Relicário de sonhos I

[dropcap]H[/dropcap]á alguns anos a esta parte, enquanto lhe contava um sonho, dos muitos que tenho, ou melhor, dos muitos que recordo, diagnosticou ou melhor, perguntou-me o Rui Zink se eu sabia que era grafomaníaca. Eu não sabia. Nem sabia o que isso era. Mas o Priberam explicou que era uma necessidade patológica de escrever ou de fazer registos gráficos, o hábito de escrever ou de registar graficamente muitas coisas. Poderia dizer que nunca mais fui a mesma mas mentir é feio. Continuei a sonhar e a registar os meus sonhos, e até os sonhos que amigos tiveram comigo, como o faço com os diálogos e peripécias que me acontecem, apenas agora exibindo esta condição incurável como uma curiosidade exótica. Não é muito melhor do que ter um transtorno obsessivo-compulsivo? Eu acho que sim. Mas na verdade, não poderia isto, também, ser considerado como tal? Adiante. A poucos dias do seu aniversário, deixo aqui uma pequena colecção, sem grande organização, análise ou interpretação, clínica ou mística, a este querido amigo e antigo professor meu (que não tem memória dos seus e estará, provavelmente, grato por isso) de alguns sonhos dos últimos anos. Há pessoas mesmo estranhas, não há?

2019

Sonhei que andava a mudar plantas mas, apesar de ter bastante à disposição, constantemente me enganava e colocava cacau em pó em vez de terra nos vasos.

2018

Sonhei que Jesus Cristo me visitava. Era um sonho agradável. Dizia-me o dia da minha morte, mas não do mês ou do ano. Em seguida, tive um sonho muito violento, mas acalmava-me dizendo: não é hoje que eu vou morrer.

2017

A noite passada sonhei que me ofereciam um trabalho de fim de semana como domadora/treinadora de elefantes e a formação consistia em passar tempo com o elefante mas sobretudo via lá no horário yoga yoga yoga yoga.

2016

Sonhei com sonhos.

Esta noite sonhei que o meu romance estava terminado.

Sonhei que ia passar o verão a Hong Kong. Mas antes estava nas traseiras do prédio dos meus pais a andar de bicicleta. E tinha um saco de viagem que não queria perder, então pensei, vou andar de bicicleta à volta do saco. Nas notícias falavam de um fugitivo.

Outra noite sonhei que uma mãe e seu filho queriam ir para minha casa; tinham chaves e tudo, convencidos de que lhes pertencia. Recebia ainda um grupo de Masai em casa, e a minha tia. Discutimos e eu estava preocupada porque não sabia como acomodar tantas visitas inesperadas. E tinha de pensar nas minhas colegas de casa. Só que a minha casa não era a actual. Era a casa de uma ex-amiga minha.

Sonhei que estava a vir de onde costumo lanchar às vezes no trabalho mas agora de repente, a meio do caminho, estava grávida, já em estado avançado, e conseguia ver o meu bebé através da barriga e da roupa, como se fosse transparente de algum modo. Sorria para mim.

2015

(Depois de ser operada ao estômago) Sonhei que me via a comer comida normal antes de tempo e ficava com medo de morrer. Tentava avisar-me a mim mesma para parar, mas era como se estivesse a pairar no tecto e não me ouvia. Uma visão do horror. Cheia de medo que me rebentasse o estômago.

Sonhei que tinha cancro. Era um sonho muito atribulado. Eu sabia que tinha porque os meus médicos queriam reunir-se comigo e um deles deixou a noiva no altar à espera para ir à reunião.

Por algum motivo tinham de me amputar as duas pernas. Eu ia lá para a o fazerem, e quando a médica começava a preparar tudo eu dizia que não queria e que não conseguia lidar com aquilo. E percebia que também não tinha dito a ninguém, porque me imaginava a aparecer em casa dos meus pais, era o dia do aniversário do meu pai,, e a cara da minha mãe ao ver-me com próteses.

Sonhei que havia uma pessoas que queriam encomendar rissóis e croquetes à minha mãe. Mas era só uma desculpa para nos fazerem mal. A minha mãe não estava em casa e eu e mais pessoas (?) fazíamos de tudo para afastá-las. Só sei que, quando finalmente mandei mensagem à minha mãe a avisar, de repente a vi a caminho, mas estava careca. Entretanto um miúdo e uma miúda que eu sabia fazerem parte do tal grupo vieram ter comigo, agora sim só comigo, e conversámos muito mas eu continuava sem querer confiar neles. Que sonho parvo. A parte dos miúdos, contudo, era pesada, intensa. Não me lembro da conversa, apenas da sensação. Eventualmente a minha mãe chegava a casa. Não me lembro de mais nada.

Sonhei que a minha mãe nunca mais se levantava e o meu pai queria dar-lhe umas prendas. Ele estava sentado à mesa, cabisbaixo. Havia coisas para ela mas também havia um helicóptero dourado, enorme. Ele dava uma boneca que andava e falava à minha irmã. No sonho eu via a minha irmã no escuro, sentada na cama, com a boneca gigante ao lado, do tamanho dela. Apesar de o helicóptero estar lá e ser parecido com um que tive, eu percebia que nada daquilo era para mim. E então ficava muito magoada e ia embora para a Finlândia durante três meses, que passaram em segundos, e depois voltava para dizer que me ia embora novamente por mais tempo e usava um mestrado como desculpa.

13 Jun 2019

Trapezista temporária

O MEU CORPO
Este é o meu corpo,
mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.
Gisela Casimiro in Erosão (Urutau, 2018)

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando escrevi este poema, O meu corpo, estava muito longe de imaginar que um dia estaria em palco, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, pendurada numa barra, qual Cristo crucificado. Este poema vem de longe, de um lugar de memória permanente.

Agora que o espectáculo terminou posso, aos poucos, começar a descer do trapézio e a olhá-lo, como fazia em palco mas, agora, sem deixar de fazer a inevitável analogia ao meu percurso de vida. Abril marca que foi há quatro anos que me submeti a uma cirurgia bariátrica, um sleeve gástrico, em que nos retiram 80% do estômago, que depois volta a crescer mas nunca a retomar o seu tamanho original. Apesar de tornar-se mais sensível, também passa do modo avestruz para algo mais evoluído e inteligente: tudo o que não pertence ali, não fica muito tempo. Fossem os nossos cérebros e corações tão capazes de reagir com a mesma rapidez e parcialidade. Talvez seja uma questão de sobrevivência, talvez o estômago seja mais difícil de enganar ou mais eficiente em matéria de autoprotecção. Talvez o amor-próprio seja um super poder que é despoletado por situações extremas. Outro poema meu, 2015, confessa: “O que perdi em estômago, ganhei em coração.” Que é como quem diz, no caminho para voltar a reconhecer-me, ou talvez para conhecer-me de uma vez por todas, aprendi a respeitar o outro e a colocar-me no lugar dele, e apenas posso esperar que tantas provações me tenham tornado um grama melhor que seja enquanto pessoa.

Há a versão de Hamburgo, em que os meus papéis são desempenhados por uma moça robusta e loira. Como ela, levo o cálice para o palco. Como ela, carrego uma bandeira branca. Faço piadas com outra colega, agora uma nova amiga, cabelo escuro e pele alva, cuja antecessora era, também, loira. Com ela partilho o trapézio, momento em que a cor invade o palco por momentos, pois praticamente tudo é branco neste cenário. Não pergunto a quem me escolheu porque é que o fez, mas sinto essa graça e esse peso, mais do que o meu, a comover-me. Há muitos contrastes, uma capa vermelha e uma azul. Uma criança-esqueleto e um autocarro que invade o palco em altura de terrível e lamentável tragédia na Madeira e da agora menos relevante, face a isso, falta de combustível. Há as línguas portuguesa, italiana, francesa, alemã e há o silêncio e a dedicatória da estreia a Notre Dame, onde infelizmente nunca fui. Há um entendimento, harmonia e caos, orquestra e coro, técnicos e produtores. Há uma árvore, já destinada ao abate, e os seus ramos cortados no momento. Há quem lhe leve flores, à árvore, num dos mais bonitos quadros vivos que já vi. As folhas atenuam os cheiros dos químicos usados neste laboratório improvisado, pois que nada foi deixado ao acaso, desde o amoníaco à electrólise. Há uma pedra que se racha, e que outro dia ficou com um formato de coração partido. Há aqui tanto que me comove que anda ali estou, incapaz de falar noutro tempo que não o presente, ou de ouvir outra música que não a que me tem acompanhado nos últimos meses mas sobretudo nas últimas semanas. Há uma obra inspirada na religião que é a minha, e que é imperfeita como eu, mas da qual não consigo desvincular-me, por acreditar demasiado em algo que é como eu, e maior que eu, tal como eu também sou capaz de ser, sobretudo quando me faço mais e mais pequena e me lembro de que servir é o mais importante. Contar histórias seria inútil se não servisse ninguém. Uma religião é obsoleta se não se alicerçar no amor, e o amor não tem fronteiras, ou passa a ser outra coisa.

Nos corredores, nos bastidores, cronometra-se o tempo que cada um resiste e fazem-se ajustes, enquanto se abusa do pó de magnésio nas mãos, para horror da produção, e se observa os colegas, um de cada vez, alguns dedicados inteiramente a este momento e outros com mais funções. Mas quase toda a gente gostaria de fazer também esta parte. Há quem venha precavido com ligaduras ou pensos, há quem descaia a cabeça para a esquerda e quem o faça para a direita.

Há homens e mulheres, há outra criança. A mim, observam e parabenizam muitas vezes: “És quem aguenta mais tempo”, ou “Tens um ar tão natural”, ou “A mulher do trapézio”. Rio e respondo que a minha vida me preparou para este momento; que não sei como isto aconteceu, e é verdade; que a minha hérnia inguinal, operada em 2017, e que ultimamente tem voltado a chatear-me, não acha muita graça. No dia da estreia, também o meu estômago não parece querer colaborar, e passo horas agoniada. Há quem vá correr uma ou duas vezes por dia durante os ensaios mas que não consiga deixar de pensar em bolos, mesmo se traz uma caixa gigante com cenouras cruas para ir petiscando. Há quem se conheça pela primeira vez e quem já se tenha cruzado neste e noutros palcos. Respirações conscientes e profundas, yoga aproveitando que existe um tapete de luta no cenário, alongamentos e uma panóplia de pequenos exercícios e rituais de preparação. Há ainda quem leia ou durma e quem não consiga estar calado ou afastar-se do telemóvel por muito tempo, ou de um cigarro. No Capítulo XVI, Crucificação, podemos ler: “O peso do corpo dos condenados à crucificação provocava a morte por asfixia. (…) O condenado mantinha-se plenamente consciente até ao momento da morte.” A Paixão segundo São Mateus, de Bach, dirigida por Romeo Castellucci, inclui, ainda, no libreto, o peso, nome, idade e altura dos figurantes a quem foi pedido que suportassem o peso do seu corpo o máximo de tempo que conseguissem. Nenhum de nós, figurantes, fala em palco, não fosse esta uma ópera, a primeira a que assisti na vida, e da qual tive ainda a honra de fazer parte. Falam os nossos gestos, os nossos olhares e as nossas pálpebras fechadas. Falam os braços que tremem por vezes ou as mãos que ajustamos. Falam o baloiçar dos nossos corpos suspensos, e a posição das nossas pernas. Falam os nossos pensamentos, ou o que quer que nos ajude a permanecer por cá. Há quem deteste que lhe perguntem a idade. Eu detesto que me perguntem ou tentem adivinhar o peso, mesmo se na verdade me dão menos peso (e idade, vá, afinal sou negra) do que o que tenho. Eu já tive orgulho do meu peso e já tive vergonha do meu peso. Mas agora sei que consigo suportá-lo, seja ele qual for, e até vê-lo exposto assim, impresso: os 70 kg que tinha e que me ficavam tão bem mas ocultavam o peso equivalente a uma pessoa em escuridão, peso esse que foi passando tão para fora de mim que deixei de poder ignorá-lo, ao chegar aos 133 kg certa vez.

Há o Joel, que sobreviveu a uma hipotermia no mar, perdido que esteve durante cinco horas. Tinha ido surfar. Há o Carlos, que se viu de pernas presas debaixo de um tractor; consciente durante todo o tempo do acidente, que forçou a amputação de ambas, agora usa próteses. Há a entrada leve e cómica do Joel nos agradecimentos e o sorriso e as brincadeiras constantes do Carlos. O nosso peso, interior ou exterior, parece muito pouco, perante a coragem e a alegria de ambos. O amor à vida de ambos, penso, numa semana em que ouvi de alguém próximo que queria muito morrer.

Diz o libreto: 78kg – Gisela Casimiro, 34 anos, 172 cm. Trapezista temporária no palco, permanente fora dele. Ainda com muitos pesos para deixar cair. Ainda tendo de me lembrar de respirar, ao fim de todos estes anos. Olá, eu sou a Gisela. Muito gosto em conhecer-vos. Talvez possamos conversar quando eu recuperar os sentidos, o equilíbrio e a voz.

6 Jun 2019

“Dá-lhe jindungo!”

[dropcap]C[/dropcap]ais do Sodré e as filas sempre longas para tudo. Entro, valido o novo e mágico passe social, o tal que, dizem, dá acesso a mais “leite, tabaco e drogas”. Deve ser o “Batido de atum para toda a gente!” deste século. Carris, eléctrico 15. Outro dia vinha, na sua versão moderna, silenciosa e bem menos charmosa, cheio de maratonistas femininas, t-shirt rosa a publicitar o evento. Era domingo e nem uma noiva de ares ucranianos faltou, bonita e sorridente, vestido branco em cascata. Não a esquecerei tão cedo, como não esqueço a velhota que, certa vez, no comboio, me falou da sua carreira de actriz, e mostrou fotos analógicas que, desconfio, trazia sempre consigo, como se fossem os seus verdadeiros documentos de identificação. Nelas, encontrei Gérard Depardieu composto, mais magro; foi no tempo em que ainda não trocara a França pela Rússia nem a nossa admiração pelos seus escândalos.

Este à minha beira é angolano, como o sotaque denuncia. Terá uns sessenta anos de pele clara e pouco tocada pelo tempo. Rapidamente lhe sinto o bafo a álcool, mas não me levanto, o carro vai cheio. Da última vez, num autocarro, fi-lo. Depois, observei a passageira seguinte enfiar tanto quanto pôde do rosto na gola da camisola (o inverno protege os audazes), ficando assim curvada o resto da viagem. Seria bom que tivéssemos como comunicar telepaticamente, nós passageiros incautos, numa espécie de Shining: atenção que esse esteve a beber desde manhã; olha que essa ainda não tomou banho esta semana. O verão, por sua vez, expõe todos. Ele vai proferindo pequenos insultos contra o que entende ser canalha irrompendo eléctrico adentro, e pergunto-me se é por desinteresse ou pena que nenhum dos visados o agride ou lhe responde. Mais rápido, já está, é passar, temos de ir embora!

