Patuá | Miguel de Senna Fernandes quer passar peças dos Dóci Papiaçam di Macau para livro

Miguel de Senna Fernandes quer editar em livro as quase 30 peças levadas à cena pelos Dóci Papiaçam di Macau. Por ocasião da palestra online “Os Crioulos de Origem Portuguesa na Ásia”, o advogado afirmou que o idioma continua vivo e a evoluir, por exemplo, na forma de falar português dos macaenses. Os académicos Mário Pinharanda Nunes e Raúl Gaião apresentaram estudos sobre o crioulo e discorreram sobre a sua evolução

 

Miguel de Senna Fernandes, advogado e director do grupo teatral Dóci Papiaçam di Macau revelou ter planos para publicar em livro, pelo menos em patuá, português e chinês, os textos que estiveram na base das peças levadas à cena pelo grupo. O projecto, contou ao HM, está a ser delineado com a investigadora académica macaense, Elisabela Larrea.

“Ainda vou publicar as peças de teatro [em livro]. Já lá vão 28 ou 29 peças. Seriam vários volumes. Tenho um projecto pensado para isto com a Elisabela Larrea. É fundamental. O trabalho dos Dóci Papiaçám tem de ser convertido em obra escrita. Suspendemos este trabalho, mas temos mais ou menos uma ideia de como fazer a coisa. Não nos interessa ter um livro só em patuá, isso ninguém vai ler, mas, naturalmente, uma edição também em português e em chinês”, partilhou. O director dos Dóci Papiaçam vinca ainda que, por isso mesmo, “é muito importante definir bem uma estratégia”, considerando ser uma obra “sobre o património intangível de Macau”, que poderá ser apoiada pelo Instituto Cultural (IC)

As várias vidas do patuá

O Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) realizou ontem a sessão “Os Crioulos de Origem Portuguesa na Ásia”. Contando com presença de vários linguistas e académicos especializados na área, a sessão abordou temáticas como as “ecologias endógenas e diaspóricas do patuá”, o português de Malaca e iniciativas de revitalização destes crioulos luso-asiáticos.

Miguel de Senna Fernandes, que também participou na sessão “Resgate do Patuá”, considera que, apesar de o idioma já não ter expressão prática, é necessário “olhar para o fenómeno linguístico do patuá de uma perspectiva actual e compreender o seu estado, onde é que se utiliza e porque é que se utiliza”. Isto porque continua a ser usado, de forma mais ou menos inconsciente, por muitos macaenses quando se exprimem em português.

“O patuá não morreu, há é várias formas de o falar. Muitos dos macaenses, quando se exprimem em português, falam a partir do patuá e, essa forma de falar e mesmo como constroem as frases, misturada com o português e o cantonês, por exemplo, tem muito de patuá. São registos e padrões de linguagem que denunciam uma sub-língua”, partilhou Miguel de Senna Fernandes, ainda antes do início da sessão de ontem.

Quando questionado sobre se é efectivamente possível resgatar o patuá, sublinha que um “resgate” não pode ser entendido com a finalidade de “pôr as pessoas a falar patuá outra vez”, pois é uma língua que já não tem razão prática para existir.

“As condições do aparecimento da língua já não existem. O patuá formou-se há mais de 200 anos, num contexto social muito próprio da altura. Hoje em dia, este contexto não existe e, se existisse, teria que ter características muito especial e uma função para que as pessoas voltassem a utilizar com frequência o patuá como veículo de comunicação”, acrescentou.

No entanto, aponta que o patuá enquanto língua “veiculadora de cultura” tem também o condão de transmitir aquilo que é a maneira de ser da comunidade macaense e que, por isso, deve ser preservada.

“Através desta língua é possível descobrir aspectos inerentes à comunidade macaense como, por exemplo, o seu próprio humor, a forma como se olha para as coisas da vida e o olhar crítico sobre as questões do seu dia a dia”, aponta.

Sublinhando que “o palco tem sido o local onde o patuá sobreviveu”, Miguel de Senna Fernandes lembra que é a língua do povo macaense, da “comicidade”, que representa “crítica e sátira” e que e que tem evoluído “em muitos sentidos”

“Quando falamos do patuá, muitas pessoas esquecem-se que o próprio patuá evoluiu em muitos sentidos, por exemplo em termos lexicais. Não se pode pensar que o patuá que se utiliza agora, que usamos no palco, é a mesma língua que se falava há 200 anos. Há outros elementos lexicais que foram importados no início do século XX, que vêm directamente do cantonês, mas traduzindo para português, que é a base linguística do patuá”, acrescentou.

Um crioulo em evolução

A ideia de evolução do patuá esteve patente em toda a palestra. Ana Cristina Alves, académica do CCCM, falou de “um crioulo moderno trilingue, que já não é tradicional, mas que se baseia no português, chinês e inglês”.

“O crioulo do patuá começou quando os portugueses foram para Macau e depois foi-se desenvolvendo a partir do século XX. O que estes macaenses podem fazer? As elites têm-no feito com muita consistência e podem reavivar este crioulo para funcionar como um marcador sociocultural”, acrescentou.

Mário Pinharanda Nunes, professor da Universidade de Macau (UM), focou a sua intervenção nas “Ecologias endógenas e diaspóricas do patuá”, lembrando que o crioulo “existe hoje na diáspora, que não é sequer do século XX”, tendo começado “no século XIX com as concessões europeias nos portos da China e sobretudo com a criação de Hong Kong”.

Autor da primeira tese de doutoramento sobre a parte gramatical do patuá, nomeadamente o tempo, o modo e o aspecto, Mário Pinharanda Nunes disse que “quando analisamos textos escritos em patuá, e os mais antigos são do século XIX, vemos que não há uma grande regularidade nas formas”. “Quando falamos na ausência de marcação de género ou do plural, não podemos afirmar que o patuá não tem marcação de género, porque mesmo em textos do século XIX ocasionalmente essa marcação ocorre”, explicou.

O académico disse que o facto de ser o primeiro a fazer um doutoramento nesta área não é mais do que um “reflexo da ostracização e do esquecimento a que estiveram devotadas as línguas crioulas de base lexical portuguesa”. “Portugal, de todos os países colonizadores, foi dos últimos a reconhecer o valor dessas línguas.”

A importância do contexto

Mário Pinharanda Nunes referiu que, para analisar o patuá, temos de olhar para a sociedade de Macau na época e as suas gentes. “Na comunidade inicial não havia em Macau apenas portugueses e chineses. Havia indianos e escravos africanos, pois em 1555 não seriam os portugueses da chamada metrópole, mas sim euroasiáticos. Isto porque quando os portugueses chegaram a Macau já Vasco da Gama tinha chegado a Goa há 150 anos, e havia comunidades euroasiáticas.”

O docente da UM lembrou que é necessário “olhar para as diferentes línguas de substracto do patuá e daí ser complexo nesse sentido, porque surge num território onde os falantes de português não são em maioria, mas sim os que falam os crioulos portugueses asiáticos. Daí a influência de palavras indianas, do Sri Lanka, do Japão”.

“No fundo, o patuá, como outras línguas crioulas, viveu e vive esse contínuo crioulo. É uma língua, como outra qualquer, em contínua evolução”, frisou Mário Pinharanda Nunes, que destacou o facto de hoje “existir uma realidade animadora de jovens que aprendem o patuá por interesse, e essa é uma outra realidade que seria interessante estudar”.

Raúl Gaião, também docente da UM, fez uma intervenção sobre os Dóci Papiaçam di Macau com base nos textos do macaense Adé dos Santos Ferreira e no Dicionário do Crioulo de Macau, publicado pelo académico em 2019. Este abordou as influências indianas, malaias e japonesas na formação do Patuá. Este crioulo “teve provavelmente a sua formação em finais do século XVI, sendo falado pela comunidade macaense até às primeiras décadas do século XX, tornando-se num elemento característico da comunidade” e uma das formas de identificação dos macaenses.

29 Abr 2021

Diplomacia | Portugal busca “equilíbrio” nas relações com Pequim e Washington

O último relatório do European Think Tank Newtwork on China conclui que Portugal tem procurado o equilíbrio “diplomático” nas relações com a China e os Estados Unidos, tendo em conta os novos desafios trazidos pela turbulência internacional. Por outro lado, o relatório refere que a diplomacia chinesa em Portugal é baseada em laços históricos e culturais

 

A relação histórica entre Portugal e a China enfrenta desafios causados pelos novos tempos vividos no plano internacional, e o caminho que Portugal quer seguir parece ser o constante equilíbrio tendo em conta a sua também histórica relação com os Estados Unidos da América (EUA) e organizações como a NATO e a própria União Europeia (UE).

