ideológicas à legalização, já que o Partido Comunista Chinês considera o jogo um “demónio social”, ao nível da prostituição e da droga. “Não existe sequer vontade em falar nisso”, nota.
Sofia Margarida Mota ReportagemTradução Automática | Sistema desenvolvido pelo IPM utilizado em dez serviços públicos Transformar Macau num centro de referência na área da tradução de português e chinês é o objectivo do projecto de tradução automática desenvolvido no IPM. O sistema já é usado em dez organismos do Governo para facilitar o trabalho dos tradutores, mas os horizontes alargam-se à Grande Baía e às relações culturais e comerciais entre a China e os países lusófonos [dropcap]S[/dropcap]ão já dez os serviços públicos que utilizam o sistema de tradução automática, entre o par de línguas chinês e português, desenvolvido pelo Instituto Politécnico de Macau (IPM). Entre eles estão a Assembleia Legislativa, o Fórum Macau e os Serviços de Educação e Juventude que já contam com a ajuda de um mecanismo de tradução de inteligência artificial (IA) que garante fiabilidade de cerca de 90 por cento das traduções, apontou ao HM a directora da Escola de Administração Pública do IPM, Rita Tse, durante uma visita às instalações do laboratório. Na base do sucesso está um sistema para o qual colaboram três instituições: o IPM, a Universidade de Línguas de Guangdong e uma empresa de tecnologia de ponta de Pequim. Juntos desenvolvem e alimentam continuamente o software, Computer-Aided Translation – CAT – “a mais avançada tecnologia do mundo nesta área”, cuja particularidade, e grande vantagem, reside no facto de em vez de traduzir palavras, a tecnologia permite a tradução de frases, apontou o coordenador do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do IPM, Gaspar Zhang. “Comparando com as tecnologias anteriores este tipo de tecnologia é mais natural, lógica e humana”, acrescentou. Tendo em conta a sua experiência enquanto tradutor, Zhang sublinha a importância deste avanço tecnológico comparado com os dispositivos que têm sido disponibilizados. “Antigamente não utilizávamos a IA, usávamos mecanismos em que eram introduzidas palavras e as regras gramaticais. As palavras ficavam isoladas e as regras secas e não se conseguia estabelecer uma relação entre uma coisa e outra, pelo que não funcionou. Agora, com a AI ao nosso serviço, é possível outra abordagem”, acrescentou. Como uma criança O cerne do sistema está instalado no laboratório de tradução automática do IPM, criado em 2016. É ali que são introduzidos mega dados que permitem a assimilação e processamento de informação pela máquina. Com este processo, a informação é acrescentada aos dados anteriores o que resulta na aprendizagem artificial. “Nós alimentamos a máquina com os dados e a própria máquina pode aprender, digerir e juntar a informação. Ao aprender, a máquina está a melhorar a qualidade do seu próprio sistema”, salientou o coordenador. O maior desafio para garantir a fiabilidade da tradução, é a introdução de dados, porque só com informação de alta qualidade se conseguem traduções “sofisticadas”. “É como treinar a fala de uma criança”, refere Rita Tse. Línguas mães A aposta na tradução do par de línguas chinês e português foi feita por vários motivos entre eles a história do próprio instituto. “O IPM tem uma história longa na área do ensino da tradução de português e chinês” disse o professor da Escola de Línguas e Tradução, Yang Nan. A este factor junta-se a necessidade constante de traduzir documentos no território que tem ambas as línguas como idiomas oficiais. Para o efeito, a grande maioria dos dados tratados são conteúdos de documentos oficiais. “O nosso contributo será sempre apoiar Macau para facilitar o trabalho de tradução no Governo. Há todos os dias documentos para traduzir e queremos ajudar os serviços públicos nessa tarefa”, apontou Gaspar Zhang. De modo a que melhor se entenda como o processo que envolve tecnologia neural se aplica aos serviços públicos, Rita Tsé explica que, basicamente, o sistema pega em qualquer documento, em qualquer formato, texto ou imagem, e traduz para um texto dividido em frases. Estas parcelas passam depois pelo crivo da revisão a cargo dos tradutores. É aqui que se corrigem erros, que não se vão repetir no futuro dado a capacidade de aprendizagem da máquina, e alterados conteúdos conforme as necessidades. No final, a base de dados com que o sistema passa a trabalhar já é maior e mais fiável. Tradutores indispensáveis É este trabalho humano que faz com que os tradutores continuem a ser indispensáveis. Para Gaspar Zhang, o sistema de tradução automática não representa uma ameaça aos profissionais locais, mas sim um “auxílio precioso”. “Estamos no séc. XXI, numa sociedade de mega-dados e IA em que qualquer tradutor profissional tem de saber utilizar as tecnologias como apoio e dominar várias ferramentas”, apontou. Para Rita Tse que trabalha directamente com os tradutores dos serviços públicos, onde o sistema de tradução automática já é utilizado, “este mecanismo não compete com os humanos, mas serve de auxílio porque já não vão precisar de perder horas a traduzir um documento e podem apostar na constância da tradução e na partilha de informação”. Por outro lado, acrescentou, os tradutores vão ser sempre necessários, para “melhorar as traduções das máquinas e acrescentar sempre um nível superior na qualidade da tradução”. A importância de um mecanismo exemplar na tradução destas duas línguas é tanto mais pertinente quando Macau pretende desempenhar o papel de plataforma entre a China e os países de língua portuguesa. Este factor permite ao território ter acesso à recolha de dados bilingues essenciais para serem introduzidos no sistema, apontou Yang Nan. Com o projecto de cooperação inter-regional da Grande Baía, a importância de um auxílio como este é ainda maior. “O mais importante aspecto no contexto da Grande Baía, e um dos maiores obstáculos a superar, é o da linguagem presente nos documentos e mesmo contratos comerciais”, ponta Rita Tse. Com a tradução automática, criam-se condições para que ambas as partes – chinesa e países lusófonos – tenham condições para se entenderem melhor. Gaspar Zhang sublinha que há muitos países de língua portuguesa que pretendem ter negócios na China utilizando Macau e desta forma podem ser auxiliados. “Sabemos também que Cantão é a província chinesa com mais colaboração com países lusófonos e podemos prever a utilidade deste sistema nas relações comerciais e de intercâmbio resolvendo o problema da língua”, apontou Gaspar Zhang. Futuro promissor Além destas utilidades a médio prazo, a metodologia que usa a inteligência artificial pode servir várias áreas e ser um importante contributo no âmbito cultural. “Este tipo de sistema é aberto a todas as possibilidades: dentro do mundo do cinema pode ajudar na legendagem; em palestras e conferências, dado o reconhecimento de voz, pode ajudar na tradução imediata; podemos aprender mais sobre a cultura portuguesa sem saber a língua”, exemplifica a directora da Escola de Administração Pública. Para a concretização do projecto contribuíram mais de 200 pessoas entre investigadores, docentes e alunos, estes últimos a quem é dada a possibilidade de estagiarem, tanto na área da engenharia informática como da tradução. Nos últimos dois anos o laboratório reuniu cerca de 10 milhões de pares de frases bilingues. UM a caminho A Universidade de Macau (UM) anunciou também o lançamento de uma plataforma de tradução online chinês-português-inglês, em Dezembro do ano passado, para tradutores profissionais em vocabulários mais técnicos. “A plataforma permite que tradutores profissionais estabeleçam conjuntos de vocabulário especializados relacionados com um determinado sector”, explicou, na altura a UM em comunicado. O sistema utilizado é o UM – CAT, uma plataforma “adequada para escritórios governamentais e empresas que lidem com uma grande quantidade de tarefas de tradução multilíngue no seu trabalho diário”, apontava a universidade. O UM – CAT foi desenvolvido pelo Laboratório de Linguagem Natural da UM e pelo Laboratório de Tradução Automática Português-Chinês. Na crista da onda O sistema de tradução automática do IPM é mais fiável do que os conhecidos Google e Baidu quando se trata do par de línguas português e chinês. A conclusão é de uma avaliação interna e sistemática do mecanismo que utiliza a tecnologia neuronal CAT, realizada pelo IPM. “Podemos ver que na área da tradução chinês/português a nossa plataforma tem um valor de desempenho comparativamente mais alto do que as outras duas”, apontou o professor da Escola de Línguas e Tradução, Yang Nan. Aliás, é neste par de línguas que o sistema tem as condições necessárias para competir, apontou a directora da Escola da Administração Pública Rita Tse, porque Macau “tem peritos e experiência, além de séculos de cultura portuguesa”, acrescentou.
Hoje Macau ReportagemPropaganda chinesa controla informação sobre protestos em Hong Kong João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]A[/dropcap] gestora Fang Li não percebe porque é que a Internet tem estado intermitente em Pequim, enquanto o professor de italiano Wang Lin reage incrédulo ao saber que os protestos em Hong Kong juntaram dois milhões de pessoas. Ambos trabalham em Pequim, viajam frequentemente para fora da China e dominam uma língua estrangeira, mas não sabem – ou não estão interessados em saber – sobre os protestos que abalam Hong Kong há mais de duas semanas. Uma polémica proposta de lei, que permitiria que a chefe do Executivo e os tribunais de Hong Kong processassem pedidos de extradição de suspeitos de crimes para jurisdições sem acordos prévios, como é o caso da China continental, levou centenas de milhares de pessoas à rua, desde o início do mês. Um dos protestos, em meados de Junho, juntou cerca de dois milhões de pessoas, segundo os organizadores, assumindo-se como o maior desde 1997, aquando da transição da ex-colónia britânica para a administração chinesa. Confrontado pela agência Lusa com a dimensão daquele protesto, Wang não queria acreditar: “Mas então a população de Hong Kong não são só sete milhões de pessoas?”. Fang viu as imagens e expressou um “hum”, assinalando desinteresse. A censura exercida pelo regime chinês, aliada a uma campanha de desinformação, parece estar a surtir efeito no país, alargando o fosso entre a população da China continental e o resto do mundo no acesso a informação susceptível de embaraçar o Governo central. Em 10 de Junho, um dia após cerca de um milhão de pessoas exigirem nas ruas de Hong Kong que o governo retirasse o projecto de lei, o jornal oficial China Daily noticiou que 800.000 pessoas tinham assinado uma petição em apoio à proposta. “Apesar do calor escaldante, representantes de várias organizações em Hong Kong estiveram à altura da ocasião no domingo, realizando várias actividades públicas em toda a cidade em apoio aos planos do governo para emendar a lei de extradição”, descreveu o jornal. Segundo o China Daily, os manifestantes dirigiram-se mesmo à sede do Governo, a “exigir que a lei fosse aprovada” para “garantir o primado da Lei e a segurança pública”, enquanto os painéis de iluminação LED da cidade se “encheram de vídeos e slogans a apoiar a proposta”. Nesse mesmo dia, imagens em todo o mundo revelavam confrontos violentos entre a polícia e os manifestantes, com as forças de segurança a usarem gás lacrimogéneo, gás pimenta e balas de borracha para dispersar a multidão. E quando, passados poucos dias, Hong Kong assistiu aos maiores protestos da sua história, o China Daily noticiou que os pais da cidade marcharam contra a interferência dos Estados Unidos no território e condenaram as “entidades estrangeiras” que enganam os jovens de Hong Kong. A China é o país com mais internautas do mundo, cerca de 710 milhões de utilizadores – mais do dobro de há cinco anos – 92,5 por cento dos quais acedem à rede através de smartphones, segundo dados oficiais. O uso da Internet no país é, no entanto, restringido, com vários portais estrangeiros e alguns serviços de “gigantes” da Internet, como o Facebook, Twitter e Google, banidos da rede chinesa. A narrativa é sobretudo controlada pela imprensa estatal, que está sob tutela do departamento de propaganda do Partido Comunista Chinês (PCC). “É notável observar quão eficaz é o PCC”, comenta Anne-Marie Brady, especialista em assuntos sobre a China, na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia. “Mesmo na época da Internet global, consegue manter tudo dentro dos limites da censura”.
Sofia Margarida Mota Manchete ReportagemLei da Extradição | Dois milhões de Hongkongers voltam a encher as ruas em protesto Quatro dias após a carga policial, os protestos voltaram às ruas de Hong Kong numa das maiores manifestações de sempre. Segundo a organização, cerca de dois milhões de pessoas ocuparam as principais artérias entre Causeway Bay e o Conselho Legislativo vestidos com roupas pretas e empunhando flores brancas. A líder do Executivo pediu desculpas num breve comunicado [dropcap]D[/dropcap]esde cedo se percebia que Hong Kong viria, em peso, de novo para a rua em protesto contra a Lei da Extradição, a forma como o Governo de Carrie Lam lidou com a situação e a carga policial de quarta-feira, que foi noticiada um pouco por todo o mundo. Mas, segundo os números avançados pela organização, cerca de dois milhões de pessoas saíram ontem à rua, quase um terço da população de Hong Kong. As autoridades estimam que no máximo de afluência o número de manifestantes tenha chegado aos 338 mil. A cerca de duas horas do início da marcha de Causeway Bay até ao Conselho Legislativo (LegCo), já o Victoria Park se enchia de pessoas. Chegar através do MTR até ao local da concentração, à medida que o relógio passava das 13h tornava-se cada vez mais complicado, com todas as artérias entupidas e um mar de gente que se aglomerava. Wong, estudante universitária, repetiu a participação no protesto. “Vamos ter muitas pessoas, por isso decidimos vir mais cedo”, revela a jovem que não aceita a suspensão da Lei da Extradição anunciada pelo Governo na sequência dos protestos de quarta-feira. “Achamos a proposta ridícula, esperamos que a nossa voz seja ouvida desta vez e que a lei seja posta de lado definitivamente”, acrescenta Wong. A estudante foi uma entre centenas de milhares de pessoas que vestiram preto e empunharam flores brancas em protesto contra a violência policial e em homenagem ao jovem que se suicidou no sábado à noite depois de desfraldar uma tarja contra a Lei da Extradição. Helen, professora de jardim de infância, chegou ao Victoria Park cerca de duas horas antes da hora marcada. Em declarações ao HM referiu que “já ninguém confia no que diz Carrie Lam”, e que gostaria que a Chefe do Executivo se demitisse. O sentimento generalizado entre os manifestantes foi um reflexo sempre presente da total ausência de fé no Governo liderado por Lam. Enquanto de um palco montado no Victoria Park se debitavam conselhos de segurança, instruções para aguentar o calor e evitar a desidratação, Causeway Bay ia enchendo-se de um mar de gente de todas as idades que, de forma pacífica, entoavam slogans contra o Governo e a polícia. Desculpas na sombra O deputado da ala democrata do LegCo, Charles Mok, voltou a participar nos protestos e depositava esperanças de que a manifestação de ontem fosse maior que a anterior. “Precisamos de enviar uma mensagem forte ao Governo, porque o recuo de sábado não foi suficiente. Não só o Executivo não retirou a proposta de lei por completo, como deixou uma grande sombra a pairar sobre Hong Kong. Precisamos apurar responsabilidade quanto à actuação da polícia na passada quarta-feira”, referiu o deputado. A categorização dos protestos do meio da semana passada como motim constituíram, no entender de Charles Mok, uma mancha na vida política da região e que Carrie Lam perdeu toda a credibilidade entre as pessoas de Hong Kong e legitimidade devido “à forma pobre como lidou com a situação”. “Acho que não tem escolha a não ser demitir-se. Quanto mais se arrastar no poder, pior será. Se se demitir fará uma última boa coisa por Hong Kong”, remata o deputado. Charles Mok adiantou ainda ao HM que a Civil Human Rights Front começou uma campanha de angariação de fundos para ajudar as pessoas que precisem de apoio médico, legal ou psicológico na sequência da carga policial da passada quarta-feira. Em resposta aos imensos de desculpa exigidos, Carrie Lam veio retractar-se em comunicado e em discurso indirecto. “A Chefe do Executivo admite deficiências no trabalho do Governo que levou a substanciais controvérsias sociais que causaram desapontamento e dor entre a população. A Chefe do Executivo pede desculpas ao povo de Hong Kong e promete adoptar uma atitude mais humilde e sincera e aceitar críticas de forma a melhor servir o público”, declarou Carrie Lam em comunicado. É reiterado ainda que não existe uma data para o retorno da discussão sobre a Lei da Extradição. Chegada ao LegCo Por volta das 17h os primeiros manifestantes começaram a chegar à casa das leis da RAEHK. As movimentações entre a multidão faziam-se a grande custo, mesmo para os profissionais da comunicação social que, apesar de tudo, depois de se identificarem contavam com a cordialidade e cooperação dos manifestantes. Ao longo do percurso avistaram-se alguns aglomerados de elementos das forças policiais, assim como postos improvisados de primeiros-socorros, sempre num ambiente pacífico. A encabeçar o cortejo seguia um camião carregado com colunas a debitar, em alto som, slogans e gritos de protesto, seguido de um grupo de pessoas portadoras de deficiência, acompanhados por um grupo de voluntários, a que pertencia Christine. Depois de ter visto um post no Facebook a pedir voluntários para prestar apoio aos deficientes motores, invisuais e surdos-mudos durante a manifestação, Christine decidiu que poderia ajudar de uma forma diferente. “Eles querem demonstrar o apoio aos estudantes e protestar contra a violência policial. Estamos todos muito desiludidos com a Chefe do Executivo. A nossa determinação é não só cancelar a lei da extradição, mas acabar com ela. Queremos uma nova liderança no Governo”. Os portadores de deficiência que se juntaram ao protesto acrescentaram uma lista muito própria de razões para marcarem presença, nomeadamente ao nível dos apoios sociais. Ouvidos em Pequim Apesar de alguns cartazes a apelar à não intervenção de Donald Trump, o Presidente norte-americano referiu ontem que pretende abordar as manifestações de Hong Kong com o seu homólogo chinês, Xi Jinping. A informação foi veiculada pelo secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, que adiantou que os comentários contra a Lei da Extradição devem acontecer no âmbito da cimeira do G20. “O Presidente sempre foi um defensor ferrenho dos direitos humanos”, afirmou Mike Pompeo à Fox News. Questionado sobre as manifestações em Hong Kong contra as alterações à lei da extradição, o secretário de Estado norte-americano notou que será um dos tópicos a ser debatido entre os dois Presidentes, no âmbito da cimeira do G20, que vai decorrer no final deste mês, no Japão. “Estou certo de que será um dos pontos que vão ser abordados”, vincou. Entretanto, em Pequim, as manifestações que têm enchido as ruas de Hong Kong e a forma como Carrie Lam tomou conta do assunto são tema que prendem a atenção das mais altas esferas políticas. Depois de um dia de consulta a membros do Executivo, Carrie Lam aceitou no sábado que devia ceder à pressão das ruas. Em conferência de imprensa, Lam referiu que muitas pessoas que pediram para “interromper o processo legislativo”. Uma fonte citada pelo South China Morning Post não confirmou, nem negou, que Carrie Lam se encontrou com Han Zheng, membro do Politburo do Comité Permanente que supervisiona os assuntos de Hong Kong, antes de tomar a decisão de suspender o processo legislativo. Outra fonte ouvida pelo jornal de Hong Kong adiantou que Han estaria a monitorizar a situação em Hong Kong a partir de Shenzhen durante o fim-de-semana e que se terá encontrado com Carrie Lam ontem. Apesar destas suspeitas, a Chefe do Executivo disse em conferência de imprensa que tomou a decisão sozinha, sem apoio do Governo Central. Quando o protesto de ontem ainda estava ao rubro, o South China Morning Post noticiava que uma fonte do Governo estima que o diploma iria “morrer de causas naturais”. O facto de não se ter adiantado uma data para voltar a pegar na Lei da Extradição e que a actual legislatura do LegCo termina em Julho do próximo ano pode prenunciar a morte da legislação que levou ontem cerca de dois milhões a encher as ruas entre Causeway Bay e Admiralty. Nascido para perturbar De acordo com uma reportagem da revista Next Media, de Hong Kong, foi criado um grupo numa aplicação de telemóvel com a intenção de causar distúrbios aos protestos de domingo. Segundo a informação de uma jornalista que se infiltrou, foi prometido a qualquer membro que conseguisse roubar cartazes ou bandeiras pagamentos que poderiam chegar às mil patacas. A jornalista acabou por ser recusada, uma vez que o administrador fez questão de referir que só aceitavam membros do sexo masculino e por recomendação de conhecidos. Taiwan aberto a refugiados O Departamento dos Assuntos do Interior do Governo Taiwan diz que está a preparar-se para receber refugiados políticos de Hong Kong. Esta é uma medida para auxiliar as pessoas que vão ser afectadas pelos pedidos de extradição iniciados pelo Interior da China. Inicialmente, a proposta de lei de extradição entre o Interior da China e Hong Kong teve como “justificação” um homicídio entre um casal de Hong Kong, que aconteceu em Taiwan. O objectivo era enviar o homicida, que só foi descoberto em Hong Kong, para a Ilha Formosa para ser julgado. Contudo, como na lei para a extradição, Carrie Lam fez questão de incluir a possibilidade do Interior da China pedir o envio de cidadãos de Hong Kong, Taiwan sublinhou que nunca ia iniciar os procedimentos para a extradição do alegado criminoso. Acusados de “vadiagem” Dois dos onze detidos inicialmente anunciados pela polícia, após o protesto de quarta-feira, estão a ser acusados da prática do crime de “vadiagem” (em inglês loitering). A moldura penal máxima é de dois anos de prisão e é aplicada quando uma pessoa está a vadiar “num lugar público ou parte comum” de qualquer edifício e a quando a sua presença no espaço pode fazer com que uma pessoa tenha razões plausíveis para sentir a sua segurança ameaçada. Caso a polícia de Hong Kong faça uma interpretação da referida lei e considere que a presença dos dois apenas contribuiu para que os trabalhos no LegCo não decorresse dentro da normalidade, então a moldura máxima é de seis meses.