Ele olha-me, pausa, as mãos hesitam, cheias de histórias. Fala. Desculpa, eu não reparei que estavas aqui. Lá se foi a minha boa sorte, olá radar de estranhos. Então agora podemos conversar.

És uma mulher bonita e interessante. Como é que vocês escrevem tão rápido? Eu não consigo… Isso. Dá-lhe jindungo, dá no jindungo! Saberá ele que voltei agora de Maputo? Grita, rosna, ri, ressona. Do álcool ou da apneia, quem sabe. Certo é que lhe vemos o pescoço tombar para trás a cada cinco minutos. Num momento está aqui e é a única voz que se ouve, no seguinte… bem, é o único ressonar que se ouve. Acorda ao fim de segundos, continuando o discurso de onde o interrompeu, como se tivéssemos sido nós e não ele a fechar os olhos. A mulher à minha frente continua a lançar-me olhares e sorrisos solidários. Eu tenho cada vez mais dificuldade em não rir, e evito olhar muito para ele.

Olha aquele a piscar-te o olho, estás a ver? Ele é paquistanês, tem um restaurante ali em baixo. Eu conheço-o. Está cheio de dinheiro. Ele é um bom partido para ti (eis um pretendente que também é casamenteiro). Dinheiro eu não tenho muito, eu sou assim-assim. Humm. Esse rapaz, esse tem qualquer coisa na mochila. Cuidado. Abriu, fechou… Este (o 15) agora só pára em Alcântara. Se eu fosse esse rapaz (o motorista) só parava em Algés. Ressona, ronca bem alto, acordado apenas pelos solavancos do eléctrico, em cujo percurso encontro simetrias com o seu discurso. Se ele deixasse aqui a mochila com a bomba… Olha eu então é que estava lixado, que era o primeiro a receber… a bomba. Bom. Ba. Bom-ba. Booomba. A palavra brinca-lhe perigosamente na fala. Eu, ele, espera aí… eu, ele, aquele, tu também um bocadinho (eu, obrigada, meu caro senhor, não quereria ficar de fora de tal acontecimento) e aquele jovem. A minha cara séria desfaz-se. É impossível não rir. Era bomba. Bom-ba. Boooom-ba. Íamos cantar Elton John lá para os anjinhos (deve estar a pensar em Candle in the wind, mas eu sugeriria Someone saved my life tonight). Mas pelo menos deixavas-me o casaco de pele. O alvo agora é um rapaz que vai em pé e o olha, preparando-se para sair na próxima paragem. Estava a brincar, gosto desse casaco. Deixavas-me o casaco de pele. E se eu deixasse a bomba E o casaco de pele? Pergunta o rapaz. Explodimos os três a rir. Só nós, não a bomba. Não sobrava nada, responde o homem. A malta brinca mas prestem atenção, temos de estar sempre atentos. Uma vez no metro entrou um gajo com um saco que fazia tic tac tic tac, as duas pessoas que estavam à minha frente fugiram logo e eu disse: pronto, se fui, fui-me. Mas o gajo agarrou o saco, levantou-se e saiu na paragem a seguir. Olha, não rezei. Disse apenas, se tiver de explodir, explodiu. Era uma vez eu. Paciência. Já não te conhecia. Deixei o carro em Algés e ainda tenho de ir para Cascais. Estou sozinho num T5. E chego a casa e, olha, fico a ver televisão. Se a bomba explodisse, eu não estava cá, tu não me conhecias, eu não te conhecia. É verdade (reitero, pensando em como a vida poderia ter-me poupado pelo menos ao seu hálito a lembrar uma das míticas personangens de Tieta do Agreste). Suspira novamente. Dá-lhe jindungo! Repete o seu mantra. Ressona novamente e de repente, como um pequeno motor. A porta abre, o eléctrico guina. Não pára, sempre a andar! Acelera, comanda ele, o motorista absorto no caminho, em silêncio.

Já vais sair? Já vais embora? Vou. Já não o vejo, mal o ouço, mas ele continua. Gingando e profetizando na noite.

30 Mai 2019

Grada e a linguagem inventada

“To speak…means above all to assume a culture, to support the weight of a civilization.”
— Frantz Fanon

 

[dropcap]D[/dropcap]a Gulbenkian vou para a Graça. De Sophia de Mello Breyner para Grada Kilomba, também ela presente na Gulbenkian, que acaba de adquirir a sua instalação em torno de Eco e Narciso. Não é um mau momento para estar viva. Sou contemporânea de ambas, afinal. Quando descobri a poesia, a única mulher que lia era Sophia, e assim foi durante o que parece ter durado muito tempo.

Tenho tempo e faz frio. Escolho o restaurante indiano de que toda a gente gosta e, assim que me sento, vejo-a passar para atender um telefonema. Chamo suavemente o seu nome, incrédula, digo olá e recebo um sorriso. Escolho água, uma chamuça de frango e o camarão com amendoim (não tivesse eu acabado de voltar de Moçambique). Um casal senta-se e assiste ao meu ritual distraído de repetir vezes sem conta a dose de um saboroso piripiri que, quando muito, me faz cócegas.

Fazem do espaço que sobra na minha mesa e na cadeira em frente à minha, seu. São simpáticos. O empregado traz-me um segundo copo, que não pedi, como se eu fosse partilhar da garrafa de vinho do casal. Respondo a mails, a mensagens, revejo notas. Alguém me faz uma festa no braço e diz: Até já. É ela, de novo, sorriso franco e bonito e as tranças grossas e compridas, o colar tornado pulseira longa, um permanente apontamento amarelo no pulso. É como se já a conhecesse, e certamente que nos reconhecemos.

Uma sala ora em silêncio ora em êxtase e comunhão. Uma sala cheia, com igual ou maior número de pessoas do lado de fora, em lamento. Filas que se vão formando para entrar e comprar o livro.

Para ouvir, mas começamos por ver. Assistimos ao vídeo da performance “Plantation Memories”, agora “Memórias da Plantação – Episódios Quotidianos de Racismo” (Orfeu Negro). A apresentação desta tradução de um livro escrito em inglês e só agora, ao fim de dez anos, traduzido para português, está a cargo da socióloga Cristina Roldão.

A língua portuguesa é uma língua muito colonial e muito patriarcal, e o nosso discurso de que é a língua mais bela, mais doce, idem. A violência de uma língua: quem pode e quem não pode representar a identidade humana. A língua define quem é humano e quem não é. Eu queria viver e trabalhar num espaço que me permitisse ser eu e reinventar uma linguagem que permitisse expressar-me. Eu fui a única estudante negra durante seis anos, mas acho que ninguém mais se apercebeu de que não havia jovens negros na universidade. Depois, fui a única professora negra, e dei aulas em duas universidades ao mesmo tempo, em Berlim, o que seria impossível em Portugal.

Senti que o livro foi a minha primeira linguagem, onde aprendi a escrever como eu sou e reinventar uma língua onde eu posso ser eu. O racismo trabalha com o ilógico, com o irracional, faz uma associação de imagens que, não o sendo, se tornam reais através dela.

Não há comoção no discurso de Grada (psicanalista, filósofa, autora, performer, mulher, negra, não necessariamente por esta ordem, não necessariamente só isto) se não para falar de um dos seus ídolos, Frantz Fanon, ou recordar os seus tempos de sprinter no Sporting, quando residia nas periferias negras de Lisboa, na linha de Sintra.

Quando se dá voz ao público, Solange Salvaterra Pinto fala dos muitos corpos negros na sala, sobretudo femininos, e de outros tantos em Portugal e de como são os que mais se vêem nos primeiros e nos últimos autocarros de cada dia, mas que parecem não existir nesse intervalo, não estão nas ruas mas escondidos, quem sabe nos hotéis e nos restaurantes (assombrados assim por vivos, penso); no fundo, se já não do autocarro, ainda dos lugares da frente da sociedade. E recordo-me de uma outra Solange (Knowles) e do seu tema “Weary”: I’m going look for my body yeah / I’ll be back real soon. Os corpos podem existir enquanto invisíveis, começa por responder Kilomba, portuguesa com origens em São Tomé e Príncipe e Angola, a esta observação retórica, que termina com um pedido de resposta ao problema da invisibilidade e da distribuição de papéis, que a mesma admite não saber resolver. Volto por momentos à Gulbenkian e ao Colóquio Internacional sobre Sophia. No primeiro dia, o escritor moçambicano Amosse Mucavele foi o único negro. Hoje sou eu, penso. Volto a Sophia e aos seus versos evocativos de transparência e de luz, de cor.

Eles (o público maioritariamente branco e da meia-idade para a frente) nunca viram tantos corpos negros a ocuparem a Gulbenkian, a narrarem, a definirem a sua própria narrativa, a serem os sujeitos e não os objectos da sua própria história. Esse é o meu papel enquanto artista, é criar o momento em que o activismo, a arte e a literatura começam a transformar a sociedade. Se passámos da negação da negação (Sartre), teremos chegado à segregação da segregação? Das muitas manifestações, eventos literários, seminários a que vou, este terá sido o momento de maior presença negra. Silêncio e riso, anuir de cabeça, alívio. Não há espaço branco nem caixa negra e sim um novo lugar, reinventado, elástico, móvel, seguro. A DJ Yen Sung abre a pista com outro tema marcante de Knowles, “Don’t touch my hair”, mas é ainda “Weary” que ouço: Be leery bout your place in the world / You’re feeling like you’re chasing the world / You’re leaving not a trace in the world / But you’re facing the world / I’m going look for my glory yeah / I’ll be back real soon. (…) But you know that a king is only a man / With flesh and bones he bleeds just like you do / He said “where does that leave you” / And do you belong? I do I do.

Grada parece ter escapado à maldição de Eco, não tivesse sido ela a primeira e a última a falar esta noite. O livro sai em Junho no Brasil. Livro, mulheres e noite incrível. E a presença que importa, a daqueles para e sobre quem este livro foi escrito. Agora é ler, reflectir e continuar o nosso trabalho, que é como quem diz, a nossa vida na sua forma mais inteira.

23 Mai 2019

Precipícios interiores

“Lembro-me de ter pensado que

há coisas que só se engolem
com muita fome e uma flor à frente.

Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem

qualquer dia
já nem vai precisar da flor.”
André Tecedeiro

[dropcap]É[/dropcap] a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero. Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles.

No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser “muita coisa”. A estranha do lado de cá, com ironia, respondia, “Eu sei muito bem o que dá para comprar com esse dinheiro.” Seguiu-se um “Nada”, mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco. Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a ser feita em tempo útil.

Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo. Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento.

Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam outros a preparar a nossa comida. Então, porque é tão estranho que alguém no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua. Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim?

A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão, ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher, como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona, transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação, e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias melhores.

18 Abr 2019

Tupperware

[dropcap]”O[/dropcap] amor é um alimento”, recorda-me o Facebook nas suas memórias. Quem o diz, num vídeo, é Gustavo Santos, o guru que todos amamos odiar. Ontem, no comboio para casa dos meus pais, uma rapariga contava, ao telefone: “Sabes aquela marmita? A minha mãe encheu-a de salsichas e molho.” Eu própria regressei coleccionando mais um tápáruére, como se diz em bom português, com doce de côco, consequência da última ida da minha mãe à Guiné. É uma verdade universal que os ditos, pertencentes a alguém que seja mãe, devem ser estimados e devolvidos imaculados, o mais depressa possível, sob ameaça de desencadear várias pequenas guerras familiares à escala mundial. Recordo uma amiga ter-me levado dois, certa vez, um com uma inscrição a marcador preto onde se lia que o dito lhe pertencia, a ordenar “favor devolver” e outro, da sogra, que já lho pedira há bastante tempo e que ela, julgando-o perdido, suspirou de alívio ao saber que ainda existia. Devolvi-lhe as caixas com almôndegas que tinha feito nesse dia.

Se, para alguém que adora livros e ainda os empresta, não há nada pior do que não os reaver (excepto dobrarem os cantinhos de páginas que não marcámos), é também verdade que é por nunca devolvermos alguns que a nossa biblioteca ganha contornos mais interessantes. Por três vezes comprei e emprestei um dos meus preferidos, “A balada do café triste“, de Carson McCullers, e lhes perdi o rasto. Paz à alma dos “Contos Completos” de Truman Capote e à versão bilingue do “Book of Longing“, de Leonard Cohen. Anos passados, encontrei este último em versão original na estante de alguém que me é querido, e trouxe-o apenas para,uma hora depois, declarar, insolente, que não lho devolveria. Mas ele deixa. O amor, tal como os tupperware, também pode ser rastreado, perdido, devolvido mas nunca de igual modo, não importa se numa caixa de gelado de tamanho familiar usada para congelar malaguetas ou num daqueles dos bons, com abertura para deixar escapar o vapor e que vedam tão bem que quase não conseguimos abri-los. Cresci com uma mãe que é a melhor cozinheira que conheço e de quem de momento tenho três caixas em casa. Mas vou encontrando outras que não reconheço logo: a de tampa azul da Andrea, o frasco de vidro da Lilit, o de tampa amarela do Daveed. Vou-me apercebendo de quanto da nossa memória afectiva está contida nessas caixinhas e frascos. Lembro-me de ter deixado um saco com o meu melhor tupperware, de sopa, à porta de um rapaz que amei muito e durante muito tempo. Foi a primeira vez que o fiz. Como um gato que nos recebe com um pássaro ou rato morto na boca e o deposita a nossos pés. Gestos de amor, delicados. Rituais e oferendas, sacrifícios. Afectos por vezes recíprocos, tupperware muitas vezes não recuperáveis.

Lembro-me de voltar de casa dos meus pais com uma das comidas preferidas do meu namorado da altura, feita pela minha mãe, e de ele a ter devorado sorridente, mandando recados elogiosos para ela, que ainda nem sabia que ele existia.

O prazer de preparar refeições para a semana e ver aquele amontoado de caixinhas cheias de segredos e coisas boas, acalma e é demasiado bom, sobretudo para quem tem algum transtorno obsessivo-compulsivo. Sim, porque também cozinho para mim, para conforto próprio. Outro dia saí com sopa e bolo (eu juro que cozinho muitas outras coisas) para uma amiga que estava muito doente. Desta vez, pedi que passasse o que trouxera para outros recipientes ou pratos, ela lavou-os e eu trouxe-os de volta comigo. Talvez eu esteja em estágio para a maternidade sem o saber.