Por outro lado, a diplomacia chinesa em Portugal tem sido feita muito com base nos laços históricos e culturais já existentes, ao invés de investir em uma estratégia específica.

As conclusões são do académico Carlos Rodrigues, da Universidade de Aveiro (UA), cuja análise integra o último relatório do think tank europeu “European Think Tank Network on China” (ETNC). O documento intitula-se “China’s Soft Power in Europe – Falling on Hard Times” [A diplomacia chinesa na Europa – Queda em tempos difíceis” e foi elaborado com base na análise de várias entidades oriundas de 17 países e instituições da UE.

Segundo Carlos Rodrigues, “a crescente turbulência vivida recentemente nas relações internacionais traz novos desafios” à relação entre Portugal e China. “Ainda assim, Portugal parece estar ansioso por manter o equilíbrio relacional, tal como é evidenciado em comunicados públicos emitidos por uma diversidade de políticos e órgãos governamentais, desde o primeiro-ministro de Portugal ao Presidente da nação.”

Carlos Rodrigues apresenta como exemplo a entrevista concedida ao semanário Expresso em Setembro do ano passado pelo então embaixador norte-americano em Lisboa, George Glass, que comentou o posicionamento das autoridades portuguesas em relação à rede 5G e a eventual influência chinesa.

O autor do artigo descreve que Portugal assumiu uma posição de “resistência e repúdio em relação à tentativa dos Estados Unidos de interferir com o processo de tomada de decisão de Portugal em relação à China, nomeadamente o investimento chinês em sectores importantes e no eventual papel da Huawei nos desenvolvimentos da rede 5G em Portugal”.

À data, o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva disse que “o Governo português regista as declarações. Mas o ponto fundamental é este: em Portugal, quem toma as decisões são as autoridades portuguesas, que tomam as decisões que interessam a Portugal, no quadro da Constituição e da lei portuguesa e das competências que a lei atribui às diferentes às diferentes autoridades relevantes”.

“Sem admiração”

Apesar de Portugal querer manter o equilíbrio, “o estado das coisas não traz qualquer tipo de admiração [por parte das autoridades portuguesas] para com o modelo político e de governação chinês”, escreve Carlos Rodrigues. Isto porque Portugal nunca mostrou intenção de afastamento de instituições como a NATO ou a própria UE para se aproximar da China.

“O discurso favorável, mesmo entusiasta, sobre o investimento directo estrangeiro chinês, tal como a participação de Portugal na política ‘Uma Faixa, Uma Rota’ evidencia, de forma geral, uma avaliação positiva. Curiosamente, tal originou a ideia de que Portugal se tornou no ‘amigo especial’ da China na UE. O Governo português, apesar de reconhecer as especificidades [da relação] trazidas pela história, rejeitou vigorosamente a ideia, na essência, que colocaria Portugal em discordância com a UE e a NATO.”

O académico da UA citou as palavras de Augusto Santos Silva, que declarou ter sido criado “um mito” que “não fazia qualquer tipo de sentido”. “Uma questão gerada por analistas é se a posição de Portugal em relação à China é proeminentemente conduzida por necessidade. Sem negar a existência de interesses económicos e financeiros como um foco importante, e tendo em conta que esta é uma questão que não está relacionada com um país em específico, a necessidade, por si só, não ajuda quando olhamos para quaisquer particularidades na relação bilateral entre Portugal e a China”, frisou Carlos Rodrigues.

Mais história do que outra coisa

No que diz respeito à diplomacia chinesa em Portugal, o relatório aponta que a China se baseia mais em ligações históricas e culturais já existentes do que noutro tipo de estratégia. “O papel que a diplomacia chinesa tem desempenhado nas relações Portugal-China está relacionado com as paixões (históricas e culturais) e interesses (económicos no presente e futuro), mais do que com qualquer outra estratégia específica orquestrada pelo Governo chinês.”

Carlos Rodrigues apresenta como exemplo o combate à covid-19 e a solidariedade demonstrada pela China em relação a Portugal. “É difícil identificar qualquer tentativa explícita ou criada pelas autoridades chinesas ou políticos locais para instrumentalizar o apoio chinês, em contraste com o que aconteceu em muitas outras zonas da Europa.”

“Foi mantido, pelo contrário, o habitual perfil discreto do Embaixador chinês em Lisboa, Cai Run [entretanto substituído por Zhao Bentang], apesar da publicação de uma série de artigos de opinião nos principais jornais portugueses” sobre a ajuda atribuída no combate ao novo coronavírus. Verificou-se, por oposição, “um habitual debate político apagado sobre a China e prevaleceu uma apática opinião pública” sobre o assunto.

“O interesse disperso dos media portugueses nas idas e vindas do papel desempenhado pela China na crise da covid-19 não dissipou a percepção de uma sensação geral de desprendimento. O conflito EUA-China sobre a covid-19, no entanto, parece ter causado uma intensa vontade de discutir a relação bilateral entre Portugal e a China no contexto do equilíbrio desafiante do triângulo China-Portugal-EUA. Não obstante o debate está longe de estar disseminado, sobretudo entre as organizações políticas”, lê-se no relatório. Carlos Rodrigues acrescenta que “se há algo relacionado com uma política de diplomacia em relação a Portugal, os laços históricos parecem ser o foco”.

A importância da língua

Para o académico português, “a promoção cultural e a cooperação emergem como o principal veículo para moldar as preferências e comportamento [das autoridades chinesas] em Portugal, compensando a quase não utilização das redes sociais pelos chineses”.

O relatório destaca o facto de o 20º aniversário da transferência de soberania de Macau para a China ter sido amplamente celebrado em Portugal, com actividades culturais e académicas desenvolvidas por entidades como a Fundação Oriente ou o Centro Cultural e Científico de Macau. “A preparação de eventos culturais que decorreram em Portugal e na China durante o ano de 2019 – em comemoração dos 40 anos do estabelecimento de relações diplomáticas e os 20 anos da transição de Macau – constituíram uma peça chave da agenda de Xi Jinping quando visitou a capital portuguesa”, descreve o relatório.

Além das manifestações culturais, o documento destaca a importância do ensino da língua chinesa. “O poder atractivo da língua chinesa pode ser medido pelas mais de 130 instituições portuguesas, incluindo universidades, institutos politécnicos, escolas básicas e secundárias onde esta se ensina. Além disso, o crescente interesse da população chinesa pela língua portuguesa também funciona como um elemento de ligação.” Na prática, “uma mistura de laços históricos, culturais e económicos traçam o quadro relacional da relação entre Portugal e a China”.

Tal “tem impacto na relação específica, e não ‘especial’, no estatuto relacional, desenhando uma distinção entre Portugal e outros países da UE. Obviamente que o impacto se estende ao domínio político”. “Juntamente com uma forte defesa do multilateralismo como princípio, o poder da história não trouxe quaisquer problemas aos Governos portugueses na manutenção de uma boa parceria com a China enquanto que se mantém um alinhamento com as alianças ‘naturais’ estabelecidas com a NATO e a UE.”

Resposta aos EUA

O think tank traça um cenário pessimista no que à diplomacia chinesa na Europa diz respeito. “Com base na análise dos 17 países e instituições da UE, o relatório conclui que a “diplomacia chinesa na Europa – definida pela habilidade de influenciar preferências através da atracção ou da persuasão – tem vindo a cair nos tempos difíceis”.

“Identificámos três abordagens proeminentes da diplomacia chinesa na Europa: promover a língua chinesa e a sua cultura, remodelar a imagem da China através dos media e usar efeitos secundários da diplomacia na destreza económica. Recentemente, e em particular no último ano, a China tornou-se mais assertiva na tentativa de remodelar a sua imagem ao expandir capacidades, em particular na transmissão da sua mensagem política. Tal inclui o sistemático uso dos media”, acrescenta o relatório. Nesse sentido, “na maioria dos países a diplomacia chinesa começou a actuar nas redes sociais”.

O think tank conclui que “as oportunidades de acesso ao mercado, comércio e investimento são talvez o único grande factor que determina a atracção da China pela Europa, mas também a maior fonte do seu poder coercivo”.
Analisando “diferentes padrões” das projecções da diplomacia chinesa no continente europeu, o relatório entende que Portugal está no grupo de países como a Áustria, Hungria, Polónia e Eslováquia com os quais a China “parece estar obrigada a projectar de forma activa a sua diplomacia, em grande parte devido à falta de interesse público nestes países”.