Hoje Macau ReportagemAcontecimentos de Tiananmen noticiados em Portugal como “banho de sangue” Há 30 anos, os acontecimentos na Praça Tiananmen foram noticiados nos jornais portugueses como um “banho de sangue” e geraram preocupações no poder político em Portugal. Hoje, em Lisboa, a Amnistia Internacional organiza uma acção de rua para recordar a repressão contra o movimento pró-democracia protagonizado por estudantes [dropcap]A[/dropcap] imprensa portuguesa noticiou, há 30 anos, o massacre de Tiananmen como “um banho de sangue”, com multidões a defenderem-se com paus e pedras dos tanques e balas com que o governo chinês tentava aniquilar o movimento pró-democracia. Há seis semanas que os estudantes ocupavam a praça de Tiananmen, no centro de Pequim, para exigir reformas democráticas, num movimento a que se juntaram muitos cidadãos e que começava a ter eco em outras cidades chinesas. Na noite de 3 para 4 de Junho, os confrontos com o exército intensificaram-se e tropas forçaram a entrada no reduto ocupado pelos estudantes. Um telex emitido pela Lusa reportava: “Pequim entrou hoje no caos, com os soldados a dispararem indiscriminadamente sobre multidões exasperadas de cidadãos desarmados, enfrentando a morte para protestarem contra o que descrevem como os seus dirigentes fascistas”. As embaixadas estrangeiras preparavam planos de retirada dos seus cidadãos e aconselhavam os residentes a não saírem de casa. Os jornais davam conta de milhares de vítimas, com base em testemunhos, manifestantes e fontes diplomáticas. A China apenas reconheceu algumas centenas, entre soldados e manifestantes, invocando razões de segurança nacional para justificar o massacre. As imagens que chegavam de Pequim chocavam o mundo. À comunidade internacional exigiam-se medidas e criticava-se a falta de acção. Os jornalistas debatiam-se com apreensões de materiais, censura e uma lei marcial que duraria um ano, como noticiava a Capital em 1990: “Tiananmen limpa de tropas. Levantada Lei Marcial em Pequim em oito meses”. Preocupação lusitana O movimento ganhara força nas universidades meses antes do massacre, onde os estudantes decretaram uma greve geral. Em Maio, a demissão de Deng Xiaoping e dos principais líderes chineses, como o primeiro-ministro, Li Peng, era exigida nas ruas de Pequim por um milhão de pessoas, numa manifestação de apoio a “centenas de estudantes em greve de fome”, conforme noticiou o Europeu. O semanário Independente, à época dirigido por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, revelava o plano da diplomacia portuguesa para lidar com o problema, dias depois do massacre. “Portugal manda Roberto Carneiro avisar a China” foi a manchete de 9 de Junho do semanário, para noticiar a viagem do então ministro da Educação a Macau, a pretexto do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. A ideia colhia o apoio do Presidente da República, Mário Soares, e do primeiro-ministro, Cavaco Silva, evitando-se assim envolver directamente o ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, o que daria “um caráter internacional” à viagem. De acordo com o jornal, Roberto Carneiro levava no bolso uma mensagem de Soares e recados de Cavaco. Na mensagem, citada pelo jornal, Soares transmitia “grande preocupação” pela situação na China, afirmando esperar que não ameaçasse “a liberdade e segurança” do território de Macau, então sob administração portuguesa. O chefe de Estado português falava ainda da “necessidade de restabelecimento dos equilíbrios sociais e políticos na China” como única forma possível de “cumprir em absoluto” a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau, a que Portugal se afirmava “inteiramente fiel”. Durante a deslocação, Roberto Carneiro deveria também manter contactos com políticos e empresários, para aferir “sentimentos e intenções”, e proferir duas declarações, a primeira, à chegada, para manifestar a “solidariedade de Lisboa” com a população portuguesa de Macau, e uma segunda com alusão aos acontecimentos de Pequim, “condenando o uso arbitrário de violência sobre civis desarmados”. A perseguição contra os líderes do movimento estudantil continuou muito para além de Junho de 1989, com alguns a procurarem asilo nos Estados Unidos e na Europa. AI recorda movimento A Amnistia Internacional (AI) Portugal vai assinalar os 30 anos do massacre com uma manifestação em Lisboa, um abaixo-assinado em defesa de um activista preso na China e o envio de mil postais ao Presidente chinês. A manifestação está marcada para hoje, dia 3, data que marca o início da “invasão da Praça de Tiananmen” pelo exército chinês, disse à agência Lusa Teresa Nogueira, coordenadora da AI Portugal para as questões da China, recordando “as imensas mortes” civis que nunca foram reconhecidas pelas autoridades chinesas. “Temos também postais já editados, dirigidos a Xi Jinping, dizendo que as famílias das vítimas ainda esperam que seja feita justiça, 30 anos depois”, indicou, alertando que continuam a ser detidos cidadãos por lembrarem os acontecimentos que culminaram no massacre de estudantes e outros civis reunidos na principal praça do centro de Pequim em defesa de reformas democráticas. Mais uma vez será pedido às autoridades que reconheçam publicamente as vítimas, que levem a tribunal “os culpados pelas violações de direitos humanos” e que “acabem com a perseguição a todos aqueles que querem relembrar” os acontecimentos de há 30 anos. Os postais serão enviados por todos os grupos da Amnistia em Portugal, de norte a sul do país. Paralelamente, decorrerá uma recolha de assinaturas pela libertação de Chen Bing, “um activista que está preso por querer relembrar” o massacre, frisou. Em entrevista à Lusa, Teresa Nogueira recordou que pouco depois dos acontecimentos, a China reconheceu a existência de cerca de 300 feridos e 30 mortos, entre soldados e estudantes, mas afirma que “foram muito mais, foram milhares de pessoas mortas e pensa-se que centenas de estudantes”. Três décadas depois, as famílias continuam a pedir justiça, quer em colectivo, como as “Mães de Tiananmen”, quer individualmente, como é o caso de Chen Bing, tentando que seja feita uma reapreciação dos acontecimentos em que, diz Teresa Nogueira, as vítimas “ainda são consideradas culpadas pela tal revolta que visaria acabar com a estabilidade social”, na versão das autoridades chinesas. “Logo a seguir, os próprios familiares das vítimas começaram a ser perseguidos, de tal maneira que as pessoas tinham medo de dizer que familiares seus tinham sido mortos nos acontecimentos”, lembrou a activista. Perseguições continuam Ainda hoje, segundo a responsável da AI Portugal, grupos de familiares directos das vítimas continuam a ser perseguidos e a ver as movimentações “muitíssimo restringidas”. São pessoas que “de vez em quando estão em prisão domiciliária, são constantemente vigiadas, por vezes cortam-lhes a Internet, as comunicações”, relatou. Teresa Nogueira citou o caso de uma professora universitária em Pequim, cujo filho de 17 anos foi baleado no coração no dia 3 de Junho de 1989. “O marido já morreu, sem ter visto a justiça ser feita”, lamentou. “Além disso, ainda actualmente aqueles que querem relembrar o que aconteceu e evitar que caia no esquecimento – tal como as autoridades chinesas tudo têm feito para que aconteça – continuam a ser perseguidos”, reiterou, evocando um caso recente. “Em 2016, quatro activistas foram detidos porque produziram um vinho branco chamado Baijiu – um vinho típico chinês – e que engarrafaram, cuja marca registaram e que, depois de colocados os rótulos, puseram à venda”, contou. Mediante um jogo de palavras, os rótulos diziam “Lembrem-se de 89 – 04 de Junho”. As garrafas estiveram à venda cerca de três semanas, até que as autoridades chinesas descobriram o que estava a passar-se e prenderam os quatro activistas”, afirmou Teresa Nogueira. “Apenas foram julgados no princípio de Abril deste ano, depois de terem estado desde 2016 até agora presos sem julgamento”, acrescentou. Três elementos deste grupo foram condenados a três anos de prisão, com pena suspensa. Chen Bing foi condenado a três anos e meio e continua preso. “É em relação a ele que vamos recolher assinaturas, durante a manifestação e vamos também colocar uma petição online”, avançou, indicando que está a decorrer, a nível mundial, uma acção urgente neste sentido. Nos postais a enviar ao Presidente da República Popular da China constará a foto que celebrizou um dos manifestantes, sozinho frente a uma fila de tanques, e cujo nome e paradeiro permaneceram desconhecidos até hoje. Macau, Taiwan, Hong Kong, Estados Unidos e Reino Unido são alguns dos territórios onde a data será lembrada, com vigílias, debates e outros eventos públicos, à semelhança da manifestação de Lisboa, que decorrerá na avenida 24 de Julho, frente à sede da EDP. Algumas secções da AI decidiram também pedir aos parlamentos dos respectivos países que leiam um de três textos enviados pelo secretariado internacional: a declaração escrita em cativeiro pelo falecido activista Liu Xiaobo, quando da atribuição do Prémio Nobel da Paz, a Carta 08, um manifesto de que foi o primeiro subscritor e que esteve na origem da detenção ou uma carta das “Mães de Tiananmen”.
Hoje Macau ReportagemZhao Ziyang, o líder que aceitou dialogar com Tiananmen, foi preso e ostracizado João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]O[/dropcap] único alto quadro do regime chinês que há três décadas dialogou com os estudantes que lideravam o movimento pró-democracia da Praça Tiananmen acabou votado ao ostracismo, passando os últimos anos de vida em vigilância domiciliária. Os trágicos acontecimentos ocorridos na noite de 3 para 4 de Junho de 1989 ditaram o destino do então secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCC) Zhao Ziyang e puseram fim à esperança de qualquer reforma política no país. Iniciado por estudantes da Universidade de Pequim, o movimento pró-democracia da Praça Tiananmen foi esmagado pelos tanques do exército, ao fim de sete semanas de protestos. Em meados de Abril, o luto pela morte de Hu Yaobang, defensor de uma maior liberalização na China, mas afastado da cúpula do Partido Comunista por “falta de firmeza face ao liberalismo burguês”, tornou-se rapidamente num protesto político. Entre os estudantes, que começaram por exigir a “reabilitação” de Hu e o reconhecimento do seu trabalho reformista, começou-se também a gritar “Abaixo a ditadura”, “Viva a democracia e a ciência”. A contestação estudantil alastrou-se a toda a sociedade chinesa e, em meados de maio, o Governo decretou a lei marcial em Pequim. Durante os protestos, Zhao abriu canais de diálogo directo entre os estudantes e o Governo, visando direccionar a China no que considerava “um rumo assente na democracia e num Estado de direito”. O então secretário-geral do PCC, que morreu em 2005, ordenou uma cobertura jornalística das manifestações estudantis com inédita abertura, e pôs em andamento várias reformas legislativas, visando reformar a imprensa ou o ensino. Após o Governo ter decretado a lei marcial, e sentindo que a facção mais ortodoxa do partido estava a ganhar vantagem, Zhao deslocou-se a Tiananmen para implorar aos estudantes que saíssem, se salvassem e negociassem com o Partido. “Nós já somos velhos, já não contamos”, disse-lhes. Mas Zhao Ziyang acabou apagado da história chinesa por acções que o partido considerou terem sido “graves erros”. A China, que passou os últimos trinta anos a tentar apagar o 4 de Junho da memória colectiva, é hoje a segunda maior economia do mundo e principal potência comercial do planeta, tendo-se convertido num ‘player’ capaz de disputar a liderança global com os Estados Unidos. O contrato social selado entre o Partido Comunista e o povo chinês é claro: o partido mantém uma autoridade indisputada e os privilégios da elite dominante e, em troca, assegura o crescimento económico, melhoria dos padrões de vida e elevação do estatuto global do país. Mas Pequim terá abdicado de aplicar o que Zhao considera o “maior teste” ao socialismo: a abertura política. O seu objectivo era transformar a China num Estado moderno, democrático e socialista até ao ano 2000. Desde que assumiu a liderança da China, em 2013, o actual Presidente chinês, Xi Jinping, tornou-se o centro da política chinesa e é hoje considerado um dos líderes mais fortes na história da República Popular, comparável ao seu fundador, Mao Zedong. No ano passado, Xi conseguiu abolir o limite de mandatos para o seu cargo, criar um organismo com poder equivalente ao do executivo, para supervisionar a aplicação das suas políticas, e promover aliados a posições chave do regime. Sob a sua direcção, a China tem reduzido liberdades na sociedade civil, meios académicos ou Internet. Entre uma sociedade cada vez mais próspera e instruída, o regresso a um poder mais centralizado e autoritário não será bem aceite, mas o país está hoje a desenvolver e testar tecnologia para identificar e vigiar potencias dissidentes, criando uma espécie de jaula virtual suportada pela inteligência artificial, câmaras com reconhecimento facial ou a análise de dados massivos (‘Big Data’). “Em 1989, o regime foi apanhado de surpresa”, explica Louisa Lim, autora do livro “The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited”, à Lusa, “mas não pretende cometer o mesmo erro duas vezes”.
Hoje Macau ReportagemRepressão em Tiananmen transformou país em República Popular da Amnésia, diz Louisa Lim Por João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]O[/dropcap] exército chinês matou há 30 anos, no centro de Pequim, estudantes desarmados que pediam reformas políticas, expondo o carácter repressivo do regime apesar da abertura económica promovida, transformando o país na República Popular da Amnésia, segundo a escritora Louisa Lim. Os acontecimentos sangrentos ocorridos na noite de 3 para 4 de Junho de 1989, quando os tanques do exército foram enviados para pôr fim a sete semanas de protestos, são esta semana lembrados em várias partes do mundo, mas, na China, as autoridades conseguiram com sucesso assegurar uma amnésia colectiva sobre o sucedido. Os protestos ganharam força durante maio de 1989, pouco após a morte do líder reformista Hu Yaobang, que dividiu a hierarquia do Partido Comunista (PCC) em facções. Hu era tido como um protector dos intelectuais e defensor de uma maior liberalização, numa altura em que a liderança chinesa lançava reformas económicas. Ficou também conhecido por iniciar uma discussão pública para pôr fim ao “culto cego” ao fundador da República Popular, Mao Zedong, na sequência da Revolução Cultural (1966-1976), uma década vista hoje como catastrófica. Mas os desvios da linha ortodoxa do partido – Hu chegou a afirmar que as teorias marxistas-leninistas defendidas por Mao não se aplicavam à China moderna e a pressionar por uma governação mais transparente – levaram à sua queda. Na sequência de uma primeira vaga de protestos estudantis, em 1986, Hu foi criticado por ser permissivo com os manifestantes, e acabou por ser destituído pela cúpula do partido, em Janeiro de 1987, por “falta de firmeza face ao liberalismo burguês”. O luto após a sua morte rapidamente se tornou num protesto político. “A morte de Hu caiu como uma faísca na atmosfera altamente inflamável, marcada pela divisão entre a elite e insatisfação popular”, segundo os autores dos Papéis de Tiananmen, uma compilação de documentos secretos sobre os acontecimentos de 1989. Os estudantes “lançaram actividades espontâneas de luto, como uma oportunidade para expressar a sua insatisfação com a direcção política do país”, lê-se naqueles documentos. “Morreu o homem errado”, começou por se ler em cartazes afixados nas universidades, e depois nas ruas de Pequim, antes de os protestos ganharem força na Praça de Tiananmen. Entre os estudantes, que começaram por exigir a “reabilitação” de Hu e o reconhecimento do seu trabalho reformista, começou-se também a gritar “Abaixo a ditadura”, “Viva a democracia e a ciência”. Comboios cheios de manifestantes seguiam todos os dias para Pequim. Cerca de um milhão de pessoas chegou a ocupar a Praça Tiananmen. A contestação estudantil alastrou a toda a sociedade chinesa e, em meados de maio, o Governo decretou a lei marcial em Pequim. Na noite de 3 de Junho, paraquedistas da 15.ª Divisão da Força Aérea chinesa, com as caras cobertas, foram transportadas por passagens secretas para o centro da capital, para, em conjunto com polícias paramilitares e os comandos, suprimirem os manifestantes. Colunas de tanques chegaram dos subúrbios. No dia seguinte, o sangue dos estudantes, desarmados, correu em Pequim. Desde então, a China tornou-se, nas palavras da escritora Louisa Lim, a República Popular da Amnésia. No ano seguinte, 12% dos jornais foram fechados, 32 milhões de livros apreendidos, 150 filmes proibidos e muitas dezenas de milhares pessoas presas. Os protestos produziram uma das mais icónicas fotografias do século XX – a imagem de um homem a bloquear a passagem de um tanque -, mas que continua praticamente desconhecida no país onde foi registada. O contrato social selado entre o Partido Comunista e o povo chinês é claro: o partido mantém uma autoridade indisputada e os privilégios da elite dominante e, em troca, assegura o crescimento económico, melhoria dos padrões de vida e elevação do estatuto global do país. Desde que assumiu a liderança da China, em 2013, o actual Presidente chinês, Xi Jinping, tornou-se o centro da política chinesa e é hoje considerado um dos líderes mais fortes na história da República Popular, comparável ao seu fundador, Mao Zedong. No ano passado, conseguiu abolir o limite de mandatos para o seu cargo, criar um organismo com poder equivalente ao do executivo, para supervisionar a aplicação das suas políticas, e promover aliados a posições chave do regime. Sob a sua direcção, a China tem reduzido liberdades na sociedade civil, meios académicos ou Internet. Entre uma sociedade cada vez mais próspera e instruída, o regresso a um poder mais centralizado e autoritário não será bem aceite, mas o país está hoje a desenvolver e testar tecnologia para identificar e vigiar potencias dissidentes, criando uma espécie de jaula virtual suportada pela inteligência artificial, câmaras com reconhecimento facial ou a análise de dados massivos (‘Big Data’). “Em 1989, o regime foi apanhado de surpresa”, explica Louisa Lim, à Lusa, “mas não pretende cometer o mesmo erro duas vezes”.