Certamente já passei demasiado tempo a tentar fazer coincidir tampas e caixas, no armário e na vida (se nunca partilharam casa, não sabem como é difícil conseguir harmonia e coordenação de recursos). Mas quero com isto dizer que voltei com bem mais do que levei, e nem me refiro a chás arménios e colombianos ou a uma conserva maravilhosa. Regressei a casa sabendo que ainda agora lá estava, e é esse o motivo pelo qual vou continuar sempre a demonstrar, da maneira como o fizeram comigo, o que é para mim o amor. Um alimento, uma partilha, uma delícia. Na mochila, em sacos, nas mãos, na poesia de e.e. cummings, carregamo-nos uns aos outros, aos nossos corações e às nossas boas intenções e más interpretações. Uma e outra vez nos transportamos do frigorífico para a mesa, para o aprofundar de laços, para celebrações demasiado íntimas para caberem em algum lado. Mas nós bem que tentamos. Home is where _____________’s (insert person you love here) tupperware is.

4 Abr 2019

Sem anestesia possível

[dropcap]Q[/dropcap]uando entrei, pediram que me deitasse, baixasse a saia, levantasse a camisola e virasse o rosto para a parede. O médico não tinha como saber que eu já conhecia cada uma daquelas agulhas desde o dia anterior, do Youtube. Vai sentir um frio, uma sensação gelada, do spray anestesiante. As nádegas a descoberto, os olhos fechados. Vou começar. Um jogo de adivinhação sobre a minha carne, um-dó-li-tá. Imaginei uma mão aberta e uma faca a saltar por entre os dedos, tentando acertar no vazio. Primeiro, não doía, era apenas uma impressão enervante. Tentava não pensar nos meus pais na sala de espera. A minha mãe tentara entrar, mas fora impedida. Preferi assim. Peço desculpa, mas tenho de encontrar o lugar exacto da anestesia. Primeiro não doía, mas depois já não era um jogo afinal, ele fazia a agulha saltar vezes sem conta, aparentemente sem ritmo ou destino, até que encontrou o que buscava, e eu percebi que a anestesia era só para a carne, como é que eu não pensei nisso, como poderia não me doer o osso, como é que eu não previ isto, como é que eu. Peço desculpa. Peço desculpa. Peço desculpa.

Pensava que conseguia fazer isto sem chorar. Sem gritar. Não é só a agulha. Quem nunca levou uma injecção no rabo? Ninguém me estava a dar nada. Eu vim aqui para me tirarem uma parte de mim. Talvez para depois me tirarem a minha vida, ou o que eu acho que tenho de meu, e de vida.

Vim aqui para me cravarem uma agulha o mais fundo possível, eu que já tive tantas agulhas espetadas em mim nestes últimos anos, que viro sempre o rosto para o lado e que, quando finalmente não quis fazê-lo, fui obrigada. Vim aqui para sentir alguma coisa a ser aspirada de dentro de mim, de um lugar secreto onde nunca ninguém me tocara. Tente pensar em alguma coisa agradável. Tentei, tanto. Estava um dia tão bonito. A praia. A minha irmã. Procurei-a em vão.

Nem ela me poderia valer naquele momento. Mais tarde, dir-me-ia que a mãe entrou pelo quarto a chorar e a anunciar que eu iria morrer. A nossa mãe, sempre tão dramática, hipocondríaca, fatalista. Mas eu ainda não sabia, ainda estava ali na sala pequena, dividida em duas por uma cortina branca, tudo era branco, os ossos são brancos…

Estou aqui deitada como se fosse um chão de calçada portuguesa e o médico está a picar, picar, picar e finalmente eu consigo ouvir e sentir o meu osso a partir, este som é o meu osso a partir, quero que isto páre, eu que nunca parti nada, nem a cabeça, não literalmente pelo menos, de órgãos partidos só sei mesmo do coração, como é que se sobrevive a isto, uma fractura interna, é disto que falam quando falam disso, e agora a agulha aspira qualquer coisa e então é isto um mielograma e então é isto uma biópsia. A voz tremia, crescia numa sucessão de ais que eu cada vez controlava menos, e no entanto não me mexia. Não podia. É tão difícil respirar enquanto se sofre. Também isto me escapara. Esta simples noção, este malabarismo íntimo que eu julguei ter dominado a vida toda e que, agora, ficava provado por agulha mais carne mais osso mais medula que, afinal, eu nada sabia. Não havia Mário Viegas a recitar Armindo Mendes Carvalho. Ai a dor que tenho aqui!

A enfermeira sentou-se aos meus pés. Segurou-me na mão esquerda, braço estendido. Devo tê-la agarrado de volta, com uma força que me escapava por todos os outros lados. Um anjo que eu não via mas que visitava a minha cama, como Jesus no conto do Eça. Minha querida, tenha calma, já não falta muito, como se chama? Hesitei. Pela primeira vez na minha vida, durante segundos, eu não me lembrava do meu nome. Sentia-me prestes a perder os sentidos. Solucei uma vez mais, e disse. Consegui dizer o meu nome. Depois, acabou.

Limpeza, um penso, portou-se muito bem, vai ficar tudo bem. Daqui a duas semanas saberá os resultados, se houver alguma coisa antes nós dizemos. Esperar e sofrer, sempre. Fiquei em silêncio. Agora deixe-se estar deitada de barriga para cima uns quinze ou vinte minutos, já venho ver como está.

Olhei o tecto, incapaz de mais. Atrás da cortina, uma voz feminina com sotaque espanhol dizia, Vai sentir uma sensação fria, vou aplicar um spray. Momentos depois, um velho, Ai minha Nossa Senhora. Ai minha Nossa Senhora. Chorei por ele. Ai pobre daquele velhinho.

Vieram buscar-me. Percebi, então, que coxeava. Tantas primeiras vezes em tão pouco tempo.

Levaram-me para uma sala com cadeirões e sentei-me. Reconheci pessoas da sala de espera, o velhote que estava com o filho, um outro homem, a moça grávida. A televisão ligada mas ninguém lhe prestava atenção. Deve haver algum estudo que comprove que o zumbido de uma televisão ligada no canal mais desinteressante possível acalma os nervos físicos e burocráticos dos pacientes, como deve haver um estudo a comprovar o contrário.

Eu tinha parado de chorar. Mas havia uma rapariga à minha frente, muito pálida, careca, a quem vieram dar um pequeno-almoço líquido. Ela estava cansada e tinha covas debaixo dos olhos.

Fechou-os várias vezes, e dormitava de vez em quando. Quando as enfermeiras saíram, a minha e a dela, quando eu olhei bem em volta, um homem de pijama e pantufas, a rapariga grávida, os outros, mas sobretudo a rapariga careca, chorei como nunca antes. Pensei, não vamos todos sobreviver. Pensei, eu não vou sobreviver, eu vou morrer mesmo, estou doente, quantas vezes pode alguém escapar, quantos exames feitos e quantas certezas do que não tenho e iguais incertezas sobre o que tenho, quanto tempo mais posso aguentar sem a má notícia derradeira.

Chorava de medo, vergonha, desespero e dor, e já todos deveriam ter passado pelo mesmo, pois ninguém disse nada, como se eu ali não estivesse, ou estivesse tão calma e seca como eles, e talvez eles estivessem pior, até. Eu ainda não tenho nada, posso não ter nada, até podemos todos sobreviver, tens de aprender com isto, nada te ensinou mais na vida do que isto, vais morrer. O tempo passado num hospital, qualquer que seja a situação, é o mais próximo do Inferno que podemos experienciar.

Não fui trabalhar. Mandei uma foto do meu rabo à minha irmã. Sentia-me enjoada e fraca. O que dormi pareceu-me pouco. A viagem de carro de casa dos meus pais para a minha foi difícil, com uma respiração consciente e forçada para evitar vomitar a todo o custo. Coxeei durante uma semana, tempo que demorei a conseguir deitar-me novamente de barriga para cima. Quando deixei de precisar de pensos, apenas um ponto ínfimo mostrava que algo se passara, e era difícil dar com ele à primeira, por mais vezes que me visse ao espelho. Como se nada fosse. Como se tivesse sido um sonho. Mas não tem sido isso a minha vida? Tanta ironia. E eu tão pequenina.

28 Mar 2019

Mercúrio retrógrado

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ati com a cabeça. Bati e bati com força, não figurativa mas literalmente, o que prova que, a ser um recurso estilístico, a realidade nada tem de estiloso. O mesmo devem ter pensado os donos das gargalhadas altíssimas que ouvi após o embate, o qual entortou a haste direita dos óculos e me deixou com a visão turva por instantes. Era de noite, estava distraída, olhar preso num jornal que alguém deixou num banco da paragem (mãe, pai, por que me abandonaram, vulgo ensinaram a ler?!), e com um saco de papel do McDonald’s na mão, que é como quem diz, quase mereceste levar com o mupi, que não teve culpa nenhuma e já lá estava.

Gostaria de um dia ter a minha cara em todas as paragens de autocarro, locais esses de que sou membro diamante, mas talvez esta não seja a forma mais eficiente. Também gostaria de ir ao supermercado usando vestidos Valentino, mas isso fica para outra crónica. Eram já quase onze da noite, chegara à paragem onde o tempo de espera era de trinta e cinco minutos e, para fazer tempo, fora comprar comida. No restaurante, o atendimento atrasado, funcionários discutiam entre si, clientes discutiam com a gerente, motoristas de serviço de entrega suspiravam e bufavam. Eu rezava para não perder outro autocarro, enquanto comia os nuggets mais tristes de sempre. Mas eu ia tão bem no meu vegetarianismo quase totalitário, que talvez tenha sido o karma, ou então o único, o temido, o incorrigível mercúrio retrógrado. Na paragem, com uma dor crescente do lado mais afectado pela pancada, ainda me parecia ouvir a risota alheia, em eco, cada vez menos sonante, mas ainda no ar. Cheguei ao meu destino rapidamente e, em menos de vinte minutos, estava despachada de mais uma burocracia que, espero eu, tenha sido a final. Novo compasso de espera na paragem ao fundo da curva, perto da rotunda. Desta vez, não estava sozinha mas com um casal, cujo odor corporal me fez rezar novamente, com todas as forças, mas não as suficientes para aspirar mais ar, que o autocarro não demorasse muito.

Chegada a casa, caí na cama, não sem antes recordar que nesse mesmo dia, numa entrevista feita em minha casa, faltaram os microfones, que ficaram do outro lado do rio, que uma peça de equipamento se estragou, que alguém se atrasou quase uma hora, que outro alguém combinou para as 15h com alguém que achou ter marcado às 16h, entre outras confusões e falhas de comunicação.

No dia seguinte, antes de seguir em viagem para Londres e de lá para Hong Kong e Macau, tentei ir a um multibanco específico, que permitisse depositar dinheiro: nada feito. Durante o voo, tentei ver um filme ou ouvir música, no entanto o meu écrã não deixou, por mais resets que a tripulação fizesse. Pedi novos headphones pois os meus não funcionavam. Precisei de paracetamol pois a dor de cabeça passou de forte a insuportável, de subtil a um galo. Um galo português em Macau, algo a que os meus amigos, por algum motivo, parecem achar demasiada piada. Pelo menos encontrei dinheiro na rua duas vezes seguidas, no espaço de uma hora. Tentei comprar comida e nenhum dos terminais do café aceitava o meu cartão, o que me obrigou a ir levantar o bonito dinheiro destas terras.

No hotel descobri, ao tentar aceder ao wifi, que me pede o número do quarto e o apelido, que o meu último nome é, agora, o de solteira da minha mãe. Há algo de curioso em telefonar a estranhos para descobrir em quem nos tornámos. Antes, no controlo de passaportes, o funcionário perguntou-me várias vezes se eu era eu, qual o meu nome, a data de nascimento. Apontou para a fotografia, depois escondeu-a. Sim, eu sou essa pessoa. Essa daí sou eu, sim. O meu passaporte é de 2017, cabelo esticado, desfrizado, comprido. Cortei o cabelo nem há uma semana (sim, a minha irmã convenceu-me finalmente e fi-lo eu mesma, pela primeira vez na vida, em casa), já não o desfriso há mais de um ano e meio, perdi peso e voltei a usar óculos que tirei, como mandam os scans biométricos. O sinal no rosto, esse, é o mesmo de sempre. Ainda assim, parecia não ser suficiente. Lá o convenci, talvez por ter-me oferecido para mostrar outros documentos, embora talvez isso apenas o confundisse mais, pois no cartão de cidadão o meu cabelo também está bastante diferente. Lembrei-me de quando trabalhava num edifício no Areeiro, e ia ao mesmo café todos os dias. Num dia em que fui de cabelo apanhado em vez de solto, a dona não me reconheceu logo. Ri-me sozinha ao lembrar de uma amiga que passou por mim na rua, na semana em que voltei a usar óculos, sem perceber que era eu. Nova afronta ao meu nome, quando o vejo com um g em vez de um c no novamente malogrado apelido.

Quem claramente percebe disto é uma das moças do hotel, cujo nome adorei: Bet Si. I see what you did there. Mercúrio volta a estar directo dia 28 de Março, mas é certo e sabido que os seus efeitos se sentem bastante tempo antes e depois da sua vinda. Gisela Casimiro was marked safe during the first Mercury Retrograde of 2019, após ter sofrido o que julgou serem os seus efeitos todos em apenas vinte e quatro horas.

É com alívio e já sem galo que de vós me despeço, desejando a todos um trânsito planetário seguro, e até aos próximos dois. Qualquer coisa, sabem de quem é a culpa.

21 Mar 2019

Black mirror, Black face

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou uma pessoa sensível. Tive, durante a maior parte da minha vida, um estômago de avestruz e uma pele que nunca me deu trabalho excepto pela cor que tenho. Não sou muito picuinhas com os produtos de beleza. A regra de ouro é hidratação completa, de cima a baixo, todos os dias. Aquele antigo ditado português que diz: put the cream, sabem? Sou discreta na minha sensibilidade, mesmo quando é a pele a sofrer. Mas a verdade é que a minha pele, o meu rosto, raras vezes são tela para maquilhagem, embora goste da dita e aprecie vê-la bem aplicada. Não tenho quase nenhuma, pelo menos comparando com a maioria das mulheres (e alguns homens), e guardo-a para ocasiões especiais; nunca faço uma make completa, escolho sempre as coisas mais básicas, e só tive uma embalagem de base na vida. Talvez por isso me recorde demasiado bem da primeira vez que fui maquilhada por uma amiga, antes de uma saída à noite; depois, por uma conselheira de beleza numa loja da especialidade (achei que não parecia eu em nenhuma das vezes), por maquilhadoras profissionais, que também trabalham em teatro, antes de participar num programa de televisão (adorei). Talvez seja como habituarmo-nos a ouvir a nossa voz gravada, melhora com o tempo. Não impede que saiba quais são as tendências, que conheça a linha de produtos de palete inclusiva de Rihanna, ou assista aos populares vídeos da Vogue, em que podemos ver celebridades como Pablo Vittar aplicar maquilhagem em dez ou quinze minutos (que nunca o são realmente, com todo o fast forward e as coisas que a dita diz já ter feito antes de começar a gravar).