Por sua vez, a UE “parece seguir a tendência de vigilância crescente, uma vez que os riscos colocados pelas ambições geopolíticas da China têm sido enfatizados”.

“A China tem vindo a demonstrar uma postura mais pró-activa e um tom mais assertivo, muitas vezes reagindo veemente a um aumento da politização do debate público sobre a China em muitos países europeus, usando as redes sociais para chegar a uma maior audiência. Este recente desenvolvimento parece resultar mais da competição com os EUA do que com uma estratégia específica talhada para os públicos europeus”, remata o documento.

28 Abr 2021

“Um País, Dois Sistemas” | Sales Marques considera que as Leis Básicas existem para prosseguir interesses nacionais

Numa conferência sobre o princípio “um país, dois sistemas”, foram divergentes as posições de Sales Marques e Carlos Monjardino, que ainda não aceitou o fim do colonialismo ocidental

 

José Luís Sales Marques, presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau (IEEM), sublinhou que as Leis Básicas de Macau e Hong Kong existem para prosseguir interesses nacionais, como a sua integração nas dinâmicas políticas do país, na sua intervenção na videoconferência “China/Macau: Um país, dois sistemas”, organizada pelo Instituto do Oriente.

“As Leis Básicas de Macau ou de Hong Kong são leis da RPC e existem para prosseguir interesses nacionais”, não só os da unificação e da soberania, mas também os da integração das regiões administrativas especiais “nas dinâmicas políticas, sociais e económicas da nação chinesa”, afirmou Sales Marques, que preside também ao Conselho da comunidade macaense.

“E esse é um processo que não vai acontecer só quando chegarmos ao final de 50 anos [do período de transição]. Acontece desde o primeiro dia que as regiões administrativas especiais existem e que se vai acentuar ao longo do tempo”, sublinhou na sua intervenção.

Na conferência, o responsável recordou que este princípio foi criado com o objectivo de permitir a reunificação da China, há 40 anos, com “particular destaque para a situação de Taiwan”. “Mas por razões históricas as situações de Hong Kong e Macau surgiram primeiro, com percursos negociais profundamente distintos”.

Para o presidente do IEEM, as leis básicas das duas regiões têm algumas diferenças, mas no essencial são similares. Assim, “por muito que se tenha dito acerca de ‘um país, dois sistemas’, nomeadamente no que diz respeito à autonomia das regiões administrativas especiais, essa autonomia nunca foi nem pode ser dissociada dos princípios “inabaláveis, dois verdadeiros pilares do sistema de governança” construído sobre este princípio, que são a soberania chinesa e a unificação da nação chinesa. “Estes são os limites para o elevado grau de autonomia das regiões administrativas especiais”, frisou.

China “tem respeitado” Lei Básica

“A China tem respeitado a Lei Básica e tem procurado manter a estabilidade e prosperidade de Macau, e isso é conseguido através de medidas de estímulo económico que o Governo central criou”, disse o professor. Mas “há as outras componentes, que têm a ver com a integração da população de Macau no próprio processo chinês, a começar pelo político, económico e social e pelo reforço de conceitos de nacionalismos chinês ou do amor à pátria e reforço de uma narrativa nacional, também para Macau, sobretudo dirigida aos chineses de Macau”, sublinhou.

Por outro lado, considerou que “há questões” que não devem ser esquecidas e que, pelo contrário, devem ser analisadas com objectividade. “Em primeiro lugar, existem factores externos que hoje estão muito mais acentuados. A China é colocada como um adversário maior no contexto internacional. E o reflexo dessa situação faz-se sentir no dia-a-dia aqui”, afirmou.

Em segundo lugar, “há questões que ocorrem em Hong Kong e aquilo que acontece de mau em Hong Kong reflecte-se em Macau”, admitiu. Apesar disso, assegurou, que a situação em Macau “mantém-se estável” e referiu que representava uma parte da comunidade de Macau, que “esteve e está sempre e estará de futuro ligada” ao território.

Monjardino desligado da realidade

Noutro tom, o presidente da Fundação Oriente (FO), Carlos Monjardino, disse na quinta-feira que existe um novo ciclo de ‘sinofobia’ a nível europeu e internacional e defendeu que no actual contexto “é indispensável” avaliar a evolução de Hong Kong e de Macau “no momento presente”. Para o presidente da FO, o último ano, dominado pela pandemia de covid-19, “assinala uma viragem radical da imagem da China no conjunto dos Estados europeus, incluindo Portugal”. “A origem da epidemia, a relação da China como uma grande potência, a demonstração de poder e repressão em Hong Kong conjugaram-se para mudar a opinião pública europeia. E uma maioria significativa passou a ter uma percepção negativa da China, vista agora como um factor de instabilidade internacional”, sublinhou, alinhando pela actual propaganda norte-americana.

Por último, as sondagens de opinião demonstram isso mesmo e “marcam o fim de um ciclo longo de ‘sinofilia” e com toda a probabilidade o início de um ciclo longo de ‘sinofobia’ na política europeia”, sublinhou. Essa alternância, porém, de ciclos face à China é “clássica na história europeia”, considerou, adiantando a que a sua própria geração conheceu “um período intenso de sinofobia”, que precedeu um ciclo de ‘sinofilia’ exuberante desde o fim do século passado.

Porém, para o gestor da FO, esses ciclos “não têm de mudar a natureza dos interesses nacionais”, mas “determinam as condições políticas em que podem evoluir as relações internacionais, nomeadamente com a China, que todos reconhecem ser um factor estratégico decisivo à escala global”.

Assuntos “inseparáveis”

Quanto às questões de Macau e Hong Kong, Monjardino defendeu que “são inseparáveis da alternância dos ciclos” acima descritos, lembrando que a declaração conjunta sobre Hong Kong, em 1984, tal como a declaração conjunta sobre Macau, em 1987, só foram possíveis “num quadro de abertura externa e de reforma interna da República Popular da China (RPC)”.

Assim, sublinhando a importância de Portugal manter as suas relações diplomáticas com a China e o empenho em relação a Macau, Carlos Monjardino considerou ser “indispensável avaliar a evolução de Hong Kong e de Macau no momento presente”.

“Durante vinte anos o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’ pôde gerar, no essencial, um quadro de autonomia política e institucional das duas Regiões Administrativas Especiais”, mas as “circunstâncias externas mudaram significativamente (…) nesse período, desde logo mudou a balança entre Hong Kong e Macau”. Por outro lado, “mudou a importância única de Hong Kong para a integração internacional da economia chinesa, designadamente com o desenvolvimento de Xangai como um centro financeiro alternativo”. Por último, “mudou o estatuto internacional da China e essa mudança condiciona a política de unificação pacífica com Taiwan”, enumerou o responsável.

Assim, “em termos formais a RPC continua a defender o princípio ‘um país, dois sistemas’, que devem por a Pequim o respeito pela autonomia de Hong Kong e de Macau e deixar a porta aberta à unificação com Taiwan”. Mas, sublinhou: “a interpretação oficial chinesa” sobre esse mesmo princípio “é hoje certamente diferente da interpretação que é feita pela oposição democrática de Hong Kong e do princípio defendido pelas duas partes. Tanto mais que este é invocado para limitar os direitos políticos da antiga colónia britânica”, sublinhou.

Além disso, as autoridades de Taiwan anunciaram a sua solidariedade política com a oposição democrática em Hong Kong e, nesse sentido, recusam qualquer passo significativo com vista à unificação com a RPC, recordou. “Esse impasse é intolerável para uma grande potência e a China não exclui a possibilidade de recorrer à força para forçar a unificação com a Taiwan”, frisou Monjardino.

Para Carlos Monjardino, não há grandes dúvidas que a questão de Taiwan está no centro da escalada de tensões entre a RPC e os EUA, continuando este último país “duplamente vinculado” à defesa daquele território. Portanto, está também no centro “do pior dos cenários de conflito internacional que opõe Washington e Pequim, as duas maiores potências marítimas que são também ambas potências nucleares”.

Assim, defendeu que este contexto estratégico “não pode ser ignorado na análise e evolução do princípio ‘um país, dois sistemas’, que foi sempre apresentado como uma forma de transição”. Além disso, sublinhou que tanto a declaração sino-portuguesa como a sino-britânica “indicam um prazo de 50 anos para a transição, findo o qual as regiões administrativas especiais deixam de existir e se completa a integração de Hong Kong e de Macau na RPC”.