Hoje Macau ReportagemVenezuela: Padre luso-descendente considera alarmante violência nas igrejas Por João Pedro Fonseca e Felipe Gouveia, da agência Lusa [dropcap]O[/dropcap] pároco da missão católica portuguesa em Caracas, Alexandre Mendonça, considera “alarmante que na celebração de uma missa as pessoas tenham de suportar gás lacrimogéneo e agressividade” policial, mas considera uma inevitabilidade, porque “ninguém escapa à realidade do país”. A invasão de uma igreja, em San Cristobal, no Estado de Táchira, por parte de militares e polícias, na passada quarta-feira, já não surpreende o padre Alexandre Mendonça: “É uma realidade, a igreja está no país, e o país tem muita violência e em qualquer sítio podem acontecer coisas destas…”. A Igreja Católica tomou uma posição veemente sobre estes acontecimentos de San Cristobal, mas não chegou nenhuma resposta do Governo de Nicolás Maduro. Alexandre Mendonça não se surpreende com isso. “Do Governo, a palavra paz ouve-se a cada instante. Mas, se se preparam para a guerra, eu creio que o caminho da paz não é por aí. O caminho da paz é a construir justiça, fraternidade, perdão, solidariedade. Preparar para a guerra para alcançar paz para mim é contraditório”, clarifica. O padre Alexandre, que celebrou este domingo uma missa na capela do Centro Português, em Macaraquai, utilizou várias metáforas na homilia, recorrendo a textos bíblicos. Questionado sobre esta mensagem, Alexandre Mendonça explicou que a missão da igreja é transmitir mensagens positivas. “Todas estas calamidades que estamos a viver têm uma resposta precisamente naquilo que veio a vencer o pecado, a morte e a escuridão, para falarmos de luz, perdão e vida e aí encontramos força para o presente e, também, coragem para enfrentar um futuro, ainda que esteja marcada por grande incerteza”, disse. O padre Alexandre, que durante a homilia se referiu à situação difícil que se vive no país, lembrou um pensamento da Madre Teresa de Calcutá e que o Papa Francisco tem usado e que também diz usar: “Quem não vive para servir não serve para viver”. Sobre os actos de violência que se registaram nos últimos dias, o pároco disse que é preciso deixar “tanta soberba, orgulho, vaidade. O nosso coração, que é de pedra, tem de transformar-se em coração de carne, para que o amor ao próximo passe a ser uma verdade tangível e não palavras vãs que o vento as leva”. Falou também nas ideologias: “Quando abandonamos Deus na nossa vida. Quando queremos substituí-lo por ideologias, quaisquer que elas sejam, passamos a acreditar num Deus que não existe. Pôr em prática aquilo que não é real leva-nos ao caminho do engano e do sofrimento”. Habituado a ver o lado positivo das coisas, lembra: “nestas circunstâncias tão difíceis, se algo há de positivo é que aprendemos a olhar mais para os que estão ao nosso lado. O padre luso-descendente afirma que os acontecimentos de dia 30, com a posição política de Juan Guaidó, não são garantia de mudanças. “Honestamente, digo-vos que já São 50 anos de Venezuela. Não creio. Não é que não me afete, mas esperar que aquilo que se passou, que foi doloroso, até com mortos, vai trazer mudanças… Se o coração do homem não se transforma, a vida que o circunda também não se transforma”. O padre referiu-se na missa à angústia vivida em Turumo, onde celebrou uma missa também nesta manhã de domingo, e onde lhe foi passada a informação de que existiam ameaças do Governo da Venezuela por causa do dinheiro do Novo Banco retido em Portugal. Que poderia haver uma retaliação do Governo através da expropriação do Centro Português. Esse rumor, defende o padre, não tem qualquer base factual, pelo que pediu prudência. “Não se deve inventar desgraças maiores. É nosso dever minimizar e aliviar a angústia que as pessoas já levam no seu dia a dia”. Juan Guaidó desencadeou na madrugada da passada terça-feira um golpe de força contra o regime, em que envolveu militares e apelou à adesão popular. A iniciativa da passada terça-feira constituiu o arranque da denominada “Operação Liberdade”, que, segundo Guaidó, visa pôr termo ao que chama de “usurpação” da presidência por Nicolás Maduro. A presidência interina de Guaidó é reconhecida por cerca de 50 países, incluindo os Estados Unidos da América, enquanto Maduro, que tem o apoio da Rússia, além de Cuba, Irão, Turquia e alguns outros países, considerou que a “Operação Liberdade” configura uma tentativa de golpe de Estado. Nicolás Maduro, que tem sido alvo de forte contestação nas ruas, mas que aparentemente mantém o controlo das instituições, continua a contar, aparentemente, com a lealdade das chefias militares, mantendo o país num impasse. Os confrontos registados desde a madrugada da passada terça-feira provocaram a morte de cinco manifestantes, três dos quais menores, e 239 ficaram feridos, segundo informações das Nações Unidas.
Andreia Sofia Silva ReportagemRamalho Eanes: MFA quis evitar que a perturbação chegasse a Macau [dropcap]A[/dropcap]ntónio Ramalho Eanes, primeiro Presidente da República portuguesa democraticamente eleito, recorda ao HM que o ponto mais importante da acção do MFA no território era garantir a estabilidade política que daria início ao estabelecimento das relações diplomáticas com a China. “Tanto quanto sei, pois nessa altura não tinha funções de direcção, o MFA estava preocupado em manter a estabilidade e em fazer com que a perturbação que se verificava em Portugal não se transmitisse em Macau, para que o nosso relacionamento com a China mantivesse a estabilidade e para que pudesse criar condições para um futuro relacionamento, como depois se veio a verificar.” Eanes destaca ainda o facto de, à época, não ter sido possível fazer mais pela dinamização da língua portuguesa em Macau. “Apesar de tudo, é evidente que gostaria que tivéssemos iniciado de imediato um processo de desenvolvimento e modernização de afirmação do português em Macau, o que não aconteceu de imediato porque não havia condições, mas veio a acontecer depois”, rematou.
Andreia Sofia Silva Reportagem25 de Abril | Militares radicais contra Nobre de Carvalho enquanto Macau se distancia das outras colónias [dropcap]U[/dropcap]m mês antes da chegada de Garcia Leandro e Rebelo Gonçalves a Macau, o comandante Catarino Salgado marcou presença, em Maio de 1974, numa sessão de homenagem do Centro Democrático de Macau (CDM) ao Movimento das Forças Armadas. À época, o jornal Gazeta Macaense, propriedade de Leonel Borralho, deu grande destaque ao acontecimento e reproduzia, na íntegra, e na primeira página, o discurso de Salgado. “Sei que as pessoas em Macau são conhecidas pela qualidade de ordem e de trabalho. O MFA permitiu também serem livres. No CDM existem diversas tendências políticas, todas elas marcadas pelo desejo de espalhar as sementes da verdadeira democracia, que significa, a meu ver, respeitar as opiniões políticas dos outros”, disse durante o discurso. “Regresso à província e vejo os meus conterrâneos unificando-se com os da metrópole, formando o CDM numa patriótica manifestação de lealdade para com a Junta de Salvação Nacional”, adiantou também Salgado, numa demonstração do apoio que esta associação de cariz político teve desde o início por parte dos que fizeram a Revolução em Lisboa. Em 1974, Fernando Lima, ex-assessor da presidência da República portuguesa, estava em Macau destacado como militar, apesar de cumprir funções civis. Sobre a forma como se viveu a revolução em Macau, Fernando Lima recorda ao HM o período conturbado que as forças militares atravessaram. “Entre os militares não havia uma situação fácil e criou-se depois ali uma ruptura quando uma ala mais radical achou que o Governador, e a sua equipa, eram muito moderados em relação à revolução que estava a acontecer em Lisboa. Macau não acompanhava esse ritmo. Apareciam cartazes com a cara do Governador a dizer ‘Nobre de Carvalho Colonialista’.” Lima assegura que Nobre de Carvalho nunca foi visto como alguém ligado à extrema-direita, mas sim como moderado. “Era um militar que procurava ser pragmático nas análises que fazia”, comenta. Ainda sobre o Governador Nobre de Carvalho, Fernando Lima recorda um erro caricato de um noticiário televisivo da região vizinha. “Achei piada porque, um dia, a televisão de Hong Kong, ao invés de por a foto do Otelo Saraiva de Carvalho, pôs a foto do Nobre de Carvalho, porque o apelido era o mesmo.” Caos depois de Leandro Fernando Lima recorda também a presença do MFA no território no livro que escreveu intitulado “Macau entre as duas transições”. Apesar do apoio dado ao CDM, a sessão de esclarecimento do MFA não foi suficiente para apaziguar os ânimos políticos. “Esse aparente desanuviamento duraria pouco tempo. Como recordaria depois Garcia Leandro, a defesa cerrada que os delegados fizeram de Nobre de Carvalho não foi suficiente para serenar os ânimos em Macau”, pode ler-se no livro. “Enquanto Leandro regressava a Lisboa, Rebelo Gonçalves ficaria no território para assumir o cargo de comandante militar interino em substituição do coronel Mesquita Borges que cessara funções. Durante a estada de 60 dias, Rebelo Gonçalves procurou polarizar o espírito de mudança política em Portugal, fê-lo com algum exibicionismo, que contrastaria com a mentalidade dominante, e rapidamente a sua posição se fragilizou perante a opinião pública. Seria rendido no dia 31 de Julho pelo coronel Maia Gonçalves”, escreveu ainda Fernando Lima. Maria Inácia Rezola, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, recorda este período como aquele que viu nascer os dois movimentos que marcariam a política de Macau nos anos seguintes. “Como Garcia Leandro revela no seu livro ‘Macau nos anos da revolução portuguesa 1974-1979’, trata-se de uma situação muito específica e a via deveria ser a da autonomia progressiva, pactuada com a China. É neste contexto que deveremos integrar a emergência de associações cívicas, como o CDM e a Associação para a Defesa dos Interesses de Macau (ADIM), mas também o corte de relações diplomáticas com Taiwan e o reconhecimento oficial da República Popular da China pelo Governo português em inícios de 1975.” “Um processo atípico” Para Maria Inácia Rezola, Macau constituiu, ao nível da descolonização, “um caso bem diferente do das colónias africanas, a ponto de podermos afirmar que se trata de um processo atípico, como atípico havia sido o seu estatuto colonial”. “Na verdade, Macau nunca fora uma verdadeira colónia, mas sim um território cedido pela China, sob administração portuguesa. A soberania portuguesa em Macau apenas se exercia efectivamente sobre a comunidade portuguesa, incluindo os macaenses”, adiantou a historiadora, o que fez com que tenha sido alvo de uma estratégia diferente por parte do MFA. “Por tudo isto, é fácil concluir que a situação de Macau não constituía uma ‘prioridade’, isto é, na verdade Macau é considerado pelo MFA como um caso particular que não deveria ser gerido nos mesmos moldes das colónias africanas. Na verdade, nos debates que se travaram, em Lisboa, no âmbito da Comissão da descolonização Macau, não sendo uma colónia, não se incluía no âmbito das suas competências.” O tema da descolonização de Macau nunca foi sequer abordado junto das Nações Unidas. “A China não reconhecia a Portugal o direito de posse sobre o território. Macau não era uma colónia, defendia na Comissão de Descolonização da ONU – o que significava que não deveria ser debatida naquele âmbito.” Além disso, “queria evitar a todo o custo um foco de instabilidade ou mesmo a emergência de movimentos que reivindicassem a instauração de uma democracia parlamentar. Não é por acaso que ao regressar de uma viagem pelo oriente, em finais de Outubro de 1974, Almeida Santos afirma que Macau quer continuar a ser administrado pelos portugueses”, concluiu Maria Inácia Rezola.
Andreia Sofia Silva Reportagem25 de Abril | O dia em que o MFA reuniu com a população no Colégio Santa Rosa de Lima Uma gravação áudio inédita, à qual o HM teve acesso, recorda a sessão de esclarecimento que o Movimento das Forças Armadas realizou no Colégio Santa Rosa de Lima em Junho de 1974, meses depois da Revolução dos Cravos. O papel político da associação Centro Democrático de Macau, a continuação da figura do Governador e o estabelecimento das relações diplomáticas com a China eram as questões que mais preocupavam após a queda do Estado Novo [dropcap]E[/dropcap]m Junho de 1974, dois oficiais do Movimento das Forças Armadas (MFA), o já falecido major Rebelo Gonçalves e o general Garcia Leandro, que mais tarde viria a ser nomeado Governador de Macau, deslocaram-se ao território com o objectivo de explicar à população os propósitos do 25 de Abril e qual futuro reservado a Macau depois da queda do Estado Novo. O encontro teve lugar no Colégio Santa Rosa de Lima e dele ficou apenas um registo áudio, gravado ainda em cassete, ao qual o HM teve acesso. Confrontado com a gravação inédita, descoberta num espaço público em Lisboa de troca de livros, o general Garcia Leandro mostrou-se surpreendido. “Fiquei satisfeito por isso existir e por passados estes anos todos poder ser mostrado”, confessou ao HM. Da reunião não restou nenhum documento oficial, apenas “dois relatórios curtos sobre a situação em Macau e Timor” lavrados por Garcia Leandro. Estes documentos viriam, mais tarde, a ser entregues em Lisboa. Graças ao apoio de Garcia Leandro conseguimos desvendar as vozes encarregues de explicar a queda do regime do Estado Novo. Depois dos aplausos iniciais, coube ao major Rebelo Gonçalves contar aos presentes o que tinha acontecido em Lisboa na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974. Na altura, os jornais eram poucos e as notícias chegavam a conta-gotas. “Dedico estas palmas aos meus camaradas que, na madrugada do 25 de Abril, conseguiram derrubar o Governo. De forma nenhuma posso considerar que sejam para nós”, começou por dizer, argumentando que “as Forças Armadas têm de ser uma arma imparcial”. Logo à partida Rebelo Gonçalves deixou bem claro que se mantinha a figura do Governador (até então era Nobre de Carvalho que ocupava o cargo, e que viria a ser substituído por Garcia Leandro em Setembro de 1974). “O senhor Governador de Macau tem o aval das Forças Armadas, do Governo provisório e da Junta de Salvação Nacional. Não admito qualquer discussão sobre este aspecto, e enquanto este aval se mantiver, o Governador de Macau é-o de cabeça erguida.” Sobre este ponto, Garcia Leandro afirma, 45 anos depois, que “não há ali posições das quais nos possamos arrepender”. “É natural que as pessoas tivessem dúvidas sobre o futuro. Uma coisa era a Revolução, outra era o futuro, mas o futuro foi resolvido por mim, quando criámos tudo para Macau na altura em que fui nomeado Governador”, recorda. À época, era fundamental colocar um ponto final na Lei Orgânica do Ultramar e criar para Macau um novo diploma de ordem constitucional. “Tudo aquilo acabou e foi então que se fez o Estatuto Orgânico de Macau.” Este iria vigorar no território até 20 de Dezembro de 1999, data em que o território passou oficialmente para a China e se implementou a Lei Básica da RAEM. Durante a reunião de Junho de 1974, Garcia Leandro recordou as dificuldades com que se deparou Nobre de Carvalho no território, nomeadamente durante o período quente da crise do “1-2-3”. “Todos sabemos o que tem sido a vida do Governador desde que aqui desembarcou, em Novembro de 1966, e como tem sido difícil administrar esta província. Conhecemos a sua competência profissional e moral, o seu espírito de sacrifício e pergunto muito comovido quem está aqui em Macau que possa criticar a figura do senhor governador? Há alguém que possa criticar? Julgo que não”, adiantou. “Os oportunistas” e o CDM Depois de assegurar a continuidade da figura do Governador como autoridade máxima do poder político no território, Rebelo Gonçalves alertou os presentes para o facto de “ser preciso estarmos todos acautelados para os oportunistas”. “É muito fácil ser-se democrata no dia 26 de Abril, era extraordinariamente difícil sê-lo antes do dia 25, ou no dia 24. A pessoa que era de uma determinada cor respeito-a se ela se mantiver da mesma cor. Se um indivíduo que é de extrema-direita se mantiver da extrema-direita, respeito-o muito mais do que aquele indivíduo que é da extrema-direita e no outro dia é da extrema-esquerda”, frisou. Depressa a sessão de esclarecimento se focou no estabelecimento de uma associação de cariz político, que surgiu a 30 de Abril de 1974, chamada Centro Democrático de Macau (CDM), e que era conotada com a esquerda comunista. No mesmo ano foi também fundada a Associação da Defesa dos Interesses dos Macaenses (ADIM), conotada mais com a ala conservadora, que defendia a continuidade do Governador. “O CDM faz uma aflição enorme a toda a gente”, começou por dizer. “O CDM tem, neste momento, a aceitação de todos os delegados da Junta de Salvação Nacional, como tem do senhor Governador. Nós temos é de distinguir, dentro do CDM, as pessoas que, na realidade, são democratas sob todos os aspectos, as válidas e aquelas que não interessam. Compete ao CDM separar o trigo do joio e não se deixar ligar a determinadas pessoas que não oferecem as garantias necessárias.” Rebelo Gonçalves alertava também para o facto de o “problema de Macau não ser necessariamente igual ao de Angola, Guiné, Moçambique ou Timor”. “Justifica-se uma associação do centro democrático que, passo a passo, vai procurando arranjar elementos que os ajudem, ajudando também outros elementos a se consciencializar e educando outras massas que estão por educar politicamente.” Administração “fraca e corrupta” Garcia Leandro explicou aos presentes que o Governador Nobre de Carvalho aceitava a existência do CDM, apesar de recair sobre alguns membros a acusação de terem mudado de facção política após a Revolução. “Não se aceitam indivíduos corruptos que, depois do 25 de Abril, aparecem extraordinariamente curvos e democratas. A posição do senhor Governador em relação ao CDM é absolutamente definida: aceita-os. É preciso que não se confundam essas críticas com as críticas que possam vir do CDM, pois as suas intenções e declaração de ideias estão definidas.” Aliás, o próprio Nobre Carvalho disse ao seu futuro sucessor que “estava à disposição do CDM” para diálogos conjuntos. “Com certeza que o CDM irá fazer críticas, é óbvio. A nossa Administração é fraca, é corrupta, está cheia de falhas, porque temos tanto medo de críticas? Não devemos atacar pessoas que no meio de tantas dificuldades agiram do modo que melhor puderam”, explicou Garcia Leandro ao público. Relações com a China Garcia Leandro acabaria por introduzir o tópico do estabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a China comunista, algo que aconteceria em 1979. “O Governo português, dentro de uma base de abertura a todos os países, irá travar um conjunto de conversações com a China para levar ao estabelecimento das relações diplomáticas”, disse o ainda oficial do MFA, referindo a importância que tal teria para o futuro de Macau. “Não tenho dúvidas de que, depois dessas relações diplomáticas encontrarem efectividade, o futuro de Macau será muito mais aberto, com horizontes mais largos.” Garcia Leandro recordou também perante a plateia que “a China popular definiu a sua posição face a Macau, e não temos dúvidas de que, se estamos em Macau, é porque a China nos aceita. Não custa nada reconhecer publicamente isto. Não temos dúvidas de que somos minoritários e que estamos aqui porque interessa a ambos. A partir do momento em que um Governo que não aceitava as orientações comunistas é substituído por outro que está aberto a todas as orientações, não tenho dúvidas de que o futuro de Macau será muito mais risonho depois destas relações diplomáticas.” A implantação de um regime comunista em Portugal foi também outra das questões levantadas na sessão de esclarecimento. “É do conhecimento geral que o MFA pretende que seja implantado e cumprido aquilo a que nós chamamos de democracia. Dentro desses princípios, será dada liberdade a todos os partidos, incluindo a extrema-esquerda e o comunismo? Quanto ao Partido Comunista Português tem havido apreensão por parte de muitas pessoas”, opinou um membro não identificado do público. Neste aspecto, o major Rebelo Gonçalves fez questão de sublinhar que durante as eleições legislativas de 1976 todas as facções políticas seriam tidas em conta. “Discordo das suas ideias, porque o senhor fez a definição total do que não é uma democracia. O perigo que existe para todos os partidos. Se o país quiser o PCP democraticamente eleito teremos de o admitir, não há outra hipótese”, esclareceu o militar. Chineses queriam “estabilidade” A passagem do MFA por Macau incluiu não apenas sessões de esclarecimento com a população, mas também reuniões com membros do próprio CDM e associações representativas da comunidade chinesa, tal como a Associação Comercial de Macau, a Associação Industrial de Macau e entidades ligadas a empresas de exportação, construtores civis. Foram também ouvidos os membros das Forças Armadas em serviço no território, professores de liceu e funcionários públicos. Garcia Leandro recorda que a comunidade chinesa estava, sobretudo, interessada na estabilidade e que os propósitos da Revolução dos Cravos eram tidos como algo secundário. “Os chineses estavam um bocadinho à parte, mas preocupados com o futuro. O que eles queriam era estabilidade, saber quem mandava para manterem os seus negócios com tranquilidade.”