O Carnaval passou. Este ano não o celebrei, mas reflecti bastante sobre. O melhor foi ver as fotos e vídeos dos filhos dos amigos, mascarados, e os filhos dos desconhecidos, nos comboios, na rua, em todo o lado. O pior foi ver escolas, como no caso de Matosinhos, em que professores e demais funcionários se mascararam de negros e, inclusive, foram dadas indicações aos alunos para irem vestidos como tal. É o negro ainda uma coisa, e coisa tão passível de ser objectificada e banalizada, que pode ser descaracterizada assim tão gratuitamente? Como pode uma criança africana ou afro descendente ir para a escola de negro, quando é negra o tempo todo e, mesmo se calha esquecer-se por um momento, e a achar-se apenas humana, a própria escola a recorda, limita, ostraciza?

Finalmente comprei uma máscara de carvão activado, algo que há muito me suscitava curiosidade, por este ingrediente ser agora usado em tudo e para tudo; confesso que, também, por me lembrar o black face. Em frente ao espelho, apliquei a dita seguindo meticulosamente as instruções da embalagem e, depois, removi-a, lentamente e sempre na mesma direcção. Saiu quase inteira. Pousei aquele retrato dermatológico na bancada do lavatório e pensei, eis a minha black face. A minha amiga Diana chama-lhe mask face (ela entende muito de maquilhagem). Achei o termo interessante, bem melhor que black face. Não conheço, de facto, nenhum negro, nem aqueles descritos como tendo um tom de pele preto-azulado, cuja fisionomia seja sequer próxima da daquele rosto inanimado que me olhava. Deitei-a fora e retive esta palavra: máscara.

Ainda se crê, em pleno 2019, que ser negro é uma fantasia para usar nos três dias de Carnaval, ou no Halloween. Pinta-se a cara porque dá menos trabalho do que pintar também as mãos e o resto, afinal nem é preciso prestar-se a tamanha cerimónia, isto é uma coisa temporária, o resultado fica à vista de todos, literalmente in your face. Agora sou negra, agora já não sou. Obrigada, água micelar. Obrigada, toalhita desmaquilhante. Se eu, por nunca usar maquilhagem, me esqueço dela quando a tenho, da minha identidade nunca me dispo nem esqueço. Se, há uns anos, desamiguei uma antiga colega do secundário por ter postado fotos, no seu Facebook, em que ela e uma colega de trabalho se mascaravam de negras, com caras pintadas de preto ou castanho escuro, perucas afro e nomes a quererem-se tribais, exóticos ou impronunciáveis, para completar os figurinos, hoje já não o faço. Outro dia, no espaço de minutos, vi uma foto de perfil de alguém mascarado de índio, a qual lhe mereceu inúmeros elogios e, depois, a foto de três pessoas, uma das quais conheço, vestidas de negras, não menos caricaturadas e caricatas do que a polémica vestimenta berbere de Madonna há uns meses numa cerimónia de prémios. Em sua defesa, a rainha da Pop disse (mas) “I love my dress”. E ninguém pode acusar Madonna de racismo, afinal tem mais filhos adoptivos (4, negros, do Malawi) do que biológicos (2).

Eu também sei que essas pessoas, as mascaradas no meu feed, adoram negros, adoram índios, e até têm amigos que são. Mas ofendem, insultam. Provavelmente mais por ignorância do que por qualquer outro motivo. Teimosia, também. Como se a afronta, por não ser intencional, tivesse de ser tolerada por quem é dela alvo. Poderia encontrar uma falsa lógica nestes episódios que mais lembram a série Black Mirror, por estas pessoas nunca terem convivido com membros da comunidade indígena e os mesmos lhes parecerem uma qualquer criação romanesca. Mas qual a desculpa para todas as outras etnias? As que andam por todo o lado? Ou não se repara nelas excepto quando se tenta, e mal, imitar quem nos parece ser e se quer considerar “todos iguais”? Os mesmos que continuamos a tratar de formas diferentes. Porque se o nosso primo ou a nossa avó não são um disfarce, porque é que mais alguém seria? E nós, somos? Ou vocês, que eu sendo negra já o sou, claramente. Acredito que temos de continuar a educar-nos uns aos outros, a explicar de forma mais ou menos directa as razões de índios e negros não serem fantasias de Carnaval (existe, no youtube, um vídeo excelente de Fernanda Carlone, que recomendo, por responder à pergunta “O que é o black face e qual é o mal?”, que muitas pessoas ainda fazem). Acredito que temos de denunciar, reportar, criticar. Acredito que aceitar a diferença é aceitar uma opinião diferente também, ainda que seja sobre a nossa/vossa boa intenção.

Recentemente, a Gucci retirou do mercado uma camisola de gola alta que subia até ao nariz, deixando um buraco na boca, delineada como se por um grosso batom vermelho. A Burberry achou engraçado criar uma linha de hoodies com nós de forca como colares. O público não entendeu a piada. Katy Perry criou uma linha de sapatos com caras africanas, negras e, arrisco dizer, albinas também, inspiradas talvez em peças de arte do continente. A Prada tinha um porta-chaves também considerado racista, a velha dicotomia macaco/negro. Ninguém viu o mal em nenhum destes produtos até terem sido postos à venda, talvez por não haver pessoas negras em posições suficientemente relevantes ou, de todo, nestas empresas, que se revoltassem e demonstrassem a razão de serem ofensivos. O público, no entanto, não perdoa, e a ameaça de boicote é real. O problema começa bem antes da criação: começa na contratação de conselheiros e designers de outras etnias, numa indústria ainda predominantemente branca, que possam interromper a sequer criação de tais peças e inspirar uma criatividade histórica, social e culturalmente consciente. Um outro problema é a compra e venda de marcas de sucesso criadas por africanos, a brancos, que o fazem como forma de acabar com a concorrência, no entanto aniquilando também marcas para todos em prol da continuação da expansão de marcas apenas para alguns. A responsabilidade é de todas as partes, pois o que afecta uma minoria afecta todas, e as minorias têm de  saber que um legado é mais importante do que um lucro imediato.

Daqui a uns dias faço outra máscara. E quando é que eu posso trocar a minha pele por outra? Não que eu quisesse. Seria mais fácil? Com certeza. Seria melhor? Não. O melhor de cada um é o que cada um já é ou pode vir a ser. Eu não serei mais caucasiana do que alguma vez terei olhos azuis (os sapatos de Katy Perry têm-nos, curiosamente). No seu poema “A woman speaks”, Audre Lorde termina com “I am woman / and not white.” Que é como quem diz, há outras cores para seres humanos, e há outras cores para géneros. Há outras possibilidades para fantasias. Há, também, a necessidade de estarmos em contacto com a realidade, pois ela dura bem mais do que uma qualquer efeméride. Se o Carnaval é cultura e tradição, convém lembrar que ser-se humano não o é menos. Algumas homenagens não são senão hipocrisias e o perpetuar de histórias que são muito diferentes conforme quem as conta. No próximo ano, se Carnavalar não ofenda. O tempo passado em frente ao espelho a mascarar-se de alguém que nem existe talvez possa ser passado a olhar o outro e a tentar conhecer, ouvir, estar lá para quem é, não duvidem, bem real. Há coisas que não podemos nem devemos mudar. Mas façamos algo por aquelas que estão nas nossas mãos, nos nossos rostos e, sobretudo, nas nossas vozes e consciências. Porque há coisas que não podemos nem devemos aceitar.

14 Mar 2019

Posso dar-te um beijinho?

[dropcap]D[/dropcap]o sofá avisto gatos, figos e a solidão escolhida.

A liberdade de tantas possibilidades e dizer não, não me apetece e não, não vou. Mas isto são conversas em que eu faço todas as vozes, com mais ou menos gestos, que importa isso, o efeito lúdico é o mesmo ou até mais prazeroso. Os figos ainda não estão bons e os gatos são os da vizinha (e na verdade mais de si mesmos) não me tornei aquela senhora de há uns anos, perto do hospital da Cruz Vermelha, que tinha vários, e nomes e vozes para cada um, tradição que herdou de sua mãe. A liberdade de pequenos luxos como dormir até me fartar (e eu farto-me facilmente de dormir) ou ver, imagine-se só, três episódios seguidos de uma série. Ou duas. Filmes, de animação ou não. Luxos. Arrumar e desarrumar, doar e deitar fora, guardar e resgatar. De pensar (nunca me farto), sobretudo nos pequenos nadas. De decidir, de desistir, de repensar. De fazer planos ou tentar e aceitar, quer se realizem ou não. De estar bem assim, na praia, a ler, ou em casa, a ler. Mas de vez em quando é preciso sair, mais que não seja para fazer umas pequenas compras tontas pré último dia férias e perpetuar rituais de pouca dura. Atravessar a estrada conta como sair de casa, afinal não é como abrir a porta da cozinha e ir lá atrás, ao quintal.

Pergunta – Porque é que a rapariga atravessou a estrada?

Demorei mais do que precisava lá dentro, e parei à saída, não sei bem porquê. Estava sol. Ela pediu desculpa, perguntou onde morava, se eu ia para aquele lado, e apontou para a esquerda. Não, eu vivo mesmo aqui. Continuou a falar. Eu trazia um saco e ela, dois. Peguei neles e lá fomos, afinal eu não tinha mesmo nada para fazer. Melhor, eu só tinha nada para fazer. Vira-a algures no corredor, momentos antes. Explicou que se sentira mal, tensão baixa, e não queria arriscar ir para casa assim, que sabia que não devia carregar tanto peso, mas. Corroborei.

Lembrei-me de uma mulher que, há muitos anos, nunca mais a vi, costumava carregar sacos e sacos pesadíssimos, vinda, imagino, de casa, para a estação de comboios, e vice versa, passando talvez nalguma feira pelo caminho (sacos enormes que nunca percebi bem o que traziam), e frequentemente pedia ajuda a transeuntes para carregarem os mesmos. Calhou-me, calhou à minha irmã, e deve ter calhado a metade da população lá da terra. E como era difícil dizer que não, e como era difícil carregá-los sem acrescentar o peso extra do julgamento, da crítica, dos motivos e das admoestações, dirigidas a ela e a nós próprios que, no fundo, não saíam da nossa cabeça. Alguém sabe se Sísifo tinha com quem falar? Talvez se tivesse safado melhor se tivesse conhecido esta mulher. Ou não, ou não.

Esta moça queria ajuda só até atravessar a estrada. Mas fomos andando mais um pouco e depois mais uns metros e ela morava, afinal, tão perto como duas ruas ao lado da minha. Cinco meses de gravidez, fez no sábado, ontem. Pensava que seria um rapaz mas afinal vem aí uma garota. Falámos de hérnias, de preparações, de desmaios, de esforços, de tamanhos, de barrigas e de alegrias. Em quase tempo nenhum. Nunca nos tínhamos visto, ou melhor, reconhecido. No fim, apresentou-se e eu a ela. Perguntou, posso dar-te um beijinho? E aceitei, e deu, e ainda houve um curto e sentido abraço, e os votos normais, de que tudo (lhes) corresse bem. Esforço mínimo pode ser o que nós quisermos, pode dar-nos um sorriso enorme.

Se calhar nunca mais nos cruzamos, se calhar agora vamos esbarrar (delicadamente) a cada dois dias. Se calhar ainda descubro que ela é tão de Cabo Verde quanto eu. Não importa. Podemos sair de casa sem grandes expectativas ou expectativas algumas de real contacto humano, numa altura em que toda a gente promete, e agenda, e sente, e quer, e lamenta, e tenta, e ignora, e marca, e desmarca, e acena, e emoji, e zanga, e ama e agradece e volta a lamentar muito mas não sai do Messenger, quanto mais de casa. Mas estamos todos aí, cheios de possibilidade de acontecer uns aos outros. Não é por acaso que lhe chamam o conforto de estranhos. Muitas vezes, prefiro-os. Muitas vezes, estes minúsculos encontros quotidianos são feitos exactamente à nossa medida, e a pessoa pensa que fizemos algo incrível por ela e na verdade foi ao contrário.

Resposta – Para voltar a casa mais leve.

Entretanto as férias acabam, o contraste regressa, a doçura permanece. Aguardo os figos e, no fundo, talvez ainda os amigos.

7 Mar 2019

A menina gosta de ler?

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] menina gosta de ler?” Era sempre assim que, na pequena cidade onde os meus pais vivem desde sempre, as Testemunhas de Jeová se me dirigiam. E não podia dizer que não. Era como se soubessem, na verdade. Como se eu trouxesse um sinal no rosto (bem, na verdade eu tenho mesmo um sinal no rosto), emitisse uma frequência que os fizesse abordar-me constantemente, todos os dias, mais do que uma vez por dia. Ou talvez o fizessem com toda a gente, talvez encarassem todos os transeuntes como se vendo-os pela primeira vez.