“No novo ciclo de ‘sinofobia’, a China volta a ser representada como um império cuja expansão pode ameaçar a estabilidade internacional”, afirmou. Além disso, “o seu comportamento em Hong Kong, a tendência nacionalista e as demonstrações de poder confirmam essa percepção”, considerou. Porém, alertou, que o futuro da mais antiga das civilizações deve “ser tratado com a maior prudência” e concluiu que as relações de Portugal com a China “não começaram ontem nem terminam amanhã, e hoje tal como no passado têm de ser salvaguardadas da alternância dos ciclos”.

A videoconferência contou ainda com as intervenções do embaixador Duarte de Jesus, que é também investigador da Universidade de Lisboa e do presidente do Conselho Científico do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Heitor Romana. Raquel Vaz-Pinto, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi outro dos oradores.

26 Abr 2021

Ambiente | Académico da USJ defende criação de zonas de baixa emissão de poluentes 

Thomas Lei, doutorado pela Universidade de São José, defende, numa tese, a transformação da avenida de Almeida Ribeiro numa zona de baixa emissão de poluentes, não permitindo a circulação de veículos mais antigos, à semelhança do que já acontece em algumas cidades europeias como Lisboa. Com este trabalho, Thomas Lei conclui ainda que é possível aplicar em Macau modelos estatísticos para fazer uma previsão fidedigna da emissão de poluentes atmosféricos

 

A transformação da avenida de Almeida Ribeiro, junto à zona do Senado, numa zona de baixa emissão de poluentes (low emission zone, LEZ, na sigla inglesa) é a ideia defendida por Thomas Lei, académico da Universidade de São José (USJ) na sua tese de doutoramento, intitulada “Air quality management in Macao – Assessment, development of an operational Forecast and future perspectives” (Gestão da qualidade do ar em Macau – Avaliação, desenvolvimento de um modelo de previsão operacional e perspectivas futuras).

No trabalho, recentemente defendido, Thomas Lei defende o estabelecimento de LEZ em Macau à semelhança do que já acontece em várias cidades europeias, como é o caso de Lisboa, onde veículos mais antigos estão proibidos de circular em zonas como a Avenida da Liberdade, dada a elevada emissão de gases para a atmosfera por comparação a veículos eléctricos, movidos a gás natural ou híbridos. “A fim de melhorar a qualidade do ar em Macau, um conjunto de medidas implementadas por grandes cidades europeias e asiáticas podem ser exploradas. As LEZ têm sido plenamente implementadas em capitais europeias como Lisboa, Londres e Berlim nos últimos anos, enquanto que a restrição de chapas de matrícula e medidas de sorteio de matrículas têm vindo a ser implementadas em capitais asiáticas como Pequim e Nova Deli nos últimos anos”, lê-se na tese de doutoramento.

Em declarações ao HM, Thomas Lei disse que a avenida de Almeida Ribeiro seria um bom local para o arranque da implementação das LEZ em Macau dado o “elevado número de transeuntes e turistas”, num exemplo semelhante “ao que foi implementado na Avenida da Liberdade em Lisboa”.

“Nesta fase, diria para implementar primeiro as LEZ na península de Macau devido à elevada densidade populacional e ao elevado número de pessoas a circular e turistas. Este problema não é tão significativo na Taipa ou Coloane devido ao facto de as ilhas terem zonas mais abertas e menos fluxo de trânsito. Mas sem dúvida que poderemos implementar as LEZ nestas zonas num futuro próximo”, adiantou.

O objectivo da eliminação de veículos mais antigos em determinadas zonas urbanas é a redução de partículas inaláveis PM10 e PM2.5, bem como o NO, “um dos maiores poluentes oriundos das emissões de veículos”. Para se ter uma ideia, o nível de concentração de PM10 em algumas LEZ em Lisboa baixaram 29 e 23 por cento entre 2009 e 2016, numa média anual, enquanto que a concentração de NO2 [dióxido de azoto] baixou para 12 e 22 por cento, no mesmo período, em duas zonas analisadas.

Relativamente às restrições de circulação através de sorteio ou redução da emissão de matrículas, “têm sido bem-sucedidas para reduzir as emissões de poluentes por parte dos veículos e para promover o uso de transportes amigos do ambiente e transportes públicos no centro da cidade”. No caso da China, as restrições nas matrículas baseiam-se na circulação “Uma vez por Semana [ODPW – One Day Per Week] e “Par e Ímpar” [Odd and Even]. Isto porque Pequim “continua a ter um sério problema de poluição do ar, em particular relacionado com elevadas concentrações de partículas PM10, PM2.5, SO2, NO2, CO e O3”. Além de Pequim também foram implementadas restrições através da circulação de matrículas em cidades como Hangzhou, Lanzhou, Langfang e Tianjin.

Governo  em acção

Na tese, Thomas Lei defende também a aposta em incentivos para a aquisição de veículos eléctricos, apesar de terem sido adoptadas algumas medidas pelo Governo.

“A Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA) tem promovido a aquisição de veículos eléctricos em alternativa aos tradicionais veículos movidos a energias não renováveis, com esforços no aumento do número de estações de carregamento de baterias e parques.”

O território possui actualmente um total de 172 carros e motociclos eléctricos. “Espera-se que o número de estações de carregamento possa atingir as 200 no final de 2020”, lê-se na tese. Além disso, no âmbito do Plano de Desenvolvimento Quinquenal (2016-2020) e do Planeamento da Protecção Ambiental de Macau (2010-2020), foram implementados “padrões restritos na importação de novos veículos ou veículos movidos a energias fósseis”, além da “promoção de veículos amigos do ambiente através de incentivos fiscais”.

Thomas Lei destaca também a criação de um corredor exclusivo para autocarros por parte da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), em funcionamento desde Junho de 2016. “A isenção fiscal para veículos eléctricos, o aumento de estações de carregamento para estes veículos e a criação de corredores exclusivos para transportes públicos são as medidas mais importantes adoptadas pelo Governo de Macau numa tentativa de reduzir as emissões dos veículos e de promover o uso de veículos verdes, bem como dos transportes públicos, no centro da cidade”, frisou.

Modelos estatísticos

Mais do que sugestões, Thomas Lei propôs-se analisar, no seu doutoramento, a possibilidade de recorrer a modelos estatísticos para prever a qualidade do ar em Macau. As conclusões apontam para a possibilidade de usar os métodos MLR [Regressão Múltipla Linear] e CART [Classification and Regression Trees – Árvores de Classificação e Regressão].

“Estas análises foram desenvolvidas de forma bem-sucedida para Macau para prever as concentrações dos níveis de poluentes de NO2 [dióxido de nitrogénio], PM10 e PM2.5 [partículas inaláveis] e O3 [ozono trosposférico]. Foram seleccionadas, de uma extensa lista, variáveis meteorológicas, incluindo altitude, humidade relativa, estabilidade atmosférica e temperatura do ar em diferentes níveis verticais.”

Thomas Lei realizou este trabalho em duas fases, sendo que na primeira foram usadas as variáveis meteorológicas e da qualidade do ar com base em dados relativos a um período de cinco anos, de 2013 a 2017. “Os dados de 2013 a 2016 foram usados para desenvolver modelos estatísticos [de previsão da qualidade do ar] e os dados de 2017 foram usados para a validação. Todos os modelos desenvolvidos revelaram-se válidos em termos estatísticos com um nível de fiabilidade de 95 por cento, com elevados coeficientes de determinação (de 0.78 a 0.93) para todos os poluentes.”

Numa segunda fase “estes modelos foram usados para os dados de validação de 2019, enquanto que um novo conjunto de modelos estatísticos baseados numa série mais extensiva de dados históricos, de 2013 a 2018, foram também validados com os dados de 2019.”

Thomas Lei analisou também a aplicação destes modelos estatísticos em dois episódios de elevada poluição, como o Ano Novo Chinês em 2019, e um episódio de baixa poluição em 2020, durante o confinamento devido à pandemia da covid-19.

“Em termos gerais, os resultados demonstram que o modelo estatístico de previsão é robusto e permite reproduzir de forma correcta episódios de poluição atmosférica extrema tanto em níveis de concentração baixos ou elevados. Podem ser adoptados equipamentos que possam providenciar uma combinação do modelo MLR e CART para melhorias na fiabilidade do modelo estatístico de previsão.”

