25 de Abril | O dia em que o MFA reuniu com a população no Colégio Santa Rosa de Lima

Uma gravação áudio inédita, à qual o HM teve acesso, recorda a sessão de esclarecimento que o Movimento das Forças Armadas realizou no Colégio Santa Rosa de Lima em Junho de 1974, meses depois da Revolução dos Cravos. O papel político da associação Centro Democrático de Macau, a continuação da figura do Governador e o estabelecimento das relações diplomáticas com a China eram as questões que mais preocupavam após a queda do Estado Novo

 

[dropcap]E[/dropcap]m Junho de 1974, dois oficiais do Movimento das Forças Armadas (MFA), o já falecido major Rebelo Gonçalves e o general Garcia Leandro, que mais tarde viria a ser nomeado Governador de Macau, deslocaram-se ao território com o objectivo de explicar à população os propósitos do 25 de Abril e qual futuro reservado a Macau depois da queda do Estado Novo.

O encontro teve lugar no Colégio Santa Rosa de Lima e dele ficou apenas um registo áudio, gravado ainda em cassete, ao qual o HM teve acesso. Confrontado com a gravação inédita, descoberta num espaço público em Lisboa de troca de livros, o general Garcia Leandro mostrou-se surpreendido. “Fiquei satisfeito por isso existir e por passados estes anos todos poder ser mostrado”, confessou ao HM. Da reunião não restou nenhum documento oficial, apenas “dois relatórios curtos sobre a situação em Macau e Timor” lavrados por Garcia Leandro. Estes documentos viriam, mais tarde, a ser entregues em Lisboa.

Graças ao apoio de Garcia Leandro conseguimos desvendar as vozes encarregues de explicar a queda do regime do Estado Novo.

Depois dos aplausos iniciais, coube ao major Rebelo Gonçalves contar aos presentes o que tinha acontecido em Lisboa na madrugada de 24 para 25 de Abril de 1974. Na altura, os jornais eram poucos e as notícias chegavam a conta-gotas. “Dedico estas palmas aos meus camaradas que, na madrugada do 25 de Abril, conseguiram derrubar o Governo. De forma nenhuma posso considerar que sejam para nós”, começou por dizer, argumentando que “as Forças Armadas têm de ser uma arma imparcial”. Logo à partida Rebelo Gonçalves deixou bem claro que se mantinha a figura do Governador (até então era Nobre de Carvalho que ocupava o cargo, e que viria a ser substituído por Garcia Leandro em Setembro de 1974).

“O senhor Governador de Macau tem o aval das Forças Armadas, do Governo provisório e da Junta de Salvação Nacional. Não admito qualquer discussão sobre este aspecto, e enquanto este aval se mantiver, o Governador de Macau é-o de cabeça erguida.” Sobre este ponto, Garcia Leandro afirma, 45 anos depois, que “não há ali posições das quais nos possamos arrepender”.

“É natural que as pessoas tivessem dúvidas sobre o futuro. Uma coisa era a Revolução, outra era o futuro, mas o futuro foi resolvido por mim, quando criámos tudo para Macau na altura em que fui nomeado Governador”, recorda.

À época, era fundamental colocar um ponto final na Lei Orgânica do Ultramar e criar para Macau um novo diploma de ordem constitucional. “Tudo aquilo acabou e foi então que se fez o Estatuto Orgânico de Macau.” Este iria vigorar no território até 20 de Dezembro de 1999, data em que o território passou oficialmente para a China e se implementou a Lei Básica da RAEM.

Durante a reunião de Junho de 1974, Garcia Leandro recordou as dificuldades com que se deparou Nobre de Carvalho no território, nomeadamente durante o período quente da crise do “1-2-3”. “Todos sabemos o que tem sido a vida do Governador desde que aqui desembarcou, em Novembro de 1966, e como tem sido difícil administrar esta província. Conhecemos a sua competência profissional e moral, o seu espírito de sacrifício e pergunto muito comovido quem está aqui em Macau que possa criticar a figura do senhor governador? Há alguém que possa criticar? Julgo que não”, adiantou.

“Os oportunistas” e o CDM

Depois de assegurar a continuidade da figura do Governador como autoridade máxima do poder político no território, Rebelo Gonçalves alertou os presentes para o facto de “ser preciso estarmos todos acautelados para os oportunistas”.

“É muito fácil ser-se democrata no dia 26 de Abril, era extraordinariamente difícil sê-lo antes do dia 25, ou no dia 24. A pessoa que era de uma determinada cor respeito-a se ela se mantiver da mesma cor. Se um indivíduo que é de extrema-direita se mantiver da extrema-direita, respeito-o muito mais do que aquele indivíduo que é da extrema-direita e no outro dia é da extrema-esquerda”, frisou.