Andreia Sofia Silva Manchete ReportagemEstudo | Análise à representação de Macau no cinema e televisão americanos A Macau dos anos 50 não foi retratada da mesma maneira no cinema e nas séries televisivas norte-americanos, em nome dos interesses financeiros e conjuntura política da época. Rui Lopes, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, apresenta um estudo sobre a forma como o território foi representado no audiovisual americano “[Os filmes] misturavam os preconceitos de Hollywood, que apresentava os espaços asiáticos como sendo cheios de vícios e imoralidades, e representavam também uma visão negativa de Hollywood em relação ao colonialismo português”. Rui Lopes, investigador do Instituto de História Contemporânea [dropcap]O[/dropcap] período da Guerra Fria e a visão americana do colonialismo europeu marcaram a forma como a Macau dos anos 50 foi retratada no cinema e nas séries televisivas. Ambas as indústrias o fizeram de maneira diferente, de acordo com os interesses políticos e financeiros da época. A conclusão é de Rui Lopes, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC-UNL), que apresenta a palestra “Macau no cinema e na televisão americana dos anos 50” a 23 de Abril. Entre a década de 50 e 1975, Macau serviu de cenário a 15 filmes norte-americanos, que apresentam quase sempre uma estreita ligação a Hong Kong. Na visão de Hollywood, Macau surge como uma cidade imoral, desorganizada e corrupta. “Por um lado, estes filmes apresentavam Macau como um espaço turístico e romântico, mas quase todos os filmes apresentavam também Macau como um poço de crime e de fuga à lei”, contou o investigador ao HM. Estas películas “misturavam os preconceitos de Hollywood, que apresentava os espaços asiáticos como sendo cheios de vícios e imoralidades, e com problemas de criminalidade, e representavam também uma visão negativa de Hollywood em relação ao colonialismo português, que era apresentado como corrupto e pouco eficiente, sobretudo se compararmos com as representações dos ingleses em Hong Kong”. Se os filmes “apresentavam uma imagem bastante violenta de Macau”, as séries televisivas faziam o aposto. “Mostravam também Macau como um sítio de crime, mas já não era um sítio que fugia à lei, mas sim onde os americanos colaboravam com os portugueses, os espiões e a polícia.” Na óptica do académico, esta divergência de interpretação da cidade prende-se com o facto de “a televisão seguir a lógica da Guerra Fria, segundo a qual os EUA adoptavam uma atitude pragmática de apoio às potencias coloniais, para combaterem o comunismo”. No fundo, o cinema e as séries televisivas da época que usavam Macau como cenário revelam “dois modos americanos de olhar Macau e o colonialismo”. Para Rui Lopes, o cineasta Josef von Sternberg, que filmou “Macao” em 1952, acabou por ser um dos realizadores mais marcantes a colocar Macau no mapa do cinema norte-americano. “Não só é o mais conhecido filme americano que se passa quase todo em Macau, mas foi também o filme que definiu a imagem do território no cinema americano que depois foi copiada em todos os filmes seguintes.” Política e cinema Rui Lopes aponta questões financeiras para explicar as diferentes abordagens entre o meio televisivo e cinematográfico. “A televisão estava muito dependente do apoio oficial do Governo norte-americano, isto porque era uma indústria que ainda estava nos seus primórdios, uma vez que a indústria do cinema tinha começado na viragem do século XX.” O académico considera que esta é a razão pela qual a produção televisiva adoptava um discurso muito mais próximo do Governo norte-americano, que olhava para Portugal como um aliado importante num conjunto de causas comuns, como o combate ao comunismo e o tráfico de droga. No sentido contrário, Hollywood contava já com uma indústria estabelecida, robusta e mais independente a este nível, pelo que a “prioridade era fazer dinheiro com histórias bombásticas que reproduzissem o que as pessoas gostavam de ver, que eram os seus próprios preconceitos sobre o Oriente e esta ideia de grandes histórias e melodramas em sítios sem lei”, comenta o investigador. Na época, os olhares de ambas as indústrias repousavam em Macau, pelo facto do território “ter uma longa tradição de representação literária, como um sítio lânguido, de alguma decadência e de vício, mas um sítio melancólico. E já havia vários escritos sobre isso”. Outro dos aspectos aliciantes do território, em termos audiovisuais, alia a posição geográfica à época, “aconteceram várias coisas ao mesmo tempo”, como a Guerra Fria e a implantação da República Popular da China, que acontece em 1949. “Macau torna-se naquilo que a imprensa americana chamava a imprensa de bambu, ou seja, por oposição à cortina de ferro. Estava na fronteira entre o mundo comunista e ocidental. Estando naquela fronteira, significava que Macau era o sítio ideal para histórias de espionagem, contrabando e aventuras.” https://www.youtube.com/watch?v=W7ivUqV_MPM Coreia e Hong Kong Mais tarde, quando começa a Guerra da Coreia (de 1950 a 1953), surge “um grande interesse do público americano por assuntos relacionados com a Ásia”, conflito em que as forças armadas norte-americanas participaram. Aparece então “uma vaga de filmes relacionados com a Ásia e nos quais se inclui Macau por causa desta componente”. O facto de Macau ter casinos era também um fator de atracção para argumentistas e realizadores, mas não só. “Como Portugal não tinha ainda, na altura, aderido ao Tratado de Bretton-Woods, e não havia, portanto, um valor fixo atribuído ao ouro no espaço português, significa que também em Macau havia um grande mercado de ouro associado a um grande sistema de contrabando, pirataria e de crime organizado”, contextualiza o investigador. Rui Lopes assegura que Hong Kong era retratado como um lugar onde imperava a lei e a organização. “Há um contraste muito claro, porque Hong Kong aparecia como um sítio ordeiro, moderno, seguro. Era também um sítio de liberdade, porque era para onde fugiam os refugiados chineses que vinham da China após a revolução comunista.” Também aqui há uma influência política na disparidade interpretativa, no entendimento do académico. “Estes filmes mostravam um discurso de Hollywood mais crítico pelo facto de ser colonialismo português e não apenas colonialismo. No caso do colonialismo inglês, aparecia com um discurso mais simpático.” Um lugar secundário O passar do tempo e dos acontecimentos históricos alteraram a visão da sétima arte e da televisão norte-americanos sobre Macau. De lugar desordeiro passou a ser um território com mais glamour, sempre com forte presença do jogo. “Surgiram outros interesses. Macau deixou de ser o único sítio com casinos e Portugal aderiu à Interpol e ao Acordo de Bretton-Woods, o que significa que parte do que era visto como um sítio sem lei esmorece um bocado no imaginário do público.” Contudo, ainda se encontram resquícios de excentricidade e mistério nas obras audiovisuais que retratam a cidade. “Hoje há uma mistura das duas coisas. Algumas das ideias feitas e ícones ainda estão vivos, pois são raros os filmes em que os casinos não aparecem. O filme ‘A Última Vez que Vi Macau’ (de Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata), tem muitas referências de ‘Macao’, de Josef Von Sternberg. Existe a memória, mas Macau aparece hoje como um sítio mais moderno e distante da ideia de decadência”, concluiu Rui Lopes. https://www.youtube.com/watch?v=DRcEqLJQryQ Cinema europeu dos anos 60 Rui Lopes pretende agora investigar a representação de Macau no cinema europeu, algo que teve o seu apogeu na década de 60. “É tudo especulação. Mas, muito provavelmente, serão perpetuados os estereótipos do cinema norte-americano sobre o crime, contrabando e a corrupção. Mas o facto de serem filmes dos anos 60 trazem um conjunto de novidades.” Isto porque, na visão do investigador do IHC-UNL, “os países europeus tinham uma relação mais próxima com Portugal, mas tudo se passa numa altura em que na Europa a tensão da Guerra Fria começa a reduzir, enquanto que o Maoísmo e a China como inimigo eram questões que estavam em ascensão. Talvez isso se reflicta nos filmes”. Certo é que, nessa década, “o cinema francês, alemão e italiano dá origem a uma série de filmes de aventura e espionagem que se passam em Macau, algo que culmina com o James Bond a deslocar-se a Macau nos anos 70 (no filme “O Homem da Pistola Dourada”, de 1974)”. https://www.youtube.com/watch?v=AwBc16MWySs
Diana do Mar Manchete ReportagemAdopção | Dois lados de histórias de família Em quase 20 anos, foram adoptadas em Macau menos de 40 crianças. Uma mãe e uma filha partilham a experiência de adoptar e ser adoptado, vivida por poucos numa terra onde ainda há caminho por desbravar [dropcap]T[/dropcap]alvez tenha sido o destino, mas Mariana também não sabe. Certo é que, contra todas as probabilidades, regressou a Macau, a terra que a viu nascer há 20 anos, para estudar a língua e descobrir a cultura associada aos traços chineses que lhe talham o rosto de menina. Mariana Vivas foi adoptada sensivelmente um ano depois de ter nascido, mas desde que abriu os olhos esteve sempre nos braços daquela a que viria a chamar mãe. “Eu nasci em Fevereiro de 1999, ela ficou como minha tutora durante um ano e a adopção foi declarada pelo tribunal apenas em Março de 2000”. Um hiato temporal que coincidiu precisamente com a transferência do exercício de soberania que, aliás, esteve em vias de pôr em causa o pedido de adopção. “Tenho de admitir que me considero muito sortuda”, graceja Mariana Vivas que, aos cinco meses, foi viver para o Ribatejo, porque a mãe, solteira, queria que crescesse em Portugal com a família. Foi em Almeirim que Mariana passou a infância e a adolescência, sem nunca franzir a sobrancelha à imagem que via diante do espelho. “Às vezes até eu me esqueço que sou chinesa”, brinca Mariana, relatando que sempre soube dar a volta a troças na escola. “Tinha personalidade para ultrapassar isso”, diz, confiante. O facto de ser adoptada “nunca foi uma questão ou algo do outro mundo”. A descoberta foi ainda em tenra idade, surgindo com as primeiras noções dadas na escola sobre donde vêm os bebés: “Perguntei à minha mãe como era quando estava na barriguinha dela e ela respondeu que eu nasci na barriguinha de outra senhora”. Mariana ficou “a pensar”, mas a sua principal preocupação não era ter sido adoptada, mas antes saber se a melhor amiga também o era. “Ela era o meu modelo, eu queria ser em tudo como ela, ter tudo o que ela tinha e, por isso, a minha reacção foi perguntar se ela também tinha sido adoptada. Por acaso, tinha”, enfatiza. Embora sempre de bem com as origens, Mariana, que celebra dois aniversários (o de nascimento e o da adopção), confessa que só compreendeu na perfeição quão “importante” e “séria” era a adopção aos 14 anos. “A minha mãe ofereceu-me uma caixinha, com fotografias e cartas da minha mãe biológica [em chinês, depois traduzidas para inglês], e com os documentos todos do processo do tribunal. Fiquei a saber mais da minha história, porque na altura quase não sabia nada da minha mãe biológica”. Nos primeiros anos de vida, Mariana recebia postais da mãe biológica pelo aniversário ou pelo Natal, mas depois esse contacto cessou. “Para mim é uma pessoa que, de certa forma, parece estranha. Nunca a vi e não sinto nenhuma conexão em especial quando vejo as fotografias. As cartas também nunca referiram nada sobre um reencontro, apenas explicavam a razão pela qual não podia ficar comigo”, conta. “Muitas pessoas perguntam-me se gostava de conhecer a minha mãe biológica. Se eu um dia tiver a oportunidade, claro que a aceito, mas caso contrário não me faz confusão. Há sempre uma curiosidade, mas não é algo muito muito forte”, partilha. À terceira de vez Mariana veio a Macau pela primeira vez há dez anos, com a mãe, a melhor amiga e a mãe da melhor amiga. Seguiu-se uma segunda viagem, em 2015, desta feita apenas com a melhor amiga. Foi, aliás, a primeira vez que saiu de Portugal sozinha. Dois anos depois, em 2017, veio ‘definitivamente’ para estudar mandarim no Instituto Politécnico de Macau, eventualmente outra obra do acaso. Mariana estudou ciências, sempre esteve inclinada a enveredar pelas engenharias, mas quando surgiu a informação sobre o curso lançou-se sem medos, apoiada também na bolsa de estudos. “Uma coisa que me chamou a atenção e uma das razões para vir foi ser em Macau, o que me permitia conhecer um pouco da minha história”. A reacção maternal foi a típica de uma mãe: “Inicialmente, ela estava um pouco apreensiva, com medo de que a minha escolha tivesse sido tomada por impulso e que eu não estivesse a pensar no meu futuro, mas só na parte económica [por ter uma bolsa de estudo] sempre sem me querer tirar o entusiasmo”. Luz ao fundo de túnel Entusiasmo é a palavra quando Rita (nome fictício) fala da filha, apressando a exibir com orgulho as fotografias da sua pequena de três anos e meio. Rita, natural de Macau, que prefere falar sob a condição de anonimato, casou em 1999 e sempre quis ter filhos. Esperou durante anos, mas natureza não quis e a possibilidade de engravidar com a ajuda da ciência foi sempre uma carta fora do baralho. “Somos católicos e não queríamos fazer nada contra a vontade de Deus”, explica. A hipótese de adoptar surgiu quando a notícia de uma bebé abandonada num caixote do lixo mexeu com Rita que, pouco tempo depois, decidiu contactar o Instituto de Acção Social (IAS) para se inteirar dos procedimentos. Sete meses depois, Rita tornava-se mãe. “Estávamos no festival do meio outono, em 2016, quando ela veio para nossa casa”, conta. Rita reconhece que o processo foi “bastante rápido” para a média normal, algo que, a seu ver, pode ter que ver com o facto de não terem imposto requisitos em termos de nacionalidade, atendendo a que a menina não é chinesa. “Os chineses têm dúvidas em adoptar crianças estrangeiras. Penso que é algo cultural, porque temem que as gerações mais antigas – como os avós – possam não aceitar”, contextualiza. Importante a facilitar o processo foi também o papel da mãe biológica que não abandonou a criança, mas antes prescindiu da guarda quando ainda estava grávida. “Ela deixou os papéis todos preenchidos, tudo tratado. Ela fez algo pela criança. Se não a amasse provavelmente teria abortado. Foi um acto de amor”, realça. Rita vê a adopção como “uma bênção”. “É realmente algo muito bom e bonito. Não apenas para a criança, mas também para os pais”, sublinha, sem esconder o desejo de adoptar outra criança. “Estou à espera que a minha filha me peça um irmão para avançar”, graceja Rita, hoje com 47 anos. A experiência relativamente ao processo de adopção foi positiva, mas Rita entende que existem melhorias que podem ser feitas pelo IAS sobretudo ao nível da informação. “Era bom haver seminários e aconselhamento para quem quer adoptar – tanto antes como depois”, sugere. Em defesa da criança Em entrevista ao HM, a chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do IAS, Christine Lao, defende que, comparativamente a outros países e regiões, a parte burocrática, além de gratuita, é “muito simples e prática”, algo corroborado, aliás, por pais adoptivos. O incógnito tempo de espera surge, porém, como um dos pontos apontados por quem aguarda por acolher uma criança. No entanto, como explica o IAS, afigura-se difícil definir uma meta temporal, sobretudo porque “em Macau “existe um número reduzido de crianças abandonadas”. “Sabemos que os futuros pais querem que o seu desejo seja concretizado o mais rapidamente possível – e compreendemos isso –, mas têm de estar cientes das diferentes etapas [VER TABELA] e que é difícil calcularmos o tempo da fase de espera”. Como realçou a responsável do IAS, desde 2000, houve anos sem registo de adopções, mas também outros com quatro, como em 2012, por exemplo. “A postura do IAS é a defesa do interesse superior da criança. Nós ajudamos as crianças a encontrar pais e não o contrário, pelo que as expectativas dos candidatos não são o factor mais importante a ter em conta”, sublinha Christine Lao. Desde a transferência do exercício de soberania, 68 menores foram encaminhados para o IAS, dos quais 14 regressaram à família de origem, deixando de ser classificadas como abandonadas. Das 54 crianças, 38 reuniam condições para ser adoptadas, segundo decretou o tribunal, e foram-no efectivamente ao longo dos últimos 19 anos. Actualmente, há oito crianças para a adopção: uma já concluiu a fase experimental, estando a aguardar que o tribunal a decrete, duas estão na fase experimental, enquanto três encontram-se na etapa de emparelhamento, havendo ainda duas crianças com necessidades especiais sem futuros pais à vista. De acordo com o IAS, entre as crianças abandonadas, quatro saíram da lista de potenciais adoptandos por terem atingindo os 16 anos, enquanto outro menor expressou a vontade de não ganhar uma nova família. Neste momento, existem 70 pedidos de adopção de famílias/indivíduos de Macau, a somar a cinco de estrangeiros, que não residem no território. Condições para adoptar Casais: – Devem ter mais de 25 anos, casados há mais de três anos ou a viver em união de facto há mais de cinco Solteiros: – Deve ter mais de 28 anos e menos de 60 anos à data em que o adoptando lhe for confiado; a diferença de idades entre o adoptante e o adoptado deve ser superior a 18 anos e inferior a 50 Condições para ser adoptado: -Quem seja filho de pais incógnitos ou falecidos Aquele relativamente ao qual tenha havido consentimento prévio para a adopção Quem tenha sido abandonado pelos pais A pessoa, cujos pais, por acção ou omissão, ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação moral ou educação em termos que, pela sua gravidade, comprometam seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação Quem tenha sido acolhido por uma pessoa ou por uma instituição, contando que os seus pais tenham revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação durante, pelo menos, os seis meses que precederem o pedido de confiança Etapas do processo Apresentação da intenção de adopção ao IAS Avaliação para a adopção Escolha do adoptando Período de pré-adopção Sentença judicial Duas centenas de crianças vivem em lares, mas têm família Actualmente, há sensivelmente 200 crianças a viver em lares, mas que não se encontram disponíveis para adopção. Parte figuram como ‘crianças de ninguém’: os pais não cuidam (porque não podem ou não querem) mas também não abrem mão da guarda dos filhos. Em entrevista ao HM, a chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do Instituto de Acção Social (IAS) deixa claro que cada é um caso. “Essas crianças que vivem nos lares encontram-se em situações diferentes, mas a maioria vive num lar por os progenitores terem dificuldades em cuidar delas”, explicou Christine Lao. As razões por detrás são da mais variada ordem, desde problemas financeiros a problemas de saúde. Também há crianças cujos pais não se encontram em Macau e que não têm mais ninguém com quem ficar, bem como outros que têm os progenitores presos ou a braços com problemas como a droga. Estes cenários levam a que “pais e filhos se separem temporariamente”, mas o objectivo último é que, uma vez solucionados os problemas, possam regressar a casa e, mais importante, à família. Linha vermelha No entanto, nem sempre tal sucede, existindo crianças no paradoxo de terem uma família que não abdica de si, mas que a deixa crescer num contexto institucionalizado. Se bem que, “em nome do interesse superior da criança”, o ideal será que volte ao seio da própria família, o IAS observa que existe uma ‘linha vermelha’. “O IAS tenta sempre manter o contacto com os pais/familiares das crianças. Quando deixam de contactar ou de visitar os filhos durante mais de seis meses, conforme a lei, o IAS pode entrar em contacto com o Ministério Público que vai inteirar-se da situação e ver se a melhor solução é a adopção. Se assim o entender, vai propor ao tribunal que, após estudar o caso, decide se decreta ou não a criança como abandonada, qualidade necessária para se considerar que reúne condições para ser adoptada”, esclareceu Christine Lao. Embora sem dispor de números concretos, o IAS estima que, desde 2000, tenha havido uma dezena de casos em que tal sucedeu. As crianças podem viver num lar até aos 18 anos. As outras mães Depois de conquistas quanto à possibilidade de menores de 18 anos entregarem os filhos para adopção, a directora do Centro Bom Pastor, Juliana Devoy, espera agora mudanças relativamente às grávidas não residentes. É um dos pontos na agenda do Grupo de Acção para a Adopção, fundado em 2017, por Juliana Devoy, para evitar “histórias tristes” como a da trabalhadora birmanesa, de 27 anos, que se encontra actualmente em prisão preventiva, após ter dado à luz na casa-de-banho dos patrões e abandonado o recém-nascido na varanda “por pânico”. “Do que tem sido a nossa experiência, se a mãe não for residente tem de levar o bebé para o seu país de origem, mas parece tão injusto. Em Hong Kong, por exemplo, podem dar o bebé para adopção se assim o entenderem”, realça Juliana Devoy. “Pedimos ao Instituto de Acção Social [IAS] para ver se há formas de resolvermos este problema, para olhar para estes casos”, apontou ao HM. Para a directora do Centro Bom Pastor, os ventos que correm auguram sinais positivos: “O IAS tem estado muito interessado nas mulheres grávidas – independentemente da idade – e abertos às nossas sugestões”. “Estou contente com os progressos significativos, apesar de não podermos mudar do dia para a noite uma cultura”, realçou Juliana Devoy, referindo-se à recente conquista relativamente às menores de 18 anos. “O IAS mudou a atitude e, no ano passado, duas jovens de 15 anos puderam entregar os filhos para adopção sem problemas, porque o IAS compreendeu a importância de uma criança ser integrada, o mais cedo possível, no seio de uma família”, observou. A lei não o proibia, mas a política do IAS durante anos foi a de seguir a posição de um juiz que entendia que uma grávida com menos de 18 anos era muito imatura para estar em condições de decidir dar o filho para a adopção. “Como resultado, houve muitas histórias infelizes”, destacou a directora do Centro do Bom Pastor, radicada em Macau há 30 anos. “Não sou ‘naive’ ao ponto de pensar que vamos conseguir grandes mudanças, mas o essencial é que temos avançado”, afirmou Juliana Devoy, elogiando o trabalho da chefe de divisão de Serviços para Crianças e Jovens do IAS, que tem, aliás, participado nas actividades promovidas pelo Grupo de Acção para a Adopção. “A Christine [Lao] tem uma mente muito aberta e feito o seu melhor”. Na agenda do Grupo de Acção para a Adopção figura também a intenção de promover o ‘foster care’, ou seja, o conceito de famílias de acolhimento, que possibilita que uma criança seja acolhida temporariamente, em vez de estar numa instituição. “Não há esse tipo de política, mas podia haver. Claro que há uma grande diferença em relação à adopção, mas também permite que seja providenciada uma família a crianças que estão em lares”, destacou. Acelerar processos Em termos genéricos, Juliana Devoy entende que os procedimentos da adopção devem ser acelerados para que as crianças cheguem o mais rápido possível às famílias que tanto os desejam. “Antigamente, segundo os relatos que ouvia, os candidatos sentiam-se muito desencorajados com a resposta do IAS quando não havia bebés disponíveis para adopção. O processo ainda é lento, mas se houver uma avaliação antecipada [dos candidatos], mal haja crianças, pode ser logo activado em vez de demorar meses. Tenho membros da minha família que foram adoptados logo na maternidade”, exemplificou.