“Problema sério” em Ka-Hó

O académico da USJ concluiu ainda que “há uma tendência de quebra na concentração dos níveis de poluentes de N02, PM10 e PM2.5, o que se pode dever à implementação de padrões mais restritos de emissão de poluentes para veículos em circulação e importados, bem como à promoção do uso de veículos eléctricos em Macau”. Além disso, “as medidas de prevenção da poluição atmosférica na província de Guangdong podem também ter contribuído para esta tendência”. “Em contraste, há um aumento da tendência dos níveis de concentração de O3 [ozono trosposférico], o que se pode dever à natureza complexa dos precursores e químicos por detrás da sua formação e consumo”, pode ler-se.

O autor deixou ainda um alerta sobre o problema de poluição do ar na zona de Ka-Hó. “A estação de monitorização da qualidade do ar em Ka-Hó só se tornou operacional em anos recentes e não há dados suficientes para prever a performance da qualidade do ar nesta estação, o que exige, pelo menos, dados dos últimos cinco anos. No entanto, a área envolvente desta estação de monitorização é conhecida por ter um problema sério de poluição do ar.”

Neste sentido, Thomas Lei defende que “a previsão da qualidade do ar é essencial e necessária para a saúde e bem-estar dos residentes da zona”.

23 Abr 2021

Clima | Xi Jinping participa hoje em cimeira organizada por Biden 

O Presidente chinês faz hoje um “discurso importante” numa cimeira global sobre o clima promovida pelo seu homólogo norte-americano, numa altura em que as relações entre os dois países são afectadas por um ambiente de tensão contínua. Dois académicos portugueses defendem que Joe Biden está a tentar recuperar a tradição norte-americana do liberalismo tradicionalista que Trump abandonou, bem como a estabelecer a “abertura de uma frente unida” com países aliados, em resposta ao crescente poder da China

 

Xi Jinping participa hoje na cimeira virtual do clima organizada pelo seu homólogo norte-americano, Joe Biden, informou ontem o ministério dos Negócios Estrangeiros da China. O chefe de Estado chinês vai fazer um “discurso importante” via videoconferência, a partir de Pequim, revelou o ministério, poucos dias depois de os dois países se comprometerem a “cooperar” na questão das alterações climáticas.

Joe Biden convidou cerca de 40 líderes mundiais para a cimeira que se estende até sexta-feira. A China e os Estados Unidos são os dois maiores emissores de gases de efeito estufa, a fonte do aquecimento global. O acordo entre os dois países é, portanto, considerado crucial para o sucesso dos esforços internacionais na redução das emissões. Os dois países comprometeram-se no sábado a “cooperar” na questão do clima, após uma visita a Xangai do enviado dos EUA para o clima, John Kerry, que se encontrou com o seu homólogo chinês, Xie Zhenhua.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, retirou o país do Acordo de Paris para o clima. Após assumir o poder, em Janeiro, Joe Biden retrocedeu nessa decisão. Grande consumidor de carvão, a China é, em termos absolutos, o maior emissor mundial de gases de efeito estufa, mas também o país que mais investe em energias renováveis.

“Não podemos resolver esta crise climática sem a China na mesa de negociações”, disse Kerry, na semana passada, durante a sua viagem a Xangai. Pequim prometeu começar a reduzir as suas emissões de CO2 “antes de 2030” e alcançar a “neutralidade nas emissões de carbono” até 2060, ou seja, absorver tanto quanto emite.

O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Wenbin, disse numa conferência de imprensa esperar que esta cimeira “sirva como uma plataforma de comunicação em prol da cooperação global para enfrentar o desafio das alterações climáticas, promovendo uma implementação plena e efectiva do Acordo de Paris”. Segundo uma nota publicada pela agência Xinhua, as autoridades chinesas esperam que se possa promover, através desta cimeira, “uma promoção conjunta da governança global em prol do clima e do ambiente”.

Contra o isolacionismo

Este encontro, ainda que virtual, acontece poucos meses depois da tomada de posse de Joe Biden como Presidente dos EUA. O cenário de isolacionismo e proteccionismo decretado por Donald Trump parece ter-se alterado de forma significativa e Biden quer agora associar-se a aliados com uma filosofia diplomática comum, conforme defendeu ao HM Jorge Tavares da Silva, professor da Universidade de Aveiro (UA) e especialista nas questões da China-Taiwan.

“Joe Biden mantém uma postura intransigente em relação à China, sobretudo nos assuntos comerciais, tecnológicos e de investimento, mudando a sua estratégia internacional. O novo Presidente americano, ao contrário do isolacionismo da era de Donald Trump, tem vindo a reforçar as ligações com os aliados.”

Jorge Tavares da Silva é um dos oradores da palestra online “China, Ásia e Mundo”, que acontece hoje e que conta ainda com a participação da académica Diana Soller, da Universidade Nova de Lisboa (UNL), e Nuno Magalhães, do Instituto de Defesa Nacional.

Para Tavares da Silva, “Joe Biden é, ao contrário do seu antecessor, politicamente muito experiente, tem um longo currículo de relações com a China, conhece pessoalmente Xi Jinping, conversaram os dois de forma informal tanto na China como nos Estados Unidos”.

Joe Biden e Xi Jinping devem ter “posturas assertivas”, sendo que “não é de excluir que, de um momento para o outro, se encontrem soluções de cooperação”, adiantou o professor da UA. Isto porque “as hostilidades não trazem benefício para ninguém”. “Ambos os países estão interessados em cooperar, embora no futuro as relações económicas internacionais se tenham de basear em regras maior reciprocidade”, previu.

Regresso ao passado

Para Diana Soller, Joe Biden está, na relação com a China, a tentar recuperar o passado. “A grande inovação que a Administração Trump trouxe para os EUA foi romper com uma longa tradição de liberalismo internacionalista que vinha desde Woodrow Wilson e do início do século XX. Esta interrupção causou uma grande estranheza. Biden tenta retomar essa tradição de liberalismo internacionalista.”

A académica defende que esta aposta da Administração Biden visa “a recuperação da ordem liberal internacional, mas mais globalizada, com a inclusão de mais países, e que não se centre no eixo atlântico como antigamente”. Há também a “renovação das alianças com as democracias, não apenas com os Estados europeus mas com as democracias asiáticas que fazem parte do quadro quadrilateral, como o Japão, Índia ou a Austrália”.

Diana Soller recorda que o primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, foi o primeiro a visitar a Casa Branca na última sexta-feira, antes do arranque do Fórum Boao para a Ásia, que terminou ontem. Biden está também, segundo a académica, a tentar apostar na “divisão do mundo entre democracias e autocracias, sendo que as autocracias pela sua natureza são os rivais naturais das democracias. Biden quer juntar o mundo livre para se opor a que as autocracias, especialmente a China e a Rússia (em segundo lugar) tenham um papel importante no sistema internacional futuro”.

Quanto à guerra comercial, Diana Soller acredita que vai manter-se, até porque “não há novos contornos”. “Há um desacoplamento da economia americana face à economia chinesa que já vinha de Trump e transita para Biden. A segunda estratégia tem a ver com a reorganização e reforma das organizações internacionais que regulam a vida económica internacional, que os EUA estão a tentar transformar com o apoio dos aliados europeus e asiáticos, mas que está muito dependente dos aliados económicos que os EUA podem ter”, frisou.

Guerra “pouco provável”

O mundo vive hoje vários focos de tensão entre diversas potências, mas a académica da UNL não prevê que venhamos a assistir a uma guerra global. “Isso é altamente improvável. Podem acontecer conflitos que envolvam grandes potências, mas que sejam localizados e contidos, como por exemplo no Mar do Sul da China ou no Mar do Leste da China, onde a tensão tem aumentado bastante nos últimos meses.”

Outra possibilidade de conflito, é na fronteira dos Himalaias, “onde a tensão entre China e Índia já foi bastante elevada”. No fundo, “pode haver aquilo que acontecia na Guerra Fria, uma espécie de guerras de procuração”, adiantou Diana Soller.

De frisar que esta terça-feira, por ocasião do Fórum Boao para a Ásia, Xi Jinping deixou claro que a China não quer enveredar pelo caminho diplomático traçado por uma nova Guerra Fria. “A pandemia da covid-19 tornou mais claro para as pessoas em todo o mundo que devemos opor-nos a uma nova ‘Guerra Fria’ e a um confronto ideológico sob quaisquer formas.”

E a Europa?