Sempre aos pares, para ser mais difícil dizer não, ou talvez apenas para fazerem companhia uns aos outros, quem sabe. Nunca perguntei. E nunca perguntei de volta: “O senhor, gosta? E a senhora, lê muito?” Talvez devesse tê-lo feito. Na esquina do muro do jardim público, algures no passeio de caminho para algum lugar, esta pergunta, e a mão estendida com uma ou duas revistas, que por vezes aceitava e, outras vezes, não. Quando aceitava, lia sempre, por inteiro ou pelo menos a maior parte, com o filtro necessário. Porque a menina gosta muito, muito de ler. Mas se às vezes fazia o gesto de rejeição com a mão, outras vezes parava e ouvia. Outras vezes fugia para o outro lado da estrada.
Lembrei-me disto no outro dia quando (estava a menina cheia, cheia de pressa) saltei do autocarro 728 em Santa Apolónia, em passada larga e decidida rumo a casa quando algo me chamou a atenção. Alguém, na verdade. Um homem, faixa dos quarenta anos, sem-abrigo, deitado relaxadamente debaixo da larga ombreira da porta, manta até à cintura, pernas levantadas, cigarro fumegante, paz no rosto, paz no corpo. Voltei atrás. “Olá, posso saber o que está a ler?” Por curiosidade, porque para mim as capas de livros são um empecilho às relações humanas, porque afinal o que quer que fosse que eu ia fazer podia esperar, encontrei alguém como eu, alguém que gosta de ler. “Claro”, responde. Uma autora de que eu nunca ouvira falar, nem do seu livro. Para ele também era novidade. Contou-me a história: uma mulher que acordava todos os dias julgando que era criança ainda, com a memória de criança, quando na verdade já era casada, e as dificuldades que isso lhe causava, e ao marido, e ao médico e demais pessoas da sua vida. Se quiseres, passa aí daqui a dois ou três dias e eu empresto-te. Perguntei como arranjava os livros, disse que lhe davam, ou comprava, mas que também já lhe tinham roubado muitos. O amor aos livros, aquele sorriso leve que nem a barba por fazer escondia, o ar de quem poderia estar em casa, no quentinho, sem poluição, sem o passar de pessoas estranhas, apressadas ou indiferentes, sem barulho, o estar num mundo só seu a que mais ninguém tem acesso a menos que traga um livro ao colo, ou ao peito, a familiaridade com que me tratou por tu, e a disponibilidade para me emprestar livros, fizeram com que me esquecesse do resto durante aqueles momentos.

Há muito tempo, na paragem, fotografei a sua casa, a mala de viagem feita e arrumada e o cartão ao lado, bem dobrado. Tudo no sítio. Como quem faz a cama. Mas sem cama e casa e sem tudo. Talvez ainda com muito. Quem tem um livro tem tudo. Talvez até tenha muito. E talvez, agora que mudei de casa, e já vivo menos de malas de viagens e sacos, e consegui finalmente arrumar os livros, seja tempo de pegar nuns quantos, apanhar o 728 após o trabalho, e ir visitá-lo.

28 Fev 2019

30/01/2019

[dropcap]M[/dropcap]ostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente. Olha-me, pergunta: “És tu, a Gisela Casimiro?”, como se esse ser impresso fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela, apenas, mas também “A” Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo menos para mim, que as não tenho. Hoje, a “minha” está calada. Pergunto como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta, o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos. Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade. Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um “És muito nova.” É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê.

23/01/2017

Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, “Mas os corações rebentam com muita facilidade.” E eu respondi, “Infelizmente, não só em sentido metafórico.”

04/10/2016

Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela. E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela. Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos, doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação, do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu, durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo) que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos, pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes, num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E que saudades eu já tinha.

19/07/2016

Outro dia,

– Gisela, qual é o teu vestido preferido?
– Não sei, Nê, eu…
– Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com ele.

No mesmo dia,

“Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o laranja é uma fruta e uma cor.”

(E eu só consigo dizer “Ó Nê tu és linda.”)

25/06/2016

Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço, recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo. Algum tempo antes, o Fred disse, “As minhas referências Disney são limitadas. Por isso é que eu sou são.”

14 Fev 2019

Uma gota de glitter (continuação)

[dropcap]C[/dropcap]arey tem sentido de humor e como tal teve gémeos, tem um alter ego, dois álbuns a lutar pelo primeiro lugar e será das artistas com maior número de colaborações de sempre, o que demonstra a sua generosidade e adaptabilidade não apenas social mas também musical. De Luther Vandross a Boyz II Men, de Skrillex a Slick Rick (a quem todo e qualquer rapper terá ido buscar alguma coisa) e Ty Dollar Sign (no mais recente e delicioso álbum, Caution) a Pharrell Williams, Sean “Puffy” Combs, Jermaine Dupri e Mobb Deep nos primórdios da sua carreira, sem esquecer a mítica e disruptiva colaboração com Ol’ Dirty Bastard, Mariah fez e cantou de tudo e com todos, destacando sempre o seu amor por Wu Tang Clan e o quanto aprendeu com Bone Thugs-n-Harmony.

Anitta, a actual mandante do funk brasileiro, inspirou-se no look de Carey que agracia a capa de Rainbow para sua fantasia do Carnaval que aí vem, à guisa do que Beyoncé tem feito com as suas homenagens a Lil’ Kim ou Toni Braxton no Instagram. Beyoncé, que será talvez a única das cantoras actuais que Carey menciona em entrevistas, afirma, “Diva is a female version of a hustler”. Quando lhe perguntaram sobre Jennifer Lopez, Carey respondeu “I don’t know her”, o que ao longo do tempo se tornou uma piada e até merchandising, tomando agora a forma de “I still don’t know her”, cortesia de antigas disputas causadas por supostos roubos de ideias para canções da Columbia Records já depois da saída de Carey, e para beneficiar Lopez.

A eterna rainha do Natal, talvez tudo o que Carey queira este ano seja esse reconhecimento como autora/escritora. Cantora de origens mistas, filha de um casal em que o pai era negro com raízes venezuelanas e a mãe branca, com origens irlandesas, Mariah (a terceira filha de um casamento mal visto pela sociedade da altura, cujo preconceito criaria tensões que levariam ao divórcio) nunca se considerou branca, embora tenha lidado, nem sempre bem, com essa one drop de sangue negro, e embora tivesse lutado para aceitar-se e ser aceite, quando a sua aparência branca com voz negra foi usada para mass appeal. Quando se libertou finalmente, a borboleta de Nova Iorque pôde mostrar as suas influências, que iam desde Jimmy Hendrix a Def Leppard ou à sua mãe, cantora de ópera. O que é um ídolo? Pode Mariah, a cantora que mais me ensinou sobre gangster music, que chegou a alguns número um primeiro nos tops de R&B, antes das demais tabelas, ser definida como um ídolo pop, quando tem canções para todos os sentimentos e situações possíveis, abrangendo uma miríade de géneros? Definitivamente, não.

Receamos sempre o dia em que os nossos ídolos vão deixar-nos. Tal como outros, também chorei Cohen, Bowie, Prince. Mas quando desapareceram Jackson e Houston, foi pela obsessivamente perfeccionista Carey que temi. Se estivermos vivos tempo suficiente, tudo pode, eventualmente, acontecer-nos. Carey não falhou as polémicas do playback, dos colapsos nervosos em público, dos casamentos falhados, dos dramas familiares, das cirurgias e flutuações de peso, dos excessos que um sucesso fora de série parece sempre acarretar, numa proporção assustadora de tão directa. Mas também não falhou a redenção que We belong together ou seu aclamado papel em Precious ou lhe trouxeram. A par de Britney, com a devida salvaguarda do que as diferencia, mas que continua a ter fãs eternos e também passou por um escrutínio que quebraria o mais forte de nós, Mariah será talvez um dos poucos casos de real morte e ressurreição nesta indústria que esquece, permite e perdoa tão mais e mais rapidamente a homens, geralmente com agravantes bem mais negros do que os que estas duas figuras alguma vez poderão ter (veja-se Chris Brown ou R. Kelly e os recentes comportamentos preocupantes de Drake em relação a menores).

Falando em comparações, recordemos o que disse a saudosa Houston (com quem poderíamos fazer um paralelismo com Amy Winehouse ou Lady Gaga): “Mariah is Mariah”, e talvez isso seja a única e a melhor coisa que alguém pode esperar de si mesmo e dos outros. Haverá luta mais dura, importante e recompensadora do que a de nos conhecermos e superarmos? Talvez a humanidade e a imperfeição sejam, a par do carisma e da centelha divina das suas vozes, o que faz um ícone. Como diz o ditado, it takes one to know one e, se Houston é The Voice, Carey é The most. Agora, se me dão licença, vou voltar a João Barrento, um outro tipo de ícone, pois ainda tenho muito que aprender.

31 Jan 2019

Uma gota de glitter

[dropcap]T[/dropcap]enho um trabalho de casa e queria que João Barrento o fizesse por mim. Estou a ler o seu conjunto de crónicas, Uma seta no coração do dia, cujo belíssimo título me recorda Huxley e o seu Brave new world: “Words can be like X-rays, if you use them properly – they’ll go through anything. You read and you’re pierced.” Gostaria de pensar que serei uma escritora melhor depois de ler Barrento, cujo A chama e as cinzas aguarda a sua vez na minha pilha de livros, recomendação do meu amigo Ricardo Falcão. Mas não venho falar de Barrento, nem de Huxley, e sim de Mariah Carey, que ouço muitas, muitas, mas mesmo muitas vezes enquanto leio ou faço outra coisa qualquer. Há alguns anos, imaginei uma Batalha dos Advérbios, Aldous Huxley vs Mariah Carey. Huxley: expressionlessly, startlingly, imploringly, inconspicuously, revoltingly, reassuringly, terrifyingly, despairingly, patronizingly, piercingly. Carey: abandonedly, painstakingly, consequently, incessantly, inadvertently, unendingly, threateningly, convincingly, subconsciously, consequently. A meu ver, Carey ganha. Mas talvez porque eu sou uma assumida freak de Mariah Carey, que o é, claramente, de vocabulário. Quem nunca acordou e se preparou energicamente para um novo dia ao som de Emotions ou rodopiou pela cozinha de braços estendidos desafinando melancolicamente I still believe?

Quem nunca chorou ao som de Petals, I don’t wanna cry, Love takes time ou se sentiu melhor depois de ouvir Someday, Everything fades away, Obsessed ou Everytime you need a friend? O escritor islandês Sjón disse, numa entrevista: “We should not be afraid to work with the things that impressed us when we were at our most impressionable. (…) Very few of us grow up in a castle and have private tutors who teach us Greek before noon and Latin in the afternoon and then we take piano classes and learn about classical painting or something. All of us come to culture through trash. And there are so many people who are embarrassed about what excited them. If you came to storytelling through the Spice Girls, then this is how you got introduced to storytelling. Work with it.”

Eu cresci a ouvir Spice Girls e Sade (The best of Sade é o álbum que ouvi mais vezes em toda a minha vida), mas também Tabanka Djaz, Os Tubarões e Bob Marley. Não sei tocar piano mas gostaria. Carey não cresceu num castelo mas tornou-se a moça pobre por quem um príncipe se apaixona e a leva para o seu reino onde vivem até ela sair da discográfica. E então a moça pode começar a ser feliz quase para sempre e, até, comprar o piano do seu ícone, Marilyn Monroe, cujo nome inspiraria o da sua filha ou versos das suas canções mais recentes. Um dos meus temas preferidos de Carey é Make it happen, poderosamente autobiográfico e inspirador, e um pequeno mantra para todos os dias, os difíceis e os outros, relembrando que persistir é preciso, mas não sem uma fé que por acaso partilhamos, e nos mantém por cá quando tudo se desmorona. Para muitos, os que sabem ou não negam saber quem ela é, Mariah será uma diva pop louca, gasta, irrelevante e irritante, com decotes exagerados e uma obsessão por sapatos (compreensível, para quem conhece a sua história). Para muitos mais ainda, um ícone merecedor de um movimento como o recente #justiceforglitter, empenhados como estavam os seus fãs em fazer chegar ao primeiro lugar um álbum que, após ter sido um fracasso, tal como o filme de que era banda sonora, se tornou um objecto de culto, com a sua vibe de anos oitenta, talvez pensado à frente do seu tempo. Só o amor dos fãs para destronar o álbum mais recente de número um por outro mais antigo. Mariah a vencer Mariah, ou será Bianca, o seu alter ego que encontramos nos vídeos de Heartbreaker com Jay Z e do seu remix com Snoop Dogg no papel de noivo e Da Brat e Missy Elliott como madrinhas? Heartbreaker que, originalmente, foi pensado para ser parte de Glitter, mas cuja inclusão no álbum anterior, Rainbow, se tornou uma benesse na época mais sombria da carreira da cantora, compositora, produtora, actriz e, agora também, mãe.

Crescer com Mariah Carey é conhecer Mariah Carey e conhecê-la é, sem dúvida aceitá-la e amá-la até ao fim dos nossos dias, perdoando todas as falhas e celebrando todos os intermináveis sucessos. Num mundo em que já não restam muitas das lendas originais, tendo perdido Aretha Franklin (uma das suas principais influências) ainda tão recentemente, e com as demais figuras míticas tão perto da terceira idade, Carey, que viu partir tantos dos seus talentosos amigos da velha escola, com quem colaborou ao longos de décadas, estará, talvez, aos quarenta e oito anos, a meio caminho de algum lugar (ainda mais) importante. Nomeada, com outra das suas amigas próximas, Missy Elliott, e inspirações, Chrissie Hynde, para o Songwriters Hall of Fame, lutou sempre para ser vista como a escritora de canções que é, sendo que escreveu todos os seus temas, excepto as covers e o dueto com Trey Lorenz, I’ll be there, e When you believe, dueto com Whitney.

Temos outras grandes cantoras também autoras de muitos dos seus sucessos (pessoalmente, destaco Tori Amos, Kate Bush, Alanis Morissette e Fiona Apple, esta última creditada por Diddy como uma das que mais o influenciou), mas só Mariah ultrapassou Elvis enquanto artista solo com o maior número de canções a chegar ao primeiro lugar. À sua maneira, lutou para que houvesse esse reconhecimento e multidimensionalidade, a par com o que era dado tão facilmente a outros, bastando que fossem homens ou, sendo mulheres, tocassem regularmente algum instrumento. Ora, Mariah assume tocar mal o piano e poucas vezes a vemos dançar, em palco ou num videoclip. Mas esta é a mulher que uniu o pop com o hip hop e o rap e será, ainda, quem melhor continua a fazê-lo. Num mundo de artistas como Ariana Grande (também capaz de fazer o whistle de Minnie Riperton, que começou a carreira com covers de Carey no Youtube até ser descoberta, assídua colaboradora de Minaj e, infelizmente, também com um atentado terrorista a marcar a sua carreira), não podemos esquecer que foi Carey a primeira grande artista a colaborar com uma ainda pouco conhecida Nicki e a incluí-la no vídeo, antes mesmo de Minaj ter lançado o seu álbum de estreia, e ainda longe do estatuto que depois se lhe atribuiu de rainha do rap, discussões no American Idol à parte. Não podemos esquecer que Mariah teve um mega hit com o título Shake it Off dois anos antes de Taylor Swift, e que só não chegou ao primeiro lugar porque, bem, Mariah já lá estava com a canção que seria a sua segunda a ser considerada canção da década. Nem tão pouco podemos esquecer que Glitter foi lançado no pior dia possível, o dia do atentado contra as torres gémeas, que mudaria o mundo para sempre, e que também Carey lida com doença mental e insónia desde tenra idade, tendo demorado muito para assumir e, consequentemente, tratar a sua bipolaridade.