Depressa a sessão de esclarecimento se focou no estabelecimento de uma associação de cariz político, que surgiu a 30 de Abril de 1974, chamada Centro Democrático de Macau (CDM), e que era conotada com a esquerda comunista. No mesmo ano foi também fundada a Associação da Defesa dos Interesses dos Macaenses (ADIM), conotada mais com a ala conservadora, que defendia a continuidade do Governador.

“O CDM faz uma aflição enorme a toda a gente”, começou por dizer. “O CDM tem, neste momento, a aceitação de todos os delegados da Junta de Salvação Nacional, como tem do senhor Governador. Nós temos é de distinguir, dentro do CDM, as pessoas que, na realidade, são democratas sob todos os aspectos, as válidas e aquelas que não interessam. Compete ao CDM separar o trigo do joio e não se deixar ligar a determinadas pessoas que não oferecem as garantias necessárias.”

Rebelo Gonçalves alertava também para o facto de o “problema de Macau não ser necessariamente igual ao de Angola, Guiné, Moçambique ou Timor”. “Justifica-se uma associação do centro democrático que, passo a passo, vai procurando arranjar elementos que os ajudem, ajudando também outros elementos a se consciencializar e educando outras massas que estão por educar politicamente.”

Administração “fraca e corrupta”

Garcia Leandro explicou aos presentes que o Governador Nobre de Carvalho aceitava a existência do CDM, apesar de recair sobre alguns membros a acusação de terem mudado de facção política após a Revolução. “Não se aceitam indivíduos corruptos que, depois do 25 de Abril, aparecem extraordinariamente curvos e democratas. A posição do senhor Governador em relação ao CDM é absolutamente definida: aceita-os. É preciso que não se confundam essas críticas com as críticas que possam vir do CDM, pois as suas intenções e declaração de ideias estão definidas.”

Aliás, o próprio Nobre Carvalho disse ao seu futuro sucessor que “estava à disposição do CDM” para diálogos conjuntos. “Com certeza que o CDM irá fazer críticas, é óbvio. A nossa Administração é fraca, é corrupta, está cheia de falhas, porque temos tanto medo de críticas? Não devemos atacar pessoas que no meio de tantas dificuldades agiram do modo que melhor puderam”, explicou Garcia Leandro ao público.

Relações com a China

Garcia Leandro acabaria por introduzir o tópico do estabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a China comunista, algo que aconteceria em 1979. “O Governo português, dentro de uma base de abertura a todos os países, irá travar um conjunto de conversações com a China para levar ao estabelecimento das relações diplomáticas”, disse o ainda oficial do MFA, referindo a importância que tal teria para o futuro de Macau. “Não tenho dúvidas de que, depois dessas relações diplomáticas encontrarem efectividade, o futuro de Macau será muito mais aberto, com horizontes mais largos.”

Garcia Leandro recordou também perante a plateia que “a China popular definiu a sua posição face a Macau, e não temos dúvidas de que, se estamos em Macau, é porque a China nos aceita.

Não custa nada reconhecer publicamente isto. Não temos dúvidas de que somos minoritários e que estamos aqui porque interessa a ambos. A partir do momento em que um Governo que não aceitava as orientações comunistas é substituído por outro que está aberto a todas as orientações, não tenho dúvidas de que o futuro de Macau será muito mais risonho depois destas relações diplomáticas.”

A implantação de um regime comunista em Portugal foi também outra das questões levantadas na sessão de esclarecimento. “É do conhecimento geral que o MFA pretende que seja implantado e cumprido aquilo a que nós chamamos de democracia. Dentro desses princípios, será dada liberdade a todos os partidos, incluindo a extrema-esquerda e o comunismo? Quanto ao Partido Comunista Português tem havido apreensão por parte de muitas pessoas”, opinou um membro não identificado do público.

Neste aspecto, o major Rebelo Gonçalves fez questão de sublinhar que durante as eleições legislativas de 1976 todas as facções políticas seriam tidas em conta. “Discordo das suas ideias, porque o senhor fez a definição total do que não é uma democracia. O perigo que existe para todos os partidos. Se o país quiser o PCP democraticamente eleito teremos de o admitir, não há outra hipótese”, esclareceu o militar.

Chineses queriam “estabilidade”

A passagem do MFA por Macau incluiu não apenas sessões de esclarecimento com a população, mas também reuniões com membros do próprio CDM e associações representativas da comunidade chinesa, tal como a Associação Comercial de Macau, a Associação Industrial de Macau e entidades ligadas a empresas de exportação, construtores civis. Foram também ouvidos os membros das Forças Armadas em serviço no território, professores de liceu e funcionários públicos.

Garcia Leandro recorda que a comunidade chinesa estava, sobretudo, interessada na estabilidade e que os propósitos da Revolução dos Cravos eram tidos como algo secundário. “Os chineses estavam um bocadinho à parte, mas preocupados com o futuro. O que eles queriam era estabilidade, saber quem mandava para manterem os seus negócios com tranquilidade.”

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