No meio deste cenário, Diana Soller acredita que os aliados europeus “estão um bocadinho reticentes em apoiar os EUA na reforma das instituições económicas”, uma vez que “têm interesses económicos já relacionados com a China, especialmente a Alemanha”.

“A Europa não vai poder dar-se bem com deus e o diabo, independentemente de quem for deus e o diabo nesta equação. Mais tarde ou mais cedo vai ter de escolher o aliado que quer ter, e espero que essa escolha sejam os EUA, por razões não de preferência pessoal, mas porque a Europa tem uma ligação muito importante com o país, relacionada com a manutenção da sua própria segurança através da NATO.”

Relativamente à área da Defesa, Diana Soller acredita que a Europa, por si só, “não consegue defender-se num mundo competitivo como aquele em que estamos a entrar”. O continente não pode “dar-se ao luxo, por razões económicas ou outras, de perder o seu guarda-chuva de segurança”, até porque “não parece existir vontade política nem tempo por parte da Europa para criar forças armadas competitivas”.

“A prioridade europeia deve ser garantir que não se coloca numa posição de fragilidade”, tendo em conta os polos de conflito que vão surgindo, concluiu Diana Soller.

Perigos do Estreito

Na palestra de hoje Jorge Tavares da Silva vai falar da relação entre a China e Taiwan. O docente da Universidade de Aveiro acredita que “não podemos hoje assegurar que um conflito armado não possa acontecer”. “Há um novo clima no Estreito de Taiwan, de uma China ferida pela história, desiludida pelo rumo político de Taiwan e fortalecida pelos resultados do seu crescimento, traduzido em poder. Depois do período de governação de Ma Ying-jeou, Taiwan volta a ter no governo o Partido Democrático Progressista, de tendências independentistas, o que desagrada fortemente a Pequim”, disse ao HM. Para o académico, “a reunificação de Taiwan pela via pacífica tornou-se muito difícil”. “As instituições democráticas taiwanesas estão fortalecidas. As manifestações em Hong Kong foi o pior que aconteceu a Xi Jinping na sua tentativa de recuperar Taiwan”, concluiu.

22 Abr 2021

Fórum Boao | Xi Jinping alerta para perigos do unilateralismo e rejeita nova Guerra Fria 

Xi Jinping falou ontem por ocasião do Fórum Boao para a Ásia, que termina hoje em Hainão. Sem mencionar directamente os Estados Unidos, o Presidente chinês afirmou que o unilateralismo “levado a cabo por alguns países não deve determinar o ritmo de todo o mundo”. Sobre a vacinação contra a covid-19, Xi Jinping realça a importância de se evitar “uma nova ‘Guerra Fria’ e um confronto ideológico sob quaisquer formas”

 

O multilateralismo foi a palavra de ordem no discurso de Xi Jinping proferido ontem no Fórum Boao para a Ásia, que este ano tem como tema “Um mundo em mudança: dar as mãos para fortalecer a governança global e avançar na cooperação da ‘Uma Faixa, Uma Rota’”.

Sem nunca referir directamente os Estados Unidos, Xi Jinping deixou claro que a China se opõe a qualquer forma de unilateralismo e que a harmonia mundial deve ser o caminho a seguir. “Não devemos deixar que as regras implementadas por um ou alguns países sejam impostas aos outros, ou permitir que o unilateralismo seguido por certos países determine o ritmo de todo o mundo”, disse no seu discurso, divulgado pela agência Xinhua.

“O que necessitamos hoje no mundo é de justiça, não hegemonia. Os grandes países devem comportar-se de maneira apropriada e com grande sentido de responsabilidade”, acrescentou. Xi Jinping destacou a importância de assegurar “o sistema internacional centrado nas Nações Unidas” e preservar “a ordem internacional sustentada pelo Direito internacional”, sempre mantendo sistema de comércio mundial com a Organização Mundial de Comércio como núcleo”.

Apostando nas ideias de “partilha de benefícios mútuos” e igualdade, Xi Jinping destacou que a governança global deve ser feita “mantendo um verdadeiro multilateralismo” para que seja “mais justa e igualitária”.

O Fórum Boao para a Ásia 2021 é a primeira conferência global a realizar-se de forma presencial, contando com cerca de dois mil participantes, apesar de estarem agendados eventos online. Apesar disso, o discurso de Xi Jinping foi transmitido por videoconferência.

O Presidente chinês deixou também claro que uma nova Guerra Fria não é o caminho certo para a diplomacia mundial. “A pandemia da covid-19 tornou mais claro para as pessoas em todo o mundo que devemos opor-nos a uma nova ‘Guerra Fria’ e a um confronto ideológico sob quaisquer formas”, apontou. “Nas relações entre Estados os princípios de igualdade, respeito e confiança mútuos devem ser destacados. Devemos advogar pela paz, desenvolvimento, igualdade, justiça, democracia e liberdade, que são valores comuns da humanidade”, frisou Xi Jinping.

O Presidente chinês deixou claro que a China “nunca vai procurar atingir a hegemonia, expansão ou uma esfera de influência”, nem mesmo “uma corrida ao armamento”. “A China vai assumir parte activa numa cooperação multilateral na área do comércio e do investimento, através da plena implementação da Lei do Investimento Estrangeiro”, disse, lembrando a aposta no porto franco de Hainão.

A cooperação com a OMS

No ano em que o Partido Comunista Chinês (PCC) celebra 100 anos, Xi Jinping recordou “a incansável busca pela felicidade do povo chinês” bem como “o rejuvenescimento da nação chinesa” graças ao partido.

Na área da saúde, “a China vai continuar a manter a cooperação contra a covid-19 em parceria com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outros países, para que as vacinas sejam um bem público a nível global”, frisou.
Xi destacou o facto de algumas empresas chinesas terem iniciado a produção de vacinas contra a covid-19 em parceria com países participantes da política “Uma Faixa, Uma Rota” como a Indonésia, Brasil, Malásia, Emirados Árabes Unidos e Paquistão.

“Vamos expandir a cooperação com as várias partes no controlo das doenças infecciosas, saúde pública, medicina tradicional e outras áreas, para proteger a vida e a saúde das populações de todos os países.”

Sobre a política “Uma Faixa, Uma Rota”, Xi Jinping lembrou que “está aberta a todos”, não sendo “um caminho privado seguido por uma única parte”. “Todos os países interessados são bem-vindos a assumir parte na cooperação e a partilhar os seus benefícios. Vamos continuar a trabalhar com todas as partes para uma cooperação de alta qualidade ao nível de ‘Uma Faixa, Uma Rota’”, concluiu.

Segundo a CGTN, que cita dados do Ministério do Comércio da China, um total de 126 países e 29 organizações internacionais assinaram acordos de cooperação com o país na área de “Uma Faixa, Uma Rota”, sendo que o comércio neste contexto cresceu de 1 por cento no ano passado, atingido 9.37 biliões de yuan.

Recorde-se que antes do arranque oficial do Fórum Boao para a Ásia, no domingo, o Presidente norte-americano, Joe Biden, teve um encontro com o primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, onde foram debatidas algumas “preocupações” sobre a política externa chinesa. A China reagiu a esse encontro bilateral, rejeitando as ideias expressas pelos dois governantes.

Ho Iat Seng reuniu com membro do PCC de Hainão

O Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, reuniu na segunda-feira com o secretário do comité provincial de Hainão do Partido Comunista da China, Shen Xiaoming. Segundo um comunicado oficial, o encontro serviu para partilhar opiniões sobre as áreas do comércio, economia, turismo, alta tecnologia, sector financeiro, medicina tradicional chinesa e ainda “o significado da formação de quadros qualificados para o desenvolvimento”.

Ho Iat Seng destacou a forma bem-sucedida como Macau lidou com a pandemia da covid-19, o que torna o território “uma cidade saudável para turismo”, sem casos há mais de um ano. O governante destacou o facto de o território registar “actualmente mais de 300 mil entradas e saídas diárias”, apesar de possuir “infra-estruturas e equipamentos turísticos com capacidade para receber 40 milhões de visitantes por ano”. Ho Iat Seng destacou o facto de “haver espaço para maior cooperação entre Hainão e Macau nas áreas do turismo e educação”, recordando que as duas regiões estão ligadas “por um voo curto”, e que pode ser feito “um maior reforço da colaboração no sector turístico”.

No mesmo encontro, o Chefe do Executivo destacou o facto de no segundo semestre deste ano o Governo planear “o impulsionamento da diversificação adequada da economia em quatro áreas, designadamente na indústria da medicina tradicional chinesa, sector financeiro moderno, seguros e alta tecnologia”.