Hoje Macau Manchete ReportagemProstituição | Abertura económica soltou “demónio social” antigo na China Por João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]S[/dropcap] ituado no centro de Pequim, o Bali SPA recebe os clientes com chá e tangerinas. Nos corredores, música étnica do sudoeste chinês alterna com solos de piano. Mapas de acupuntura e reflexologia enfeitam as paredes. Um cheiro doce a incenso enche o ar. Os quartos, recentemente renovados, ostentam soalhos em madeira, luz ambiente e quadros decorativos. Mas, por detrás da fachada de SPA de luxo, mulheres de 20 e poucos anos, oriundas do interior pobre da China, oferecem serviços sexuais. No país mais populoso do mundo, com cerca de 1.400 milhões de habitantes, estima-se que haja dez milhões de prostitutas. Em hotéis, casas de massagens ou bares de karaoke, serviços “extra” são sugeridos aos clientes. Altos quadros do Partido Comunista Chinês (PCC) caídos em desgraça são acusados de manter várias amantes, através de avenças e prendas de luxo, numa versão moderna do concubinato. A vasta indústria, no entanto, raramente é referida na imprensa estatal ou em documentos oficiais. “Para o PCC, a prostituição está associada às sociedades capitalistas, e, portanto, não existe na China”, ironiza à agência Lusa Lijia Zhang, autora de um livro sobre o tema. Inspirada pela descoberta de que a sua avó foi vendida a um bordel na adolescência, Lijia narra em “Lotus” o percurso de uma trabalhadora migrante que cai na prostituição em Shenzhen, uma das mais prósperas cidades chinesas, usada como laboratório à abertura do país à economia de mercado, nos anos 1980. Considerada um “demónio social”, a prostituição foi imediatamente combatida pelo PCC após assumir o poder, em 1949, através do encerramento de bordéis e proibição do concubinato. A perspectiva feudal sobre o papel da mulher foi igualmente contrariada sob a máxima maoista “as mulheres seguram metade do céu”. As reformas económicas pós-maoismo, porém, levaram à migração de centenas de milhões de trabalhadores rurais para as cidades do litoral, alimentando o ‘boom’ na construção e indústria que permitiu à China converter-se na segunda maior economia do mundo, a um ritmo sem paralelo na História moderna mas que rompeu com o tecido social do país. O restrito sistema de residência das cidades, conhecido como ‘hukou’, priva ainda estes trabalhadores de serviços básicos, como o acesso à educação ou saúde pública. “As pessoas nos estratos inferiores da sociedade vivem numa luta constante pela sobrevivência: não existe qualquer tipo de assistência social ou apoio”, descreve Lijia. “São sobretudo mulheres oriundas dos meios rurais, sem educação ou capacidades que as preparem para a vida na cidade”, conta. A prostituição na China é punida com pena administrativa, sem passar pelos tribunais: em caso de evidência, as mulheres são enviadas para centros de “abrigo e educação”, por um período máximo de dois anos. Críticos dizem que os centros têm pouco a ver com educação e denunciam maus-tratos, trabalho forçado e a obrigação de pagar por subsistência e exames médicos a preços proibitivos. “A conversa sobre reabilitação ou formação ideológica é treta, serve apenas para extorquir dinheiro em nome do Estado e da polícia”, refere uma das ex-detidas, citada num relatório da Asia Catalyst, organização que defende grupos marginalizados na região. Lijia nota, porém, que apesar das dificuldades, a profissão surge como alternativa a empregos mal pagos e monótonos em linhas de montagem ou restaurantes. “Não é uma vida totalmente miserável”, diz. “Elas passam a desfrutar do dinheiro e tempo livre, de um estilo de vida urbano: compram roupas, produtos de beleza ou experimentam cozinhas diferentes”, conta. Xiaowu, de 25 anos e natural da província de Henan, centro da China, começou a trabalhar no Bali SPA há dois meses. Apesar de não gostar da ocupação, admite desfrutar da vida em Pequim. “Quando era mais nova, na minha aldeia natal, pela amanhã, havia apenas ‘mantou’ [pão cozido a vapor]; à noite, jantávamos sempre ‘tofu’ [alimento produzido a partir da soja]”, recorda. “Hoje, detesto comer tofu”, diz.
Hoje Macau ReportagemIdai: Buzi, em Moçambique, secou e renasce das cheias anunciadas por uma corrente de bois e cabritos Por Fernando Peixeiro, da agência Lusa [dropcap]A[/dropcap] vila de Buzi, centro de Moçambique, inundada e cercada pelas águas na sequência do ciclone Idai, está seca e os habitantes estão a refazer as vidas, embora se lembrem que tudo começou com bois e cabritos no rio. Um dia antes de as águas chegarem e inundarem a vila, deixando-a isolada do resto do país, como conta à Lusa um habitante de Buzi, começou a ver-se na corrente do rio bois e cabritos, uns mortos e outros vivos. O que é isso? A corrente está a puxar boi? Alguns meteram-se à água, conseguiram levar os animais para terra. Conta o mesmo habitante que o fenómeno deixou algumas pessoas alerta, que nessa noite já não dormiram. O resto já é conhecido, a chegada das águas, depois do ciclone que destruiu quase tudo, as pessoas refugiadas em locais altos, nos telhados das casas. Toda a gente de Buzi tem uma história assim para contar. A de Joana Francisco, agora calmamente a lavar roupa num alguidar, é assim, a de alguém que não tem casa, não tem comida e não tem “panela para cozinhar”. A de alguém também vários dias em cima de um telhado, à espera que a água descesse e que chegasse ajuda. Desde o final da semana passada essa ajuda também se faz em português, pela mão da Força de Reacção Imediata, constituída por militares dos três ramos, Marinha, Força Aérea e Exército. Na tarde de quarta-feira em seis botes, a maior parte com fuzileiros, fizeram-se ao mar para, por um lado ir levar alimentos a aldeias na região de Buzi e por outro providenciarem água potável. O tenente Santos Moreira, que comandou a força, explicou à Lusa que a Força de Reacção Imediata está a trabalhar desde sexta-feira passada para “dar o apoio, com géneros alimentares e farmacêuticos, e apoio médico-sanitário, às comunidades isoladas na região de Buzi”. No cais da vila sede de Buzi, no rio com o mesmo nome, para carregar os botes com alimentos e medicamentos, o responsável explicou que os fuzileiros transportaram os alimentos para Buzi numa primeira fase e que agora é dali que partem carregados para chegar a pessoas que estão a passar necessidades, “que estão sem água e sem alimentos”. Desde a semana passada este vaivém é diário. Uma pequena parte da força de fuzileiros, com dois elementos de engenharia e um farmacêutico, já tinha ficado num ramal do rio Buzi com uma bomba de purificação de água, para conseguir dar de beber a uma aldeia que também ficou isolada devido às cheias. “Temos encontrado populações ainda isoladas, com muita carência alimentar, e problemas de saúde graves, e temos tentado suprimir com o pouco que temos. Ainda não conseguimos ver grandes melhorias, infelizmente, mas estamos cá para tentar melhorar isso”, disse Santos Moreira à Lusa. Neste vaivém o que mais o marcou? Santos Moreira pensa um pouco, mas acaba por dizer que o que marca é a destruição das aldeias, as necessidades das populações, e especialmente as crianças, “que perderam os pais, irmãos, crianças com sete anos a tomar conta de irmãos de três”. São de facto as crianças que caracterizam a vila, agora seca, de Buzi, dezenas e dezenas, de todas as idades, enchendo as ruas, caminhando ao lado dos visitantes, dando-lhes a mão, pedindo uma fotografia. Dos seus rostos e sorrisos não transparece o drama que terão vivido há pouco mais de uma semana. Ele está marcado nas paredes, das casas, dos bancos, do hospital, a mostrar que a água subiu meio metro, um metro, mais e mais. Está marcado nas palavras de Ibraimo Hassan Abdulla, dono de uma loja que diz estar “completamente vazia”, mas que está cheia: a água destruiu 80% da mercadoria. O drama está marcado no gesto de alguém que se baloiça agarrado a um quase caído cabo de alta tensão, no sorriso triste de uma mulher do Bairro Massane, a secar o arroz que ficou debaixo de água e que agora cheira mal. Dá para comer? “Dá, com sofrimento”. E marcado ainda nas mãos do homem que lava um colchão ou na cara da jovem que seca dezenas de caixas de fósforos numa esteira. Ou nas palavras de Luís Fernando, um jovem que vive com a mãe na aldeia de Muchenesse, a poucos quilómetros de Buzi, onde também se dormiu nas árvores, onde há diarreia e malária, e onde há pessoas, muitas pessoas, que dormem em taludes abrigadas por dois paus espetados no chão e um pedaço de plástico. Elton Americano, médico chefe distrital de Buzi, também mandou colocar na rua muitos aparelhos do hospital para secarem. Nunca se sabe, um dia que volte a luz pode ser que trabalhem. No hospital, depois do ciclone, “entrou água em todas as enfermarias”, subiu mais de 60 centímetros e a maior parte dos aparelhos “ficou submersa”. Mas diz com orgulho: “Sempre tivemos doentes internados e assistimo-los, dentro das nossas possibilidades. Em nenhum momento o hospital fechou, podia não ter assistência regular, mas havia visita para doentes e sempre um enfermeiro para medicar os pacientes”. Tranquilo, diz que os casos que mais têm aparecido, antes de barco e agora por terra, são mais relacionados com traumatismos e feridas. “Trabalhávamos de forma improvisada”, diz. E também de forma tranquila conta o que se passou há duas semanas. A água chegou à vila já de noite, pelas 21:00, as pessoas foram para zonas altas e terraços, não chovia (a água vinha do rio que transbordou), as pessoas comeram “o que tinham de reserva”, não havia comunicações, e na manhã seguinte as águas começaram a descer. “Praticamente foi uma noite que Buzi ficou cheio de água”, depois água começou a descer todos os dias. Americano não dramatiza e diz que a cidade está a refazer-se. Três jovens a carregar sacos de arroz, uma menina a vender tomates e cebolas, uma mulher a vender panelas de alumínio de todos os tamanhos, um homem a vender baldes com pregos à beira da estrada, um barco a chegar da Beira, o cheiro a bolos fritos. Parece que está.
Hoje Macau ReportagemIdai | Os 40 magníficos que guardaram 26 mil crocodilos Fernando Peixeiro, da agência Lusa [dropcap]O[/dropcap]português Manuel Guimarães tem no centro de Moçambique uma quinta com 26 mil crocodilos, com muros que o ciclone Idai derrubou. Só 40 “homens magníficos” impediram a saída dos animais e uma “desgraça terrível”. Passada mais de uma semana após o ciclone, que provocou centenas de mortes e milhares de desalojados, devido ao vento e às cheias, pouca gente sabe que foram esses 40 homens, que na noite do ciclone iam substituindo o muro à medida que caia, que impediram que andassem agora 26 mil crocodilos à solta na zona da Beira. Mas Manuel Guimarães sabe, e a sua gratidão não tem palavras. Agora que a chuva parou e a quinta já não está cercada pelas águas Manuel Guimarães voltou na segunda-feira ao local, Nhaugau, distrito da Beira,emocionado por ver como uma noite de vento lhe destruiu 10 anos de trabalho. Lá está Anísio Chinguvo e os outros “magníficos”, cortando árvores, limpando a terra, repondo o que é possível repor. Anísio, natural de Maputo, a trabalhar para Manuel Guimarães há uma dezena de anos, lembra-se bem do dia 14 de Março, de quando “o patrão ligou a informar” que tinham que se preparar para um vento muito forte. Anísio, como conta agora, pensou que era brincadeira, que ventos fortes já ele tinha visto em 2000, em 1977. E Manuel Guimarães do outro lado: “Anísio, não brinca, hás de ver o que nunca viste”. Os 40 trabalhadores colocaram nesse dia chapas isotérmicas junto da cerca dos crocodilos feita de tijolos e cimento, especialmente junto da cerca dos maiores crocodilos, e aguardaram o Idai. Nenhum arredou pé, nenhum foi para junto das famílias. E na noite de quinta-feira, 14 de Março, pelas 22:00, quando o Idai chegou encontrou os 40 ali, sentados ou deitados por causa da força do vento. “Não foi fácil, falar disto dói muito. Cada um pensava, eu vou perder a minha família, os meus filhos, para defender um crocodilo. Doeu, porque duas noites perdidas não e fácil”. Foram duas noites sem dormir, mas especialmente difícil a noite do ciclone, como Anísio conta à Lusa, ao lado do muro dos grandes crocodilos, que o vento conseguiu derrubar e que agora está substituído por chapas. Porque não bastava estar ali, porque era preciso ir ver outros tanques, ver se as árvores que caiam não derrubavam outros muros. Mas aquele muro, aquele especialmente dos crocodilos grandes. “Não podíamos estar longe do muro”. “Sabíamos que se o muro desabasse era um desastre total, não era fácil controlar estes animais lá fora”, acrescentou. E a verdade é que noite dentro, quando o muro cedeu eles ali estavam, prontos a empurrar as chapas que tinham levado, cortando bambus para as segurar. E às 05:00 de sexta-feira o vento amainava e os crocodilos estavam nos seus tanques. “Estávamos a fazer o nosso salário, para próximos anos, não só deste mês de Março mas para os próximos anos. Imagina que todos os crocodilos se fossem embora, eu não estava aqui, estava na minha casa porque não havia serviço”, diz agora o chefe dos 40 heróis. Já passou mais de uma semana e Manuel Guimarães, 63 anos, ainda se emociona quando fala dos seus “40 magníficos”. Se os crocodilos tivessem saído, se tivessem galgado o perímetro da quinta, os 10 quilómetros de valas que a rodeiam, “era grave”, era “uma situação de pânico total”. “Estaríamos todos, uma cidade inteira, a apanhar crocodilos, a comunidade internacional. Porque era impensável 26 mil crocodilos à solta, especialmente os grandes”. O empresário lembra também a prevenção com os painéis e emociona-se até às lágrimas quando fala dos seus “40 bravios moçambicanos” que se sentaram ali perto dos muros, a olhar de frente o ciclone e preparados para os substituir com chapas quando eles caíssem. “É graças a esses 40 homens, que nunca mais podemos esquecer, que não temos uma desgraça para a empresa, porque 26 mil crocodilos são muitos milhares de dólares, e uma desgraça para a população, porque já viram o que era 26 mil crocodilos aí à solta? Seria terrível. Felizmente graças a eles estamos aqui, podemos falar disto que aconteceu”, diz à Lusa. E acrescenta: “quando havia muito vento sentavam-se ou deitavam-se e na hora em que os muros caiam eles repunham as chapas. É uma história que precisa de ser contada para mostrar que na hora em que é preciso os moçambicanos estão lá. Deixaram as suas casas, os filhos, as famílias, perderam tudo, para estar aqui a defender a quinta, e isso não tem valor”. Mas Manuel Guimarães ainda tem mais um herói no currículo, um que o faz chorar ainda mais. Chama-se João e esteve ocupado a levar uma manada de vacas para locais altos, por causa das águas, não estando lá quando os seus quatro filhos, o mais novo de dois e o mais velho de 11 anos, foram levados na corrente. “Quando eu lhe perguntei ´como é que estão os animais´ ele disse ´patrão não perdi os animais mas por causa de estar lá perdi os meus quatro filhos”. João ficou na quinta a encaminhar os animais para lugares altos, eram 2.000 e o lugar alto do costume não era suficientemente alto desta vez. E a água chegou depressa. Na quinta de Nhamatanda, relata citando os trabalhadores, “de manhã estava no sapato, uma hora depois nos joelhos, meia hora a seguir na cintura e uma hora mais e estavam a fugir para cima das árvores”. “Eu nunca vi isto, estou cá há 25 anos, nunca a água atingiu estes níveis”. Há 25 anos Manuel Guimarães veio por três meses, para exportar camarão. Hoje é um dos maiores criadores de gado de Moçambique, exporta camarão para Portugal, as suas empresas foram distinguidas como as segundas maiores Pequenas e Médias Empresas no âmbito da exportação e da exportação de produtos de mar. O projecto dos crocodilos foi pensado para minimizar a perda de vidas humanas e mediante um acordo com o Governo foram recolhidos ovos para desenvolver a quinta. As peles e os produtos derivados são vendidos para Portugal, Itália, Coreia do Sul e Japão. Os sapatos são feitos em Portugal e as malas em Itália. A quinta dos crocodilos foi crescendo, era agora também um restaurante e já estava a começar um projecto de ecoturismo, com duas casas em madeira prontas. “Era uma quinta linda”, crescendo devagarinho, “com gosto”, um trabalho de 10 anos, “e um dia desapareceu tudo”. Mas não só. No distrito de Buzi perdeu todos os animais e em Nhamatanda calcula que meio milhar. E a quinta dos crocodilos está lá a mostrar as suas desgraças, árvores caídas, casas destruídas, armazéns derrubados. Acabou o restaurante, a piscina, o “paint ball”, o ecoturismo. Tudo feito com “tanto gosto”. Mas é o menos, porque o que não lhe sai da cabeça é o empregado João. Tem andado a ajudar na procura dos corpos dos filhos, mas até domingo ainda não os tinham encontrado. Ao “senhor João” vai fazer-lhe uma casa, vai dar-lhe um terreno. Quando o diz emociona-se de novo. E acrescenta depois: “mas nunca lhe posso devolver os filhos”. A Manuel Guimarães faltam palavras para agradecer, ao empregado João e aos “40 magníficos” da quinta dos crocodilos. E por causa deles, com a ajuda deles, não tem dúvidas. Não é “um ciclonezito de 280 quilómetros por hora” que os vai fazer parar.