(continua)

24 Jan 2019

Inserir nome de família

– Diz à Gisela o que disseste ainda agora.
– Que se dormisse lá em casa ficávamos em família.
– E que mais?
– Como antigamente.

*

[dropcap]E[/dropcap]les falam ao mesmo tempo, um por cima do outro, completam as frases um do outro, refilam um com o outro, confundem-se um com o outro, e ora competem sobre quem vai contar uma história, ora pedem ao outro que a conte. Servem-me café, sumo, tosta mista com manteiga, bolo-rei. Não lhes posso recusar nada e eles oferecem-me tudo. A televisão ligada nalgum programa da tarde. São os mesmos sofás verdes, mas a casa já não é a de antes. Já não é comprada e já não é aquela onde viram filhos e netos crescer nos últimos quarenta anos, e onde estive à mesa do almoço tantas vezes, terminando refeições com um licor caseiro. Estão muito magrinhos, digo. Mas eles sabem. Poderia ter dito: estão muito velhinhos, afinal ele está a uns dias de fazer oitenta anos. Mas eles sabem. Eles sabem tantas coisas.

Ela vai buscar-me à estação e, num regresso lento e cuidadoso, sempre a pé, fala-me dos últimos problemas e da vida nova, umas ruas abaixo da morada anterior. Reparo na igreja onde também já estivémos. Faz-me uma visita guiada à casa antes mesmo de o marido se levantar da sala e vir abraçar-me no corredor. Um abraço como só alguém que pensou que nunca mais nos veria pode dar. Brinco com ele: digo, as coisas que faz para ter atenção e histórias para contar. E se há alguém que tem histórias para contar, são estes dois.

O meu filho dizia, porque é que arranjaste uma rapariga, foi só para me chatear? Mas tu querias uma mana. Queria, mas uma coisa destas não. Na escola ele sentia-se infeliz, porque era o único que não tinha irmãos. Só que a irmã era um terror. Dez anos de diferença. No entanto, as fotografias de ambos mostram somente o amor entre eles.

Escusas de estar a enganar-me. Foi mesmo assim, o mais novo foi buscar o tablet e disse, A internet mostra como é estar nos cuidados intensivos, e se é assim que ele está, tenho de ir vê-lo. Mas claro que não podia e, quando ele finalmente pôde, eu já estava na enfermaria. É o que dá deixarem os miúdos ir à escola, aprendem a ler e a escrever e a navegar na internet, não podemos mentir-lhes. Já o mais velho, a primeira vez que foi visitar o avô, foi logo lá para fora chorar. Foi ele que me tirou do fundo do poço, quando nasceu. Tomei conta dele. Ele lembra-me muito o meu filho.

Tive uma tuberculose pulmonar aos onze anos. E depois voltou quando eu estava grávida, afectou-me os ossos. Estás a ver a tartaruga dentro da carapaça? Era ela mas num tabuleiro de gesso, numa gaiola, diz o marido. Só pensava no meu filho. Ele nunca me tratou por mãe. Perguntava: “Mãezinha, quando é que vais para casa?” E eu deixava-o com a ama ou com familiares e ele detestava porque não o tratavam bem. Os outros miúdos eram maus para ele. À sexta-feira, depois de deixar esta, ele vinha passar o fim-de-semana comigo. Foi praticamente um ano deitada, paralisada, um ano de visitas diárias ao hospital. À minha filha, agora, o médico disse, Despeça-se do seu pai porque ele não vai sobreviver. Mas o colega dele visitava-me todos os dias, nem ia para casa, queria cuidar de mim a toda a hora. E sobrevivi. O pai chora.

Ele sobreviveu melhor porque trabalhava, saía de manhã, vinha à noite. Eu estava em casa. Já me tinha reformado, cedo, por causa do problema nos ossos e das operações. Ao fim de tanto tempo de baixa, foi automático. Quando ele tinha de ir para algum lado por causa do trabalho, eu ia com ele. Havia dias em que eu não podia ouvir nada, dias em que eu não podia levantar-me para vesti-la, para ela poder ir para a escola. Eu dizia, espera só um pouco que a mãe já levanta a cabeça e já te ajuda. E ela dizia que não precisava de ajuda, que já sabia escolher. E eu dizia, então veste o que quiseres e depois a mãezinha já vê. Ela virava costas e ia a casa da vizinha pedir que a vestisse. Outro dia ela disse-me, Eu sei que preferias que tivesse ido eu em vez do meu irmão, eu sei que não fui planeada; fiquei tão triste, aquilo magoou-me muito. A mãe chora.

Feitios diferentes, apazigua o marido. Eu sei porque é que ela diz aquilo. Porque ela estava sempre sozinha. E já o meu filho tinha ficado sozinho. E depois nós ficámos todos sem ele. Eu fiquei desorientada, fiquei de cama, só eu e Deus sabemos o que passei. Ela diz que nos esquecemos dela.

Em Tenerife achei que ia voltar para Portugal num saco-cama. Olha, não terias passado por esta de agora. Pois não. Eles entendem-se mesmo no humor negro. Tenho passado bons momentos na vida, conclui. Passeei bastante, gozei bastante enquanto tive saúde. Se voltar a ter, gostava de ainda fazer algumas coisas. Ir à Madeira. Falam-me de todas as viagens que fizeram, em férias ou em trabalho. Contam as últimas dos netos, do genro, da filha. Mais tarde ela liga-me, diz, Os meus pais adoraram a tua visita. Eu não deixei de pensar neles desde então.

Acompanhamos pessoas a uma missa pela alma do filho, do irmão morto ao dezasseis por um colega mais velho, com uma faca de ponta e mola, sem nunca se saber o motivo. Vamos buscar os miúdos à escola com elas. Vamos juntos para a piscina. Telefonamos de vez em quando ou eles a nós. Partilhamos histórias de cirurgias, exames e sintomas que os médicos nunca chegam realmente a saber o que são, apenas o que não são. Vamos com elas ao supermercado, rimos com elas, pensamos em como sobrevivem com tanta dor e durante tanto tempo. Sabemos dos comprimidos para dormir, das mudanças, das avarias, dos tribunais, dos dias em que pensaram tirar a própria vida. Das coisas ditas sem querer. Da generosidade imensa, do cuidado.

Sabemos que houve alguém que se assumiu culpado de um crime sem testemunhas e depois se enforcou, vinte anos depois, sem que se soubesse porquê. E há quem tenha de continuar, quem carregue um corpo consigo, apenas com algumas pausas pelo caminho, a vida toda. O peso de uma vida que mal começara a ser, e que poderia ter sido tanto para tanta gente. Uma memória como uma ferida em constante reabertura. Talvez só um filho seja mesmo insubstituível. Talvez o corpo, o karma ou a necessidade de punição por se estar vivo e o outro não, atraiam tantas outras situações de sofrimento. Talvez se busque uma dor que possa ser maior. E se falhe constantemente. Estas pessoas, que são tão reais, tornam-se parte de nós, tornam-se as nossas pessoas, mesmo se com outro nome de família.

Não sei quando se esclarecerão todos os equívocos e nem sempre a redenção chega antes da morte. Duas pessoas raramente contarão a mesma história da mesma maneira, e o que recordamos uns dos outros dependerá sempre do lugar sombrio ou mágico onde nos tiverem tocado. Mas gostaria de acreditar que sim, que há algo de luminoso que une as famílias, mesmo as que tantas vezes não se entendem, mas nunca deixam de estar lá uns para os outros.

*

– Lembras-te de quando dormiste lá?
– Lembro.
– Eu também gostei. (Dá-me dois beijos)
– Ó puto, eu não te disse se gostei ou não…

10 Jan 2019

Ti Coelho

[dropcap]O[/dropcap] Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na quarta feira. Apenas fingiu que sim. “Parece que me lembro, menina, mas não estou a ver de onde…” Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive receio de perguntar, num dos anos em que eu mais ganhei dinheiro. A minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto, parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas, reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções do latim mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos. Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos, ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava, que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior o churrasco da Petra. Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a prenda um livro sobre viagens em África, para eu estar “mais em contacto” com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior o carro da Tânia ficar sem bateria. Podia ter sido no dia anterior eu ter começado a levar a máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos. Mas não pensei nisso, quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia. Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a ver-nos pela primeira vez? E que mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu, poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.

27 Dez 2018

Gardénias Brancas

[dropcap]N[/dropcap]unca gostei de me sentar na parte de trás do autocarro. Já desde os tempos de escola, parecia ser o lugar reservado (reivindicado por eles, até) aos rufias, mal-comportados e barulhentos. Ao longo dos anos, sempre preferi as primeiras filas e os primeiros lugares, na sala de aula e nos transportes públicos. Ando de transportes quase todos os dias, já sem regras muito definidas sobre a parte da frente ou o fundo, mas hoje reflicto muito mais sobre o lugar que ocupo, interior e exterior.

Outro dia respondi a um anúncio para uma curta-metragem. Enviei duas fotografias, o clássico rosto e corpo inteiro, e algumas informações. Em resposta, ouvi que gostaram muito do meu look, e que havia um outro papel para o qual queriam que eu lesse: o de senhora da limpeza, cleaning lady (é uma curta americana), empregada, governanta, como quiserem chamar. Talvez alguns ainda sejam do tempo em que se dizia criada.

Eu não sou malcriada, e como encontro sempre algo de positivo em tudo, lembrei-me de imediato da empregada mais famosa retratada por uma negra: a Mammy, de E tudo o vento levou. Foi este papel que arrecadou o primeiro Óscar alguma vez ganho por um afro-americano. Entre o Óscar de McDaniel e o de Whoopi Goldberg, a segunda a ganhar o prémio de melhor actriz secundária, passariam cinquenta anos.

Este meio século é maior do que o espaço temporal que separa a primeira modelo negra a encerrar um desfile Chanel vestida de noiva, Alek Wek, da segunda, Adut Akech Bior. Este ano, contudo, Karl Lagerfeld voltaria a estar nas bocas do mundo pois, em mais de um século de existência, finalmente a marca contratou o seu primeiro modelo negro, Alton Mason.

Confesso, envergonhada, que nunca pensei muito nos modelos negros masculinos: onde estariam, se teriam trabalho. Talvez estivesse muito ocupada a olhar para Naomi Campbell, detentora de tantas primeiras vezes (primeira modelo negra a aparecer na capa das Vogue inglesa e francesa, e na revista Time) numa carreira que, por momentos, quando era muito nova, pensei seguir. Ser a primeira pessoa a conseguir algo, quando isso acarreta uma afirmação muito maior do que a pessoal, é uma responsabilidade agridoce.

Quando se trata de minorias étnicas, ainda mais. Sandra Oh foi, também em 2018, a primeira actriz de descendência asiática nomeada para um Emmy, prémio que existe há setenta anos. Ser o segundo ou o terceiro ainda pesa muito, sobretudo se os intervalos entre os feitos forem de décadas. Cada conquista é um peso e um bálsamo, um evento e uma revolução, um movimento ou a promessa de mais lugares, visibilidade e igualdade. Hattie McDaniel fez História num hotel segregado, não podendo sentar-se no mesmo lugar que os seus pares. Por não se ter assumido politicamente e ter feito papéis estereotipados, foi criticada pela comunidade negra, ao que respondeu celebremente que poderia ser uma empregada e ganhar sete dólares por dia ou fazer de empregada e ganhar setecentos dólares por semana. Sobre o escândalo de Kevin Hart, e a apresentação dos Prémios da Academia, alguém disse que Hart não deveria pedir desculpa novamente por declarações do passado, pelas quais se achava já redimido, pois a Academia nunca o fez em relação a McDaniel. O tempo passa, mas a hipocrisia não. Se o tivesse, poderia marcar os dias no calendário Pirelli 2018, totalmente protagonizado por negros, com temática de Alice no País das Maravilhas e até um coelho preto.

Aguardo o resultado do casting. Nunca trabalhei nas limpezas, mas sou obcecada por elas. Acredito que é impossível não sorrir e abanar a cabeça ao passar por uma cabo-verdiana a falar alegremente ao telemóvel com alguma amiga, enquanto faz o seu trabalho. Se perceberem crioulo, ainda melhor: têm a experiência completa. O cliché é real e a luta também. Acredito em ter flores no cabelo, em vida e na morte, como foi expresso por McDaniel enquanto desejo fúnebre. McDaniel, que era filha de antigos escravos, e fez o papel de uma; McDaniel, a actriz de vestido azul e gardénias no cabelo, cuja presença em determinados lugares dependia de chamadas, pedidos e favores, devido às leis da altura, e que nem assim pôde assistir à estreia do seu filme. McDaniel, que tinha um agente branco, e também foi a primeira actriz negra a ter o seu próprio programa de rádio, lutou para que os negros pudessem viver na zona das famílias brancas em Los Angeles.

McDaniel, cujo prémio físico, na altura ainda não uma estatueta, se perdeu e nunca foi recuperado. McDaniel, com uma estrela no passeio da fama mas rejeitada no cemitério que escolhera. McDaniel, que sabia quem era quando as câmaras deixavam de gravar e que fez inúmeros papéis sem ser acreditada por eles. Hattie fez a sua escolha e o seu papel num mundo muito mais fechado do que o de hoje. Talvez pudéssemos todos dar mais a cada causa, ou talvez nos vejamos sujeitos a ter de fazer o que abominamos em prol de facilitar as coisas para quem vier depois. Para dizer: estou aqui. Para que outros não tenham de fazer o mesmo.

Gostaria que fossem precisas cada vez menos autorizações para existir. Mas também gostaria que fizéssemos tão mais do que isso. Gostaria de definir o meu lugar e o meu papel. Gostaria de fazer a empregada da limpeza na curta, mas só porque sei que também o faria fora da tela, se precisasse de sobreviver, e que isso não me define, nem define o meu valor. Às vezes, antes de podermos servir a causa, ou para podermos servir-nos melhor uns aos outros, temos de nos servir a nós mesmos primeiro. Ninguém o disse melhor do que Daniel Faria: “Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.” Ele era mais de magnólias, mas sei que teria entendido a beleza das gardénias brancas.

19 Dez 2018

Um espectáculo, digo eu!

[dropcap]N[/dropcap]o caminho para a paragem, onde se cruzam eléctricos e autocarros, distraída e com sono, quase piso a passadeira ainda a ser pintada de fresco. Há operários, cones de sinalização, luzes amarelas e coletes reflectores. Alguns metros à frente, os homens do lixo fazem a recolha. Levo a mão à cabeça para ter a certeza de que não trouxe um capacete em vez do gorro. Fico confusa por momentos; poderia julgar que o ensaio acabara e que já não estava em directo do grande auditório do CCB, onde o público aguarda o início de mais uma criação da mala voadora e sim na rua, em Lisboa. O autocarro chega e a viagem é feita aos solavancos. O cheiro a frango assado que o passageiro sentado atrás de mim devora torna tudo mais real. É o descanso do trabalhador, a marmita tradicional, o piquenique em movimento para quem ainda tiver forças para comer a esta hora da noite.