Reforço da cooperação

Shen Xiaoming realçou, por sua vez, “o desenvolvimento económico da província nos últimos anos e o andamento dos trabalhos relativos ao estabelecimento do porto franco” em Hainão. O responsável destacou as semelhanças entre os dois territórios na área do turismo e indicou que, “apesar do impacto da pandemia na ilha, trouxe também oportunidades para o mercado do consumo, ensino, cuidados de saúde, alta tecnologia, desenvolvimento de quadros qualificados”, além de tornar possível “alavancar projectos ecológicos e ambientais”.

O secretário do comité provincial de Hainão indicou também que “o processo de desenvolvimento da província tem espaço para melhorar e, por isso, espera reforçar a cooperação com os países de língua portuguesa através da ponte que é Macau”. Nesse sentido, os governos e as associações devem reforçar a colaboração com base no modelo turístico “multi-destinos”. Há também “um espaço muito grande para a cooperação em alta e nova tecnologia”, frisou.

21 Abr 2021

Património | IC recua e volta a analisar existência de alfândega no Pátio do Amparo

O Instituto Cultural (IC) suspendeu a emissão da planta de condições urbanísticas do terreno do Pátio do Amparo, onde terá existido uma Alfândega Imperial chinesa da altura da dinastia Qing. André Lui mostra-se surpreendido com o desconhecimento do IC sobre o mapa e os estudos efectuados no local e diz que, nestes casos, a norma deve passar por fazer “estudos profundos” das zonas históricas antes de tomar decisões

 

É um passo atrás rumo à preservação do património histórico, não só de Macau, mas também da China. Na passada sexta-feira, o Instituto cultural (IC) revelou ter suspendido a emissão da planta de condições urbanísticas de um terreno no Pátio do Amparo, que terá albergado parte do complexo de uma Alfândega Imperial chinesa instalada naquela zona, durante a dinastia Qing.

Segundo o canal português da TDM – Canal Macau, a reversão da decisão favorável ao projecto de construção, dado pelo Conselho do Planeamento Urbanístico (CPU) a 31 de Março, foi anunciada na passada sexta-feira pela presidente do Instituto Cultural (IC), Mok Ian Ian. Em causa, está um mapa apresentado pelo arquitecto André Lui, datado de 1838, que comprova a existência da alfândega no local.

“O Conselho de Planeamento Urbanístico tem novas evidências. Um académico descobriu um mapa antigo. Após termos falado, estudámos o assunto e achamos que, uma vez que o académico encontrou esse mapa antigo, devemos olhar para ele e reavaliar. Portanto, já informámos as Obras Públicas para suspenderem a emissão da planta de condições urbanísticas do referido terreno”, referiu Mok Ian Ian.

De acordo com o IC, será agora iniciada uma investigação para comprovar a existência da Alfândega Imperial chinesa, sendo que, no decurso da análise, o proprietário não poderá fazer obras no terreno.

Recorde-se que, após a luz verde do CPU ao projecto de construção previsto para o terreno, o arquitecto André Lui, foi o único membro do CPU a defender a preservação do espaço, apontando que a alfândega destruída pelo Governador Ferreira do Amaral por volta de 1844 é um símbolo da soberania de chinesa sobre Macau durante a dinastia Qing e que, no subsolo, há ainda vestígios de parte da estrutura da alfândega.

“Sabemos que esta alfândega era muito importante porque era um órgão administrativo autónomo que foi destruído pelo Governador Ferreira do Amaral (…) É um símbolo que mostra que a China sempre teve soberania sobre Macau. Por isso, é também um local de educação patriótica e gostava que o IC fizesse um estudo mais profundo sobre o local. Tenho informações que posso fornecer”, apontou o arquitecto durante a reunião do CPU de 31 de Março.
Na altura, a representante do IC, Deland Wong Wai Man, afirmou que o Governo já tinha efectuado um estudo arqueológico do local e que os resultados não indicaram que a alfândega fosse ali.

Prova provada

A planta, traçada em 1831 e actualizada em 1838, que está na base do recuo do IC é da autoria do cartógrafo da Marinha Portuguesa, Cândido António Osório e pode ser encontrada em Lisboa nos arquivos do Exército.
Segundo André Lui, o mapa não deveria ter constituído uma novidade para o IC pois “já existe há muito tempo”, tendo o próprio arquitecto chegado a sugerir a compra de uma cópia enquanto trabalhou no Departamento do Património Cultural do ICM (antiga designação do IC).

Adicionalmente, após a Biblioteca da Macau University of Science and Technology (MUST) adicionar o mapa ao seu repertório, André Lui desenvolveu dois estudos, respectivamente em Abril e Maio de 2008, sobre a possível existência “de vestígios da alfândega chinesa antes de ser demolida”.

Para o arquitecto, dado que o mapa apresenta muitos detalhes e provém de uma fonte oficial da altura, deve ser considerado uma “prova credível”. “O autor desta planta era um navegador e foi também vice-presidente do Senado em Macau. Portanto, é uma pessoa com conhecimento técnico e credibilidade, já que o mapa está desenhado de forma muito pormenorizada. Por isso, podemos considerar este mapa como uma prova credível”, explicou ontem ao HM no local onde terá sido edificada parte da alfândega.

André Lui revelou ainda ter sido apanhado de surpresa pelo facto de ninguém estar a par da situação durante a reunião do CPU. “É possível que o IC não tenha visto ou lido os dois artigos que fiz mas, de qualquer forma, foram ambos publicados no maior jornal em língua chinesa [de Macau], o Macau Daily [Ou Mun]. Nunca imaginei que, durante a reunião, quando levantei a questão, ninguém soubesse da situação”, acrescentou o arquitecto.

Escavar mais fundo

Depois da investigação que levou a cabo, André Lui sugeriu que o Governo fizesse um estudo mais aprofundado. Até 2012, foram feitas escavações e produzidos relatórios, devidamente ilustrados com registos fotográficos, onde é possível observar vestígios de estruturas e paredes de edifícios pertencentes ao complexo da Alfândega Imperial, existente nos séculos XVII e XVIII, ou seja, mais antigo que as próprias Ruínas de São Paulo.

“Foram feitas descobertas subterrâneas na zona do pátio, pois à superfície não foi descoberto nada. Havia paredes em tijolo azul que deviam fazer parte de uma estrutura de construção anterior às paredes da casa [do século XIX] que podem ser vistas aqui. Fizeram ainda escavações mais profundas e descobriram outras paredes em taipa. Havia também um buraco que, segundo o relatório, era um sítio para apoiar uma coluna ou um pilar”, detalhou André Lui.

Segundo o arquitecto, de acordo com a análise feita sobre a planta traçada por Cândido António Osório, a extensão da alfândega vai além do terreno em questão, devendo toda a área ser alvo investigação e discussão mais profunda.

“Na minha opinião, o edifício principal da alfândega deve ter sido construído um pouco mais para a frente [relativamente ao Pátio do Amparo]. Esta parte devia albergar alguns edifícios auxiliares da alfândega, mas fazem parte de todo o complexo e, por isso, também são importantes. Segundo o relatório, é provavelmente que os vestígios mais antigos sejam do início da dinastia Qing, por isso é muito antigo. Não vemos nenhum edifício ou construção em Macau desta época. É mais velho do que as próprias Ruínas de São Paulo”, apontou.

Dando o exemplo da Casa dos Bicos em Lisboa, onde um edifício da Idade Média convive com escavações do período romano, para André Lui o terreno do Pátio do Amparo poderia ser aproveitado para criar “um museu arqueológico relacionado com a história da alfândega chinesa do século XVII e XVIII”, procurando alcançar uma coexistência de estilos e épocas.

“A Alfândega está muito ligada à história da China porque, durante um longo período, mesmo na dinastia Qing, o povo estava proibido de contactar com estrangeiros, mas, como Macau é especial, (…) foi construída a alfândega, uma instalação governamental que representa o poder do imperador em Macau. É um indicador de quem controla o comércio da cidade e uma representação oficial da China daquela época, por isso é importante”, acrescentou.

Questionado sobre o modo de actuar do IC, André Lui defendeu que o organismo devia promover “um estudo profundo da zona histórica de Macau” e adquirir mais conhecimento de causa antes de tomar decisões, como a que levou à aprovação do projecto de construção do Pátio do Amparo.