Sofia Margarida Mota Reportagem SociedadeAugusto Gomes colecciona mais de um século de dinheiro de Macau Começou a coleccionar notas e moedas de Macau quando andava na escola, nos anos 60. Hoje tem, provavelmente, a maior colecção do mundo “de dinheiro do território”. São 493 peças, guardadas como um tesouro, que contam a história do uso da moeda desde 1905 [dropcap]”S[/dropcap]ou uma pessoa que gosta de coleccionar tudo o que represente Macau”, começou por dizer ao HM Augusto Gomes, a personificação do coleccionismo que lhe valeu a alcunha de “sucateiro” entre os que lhe são mais próximos. O também presidente da Associação de Coleccionadores de Macau tem actualmente todas as notas e moedas que emitidas no território desde 1905, altura em que o Banco Nacional Ultramarino (BNU) emitiu a primeira nota. Filho de uma família modesta e com vários irmãos, Augusto Gomes recorda que começou as primeiras moedas do seu acervo foram de 10 avos, quando ainda andava na escola. “No início comecei a coleccionar as moedas que se encontravam em circulação, na década de 60”, conta. “Éramos muitos irmãos e todos os meses o meu avô materno nos dava três patacas para gastar na escola e que eram entregues em 30 moedas de 10 avos”. O jovem coleccionador, escolhia as que se encontravam em melhor estado de conservação para guardar e “não gastar”. Se não tinha consigo as melhores, “trocava com os irmãos”. Nos anos 70 ingressa na Polícia Judiciária, altura em que começou a ter “um pequeno vencimento”. Foi também o momento me que se começou a interessar pela recolha de notas que até aí lhe eram pouco acessíveis. “As notas são mais difíceis de encontrar e de conservar”, diz. No entanto, entre trocas com amigos e, mais tarde, participando em leilões, Augusto Gomes conseguiu reunir exemplares de todas as notas e moedas de Macau desde a sua primeira emissão. Entre a sua colecção “única”, as “peças mais valiosas” são as primeiras notas de Macau datadas do início do séc. XX. “Tenho a primeira nota que saiu logo em 1905”, conta com orgulho. Trata-se de uma nota de cinco patacas, emitida a 4 de Setembro daquele ano, assinada à mão. Chegar às primeiras notas que circularam em Macau não foi tarefa fácil. Uma das maiores dificuldades de quem tem este hobby é o estado de conservação de um objecto de papel impresso para circular. “Na altura, as primeiras notas eram emitidas num tamanho maior das que temos hoje e ninguém tinha carteira ou mala para as guardar. Eram dobradas e postas dentro dos bolsos. É por isso que foi muito difícil encontrar notas antigas e em bom estado”, explica. Augusto Gomes recorda a tentativa de conseguir uma primeira emissão de uma nota que lhe faltava na vasta colecção. “Encontrei uma nota rara de dez patacas, por acaso, numa loja em Macau. Na altura, o dono da loja pediu-me mil patacas por ela. Foi há mais de trinta anos e o estado de conservação não era bom, estava conservada em cerca de 40 por cento. Mas como ainda não tinha aquela nota, queria comprar”. O dinheiro não chegava e Augusto Gomes pediu um desconto que lhe foi recusado. “Disse-lhe que regressava no dia seguinte, mas quando lá voltei, a nota já tinha sido vendida. Perdi a nota”, recorda desgostoso. Só passados alguns anos voltou a encontrar a nota desejada num leilão. Desta vez, a alusiva peça não lhe escaparia, mas para tal teve de pagar “uma pequena fortuna”. No momento de escolher a peça preferida, Augusto Gomes destaca a última que adquiriu num leilão em Hong Kong, em 2003: a primeira emissão da nota de 50 patacas. O coleccionador preferiu não avançar com números, mas gesticula dando a entender tratar-se também da peça mais valiosa, adquirida por um valor na casa dos seis dígitos. “A base de licitação foi de apenas 60 mil, mas subiu muito. Como era a última nota que me faltava estava disposto a tudo. Ainda por cima é uma nota assinada à mão”, conta. A acompanhar a história desta peça está o facto de que as notas de 50 e de 5 só terem sido postas em circulação em 1907 porque tinham uma aparência idêntica. “Com receio de que as pessoas confundissem uma com a outra, estas notas foram postas em circulação mais tarde, depois das pessoas já estarem mais familiarizadas com este dinheiro”, diz. Dinheiro marcado De entre as notas mais antigas do espólio, algumas apresentam perfurações arredondadas. “São notas postas fora de circulação. As marcas são inutilização deste dinheiro, pelo próprio banco, feita quando as pessoas iam entregar as notas que já não podiam usar”. Encontrar estas peças não é fácil e aquelas que integram a colecção são as sobreviventes num processo que não favorecia a recolha para memória futura. “Quando as pessoas entregavam as notas, o banco furava-as de imediato e depois enviava-as para serem destruídas. Mas, alguns funcionários guardavam estas notas para recordação e acabaram por passar de pais para filhos. Mais tarde vieram também a ser vendidas em leilão”, explica. Outra característica das notas mais antigas é um rebordo em forma de picotado e que conta como era feito o registo do dinheiro na altura. Por exemplo, “a primeira nota de uma pataca em Macau levava aquilo a que se chama de talonário, é como se fosse um bilhete de cinema. Quando era entregue tirava-se o talonário que ficava no banco e servia como registo”, conta Augusto Gomes. Por outro lado, através desta colecção é possível ainda viajar pela história da região. As notas emitidas no princípio de séc. XX sublinhavam a importância das personagens histórias, que passaram pelo território, e que eram representadas enquanto símbolos da administração portuguesa. Prova disso é a impressão da imagem de Camilo Pessanha, Camões ou Venceslau de Morais. Mais tarde, “o BNU passou da impressão de personalidades para a impressão de monumentos e as Ruínas de São Paulo começaram a aparecer nas notas do território”. Por outro lado, através das notas podem-se distinguir vários períodos políticos. “A primeira nota que saiu em 1905, ainda durante a monarquia, e é por isso que ainda apresenta a coroa no reverso”, refere. Após 1910, e a coroa desapareceu da numismática de Macau. Os Pang Tang Enquanto entreposto comercial, Macau foi palco de prolíferas transacções, essencialmente em moeda de prata, muito antes da emissão da pataca. Ainda assim, a introdução do papel moeda no território não mereceu a confiança dos residentes. Quando saíram as primeiras notas de Macau, “ninguém gostava” delas. “Os residentes não gostavam e mesmo os funcionários quando recebiam o vencimento iam logo trocar as notas por aquilo a que chamamos de certificados”, os Pang Tang. “Eram uma espécie de ‘cheques’ em outras moedas, que já se utilizavam antes da emissão da pataca”. Estes certificados tinham como referência a moeda estrangeira, e eram emitidos por aquilo a que se poderiam chamar de “bancos privados”. Após 1905, este “dinheiro” circulava paralelamente à nota oficial de Macau. As pessoas não confiavam no dinheiro do BNU, mas sim, nesta espécie de cheques aos quais estavam mais habituadas e que muitas vezes tinham equivalência com a moeda de prata de cantão”, conta. A desconfiança era tal, que mesmo tendo de pagar uma taxa de câmbio, as pessoas preferiam os Pang Tang à pataca de Macau. “Na troca era acrescentada uma espécie de juro, uma taxa, como se fosse uma taxa de troca de moeda como temos hoje. Mas compensava porque nas lojas ninguém queria a pataca. A moeda do BNU só servia para pagar a energia e os impostos ao Governo. Até os bilhetes de autocarro chegavam a ser pagos com estes certificados”, acrescenta Augusto Gomes. A Segunda Grande Guerra Mundial também foi um marco na história da circulação do dinheiro em Macau por se tratar de um dos poucos locais poupados pela campanha expansionista do império japonês. “Durante a Guerra as instituições financeiras de Hong Kong e Guangdong mudaram-se para Macau onde, não tendo permissão para emitir moeda, emitiam estes certificados”. Os “bancos provados” responsáveis pelos Tang Tang começaram a não ter reserva para cobrir as suas responsabilidades. A confiança nesta modalidade de dinheiro paralela foi diminuindo e após a guerra, “o Governo proibiu o uso deste Tang Tang”, aponta. Outro momento marcante da história da pataca foram as primeiras emissões de dinheiro por parte do Banco da China. “Foi o segundo banco a poder emitir moeda de Macau, além do BNU” e acontece na sequência da preparação da transferência de administração que veio a ter lugar em 1999. As primeiras notas e moedas emitidas por esta instituição são de 1995. Metal a circular Se as notas em patacas apareceram no início do século passado, as moedas tiveram a sua primeira emissão só em 1952. Na altura, foram emitidas moedas de 0,05, 0,1 e 0,5 moedas de níquel de prata. A estas juntaram-se as de uma e cinco patacas. As moedas de uma pataca ganharam uma alcunha entre a comunidade chinesa que lhe “chamavam de pombinhas brancas”, refere o coleccionador. Em Outubro de 1974 foi emitida a única moeda de 20 patacas como celebração da Ponte Macau Taipa, a primeira entre a península e a ilha, e hoje conhecida como Nobre de Carvalho. “Estas moedas eram distinguidas pelo seu alto teor de prata, chegando a atingir o valor de 100 patacas nos anos 80”, aponta. Foi também na década de 80 que o teor português das imagens das moedas de Macau começou a mudar e a possuir mais referências chinesas. Exemplo disso é a emissão da colecção com os signos lunares, ilustra Augusto Gomes. Augusto Gomes é o guardião de um espólio único, onde reúne “modestamente”, “99 por cento de todas as notas e moedas emitidas num total de 493 peças”. Além do valor monetário, o acervo representa “um outro tipo de tesouro” tratado com toda a dedicação, até porque, “em Macau é muito complicado manter esta colecção: temos o problema da humidade que estraga as coisas com facilidade”. Reformado e com os dias totalmente dedicados ao hobby de uma vida, Augusto Gomes conserva a colecção, de que muito se orgulha, “com desumificadores, luvas, pinças e muita paciência”. Etiquetas políticas Além de notas e moedas, Augusto Gomes reúne ainda outros objectos históricos. Um colecção de 7300 etiquetas de caixas de fósforos contam a história destes objectos e do seu papel na sociedade chinesa entre 1880 até 1950. “É uma colecção muito especial, que consiste em etiquetas conseguidas antes de serem coladas nas caixas de fósforos e que espelham para toda a história do continente durante aquele tempo”, conta ao HM. As etiquetas mais antigas datam ainda do final da dinastia Qing e eram caracterizadas pela presença de animais emblemáticos como o pavão. Com a passagem do tempo as temáticas começaram a ser outras. “As etiquetas de fósforos começaram a ser usadas para informar a população das novas leis”, conta. A proibição de fumar ópio, do jogo ou da prostituição foram o mote para slogans que adornam as caixas. “Toda esta informação aparecia nas etiquetas de fósforos até à revolução de 49. Depois de 49, passou a ser cada vez mais difícil encontrar etiquetas de fósforos porque começaram a ser impressas directamente nas caixas”, lamenta.
Hoje Macau ReportagemVaticano debate a partir de hoje escândalo de abusos a crianças que abalou a Igreja [dropcap]O[/dropcap] Vaticano recebe a partir de hoje e até domingo todos os presidentes das conferências Episcopais do mundo para uma reunião inédita sobre abusos a crianças por membros do clero, um tema que abalou a Igreja em 2018. Ouvir as vítimas, aumentar a consciência, aumentar o conhecimento, desenvolver novos procedimentos, e partilhar boas práticas são alguns dos objectivos do encontro. O encontro sobre a “Protecção dos menores na Igreja”, que se realizará, no Vaticano focará três temas principais: responsabilidade, assunção de responsabilidades e transparência. O papa anunciou a sua presença em todas as sessões e momentos de oração da cimeira que reunirá 114 conferências episcopais: 36 da África, 24 da América do Norte, América Central e América do Sul, 18 da Ásia, 32 da Europa, incluindo Portugal, e quatro da Oceânia. Segundo a comissão organizadora da cimeira, os participantes “trabalharão juntos para responder a este sério desafio” estando prevista também a participação de algumas vítimas. Na preparação deste encontro a comissão organizadora da cimeira pediu aos presidentes das conferências episcopais para ouvir as vítimas nos seus países. O papa Francisco escolheu para o comité organizador o arcebispo de Chicago (EUA), Blase J. Cupich, o arcebispo de Mumbai, Oswald Gracias, e duas figuras que têm protagonizado a batalha contra os abusos: o vice-secretário recém-nomeado da Congregação para a Doutrina da Fé, Charles Scicluna, e o presidente do Centro para a Proteção das Crianças da Pontifícia Universidade Gregoriana e membro da Comissão para a Tutela dos Menores, Hans Zollner. O abuso sexual contra crianças durante anos e anos chegou a ser classificado pelo secretário do papa emérito, Bento XVI, como “o 11 de Setembro da Igreja Católica”, um momento apocalíptico com incontáveis vítimas. Na Igreja dos Estados Unidos um relatório de um grande júri da Pensilvânia revelou que pelo menos mil crianças foram vítimas de 300 padres nos últimos 70 anos, e que gerações de bispos falharam repetidamente na adoção de medidas para proteger a comunidade e punir os violadores. No sábado, o Vaticano expulsou do sacerdócio o ex-cardeal e arcebispo emérito de Washington, Theodore McCarrick, acusado de abusos sexuais a menores e a seminaristas. Relatos em todo o mundo Os casos estendem-se ainda a países como a Alemanha, Irlanda, Holanda, Austrália, França e Espanha. Na Alemanha, um relatório interno encomendado pela Conferência Episcopal aponta para 3.677 casos de abusos sexuais cometidos por 1.670 elementos da Igreja entre 1946 e 2014 e na Holanda pelo menos 20 bispos e cardeais foram associados a abusos sexuais. Na Austrália, o cardeal George Pell, que dirigia a Secretaria da Economia do Vaticano, foi considerado culpado por um tribunal em Melbourne de abuso sexual a duas crianças. Em Agosto, a poucos dias de uma visita à Irlanda, onde mais de 14.500 pessoas declararam-se vítimas de abuso sexual por parte de padres, o papa escreveu aos católicos do mundo, condenando este crime e exigindo responsabilidades. Na carta, Francisco pediu perdão pela dor sofrida e disse que os leigos católicos devem envolver-se na luta para erradicar o abuso e o seu encobrimento. A 12 de Setembro, Francisco decidiu marcar uma cimeira mundial sobre os abusos sexuais na Igreja. Acções do papa contra os abusos sexuais na Igreja 2013 5 de Abril: – Na sua primeira audiência, Francisco desafia a Congregação para a Doutrina da Fé para, “seguindo a linha estabelecida por Bento XVI, agir de forma decisiva em casos de abuso sexual”. 2014 22 de março: – Cria a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores. 7 de Julho: – Celebra uma missa com seis vítimas de abuso por parte do clero e pede “perdão por pecados de omissão” cometidos por líderes da Igreja por “crimes graves”. 5 de novembro: – Expulsa um sacerdote argentino, condenado a uma pena de prisão por pedofilia. 11 de novembro: – Cria um tribunal especial dentro da Congregação para a Doutrina da Fé para avaliar recursos interpostos pelos clérigos em casos de abuso e para agilizar as sentenças. 2016 4 de Junho: – Publica o ‘Motu Proprio’ “Como uma mãe amorosa”, em que afirma que os bispos podem ser expulsos se, por “negligência ou omissão”, causarem “sérios danos a outra pessoa na comunidade”. 2017 2 de Janeiro: – É divulgada uma carta de Francisco em que pede aos bispos do mundo inteiro que os crimes de abusos a crianças “não sejam mais repetidos” e determina uma “clara tolerância zero”. 2018 2 de Maio: – Recebe três vítimas de abusos do padre chileno Fernando Karadima, que pedem ao papa Francisco que transforme o seu pedido de perdão em “ações exemplares”. 15 de Maio: – Convoca uma reunião com os bispos do Chile depois de pedir desculpas por ter sido mal informado no caso do bispo Juan Barros, acusado de encobrir o padre Fernando Karadima. Três dias depois, todos os bispos apresentam a sua renúncia ao papa. 1 de Junho: – Inicia mais uma série de encontros com vítimas de clérigos no Chile. 11 de Junho: – Aceita a renúncia de três bispos chilenos, incluindo Barros, na sequência do escândalo de acusações de falta de transparência da Igreja na gestão de casos de abuso sexual a menores. 28 de Junho: – Aceita a demissão de mais três bispos chilenos 28 de Julho: – Aceita a renúncia do antigo arcebispo de Washington Theodore McCarrick, a quem ordena que conduza “uma vida de oração e penitência” até que as acusações de abuso sexual de que é alvo sejam examinadas num julgamento da Igreja Católica. 20 de Agosto: – Publica uma carta dirigida a todos os católicos do mundo, condenando o crime de abuso sexual por parte de padres e o seu encobrimento e exigindo responsabilidades. 29 de Agosto: – Lamenta a forma como a Igreja irlandesa respondeu aos crimes de abusos sexuais, naquela que foi a sua primeira intervenção pública no Vaticano depois das acusações de que ele próprio teria escondido os crimes. 12 de Setembro: – Convoca os presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo para uma reunião sem precedentes, a decorrer em fevereiro de 2019, para analisar os casos de abusos de menores. 28 de Setembro: – Reduz à condição de leigo o padre Fernando Karadima. 13 de Outubro: – Expulsa mais dois bispos chilenos do estado clerical por abuso infantil explícito. Escândalos sexuais na Igreja segundo Francisco “Fala-se de ‘lobby gay’ [na Igreja], e é verdade, ele existe.” 06-06-2013 “A Igreja deve sempre ser reformada, ‘Ecclesia semper reformanda’, porque os membros da Igreja ‘são sempre pecadores e precisam de se arrepender’.” 09-11-2013 “Mas tivemos vergonha? Tantos escândalos [na Igreja] que não quero mencionar individualmente, mas que todos sabemos quais são… Escândalos que alguns tiveram de pagar caro. E isso está bem! Deve ser assim… a vergonha da Igreja.” 16-01-2014 “Prometo compaixão e oração por cada vítima de abusos sexuais e também pelas suas famílias.” 16-01-2014 “Os casos de abusos sexuais são terríveis e deixam cicatrizes profundas. Bento XVI foi muito corajoso e ele abriu um canal. A Igreja neste caminho tem feito muito. Talvez mais do que qualquer um.” 05-03-2014 “Devemos ser muito duros [com crimes de pedofilia praticados por alguns padres]! Com as crianças não se brinca.” 11-04-2014 “O que me causa dor e tristeza é o facto de alguns padres e bispos, ao abusarem sexualmente de menores, violarem a inocência destes e a sua vocação sacerdotal.” 07-07-2014 “Não se pode dar prioridade a qualquer tipo de considerações, sejam de que natureza forem, como por exemplo a vontade de evitar o escândalo, porque não há qualquer lugar, no ministério da Igreja, para quem abusa de menores.” 05-02-2015 “Sei como está marcada em vocês a ferida dos últimos anos e acompanhei-vos no vosso generoso envolvimento para ajudar as vítimas (…) e contínuo trabalho para que estes crimes [de pedofilia que abalaram a Igreja dos Estados Unidos] nunca mais se repitam.” 23-09-2015 “Os crimes, os pecados dos abusos sexuais a menores [cometidos por membros da Igreja] não podem ser mantidos em segredo durante mais tempo.” 27-09-2015 “Nós não podemos encobrir [atos de padres pedófilos e] daqueles que são culpados, incluindo alguns bispos.” 28-09-2015 “Assumamos clara e lealmente tolerância zero em relação a este assunto [casos de abuso sexual de menores por membros do clero].” 02-01-2017 “A Igreja agora sente um dever de se comprometer, de forma cada vez mais profunda, na proteção dos menores e da sua dignidade, tanto dentro da própria Igreja como em toda a sociedade.” 06-10-2017 “Aqui [no Chile] não posso deixar de manifestar a dor e a vergonha que sinto perante o dano irreparável causado às crianças por elementos da Igreja.” 16-01-2018 “Não me posso permanecer em silêncio diante de uma das pragas do nosso tempo, e que, infelizmente, também tem implicado vários membros do clero. O abuso de menores é um dos piores e mais vis possíveis crimes.” 07-01-2019 “Havia padres e também bispos que faziam isso [abusar sexualmente de freiras].”