As últimas semanas foram intensas e exigentes, e nesta viagem que nunca começa para todos ao mesmo tempo, apenas termina, encontramo-nos cada vez mais lado a lado para ensaiar, jantar quando conseguimos, fumar um cigarro, tocar piano a quatro mãos, apertar um botão da camisa ou acertar colarinhos no último segundo, mandar calar, matar os colegas cem vezes na nossa cabeça, apenas para depois com eles dançar em conjunto entre cada cena, fazer rir e trocar histórias, para desesperar e zangar. Temos pouco tempo e no entanto há sempre tempo para atrasos, faltas, momentos de diva, para ficar doente, mudar de ideias, perder e reaver objectos, habituar-se a que tudo mude todos os dias e mais do que uma vez por dia, cortar e acrescentar cenas, cimentar e criar amizades, e ainda cobiçar todo o guarda-roupa do director artístico. Não importa como se chegou aqui, agora estamos juntos nisto.

Sábado de tarde: turistas e locais passeiam, fotografam, lancham e apanham sol, como sempre ou talvez com maior fervor, pois afinal é um feriado religioso. Técnicos fazem greve, como é de seu direito. O espectáculo é cancelado. Sucedem-se as mensagens, telefonemas, suspiros e brados de revolta, tristeza, desilusão e frustração. Como manda o figurino, há uma reunião de última hora com quem de direito e com direito a explicação, que sabe naturalmente a pouco, sabe talvez a algum do material usado na construção do cenário. Existe solidariedade de parte a parte, só tenho pena que o “crítico” não tenha escolhido o dia de hoje para vir ao teatro. Provavelmente teria apreciado mais esta versão. Fausto não é para todos, não agrada a todos (de qualquer um dos lados do palco, pois acreditem que é possível fazer um espectáculo de que não se gosta) mas é, inegavelmente, sobre todos e dá um lugar e visibilidade a todos. Sou suspeita mas, pessoalmente, é isso o que me interessa na arte. E o respeito por quem trabalha, claro. Em Fausto, trabalhou-se e aprendeu-se muito.

Um coro, um rancho e um stripper entram num palco… Ganhamos mais do que perdemos. Para trás ficam lantejoulas, folhos, escudos, luvas e cacetetes, azulejos e leques, camas de hospital e os vinte cinco anos do Centro Cultural de Belém. Fica a festa possível, sem esquecer que são as pessoas que fazem as instituições. As recentes greves demonstram isso, sejamos estivadores ou actores na tv ou no teatro. Ou todas as profissões que estes últimos representam, por vezes até fora do blueroom. Alguém disse que a ambição é necessária para a realização. Eu penso nos Apanhados TVI e RTP e em maquilhagem que serve para nos fazer parecer que estamos sem maquilhagem e, de algum modo, tudo isto parece fazer sentido.

Conto, para que vocês acreditem. Talvez este seja o final, o único final possível. Mais irónico e genial do que qualquer um de nós poderia ter criado intencionalmente. Nós, a equipa, saímos de malas e bagagens como tantas vezes estivémos em cena. Talvez a arte não imite a vida, apenas a amplifique, pois em Fausto houve manifestações, revoluções, feridos e queimados, migrantes e desempregados. Talvez esta greve tenha o seu quê de justiça poética, não houvesse também um grupo de juízes em cena. Mas agora é hora de arrumar tudo, apagar as luzes, apanhar novo eléctrico, novo autocarro, e voltarmos a ser as pessoas de todos os dias, sem fronteiras e quase sem limites. Caótica e elegantemente, como um povo e uma família de artistas que se preze.

13 Dez 2018

Partir o pente

[dropcap]A[/dropcap] minha irmã acha que eu deveria cortar o cabelo, logo agora que recebe mais elogios que nunca. Divertida, faz-me sinais de uma tesoura invisível, sorri e oferece-se, “Se quiseres eu corto”. Não tenho usado muito os bigoudis que dela herdei quando decidiu cortar o longo cabelo bem curtinho, há uns anos. Agora, tem uma afro invejável, com tons entre o loiro e o castanho. Uma vez, numa loja de acessórios, dei por ela a experimentar uma peruca. Retorquiu, “O que foi? Sempre quis saber como ficaria se fosse loira.” É difícil cabermos, e aos nossos cabelos, por inteiro na mesma selfie, mas ambas continuamos, cada uma num país, a lidar com estranhos que insistem em tocá-los. Suspiro. Da raiz até às pontas.

Vejo vídeos sobre como fazer a transição capilar, reeducar o cabelo, fazer o big chop total ou parcial, para ter uma só textura, para desintoxicar e recuperar o meu verdadeiro eu. Na série Insecure, Issa Rae e as amigas mudam frequentemente de penteado. Em This is Us, igualmente. Parece fácil e acessível. Em Keeping up with the Kardashians, a royalty da reality tv america é adepta de extensões e perucas. Muitas vezes, a sua origem é indiana ou vietnamita: as primeiras doam o cabelo ao templo milionário e as segundas usam-no para sobreviver e alimentar as famílias mais algum tempo.

Cabelo curto, comprido, desfrizado e natural, tranças, caracóis, liso e ondulado: já tive de tudo um pouco, embora nunca o tenha pintado senão de preto. Pouco original, bem sei. No processo, parti muitos pentes, dentes de pentes, cabos de pentes, como qualquer africana ou afro descendente que se preze.

Penso que não tenho mais paciência para isto do que para usar maquilhagem. Deixei de desfrisar o cabelo há dois anos, depois voltei a fazê-lo, e já só o fazia uma vez por ano, no momento de maior desespero e embaraço, quando o pente ameaçava partir-se novamente, após logradas tentativas de domesticação. Arrependo-me e penso, agora vou ter de começar de novo. No entanto, trouxe recentemente do supermercado uma escova eléctrica. Apesar de ter um ferro de alisar e uma varinha de encaracolar, que raramente uso. Não tenho secador mas sei que, por uma vez, a explicação não cabe a Freud.

Se folheio a Poesia Toda, descubro em Herberto Helder Na cerimónia da puberdade feminina (dos índios Cunas, Panamá). A mesma inclui tesouras, cabaças, água e aguardente, lenços, mulheres e raparigas. Muitas vezes sinto saudades de ter tranças. Permanecem na memória como um ritual sagrado e moroso, em frente à televisão, com pequenas pausas e muita paciência, perfeição e minuciosidade das mãos maravilhosas da minha mãe e da minha tia.

Passaram dois anos desde o lançamento do icónico álbum de Solange, “A seat at the table”, e do hino “Don’t touch my hair”. Este single, que obriga a reflectir para além do já expressivo título, assenta muito bem num mundo em que o cabelo continua a ser motor de vítimas e de agressores, com mais ou menos silêncio e assumir de responsabilidades e preconceitos. O responder a uma pergunta que raras vezes é feita. Uma resposta pacífica para um gesto tantas vezes agressivo, se não físico, certamente mental e emocional. A artista explica “Don’t touch my hair / When it’s the feelings I wear”. Nada parece faltar a Solange. E nós sentamo-nos à mesa para pensar e lutar com ela.

Também em 2016, a ginasta olímpica Gabby Douglas foi criticada, sobretudo na comunidade afro-americana, pelo seu cabelo que, segundo os comentadores, se apresentou desleixado durante as competições. Gabby, uma jovem adulta digna de admiração, cedeu naturalmente perante tais reacções, quando deveria estar feliz, a celebrar a sua prestação e a medalha de ouro, a primeira ganha por uma afro-americana naquela categoria.
Início de 2018: uma mulher de nome Essie Grundy processa a cadeia de supermercados Walmart por suposta segregação de produtos de cabelo e pele destinados à comunidade afro-americana, guardados a chave num armário, como em Portugal vemos tantas vezes com produtos não conotados racialmente, mas que talvez tenham mais tendência a serem alvo de furtos, como artigos de higiene pessoal.

Se ando por livrarias ou supermercados, por todo o lado encontro Becoming, de Michelle Obama. A internet delira e ergue as mãos ao céu em júbilo pela sua cabeleira, em estreia natural e encaracolada na capa da revista Essence. Não foi assim há tanto tempo que os Obama deixaram a Casa Branca e o levantar de sobrancelhas que as tranças das suas descendentes causaram. Não foi assim há tanto tempo que, de Beyoncé, ouvimos “I like my baby heir with baby hair and afros.”

E se 2016 parece ter sido um dos anos capilares de maior relevo, a uma fotografia de Barack, de cabeça baixa, permitindo a um menino que lhe tocasse no cabelo para descobrir se seria igual ao seu, o devemos. Sou fã de Michelle, mas pergunto: porque é que o cabelo encaracolado não agraciou antes a capa da sua biografia, em vez da revista, e se manteve politicamente correcto, já depois da presidência? Talvez o mundo deva mais a Michelle do que o contrário. Talvez Michelle guarde o seu cabelo natural para a intimidade; talvez tenha sido este o seu sacrifício. Os Egípcios deixavam crescer o cabelo enquanto viajavam. Talvez Michelle, não tendo ainda chegado ao fim da viagem, apenas agora tenha conseguido fazer uma pausa para pensar. Talvez a sua pequena evolução pessoal e capilar ainda venha a tempo de ser uma revolução, talvez ela não seja o seu cabelo (bem, não mais do que qualquer um de nós, pelo menos) e estejam certas as culturas que acreditam que o cabelo é uma das moradas da alma e também o estejam as primeiras-damas que se protegem atrás dele. Talvez este experimentar constante, numa altura em que toda a gente se policia, seja apenas mais uma forma de aprendermos a suportar o nosso próprio peso.

6 Dez 2018

Eu também

[dropcap]“N[/dropcap]o outro dia chamaram-me bitch e eu sorri.” De cada vez que uma mulher nos conta algo assim existe, certamente e no mínimo, uma história semelhante que devemos partilhar. A geografia pode muito pouco contra o que vai no íntimo das gentes, e fronteiras, muros, géneros e espaços pessoais é fácil e conveniente, tantas vezes, ultrapassar.

Muitas vezes não me lembro do que aconteceu. Quer dizer, não penso no que aconteceu, não me surge de repente ao cair a chuva ou ao ouvir uma canção. Sempre tive uma memória demasiado boa até para o meu próprio bem. Não do género fotográfico, pelo menos não completamente, não só: a memória das emoções, da roupa que trazia vestida, de uma ou outra frase que seria insignificante para a maioria das pessoas, mas que se cravou no meu inconsciente talvez para o resto da vida (as frases sim, essas surgem sempre que lhes apetece, não tenho qualquer controlo sobre elas). Isto é diferente, talvez seja o meu próprio corpo a repelir essa memória com todas as suas forças. Porém, ela nunca mais poderá ser completamente apagada, e de vez em quando abre-se essa gaveta do meu cérebro (nunca poderia guardar essa memória no coração, já teria morrido por esta altura) ou talvez não, porque se seguiram outras tão más ou piores.

“Are you interested in writing a book?”, foi uma das muitas perguntas feitas por um grupo de senadores homens, brancos, a Anita Hill, professora universitária e activista negra, em 1991, aquando do processo que abriu contra o candidato nomeado para o Supremo Tribunal Clarence Thomas, que viria a ser confirmado juiz, o segundo negro a ocupar um dos cargos mais importantes do país. Negro e negra em lados opostos da justiça, ambos a fazerem história em simultâneo. Este nunca foi o plano. Estamos quase no final de 2018, e continuamos de costas voltadas em relação a isto.

Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Estava na escola primária e já fazia o percurso entre casa e escola sozinha, embora acompanhada por colegas de turma a maior parte do caminho. Mas eu estava a falar de quando andava na terceira classe. Costumava ir a casa de uma familiar que ficava num bairro a uns quinze ou vinte minutos a pé de nossa casa, brincar com as filhas dela. Elas eram mais velhas do que eu, e na verdade uma delas não era mesmo filha, mas era tratada como tal. Ela tinha, ainda, dois filhos. Todos eram mais velhos do que eu uns bons anos. Era sobretudo para não ficar sozinha em casa, para me livrar de sarilhos e do aborrecimento.

“Estou bem triste.” Assim começa uma mensagem de voz tremida. Pouco importa se vem de uma rapariga bonita. “Eu vinha do trabalho hoje, às sete da manhã e três homens começaram a dizer-me coisas, a chamarem-me de puta, vadia, a fazer gestos obscenos. Deviam estar bêbados. Entrei em pânico e comecei a gritar com eles também. Fiquei muito agoniada e comecei a chorar. Eu estava tão feliz, o trabalho tinha corrido bem, apesar de cansativo. Agora vou ficar com medo, agora vou ficar a olhar para todo o lado para ver se vem alguém.”

Ele devia ter uns quinze anos. Raramente penso nisto. É só mais uma das coisas que não posso alterar. A maior parte das vezes nem me lembro que aconteceu. Chamava-me ao quarto dele, conversava comigo e dizia que gostava de mim. Fazia-me deitar no chão e deitava-se em cima de mim. Tocava-me, fazia pressão sobre mim e tentava, constantemente, chegar mais longe, e como não conseguia, ficava zangado. Lembro-me muito bem de ter-se rido de mim quando, uma vez, fui até à janela e comecei a recitar os nomes dos meus colegas de turma. Uma das irmãs dele, uma vez, espreitou pelo buraco da fechadura, e disse que sabia o que estávamos a fazer, e que ia contar, mas não o fez. Eu mesma nem sei porque não o fiz. Por medo, talvez. Medo do que todos iriam dizer e pensar. Eu não percebia bem o que se passava, acho que parte de mim via aquilo como uma forma de afecto.