Hoje Macau ReportagemViagem ao mundo clandestino dos “sites” em português associados às ‘fake news’ [dropcap]O[/dropcap]s ‘sites’ em Portugal associados às ‘fake news’, ou notícias falsificadas, onde temas como corrupção, ‘jet set’, desporto e política se cruzam, têm milhares de seguidores nas redes sociais, mas vivem numa espécie de clandestinidade. Desde o final do ano passado que as ‘fake news’ ganharam projecção, com sua influência na eleição do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, de extrema-direita, antes com Donald Trump nos Estados Unidos, e através de uma série de reportagens no jornal português Diário de Notícias (DN) que foi revelado o pouco conhecido “mundo” das notícias falsificadas ou manipuladas no país. O jornalista Paulo Pena, autor de um conjunto de reportagens sobre o tema no DN, traçou à Lusa as diferenças entre os ‘sites’ em Portugal e noutros países, inclusive europeus. Uma das diferenças é a política, menos presente nas páginas portuguesas, embora os políticos também sejam o alvo. “As ‘fake news’ políticas no resto da Europa lidam sobretudo com imigração, com refugiados, com a diferença, interculturalidade, o islamismo. Em Portugal isso não faria qualquer sentido e, portanto, o tema muito mais presente neste tipo de ‘sites’ de desinformação é a corrupção, a forma como acusam políticos de terem roubado dinheiro”, afirmou. Foi o caso em torno de Assunção Esteves, antiga presidente da Assembleia da República, devido ao facto de, em 2012, ter optado pela reforma de juíza do Tribunal Constitucional, em vez do vencimento de deputada e segunda figura do Estado. Algo que foi mencionado por um ‘site’ e que “era mentira”, recordou Paulo Pena à Lusa. Característica comum a estas páginas, em português, é, pois, o fraco peso da política nas publicações que fazem. “Geralmente são histórias sobre celebridades, sobre o Cristiano Ronaldo, sobre futebol, sobre apresentadores de televisão. Ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, onde a política era vendável só por si, chegou a ser um bom negócio. Aqui, política é residual, mas existe e o efeito destes ‘sites’ é precisamente provocar uma movimentação política”, na descrição do jornalista. “Aparentemente, o que consegue fazer com que as pessoas dêem credibilidade é o facto de a política não ser constante”, acrescentou. A estratégia destes ‘sites’ passa, muitas vezes, por construir uma “notícia” a partir de uma informação verdadeira, mas, depois, é tirada uma conclusão excessiva ou fora do contexto. Ou pura e simplesmente trata-se de uma informação manipulada, como aconteceu com o relógio de alegadamente 20 milhões de euros de Catarina Martins [líder do partido Bloco de Esquerda], disseminada por um ‘site’ e que, afinal, era uma experiência para mostrar como era fácil enganar as pessoas. Mas outras foram a notícia, como a foto de José Sócrates [ex-primeiro-ministro português] e amigos, em que supostamente estaria a nova procuradora-geral da República, Lucília Gago, disseminada até por páginas de partidos no Facebook. Foi preciso os media “desmontarem” a trama, sendo fácil de perceber que a mulher identificada como procuradora era tudo menos parecida com Lucília Gago. E o que diz, do outro lado da história, quem faz, quem administra essas páginas associadas, pelo DN, à desinformação ou manipulação? A agência Lusa fez um questionário a responsáveis de vários desses ‘sites’ ou das suas contas nas redes sociais – os ‘sites’ são a base para a disseminação das notícias que, em Portugal, se faz em especial pelo Facebook. Aí, raramente há nomes. As respostas obtidas, por email ou mensagens de Facebook, também raramente têm um nome ou uma assinatura. Contactos telefónicos, nem um. Numa troca de mensagens no Facebook, um responsável de Bombeiros 24 – a conta no Facebook tem 331.152 seguidores – afirmou à Lusa que o ‘site’ “não desinforma nem manipula”, que a “veracidade dos artigos é sempre verificada antes da sua publicação”. A pergunta era se “tem a consciência de, através de um ‘site’ desta natureza, poder estar a desinformar e/ou manipular quem o lê?” e, como noutros casos, a mensagem não tem assinatura. “Deviam-se preocupar com os ‘sites’ que realmente publicam notícias falsas. Claramente existe um ataque ao site ‘bombeiros24’ devido à sua popularidade”, respondeu. E quanto às alegações que associam o ‘site’ a ‘fake news’, a resposta foi: “São acusações falsas e não fundamentadas. Os artigos publicados até hoje contra o ‘site’ baseiam-se apenas em suposições”. Tal como outras páginas, o Luso Jornal 2015 recusa que se dedique a fazer ‘fake news’, em mais uma resposta que não é assinada. “Como não produzimos informação e simplesmente a republicamos, não considero manipulação. Acredito que só os menos informados poderão ser manipulados. E, nos dias de hoje, com o acesso a tudo e mais alguma coisa pela internet, só é manipulado quem quer. Existe sempre forma de sabermos a verdade”, lê-se na resposta. Nenhum dos ‘sites’ que respondeu à Lusa deu informações sobre o seu financiamento, mas garantiram não publicar mensagens nem de forças políticas, dirigentes, ativistas de movimentos políticos, ou de empresas para se associar a causas ou divulgar posições. “Mesmo que o fizessem não teriam qualquer ‘feedback’”, afirmou o responsável de Bombeiros 24. O Luso Jornal 2015 admite os contactos, mas a maioria das vezes ignora-os. “Na maior parte das vezes não publico por variadas razões”, lê-se na resposta dada à Lusa. Relativamente aos media institucionais, o responsável desta página na Internet teoriza e propõe-se “falar de consciência” e se têm “essa consciência” de estar a desinformar ou manipular. Como o Bombeiros 24, afirma que os seus artigos “têm fonte em jornais nacionais de renome e internacionais”. “Se esses desinformam e manipulam, este também o faz, como é obvio, mas só é influenciado quem quer nos dias que correm”, insistiu, questionando: “Os media nacionais não desinformam? Não manipulam? Esses média publicam só conteúdo dentro da linha deles, certo?”. Outro ‘site’, Vamos lá Portugal, que tem 834.123 seguidores no Facebook, não respondeu às perguntas, dizendo apenas estar interessado numa parceria. E mais de uma dezena pura e simplesmente não responderam ao questionário.
Hoje Macau ReportagemO trabalho infindável dos inspectores alimentares e sanitários timorenses Por António Sampaio, da agência Lusa [dropcap]A[/dropcap]s montanhas de caixas em que se misturam produtos de limpeza, mata-moscas, tabaco e bebidas gaseificadas, empilhadas no armazém de uma das lojas do centro de Díli, mostram o desafio para os poucos inspectores alimentares e sanitários timorenses. “Infelizmente, só temos 12 inspectores, muito pouco. Já em Março, com o Orçamento, teremos oportunidade para contratar cerca de 30 a 50 funcionários novos. Só para inspectores queremos contratar mais 20 pessoas”, explicou Abílio Sereno, director da Autoridade de Inspecção e Fiscalização da Actividades Económicas, Sanitárias e Alimentares (AIFAESA), durante uma acção acompanhada pela agência Lusa. No bairro de Audian, em Díli, onde decorreu a inspecção, há dezenas e dezenas de lojas, de maior ou menor dimensão, instaladas em espaços onde a confusão de produtos à venda é imensa, tanto na parte de venda ao público, como nos armazéns das traseiras. Muitas das lojas são retalhistas, mas também grossistas e, por isso, há grande agitação, com caixas e caixas a chegar e a sair, ou para venda noutros pontos da cidade ou até do país. E se a confusão de muitas das lojas é patente dentro do espaço visível ao público, a visita aos armazéns mostra uma confusão ainda maior, com temperaturas quentes, muito pó, toneladas de caixa empilhadas, em desequilíbrio e desordenadas. Enquanto vários timorenses vão carregando uma camioneta com arroz, saco a saco de 50 quilos ao ombro, os inspetores da AIFAESA vão entrando no armazém, pegando aleatoriamente em caixas para verificar prazos de validade ou estado de conservação. Parte do armazém está em obras – há emaranhados de fio e muito pó de cimento – e demoraria bastante tempo verificar tudo. É em armazéns como este que se vê que a equipa é pequena para tanto que há a fazer, especialmente em Díli onde, o sector do comércio, tanto a retalho como a grosso, e a restauração, de pequena ou maior escala, aumentou significativamente nos últimos anos, de acordo com os novos registos anuais junto das autoridades timorenses, a maioria lojas e restaurantes. Praticamente todos os produtos à venda – com excepção de produtos agrícolas e algum do peixe e da carne consumidos – são importados. A distância implica que muitos chegam ao país já com prazos de validade que, explicou Sereno, alguns tentam vender fora de prazo. “Todos os produtos comercializados têm que obedecer ao regulamento e à legislação em vigor. As actividades desenvolvidas em Timor-Leste têm que estar de acordo com as licenças, temos que ver a validade dos produtos. Isso tudo faz arte da actividade de rotina”, acrescentou o responsável. “É uma situação idêntica à ASAE. Temos como missão a fiscalização e inspecção do cumprimento da legislação que regula toda a actividade económica aqui em Timor-Leste”, disse. Um processo que abrange tudo, como no supermercado Mei Mart, um dos maiores da capital, onde a equipa da AIFAESA aparece de surpresa, pede para comprovar licenças e depois inspecciona produtos tanto no armazém como nas prateleiras de venda ao público. Carne e outros produtos congelados são verificados nos dois contentores nas traseiras do armazém e depois os inspectores espalham-se pela loja, verificando prazo de validade em farinha importada da indonésia, azeite português ou condimentos chineses e australianos. “Algumas lojas funcionam sem ser de acordo com a licença que têm, mudam de endereço sem autorização para o efeito, ou iniciam atividades sem esperar pela licença de funcionamento”, contou Sereno. Produtos estragados ou fora de prazo à venda, produtos mal armazenados, problemas de higiene: infracções em que as sanções podem chegar aos 10 mil dólares ou, em alguns casos ao fecho temporário ou permanente. É o caso de pelo menos “10 fábricas ilegais” de produtos derivados de soja (tofu e tempé) ou até de bebidas ilegais. E muitos restaurantes, autuados ou encerrados temporariamente, referiu o responsável. “Já procedemos ao encerramento temporário de vários restaurantes. Cerca de 70 e tal estabelecimentos notificados para encerrar atividades durante 90 dias, que depois de cumprirem as notificações podem reabrir”, contou. Ações que representaram para os cofres timorenses receitas de 127 mil dólares em 2017 e de mais de 147 mil no ano passado, referiu Sereno, que antecipa ver aumentado esse valor, este ano, com mais inspectores na rua.
Andreia Sofia Silva Manchete ReportagemHistórias de vida das quatro mulheres que lutam pelos direitos das empregadas domésticas Retratos de luta As quatro mulheres que reivindicam direitos para as empregadas domésticas trilharam diferentes caminhos até chegarem a uma causa comum. A maioria começou a sua jornada em Hong Kong, mas muitas passaram por Singapura e pelo Médio Oriente. Uma delas cuidou dos filhos de Bashar al-Assad e guarda boas recordações da família que governa a Síria Jean Calma – Ao serviço de Assad [dropcap]Q[/dropcap]uando lhe perguntamos pelo passado, Jean Calma rasga um sorriso que guarda histórias como alguém que já passou por muito. A viver em Macau há dez anos, Jean trabalhou como empregada doméstica no Brunei, em Beirute, capital do Líbano, onde se cruzou, em actos oficiais, com Hillary Clinton, ex-candidata às presidenciais dos Estados Unidos e mulher do ex-presidente Bill Clinton, e Madeleine Albright, ex-secretária de Estado e embaixadora dos Estados Unidos na ONU. Diz ter-se cruzado também com Laura Bush, esposa de George W. Bush. No entanto, as memórias mais importantes que guarda do Médio Oriente vêm de Damasco, Síria, onde trabalhou na casa do actual Presidente Bashar al-Assad, a tomar conta dos seus filhos. Jean Calma. Sofia Margarida Mota “Foram tempos muito interessantes. Trabalhei na casa privada da família. Ele tratava-me muito bem, éramos como uma família”, recordou Jean Calma. “Na verdade, eu não os via com frequência todos os dias. Eles estavam sempre muito ocupados, a viajar, por exemplo. Mas a mulher [Asma al-Assad] estava sempre lá.” Os filhos estudavam numa escola privada na capital síria e ocupavam a maior parte do tempo de Jean Calma que nem se ocupava com muitas tarefas domésticas. “A casa era enorme, mas eu não me importava de fazer as coisas. Além disso, só estava encarregue das crianças. Eram como uma família normal.” Jean Calma acabou por deixar a Síria em 2008, quando já se adivinhavam tensões políticas que se materializaram no início da guerra civil em 2011, no rescaldo dos movimentos da chamada Primavera Árabe. “A Síria já era um país perigoso na altura, era difícil continuar a trabalhar lá. Depois, a minha mãe ficou doente, queria ficar mais perto dela e decidi vir para a China, e depois para Macau.” Apesar de Bashar al-Assad ser visto mundialmente como um ditador sanguinário, Jean Calma tem dele a melhor das impressões. “São pessoas boas, simpáticas e generosas. Não posso dizer nada contra eles. Damasco era uma boa cidade para viver, o tempo era fantástico. Parecia que estava na Europa.” Apesar de ter deixado o trabalho, os laços afectivos continuaram. “Na verdade, eles convidaram-me a visitá-los e chegámos a encontrar-nos no Dubai, para nos vermos outra vez.” Hoje, a empregada doméstica lamenta o conflito que destruiu o país. “A situação é muito triste, tendo em conta tudo o que ficou para trás, a minha experiência. É tudo muito assustador. [Na altura] decidi não pôr a vida em risco e fui trabalhar para outro país. Já havia tensões políticas, que duram até hoje. Não queria continuar lá e não sabia se ia continuar viva”, assegurou. À espera da reforma Depois da Síria, a China apareceu-lhe no mapa. Trabalhou em casa de uma família com dois filhos, a quem ensinou inglês, que lhes permitiu estudarem no Reino Unido. Macau chegaria mais tarde, e daqui só quer sair quando atingir a idade da reforma. Apesar de cá estar há dez anos, nunca tentou obter a residência, pois é um processo “difícil”. Ganha quatro mil patacas e vive na casa dos patrões, mas está satisfeita com as condições de trabalho. “Não tenho de fazer muitas horas. Começo às sete da manhã e preparo os pequenos-almoços, depois lavo a roupa, faço a limpeza e só tenho de preparar as refeições no final do dia. Então à tarde tenho muito tempo para descansar. Às duas e meia vou buscar as crianças à escola”, conta. Jean Calma garante que nunca foi vítima de qualquer tipo de abuso. “Os meus patrões são compreensivos, gostam de mim e até as crianças não querem que eu esteja de parte das actividades do dia-a-dia.” Benedicta Palcon – Da fábrica para as limpezas Se não fosse o marido, Benedicta Palcon, actual porta-voz da Green Philippines Migrant Workers Union, talvez não tivesse vindo para o sul da China. Em 1988, a vida era difícil em Manila e na fábrica ganhava apenas o equivalente a 20 patacas por mês (100 pesos). Benedicta respeitou a decisão do marido e deixou para trás uma filha com nove meses, que hoje também trabalha em Macau como empregada doméstica. A primeira paragem da sua jornada foi Hong Kong, para onde se mudou em 1990. Aí deu os primeiros passos como activista. Macau seria o novo destino, em 2004. “Em Hong Kong, o trabalho era bom, tinha um bom salário. Há 15 anos que trabalho com o mesmo patrão. Hoje vivo em casa dos meus patrões. Começo a trabalhar às sete da manhã, às vezes acabo às 22 ou 23 horas. Estou sozinha a fazer todo o trabalho.” Não luta por melhores condições para si, pois ganha mais do que a maioria das empregadas domésticas: sete mil patacas. Mas o seu caso espelha a irregularidade dos contratos de trabalho a que estas profissionais estão votadas. “Ganho sete mil patacas, mas o meu contrato diz 2.500. O meu patrão paga-me em gorjetas, como ele diz.” Não sabe porque os termos contratuais nunca foram alterados. “Ele deposita-me sete mil por mês na conta, e se tiver algum problema com os cálculos a DSAL vai verificar as transferências bancárias e não o contrato. Há pessoas que ganham apenas o que determina o contrato”, explicou. A organização não governamental que representa em Macau ficou conhecida em 2015 com as primeiras campanhas públicas. Ainda assim, só agora Benedicta Palcon começa a reconhecer-se como alguém que defende os direitos dos outros. “Não é apenas por mim que eu luto. Luto porque conheço muitas histórias de abusos e de empregadas que trabalham muitas horas. Comecei a ser activista em Hong Kong e ainda hoje não gosto de me intitular como tal. Mas tenho de admitir que sou uma verdadeira activista (risos).” Histórias de assédio Benedicta Palcon chegou a ajudar outras colegas de profissão que foram alvo de abuso. Recorda um em particular, em que uma empregada foi vítima de assédio sexual. O caso acabou arquivado pelas autoridades. “O patrão costumava espiá-la enquanto ela estava na casa-de-banho, chegou mesmo a pôr uma câmara de filmar num buraco escondido na casa-de-banho. Nessa altura, ela não tinha provas e aconselhei-a a conversar com ele no WhatsApp, porque as mensagens ficam gravadas. Finalmente, o homem admitiu que a tinha filmado secretamente e que não tinha visto bem as imagens. Obtivemos essa prova e levámos à polícia.” O homem em questão era irmão do patrão a quem a empregada limpava a casa como trabalho parcial, uma situação ilegal, mas comum em Macau. “O homem aproveitava os momentos em que a mulher saía de casa para se masturbar no quarto de porta aberta, enquanto a empregada trabalhava. O caso acabou por ser arquivado. O patrão deu-lhe tempo para arranjar um novo emprego, pagou-lhe mais um pouco e o bilhete de avião para as Filipinas”, recordou Benedicta Palcon. A porta-voz da ONG deu a cara por muitos movimentos de defesa dos direitos dos migrantes, e assegura que o seu trabalho não fica por aqui. “O meu patrão sabe o que faço. Quando fui entrevistada pela TDM, pedi permissão para isso e ele disse-me ‘não fales demais’ (Risos). Não tenho medo de perder o trabalho, porque há inúmeras coisas para fazer, mesmo que tenha de voltar para as Filipinas. Tenho muitos planos para o futuro.” Luzviminda Sabado – Quando o patrão era agressivo A secretária da Progressive Labor Union of Domestic Worker, natural de Davao, é das poucas trabalhadoras migrantes que nunca tiveram de trabalhar fora do país para enviar dinheiro para a família. Ainda assim, a ida para Hong Kong foi uma decisão pessoal que surgiu com naturalidade. “A minha melhor amiga estava em Hong Kong e ajudou-me. Já não tinha os meus pais, por isso podia trabalhar para mim própria. Tenho meios-irmãos e irmãs, se me pedissem e se tivesse dinheiro de parte, mandava-lhes. Mas precisava de me sustentar também e tinha de poupar. Durante anos não consegui poupar.” Luzviminda Sabado. Sofia Margarida Mota Em 2012 aderiu à ONG que representa em Macau porque ganhava abaixo do salário mínimo da região vizinha, três mil dólares de Hong Kong, quando o limite mínimo era 3.700. Só aí se tornou mais activa na luta pelos direitos dos migrantes. Nos quatro anos que passou em Hong Kong, a vida profissional de Luzviminda Sabado foi feita de idas e vindas, até que lhe calhou “em sorte” um patrão agressivo. “O terceiro empregador não era bom para mim e vi-me forçada a chamar a polícia (hesita). Ele exercia violência psicológica e falava de uma forma muito agressiva comigo. Fui também vítima de discriminação. Com a ajuda da ONG fui à polícia e consegui protecção.” Em Macau arranjou emprego através de uma agência, que lhe cobrou mais do que o ordenado, que é de quatro mil patacas. “Não ficaram com os meus documentos, mas tive de pagar cinco mil dólares de Hong Kong, em prestações, durante três meses.” Depois do encontro com o Governo, Luzviminda tem esperança de que o sistema mude. “Espero que possamos criar algum movimento, mas acho que é preciso tempo. Independentemente do que aconteça, e das reuniões que tivermos, é preciso paciência para que aconteça algo.” Jassy Santos – A detenção em Singapura Jassy Santos, também ligada à Progressive Labor Union of Domestic Worker, é uma lutadora por natureza. Nota-se-lhe no rosto, na forma como fala. Em 1996 decidiu emigrar para Singapura para sustentar o pai, doente, a filha pequena e a irmã que estava a estudar. Acabou presa depois de ter sido denunciada por realizar trabalhos a tempo parcial, algo que também é ilegal na Cidade-Estado. No centro de detenções, percebeu que tão depressa não sairia dali. “Deram-me cinco dias para sair, mas acabei detida num centro durante seis meses. Ganhava o equivalente a 4.600 patacas, valor que não era suficiente, e precisava trabalhar o dobro. No centro percebi que havia trabalhadores presos há muito tempo sem acusação. Decidi contactar a ONG, que me deu um telemóvel, um computador e uma câmara. Isto ajudou-me a reportar todos os casos que conheci lá dentro.” Jassy Santos. Sofia Margarida Mota Fez tudo sozinha, ligou para jornais, contactou o consulado-geral das Filipinas e outras ONG do seu país. Ao fim de seis meses, estava em liberdade. “O polícia disse-me que fui presa por ser uma activista e não por trabalhar a tempo parcial. Quando estava presa não podia contactar com ninguém de fora, nem sequer um advogado que, de qualquer das formas, não tinha. Tirei fotos lá dentro e liguei a todos que conhecia a dizer que precisava de ajuda.” Foi também em Singapura que conheceu Fish Ip, a sindicalista de Hong Kong que agora apoia o movimento de apoio às empregadas domésticas. No sul da China, cedo teve noção de que a luta estava longe de terminar. “Depois de quatro anos em Hong Kong, decidi vir para Macau e percebemos que os migrantes não estavam protegidos pela lei. Para onde quer que fossemos ouvíamos queixas sobre os salários baixos.” Em Macau, arranjou trabalho de forma legal numa agência de emprego, com a qual se viu obrigada a lutar pelo pagamento de cauções justas. “Disse-lhes que só pagaria se me dessem recibo. Perguntaram-me o que ia fazer com o recibo, e frisei ‘a lei diz que só podem cobrar 50 por cento do nosso salário, então porque me estão a pedir seis mil? Num dia podem ter um cliente que precisa de dez empregadas, então quanto vão ganhar?”, questionou. O braço-de-ferro compensou e acabou por pagar apenas o que está previsto na lei. Jassy Santos ganha cinco mil patacas, mas não vive com os patrões. As ajudas de alimentação e alojamento estão incluídas neste montante. Conhece casos de violência perpetrada contra empregadas domésticas, que ficam escondidos por medo e vergonha. Para ela, a reunião com a DSAL foi apenas o primeiro de muitos passos.
Hoje Macau ReportagemCicatrizes da lepra ditam vidas de isolamento na China Por João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]N[/dropcap]o canto de um cubículo com dez metros quadrados está um corpo em decomposição: repleto de pus, úlceras nos braços e pernas, dedos amputados, rosto desfigurado, sem nariz. Um cheiro pútrido repele os visitantes. Su Yaodong chegou há duas semanas à aldeia de leprosos do condado de Lianjiang, depois de dez anos a dormir nas ruas de Cantão, uma das mais prósperas cidades da China, a mais de 400 quilómetros dali. “O seu corpo estava em corrosão”, descreve Masq, uma australiana que há vários anos promove acções de caridade na província de Guangdong, sul da China. “Nós conseguimos convencê-lo a vir para aqui, e estamos felizes, porque ele agora tem um tecto sobre a cabeça”, diz à agência Lusa. Situada entre terrenos baldios e uma fábrica de cimento, no litoral de Guangdong, perto da ilha tropical de Hainan, esta aldeia acolhe mais de 60 leprosos – a maioria idosos, expulsos das suas terras natais e ali radicados há várias décadas. Uma das doenças mais antigas do mundo, a lepra ataca a pele e os nervos e cria lesões irreversíveis, e é transmitida pelo contacto próximo com infectados, particularmente entre quem vive em condições de pobreza extrema. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em todo o mundo haviam 214.783 casos de lepra, em 2016, entre os quais mais de 12 mil considerados graves. A China não consta da lista de países onde a doença assume uma “dimensão preocupante” e, segundo a Associação de Leprosos da China, quase 480.000 pacientes foram tratados nos últimos cinquenta anos, enquanto cerca de 6.000 continuam infectados. No entanto, muitos são ostracizados devido às lesões corporais e acabam por permanecer em comunidades isoladas mesmo depois de curados. Só em Guangdong existem “pelo menos dez” destas aldeias, instaladas “longe das cidades ou algures nas montanhas” e administradas pelas autoridades locais, revela Masq. As instalações em Lianjiang foram recentemente remodeladas: para além dos espaços comuns – enfermaria, farmácia ou uma sala de convívio – cada unidade individual dispõe de uma cozinha, casa de banho e quarto. Os residentes recebem, mensalmente, 500 yuan do governo local e um médico desloca-se à aldeia quando telefonam. “De resto, estamos por nossa conta”, dizem. Designado Leprosy Love, o projecto lançado por Masq combate o isolamento destas comunidades: para além de doarem alimentos, roupas e outros bens, os voluntários organizam atividades lúdicas. “Não se trata apenas de dar um saco de arroz e uns pacotes de leite”, explica a australiana, “mas antes proporcionar um momento especial: algo para estimarem e recordarem”. A criação de aldeias isoladas para leprosos remonta aos primeiros anos após a fundação da República Popular da China, em 1949, com o lançamento de programas de saúde pública pelo novo governo comunista. No final de 2011, estas comunidades, espalhadas pelo país, contavam com uma população total de 20.000 habitantes, segundo dados oficiais. Este número deverá reduzir-se, ao longo dos próximos anos, à medidas que os residentes vão morrendo e a doença é erradicada, esvaziando estas aldeias. Lan Ying, que vive em Lianjiang há mais de trinta anos, queixa-se do barulho e poluição gerados pela fábrica de cimento ali aberta recentemente. “Gostava de sair daqui”, diz, “mas já não me resta família”.
Hoje Macau ReportagemEm Hong Kong, homens e mulheres não são iguais para construir casa [dropcap]G[/dropcap]raças a uma ‘herança’ da era colonial britânica, William Liu tem o direito, simplesmente por ser homem, de construir uma casa na sua aldeia no norte de Hong Kong, mas rejeita esse direito adquirido em nome da igualdade. O jovem de 22 anos vive nos “Novos Territórios” cedidos a Londres por Pequim em 1898, num contrato de 99 anos. De acordo com uma política colonial ainda em vigor, qualquer homem que possa identificar as suas origens até o final do século XIX pode construir uma casa de três andares na sua terra, sem pagar os impostos normalmente devidos, ou adquirir um terreno para construção a preço reduzido junto do Governo daquele território. Numa mega metrópole onde o custo do metro quadrado está entre os mais caros do mundo, esse direito exclusivamente masculino representa um legado dificilmente negligenciável. Contudo, os defensores da igualdade de género estão a desafiar esse direito em nome da luta contra a discriminação contra as mulheres e contra os milhões de Hong Kong excluídos do mercado imobiliário. William Liu, aldeão e democrata, concorda com aqueles recorreram aos tribunais: “É uma política injusta e não me vou servir dela”, disse ele à agência de notícias France-Presse (AFP). O jovem protesta contra a sua natureza discriminatória, mas também contra o facto de promotores imobiliários, com um caderno de endereços completo, conseguirem servir-se dessa política para construir. A chamada política de “pequenas casas” foi “contornada para benefício de um pequeno grupo de pessoas que trabalham com promotores [imobiliários] para ganhar dinheiro”, acusa. De acordo com o centro de pesquisa especializado Liber Research Community, uma em cada quatro casas construídas sob essa política nos “Novos Territórios” foi desenvolvida por promotores que firmaram acordos secretos com os moradores para ficarem com os seus direitos à terra. As autoridades estão a fechar os olhos, sustenta esta entidade. A chamada política “direitos dos ding”, palavra cantonesa para descendentes do sexo masculino, foi introduzida em 1972 pelos britânicos como uma medida provisória para melhorar as condições de vida dos agricultores. E manteve-se após a entrega de Hong Kong à China em 1997. Estes direitos são ferozmente defendidos pelo Heung Yee Kuk, um organismo que domina a vida rural há décadas e vota sempre a favor de Pequim no complexo processo eleitoral de escolha do chefe do Governo de Hong Kong. Hong Kong tem uma carência gritante de habitação. Para melhorar a situação, o Governo quer investir pelo menos 500 mil milhões de dólares de Hong Kong para construir ilhas artificiais, para grande desgosto daqueles que denunciam estar-se perante um projeto caro e perigoso para o meio ambiente. Para Chan Kim-ching, fundador do Liber Research Community, o Governo precisa de rever todo o sistema de alocação de terra nos “Novos Territórios”. Em particular, desbloquear terras regidas neste momento de acordo com os “direitos dos ding”. “Seria melhor para o meio ambiente, reduziria um pouco as desigualdades e responderia à procura de habitação, tudo ao mesmo tempo”, defende. Tanto o Governo como o presidente do Heung Yee Kuk, Kenneth Lau, recusaram-se a comentar este estatuto, alegando que estão a decorrer processos judiciais. Este assunto tem sido desde há muito tempo um ponto de discórdia entre famílias de ex-moradores e outros habitantes de Hong Kong. Estas famílias, que também gozam de outros direitos especiais, especialmente no enterro, são muitas vezes consideradas como injustamente privilegiadas. No entanto, os moradores reclamam que têm que esperar anos pelas licenças de construção, mesmo quando são donos da terra. Yelena Yung explica que foi discriminada como mulher pelos “direitos dos ding”, mas, apesar disso, é favorável a este estatuto porque os seus dois filhos foram beneficiados, tendo obtido a licença de construção depois de mais de dez anos de espera. “Não fale comigo sobre igualdade de género quando eles nem permitem que rapazes construam casas”, disse à AFP. “Já é muito difícil para eles obterem licenças de construção, quanto mais as raparigas. Eles têm que resolver esse problema primeiro”, defende. Stanley Ho, um aldeão hostil a esse estatuto, cresceu numa aldeia de algumas dezenas de habitantes no coração de um parque natural. Ele diz que viu os campos darem lugar a casas, árvores velhas a serem cortadas para se construírem estradas ilegais para facilitar a construção. Ho pede ao Governo que trabalhe com Heung Yee Kuk, ambientalistas e representantes da comunidade rural para se abolir “esta política injusta”, de forma a melhorar as condições de vida dos aldeões. “A nossa geração deve ser ouvida, devemos controlar o nosso espaço”, diz. “Caso contrário, serão os promotores a fazê-lo”, conclui.
Hoje Macau ReportagemDigressão do Sporting em 1978 abriu porta “grande” para a China Por João Pimenta, da agência Lusa [dropcap]V[/dropcap]alter Onofre, guarda-redes na equipa do Sporting Clube de Portugal que há quarenta anos fez uma digressão pela China, que aproximou dois países então sem relações diplomáticas, recorda sentir-se em Pequim como um “animal no zoológico”. “Todos olhavam para nós: trazíamos roupas coloridas, cada um tinha o seu estilo, enquanto [os chineses] pareciam todos iguais”, descreve assim, o ex-futebolista, Pequim no verão de 1978. Portugal e China não tinham ainda relações diplomáticas, mas quatro anos antes, a Revolução dos Cravos tinha derrubado o regime fascista do Estado Novo, tornando inevitável a aproximação ao país asiático, que se começava então a libertar da ortodoxia maoísta. “Nós tínhamos acabado de sair do fascismo, e viemos para um país que era do mais puro socialismo que existia. O mais igualitário que havia”, recorda Onofre à agência Lusa. “Roupa, cortes de cabelo, todos de bicicleta; era igual para toda a gente: homens ou mulheres”, realça. A Revolução Cultural (1966-76), radical campanha política de massas lançada pelo fundador da China comunista, Mao Zedong, estava ainda fresca. Durante aquela década de caos, dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas, sob a acusação de serem “revisionistas”, “reaccionárias” ou “inimigos de classe”, forçando a sociedade chinesa a uma homogeneidade quase absoluta. A digressão do SCP foi promovida pela Associação Democrática de Amizade Portugal-China, uma organização criada pelo Partido Comunista de Portugal (Marxista-Leninista), o único grupo político português reconhecido então pelo Governo chinês. Um alto funcionário chinês comparou então o Sporting com a equipa de pingue-pongue americana que foi a Pequim em 1971, abrindo caminho à histórica viagem do presidente Richard Nixon à China, em Fevereiro do ano seguinte. “Os americanos, que jogaram com uma bola pequena, abriram uma pequena porta. Os portugueses jogaram com uma grande bola e abriram uma porta grande”, disse o presidente da Associação Chinesa de Amizade com os Países Estrangeiros, Wang Bingnan. O Sporting, que acabara de ganhar a Taça de Portugal, frente ao FC Porto, venceu a selecção chinesa por 2-0 e nos dois outros jogos que disputou na China, ganhou um e empatou outro. O futebol chinês era ainda uma modalidade amadora e a seleção do país, que não estava sequer inscrita na FIFA, era composta sobretudo por operários. “Primeiro a Amizade, Depois a Competição”, era, aliás, o lema que regia o desporto na China. Ainda assim, “os jogadores chineses corriam sempre atrás da bola” e “davam trabalho exactamente por isso”, descreve Onofre, que recorda a viagem, desde Portugal, como uma “aventura”. “Saímos ao meio-dia de domingo de Lisboa, chegamos aqui na terça-feira: foram três ou quatro paragens. Na altura tivemos que contornar o Vietname [a guerra tinha acabado poucos anos antes], não podíamos sobrevoar”, revela. O antigo jogador lembra-se de visitar a Muralha da China e o Palácio de Verão, dois ex-libris da China, mas o que mais o impressionou foi a paisagem humana. “No final dos turnos, na avenida junto à praça Tiananmen, eram milhões de pessoas a sair das fábricas de bicicleta. E havia um outro carro que tinha que se desviar, porque eles iam direitos, naquela tranquilidade deles”, conta. A entrevista à Lusa decorreu em Pequim, para onde Onofre regressou, no ano passado, agora como treinador de futebol numa escola pública da capital chinesa. A pobre e isolada China que o português conheceu no verão de 1978 converteu-se, entretanto, na segunda maior economia do mundo, alargando a classe média em centenas de milhões de pessoas, num ritmo sem paralelo na História moderna. A paisagem urbana acompanhou as vertiginosas transformações: os típicos becos e bairros operários da capital chinesa foram arrasados para dar lugar a arranha-céus envidraçados e blocos de apartamentos. “Desse tempo, reconheço apenas a praça Tiananmen: à volta, tudo é diferente. Olho e penso: estou noutro mundo”, conta Valter Onofre. “Eu sei que estive aqui”, acrescenta, “mas é difícil de acreditar”.