É o homem alto e forte com equipamento de ténis completo à porta do campo que fica ao lado de um supermercado onde vais tantas vezes após a escola, e que faz esperas e tenta falar contigo. É o funcionário da junta que varre as ruas e vai deixando pequenos bilhetes caídos no chão, pequenas cartas que entenderá certamente serem de amor para a tua amiga com doze anos, como tu; mais tarde é a história da tua prima aos catorze, e um vizinho e amigo da família. É a tua colega de faculdade num parque de estacionamento, e a amiga dela também, e contar-te isto na esplanada num dia de sol e alguma coisa gelar-te por dentro e te privar de empatia para com ela, como quem diz, faz parte, calha a todas, quem nunca. É aquela rapariga de há muito tempo, e o irmão e o segredo partilhado e calado por todas as irmãs. É a pessoa que admiras e respeitas e te diz todas as coisas que sempre quiseste ouvir sobre o teu trabalho, mas que momentos depois tenta beijar-te. É a pessoa que te procura para uma colaboração mas após uma série de observações intrusivas se propõe ir contigo para casa ao fim de um jantar que, para ti, era apenas de trabalho; é ainda aquela pessoa que justifica, “Se calhar ele estava só muito apaixonado”. E chegas a casa e rebentas num pranto e não consegues dormir, e a vida do outro segue como se nada fosse. É a actriz que se defende não se afastando, chocando e tentando reverter o nojo. É o actor que fala de aguentar o assédio porque são apenas três dias de filmagens, e lutou muito por aquilo, e tem de pagar as contas, e terá o trabalho para mostrar e para se consolar. É quem te julga e recorda que ninguém te apontou uma arma à cabeça, e que és uma desilusão. É quem fala mal de ti e acha que não tens direito a uma voz porque mandaste nudes a este e àquele e ao outro, ou porque és gay, ou porque és latina, ou asiática, ou trabalhadora do sexo, ou todas as anteriores. É a mulher de Thomas, deixando uma mensagem de voz a Hill em 2010 a exigir um pedido de desculpas. Ou o senador Alan Thompson a perguntar, ainda em 1991, “Why in God’s name would you ever speak to a man like that the rest of your life?”

Já era adulta quando falei nisso a alguém pela primeira vez. A vida por vezes é muito cruel. Foi um alívio quando a família toda se mudou para Inglaterra. Nunca mais os vi, e ainda bem. Mas nada tira o amargo de maçã podre. Temos tendência para relevar a fruta quando ela está tocada, cortamos e deitamos fora o que estiver manchado, ou oxidado, ou podre. Não queremos, não gostamos de desperdiçar nada, mas naquele caso eu não podia ficar com uma parte e esperar que o todo não estivesse envenenado. Era uma situação da qual só poderiam resultar mais vítimas, e assim deixei-me ser a única. Porque a vergonha e a culpa nos fazem sentir que estamos sós, que ninguém quer saber ou acreditar, que somos, realmente putas, desmerecedoras de compaixão e merecedoras de todas as coisas más, sortudas por haver quem nos queira, mesmo se pela força, mesmo se desta forma, porque nós começámos tudo isto apenas por existirmos.

Há pessoas que pedem desculpa e há pessoas que não. Há pessoas que se fecham para o mundo e para os outros e passam a viver como se fossem de cristal. Pessoas que se calam e pessoas que não o fazem. Há pessoas que se magoam mais e se desassociam de si, e entram num pesadelo de miséria e promiscuidade, em detrimento da sua já frágil condição. Que deixam de acreditar em si para acreditar no gaslighting do outro. Para alguns é compulsão e doença, para outros um momento menos brilhante, toldado pelo ego e por algum álcool à mistura. Concluo que será sempre demasiado cedo para poder chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que continuamos sem saber como lidar, como conviver uns com os outros, como amar, como respeitar, como entender.

“And I can’t explain; it takes an expert in psychology to explain how that can happen, but it can happen, because it happened to me”, disse ela, ainda em 1991. E os Sonic Youth responderam “I believe Anita Hill.” Eu também, eu também.

29 Nov 2018

Titanic

[dropcap]N[/dropcap]o primeiro dia, ela leva-me para o escritório e fecha a porta à chave atrás de si, apesar dos dois seguranças do lado de fora, sorridentes e prestáveis. Na verdade, lembram mais polícias do que outra coisa. A casa tem vigilância 24 horas por dia, explica. A nossa conversa interrompida por gritos e risos vindos do corredor e, depois, por batidas cada vez mais fortes e pedidos cada vez mais desesperados de um dos rapazes tentando entrar. Como se fosse arrombar a porta. Como se fosse a coisa mais importante, mais urgente do mundo, entrar por aquela sala adentro. Para quê?

Explicações, justificações e desculpas enquanto alterna o que nos trouxe ali com pedidos para que se acalme, e espere. Nada. Ele continua e, eventualmente, consegue entrar. Parece perturbado por alguma coisa ou alguém. Parece encurralado, tentando escapar. Parece em perigo, a precisar de ser salvo.
Ela pergunta, finalmente, o que é que ele quer, e ele responde conseguindo-o: um abraço. Aquele rapaz, nos seus treze anos e quase um e oitenta de altura, caracóis dourados e olhos claros, capaz de tamanha brutalidade para com uma porta, apenas exige, apenas quer do mundo um abraço. Assino os papéis.

Gostas de mim?

Silêncio. Ouviria esta pergunta dezenas de vezes por dia nas próximas semanas. Pijama polar azul, olhar fixo sobre a rua, à espera de ver os outros regressar, com telemóveis novos nos bolsos ou mais uma expulsão da escola. A mesma força bruta e incomensurável de antes. Força essa que o levaria a passar dois dias no hospital, ao partir a cabeça de propósito contra uma janela, por querer visitar um dos companheiros, que lá está por doença. Sempre a mesma pergunta e, quanto mais ele a coloca, maior a tendência para passar do silêncio ao sim, e de essa resposta passar de conveniente a verdadeira.
Claro que gosto de ti.

Desço para a rua. Nas escadas ecoa um assobio cujo dono eu ainda não sei reconhecer. Ao tema, sim: My heart will go on, de Céline Marie Claudette Dion.

Tenho tempo antes de começar. Como um gelado na praça, nas únicas vezes talvez em que não reparo em ninguém. Dois euros, três sabores à escolha e natas. Quero esvaziar a cabeça ou ganhar coragem. Estar preparada. Como se fosse possível.

Há sempre futebol quando venho. Dois ou três fazem questão de estar em casa nesses finais de tarde. Ocupam o sofá, mandam os outros calar. Sento-me a ver com eles. Nos intervalos, jogam hóquei de mesa. Noutra noite, participarei numa peça de teatro sem guião e sem público, repetida incansáveis vezes. Perucas brilhantes, de cores extravagantes, e vozes feitas grossas para a ocasião, muita gesticulação e um médico louco, que nos persegue no lusco-fusco. É suposto que nos deixemos vencer por um destino cruel ao som de gargalhadas maléficas.

Há um rapaz de quem toda a gente me fala, mas o tempo passa e não nos cruzamos. Parece que ninguém sabe o que fazer com ele e, como se comporta, deixam-no no que julgam ser em paz. Entretanto, deixo-me ficar com os dois irmãos: um joga no computador (carros), enquanto ouve rap tuga sobre como é difícil a vida nas ruas. Ensurdecedora, pelos vistos. O outro, o que me ofereceu chocolates uma vez, lê a Bíblia. Às vezes não sabe dela e não sossega enquanto um dos outros não a descobre e lha devolve. Normalmente, está no andar de cima, onde nunca chegarei a ir.

Quando volto, na semana seguinte, ele já não está lá. Foi transferido para outro lugar. Na parede, nas mesas, vestígios da festa de despedida do dia anterior: fotografias a cores dos rapazes e da equipa, felizes. Bolos, sandes, frango de churrasco, sumo. Agora foi-se o líder. Agora que íamos ouvir música, escrever e rever canções juntos. Agora que eu lhe ofereci o meu pin do Muhammad Ali. Agora que eu estava a tentar convencê-lo a regressar à escola. Agora que eu o fizera sorrir, e falar-me dos temas do rap que fazia e da rapariga de quem gostava. Agora que volta a ser um nome suspirado por todos os adultos e recordado respeitosamente por todos os miúdos.

Eu não sei o que fazer e, como tal, escolho o que sempre faço nessas situações: um bolo. A oito mãos, impacientes e conflituosas, curiosas e inexperientes, que vão seguindo as minhas indicações com mais ou menos nuvens de farinha no ar. Mas isto não é sobre o bolo, embora eu espere que as cabeças que surgem à porta com olhar de gula, desprezo e maldizer, sejam compreensíveis caso não esteja como querem. É, ainda, a estreia do forno que não consigo entender de imediato como funciona. Ajudam-me. Ainda há muito por fazer e por limpar.

Alguns recebem telefonemas da família. Outros, encontram-na nos que ali trabalham e estão presentes todos os dias. Alguém suspira. Alguém comenta o quão nova era a casa ainda agora e o quão destruída vai ficando a cada dia, conforme as energias negativas, de que me dizem estar cheios, vão sendo libertadas. “Se eles puderem roubar-te, não vão hesitar.” Quem confiará em quem primeiro? Há um momento de tensão, e outro, e outro. Alguém separa adulto e adolescente. Em breve, ela, a adulta, estará de baixa, oferta da casa. Mas voltará. Voltará sempre, porque entende. Porque escolheu estar ali.

“Quem és tu?” Apresentam-me. Apresento-me. “Deve ser a nova estagiária.” Já no sofá, em sossego, continua: “Tens filhos?” Respondo. “Não te preocupes, miúda, um dia ainda vais ser mãe.” E mal tenho tempo de processar isto quando regressam os outros, como quem tivesse estado à escuta: “Vieste buscá-lo? És a tia dele?” Contam-me que uma ex-funcionária tentou adoptá-lo mas não conseguiu a aprovação. Queria levá-lo de novo para a terra onde nasceu, mas acabou por desistir. “Era a oportunidade de ele sair daqui. Vai sempre depender de alguém. Não sei o que vai ser dele.” Ele. Tenho carinho por ele.

Quando vou a casa dos meus pais, na semana seguinte, resgato o velhinho 20,000 Léguas Submarinas. No quarto, lemos juntos, à vez. Confessa, às vezes tenho uma escuridão dentro de mim. Daí a Bíblia. Tem medo, e um dos sorrisos mais bonitos que já vi. À nossa volta, posters e mais posters do filme Titanic, o seu preferido. Vê-o todos os dias. Chora sempre. Convida-me para o seu aniversário, daí a dois dias. Deixo-o descansar.

Saímos os três para a noite fria. Estou de totós, que outro dia aprendi dizer-se Maria-Chiquinha, no Brasil. “Pareces a Harley Quinn”. Fico a olhar para ele e digo a mim mesma: disfarça, não queres que deixe de pensar que és fixe. Continuamos a volta ao bairro. Estão a aprender a dar a quem precisa. Levam comida para quem a não tem. Eles que já têm tão pouco, e de quem apenas se espera o pior. Mas a verdade é que perto, longe, onde quer que estejamos, tornam-se facilmente os nossos miúdos preferidos. Mesmo quando se peidam sem pudor e evitam tomar banho por tanto tempo quanto possível. Mesmo se o autismo, a delinquência, o abandono, a deficiência. Ah, rapazes perdidos. Fosse o mundo assim tão puro.

22 Nov 2018

Júlio

“It has been a beautiful fight. Still is.” – Bukowski
Em memória de Júlio Ávila

[dropcap]A[/dropcap] mercearia chinesa da minha rua fechou. Não aceitavam cartão, nem de pagamento nem de desconto. Mas sorriam sempre, embora nunca perguntassem pelo contribuinte na factura. É verdade que, nos últimos tempos, já só lá ia para comprar melancia, quartos de, a noventa e nove cêntimos o quilo e todo o sabor do mundo. Um sabor rosa-vivo simples, a única coisa que me apetecia, por vezes, comer. Melancia que levei para casa, para o trabalho, para a praia. Que comi sozinha e partilhei. Triângulos e triângulos de consolo e doçura. Arestas, faces e vértices que não magoavam, e de que era segura a repetição. Não sei o que dizer mais do que sei o nome da tua avó, que te ofereceu melancia cortada aos cubos no que agora lhe deve parecer ter sido ainda outro dia. Não tenho avós há muito tempo, e pergunto-me se a tua terá ouvido falar da Björk, que também sabe uma ou outra coisa sobre melancias. E lágrimas.

Conseguiste. Que o carro passasse na inspecção. Conseguiste. Que a vida deixasse de passar por ti e te magoasse. Tu tentaste e não falhaste. Aprendeste o nó que desfez os teus, não importa se nos deixou um permanente. Ninguém deveria poder dizer que nos desapontaste.

Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação não relevante e em carência de quase tudo o resto

Contigo fui turista e visitei uma igreja, partilhei a mesa do almoço, a vista do miradouro do Outeiro da Memória, a melhor amiga, uma grande moca, gargalhadas, o teatro, a escrita, o peso da vida. Trazias uma t-shirt azul no dia em que te conheci. Letras em degradê laranja e amarelo, calções e chinelos. Éramos quatro. Mesmo nessas fotografias desfocadas, continuamos a ser quatro. Eu estou do lado de cá, mas senti-me em casa convosco. Lembro-me de não estar bem, de ser a única desabituada à altitude. Lembro-me de que, no último ano, todos quiseram deixar de estar aqui, tentaram e quase conseguiram. E pergunto-me se algum dia vocês, desculpa – se eles se vão habituar à vida. Pergunto-me se alguém mais vai conseguir. E dou por mim a rever conversas e a enviar mensagens e a querer marcar viagens. Quem me dera ter voltado aí. Agora sei que nunca vou sair.

Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação não relevante e em carência de quase tudo o resto. Vivemos em estado de depressão e de distracção, mas tu sabias estas coisas. Tu sabias de ti. Tu prestavas atenção.

Saber muito pouco de alguém e ainda assim ser de repente a pessoa em quem mais pensamos, e isto servir para nós e para os outros. Ir de casa para o trabalho, da terapia para os medicamentos, de mal a pior, de millennial a memorial. Deixar de ter um nome para passarmos a ser também um evento, uma descrição, uma memória. Fazer um testamento real para a persona virtual. Estar sempre a um ecrã de distância das nossas pessoas preferidas, até de nós mesmos. Sim, porque deveríamos saber ser uma das nossas pessoas preferidas. Tu certamente o és, serás para muitos, serás para sempre.

Onze, catorze, quinze, dezasseis. Um dia para nascer e três para morrer. Mil novecentos e oitenta e seis. Dois mil e dezoito. Abril, Outubro e trinta e dois anos e meio entre eles. Nasceste, cresceste, viveste, morreste. Tu estiveste aqui. Tu estavas, realmente, vivo. Ficaste mais quando foste embora, tu que já eras tão grande. Tu não desapareceste. Obrigada por tudo o que escreveste.

Esperarmos que as pessoas que gostam de Júlio encontrem algum conforto ao visitar o seu perfil, para relembrar e celebrar a sua vida.

It has been a beautiful life. Still is.

14 Nov 2018