“Além de ser património mundial, Macau tem uma história de 400 anos e, por isso, há muitas ruas e zonas onde, muito provavelmente, há vestígios arqueológicos subterrâneos. Muitas vezes, o IC decide sem ter conhecimento profundo sobre os locais e deveria ter esse conhecimento antes de emitir as decisões. Na altura, fiquei surpreendido com a decisão”, vincou.

19 Abr 2021

Francisco Ribeiro Telles: Comissão para promover português é exemplo “inspirador” para actuação da CPLP

O secretário-executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) disse ontem que a comissão temática de Promoção e Difusão da Língua Portuguesa, com a participação da sociedade civil, é um exemplo “inspirador” para novas formas de actuação da organização.

“Com a criação da comissão temática de Promoção da Língua Portuguesa, em 2013, a CPLP viu concretizar-se o desidrato de novos atores institucionais colaborantes na prossecução de um dos seus objetivos fundacionais e comunitariamente primordiais, a promoção e difusão da língua portuguesa”, começou por referir o embaixador Francisco Ribeiro Telles, na sua intervenção na abertura de um ciclo de debates sob o tema “Promoção e difusão da língua portuguesa: Estratégias globais e políticas nacionais”, que ontem decorreu na sede daquela organização, em Lisboa.

E, no seu entender, o papel que esta comissão tem vindo a desempenhar é “merecedor de um justo reconhecimento pelo serviço prestado à causa da promoção da língua portuguesa”. Por isso, considerou-a “um actor ímpar e inspirador de possíveis formas de actuação comunitária”.

Ribeiro Telles recordou que, em 2014, na 10ª cimeira de chefes de Estado e de Governo, que teve lugar em Díli, atribuiu-se o estatuto de observador consultivo da CPLP à UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, que em janeiro deste ano assumiu a coordenação daquela comissão temática, sucedendo à Fundação Calouste Gulbenkian.

Estas são duas das 14 instituições que integram a comissão temática para a promoção da língua portuguesa, entidades da sociedade civil, todas observadores consultivos da CPLP. “Desde então a nossa colaboração [com a UCCLA] tem sido profícua e temos a certeza que será cada vez mais intensa”, afirmou o secretário-executivo da CPLP.

Entre as iniciativas levadas a cabo desde 2013 pela comissão temática, Ribeiro Telles destacou a realização, naquele ano, da primeira conferência em língua portuguesa, em Faro, a conferência Juventude, Diásporas e Mobilidade Académica, realizada, em 2019, em Santiago de Compostela, o Mercado da Língua Portuguesa, que decorreu em Cascais, e a mostra de cinema em língua portuguesa, que teve lugar em Díli e também em Macau.

“Estes eventos permitiram uma maior promoção e projeção da língua portuguesa nos Estados-membros da CPLP, em países terceiros, em organizações regionais e organismos internacionais e junto das diásporas dos nossos países (…), sendo justo reconhecer este legado e o seu contributo, ao longo do tempo, para a aproximação da CPLP os seus cidadãos”, sublinhou o diplomata.

Por outro lado, para o secretário-executivo, “a ampla participação do Estados-membros nas iniciativas da comissão” também demonstra “a importância e a pertinência da aproximação da CPLP à sociedade civil e, assim, aos povos dos países de língua portuguesa”.

Além disso, as instituições que compõem a comissão temática “têm assumido a promoção da língua portuguesa como sua missão, o que enaltece e fortalece a própria CPLP”, frisou, lembrando que a língua foi o fator motriz daquela comunidade e é hoje falada por mais 200 milhões de pessoas em todo o mundo.

De acordo com as estimativas das Nações Unidas, há um potencial de crescimento do número de falantes de português até ao final deste século, altura em que poderá chegar ou mesmo ultrapassar 500 milhões, referiu.

Esta importância e potencial no mundo são, segundo o diplomata, “um dos principais motivos do interesse acrescido de numerosos países e organizações internacionais em se associarem de forma mais institucional à CPLP, nomeadamente através da obtenção do estatuto de observador associado”.

Assim, se até 2014 a CPLP tinha apenas três observadores associados, hoje tem 19 e a partir da próxima cimeira de chefes de Estado e de Governo da CPLP, prevista para julho em Luanda, deverá passar contar com 30, salientou.

“É nesta interceção entre os contextos nacionais dos Estados-membros, dos observadores associados, de países terceiros e ambiente multilateral, que a CPLP existe e interage e que a comissão temática de Promoção e Difusão da Língua Portuguesa e os observadores consultivos se têm afirmado como um ator ímpar e inspirador de possíveis formas de atuação comunitária e merecedor de um justo reconhecimento pelo serviço prestado à causa da promoção da língua portuguesa”, concluiu.

O ciclo de debates que teve ontem início integra as comemorações do 5 de maio – Dia Mundial da Língua Portuguesa e Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP.

A iniciativa, da CPLP, conta com quatro sessões em formatos presencial e online, com a apresentação de painéis e discussão em mesas-redondas, nos quais participam representantes dos Estados-membros, dos observadores associados e consultivos da organização e outras instituições da sociedade civil.

O 5 de maio foi instituído como Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP pela XIV Reunião Ordinária do Conselho de Ministros daquela organização, de 20 de julho de 2009.

A CPLP conta com nove estados-membros: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste.

15 Abr 2021

Covid-19 | Xanana Gusmão dorme à frente de centro de isolamento, depois de horas de protesto

Reportagem de António Sampaio, da agência Lusa

O líder histórico timorense, Xanana Gusmão, permanecia ao final da noite desta segunda-feira em Díli à frente de um centro de isolamento onde está desde o início do dia em protesto pelo caso de um homem que morreu infectado com covid-19.

Depois de horas de protesto, Xanana Gusmão deitou-se numa esteira para “descansar”, segundo explicou um dos membros da sua equipa, indiciando que o impasse em torno ao caso se mantém, apesar de sinais de uma possível solução de compromisso.

As redes sociais encheram-se ao final da noite de fotos do líder timorense, deitado no chão, ao lado da carrinha cinzenta onde está o caixão preparado pela família da vítima, que rejeita o diagnóstico de covid-19 e o protocolo para funerais nestas situações e exige reaver o corpo e realizar os ritos tradicionais.

Horas antes, havia sinais de um acordo de compromisso que permitira à família enterrar o homem, de 46 anos, no cemitério onde pretendiam, Manleuana, em Díli, desde que cumprindo os protocolos sanitários, em vez de o funeral ocorrer num cemitério preparado para casos positivos da covid-19 em Metinaro, a leste de Díli.

Fontes envolvidas no processo explicaram à Lusa que a solução de compromisso, negociada pelo Centro Integrado de Gestão de Crise (CIGC), poderá não ter tido o acordo do Ministério da Saúde e do Governo, que não quer abrir aqui um precedente. A Lusa tentou confirmar esta informação junto de fonte oficial, mas até agora sem sucesso.

A polémica do caso – relacionado com a segunda morte em Timor-Leste de uma pessoa infectada com covid-19 – começou de manhã, quando a família de Armindo Borges contestou a decisão das autoridades realizarem o funeral

Xanana Gusmão chegou ao local pouco depois das 08:00, criticando a acção das autoridades de saúde, contestando o diagnóstico de covid-19 e atacando a gestão do Governo do caso e da pandemia em geral.

Durante o dia, vários responsáveis timorenses tentaram dissuadir e convencer Xanana Gusmão, incluindo a ministra da Saúde, Odete Belo, o número dois da Sala de Situação do CIGC, Aluk Miranda, e outro dos coordenadores, o comodoro Pedro Klamar Fuik.

Todos tentaram argumentar sobre a necessidade de respeitar o protocolo definido para mortes de pessoas infetadas, mas Xanana Gusmão rejeitou os argumentos, insistindo que a postura das autoridades não fazia sentido e que o homem tinha morrido de outras doenças.

A dado momento da discussão, Xanana Gusmão chegou mesmo a dizer que ia “dizer ao povo que se estiverem doentes não devem ir ao hospital porque se forem vão ser tratados como covid-19 imediatamente”. “Vou ficar aqui até a família poder levar o corpo”, insistiu.

Depois da visita de Pedro Klamar Fuik ao local, uma equipa de funcionários da saúde entrou no centro de isolamento com plásticos laranja nas mãos, com indicações de que iriam preparar o corpo, incluindo desinfeção, colocando em plástico e, posteriormente, num saco mortuário.

A movimentação sugeriu que o fim do impasse estaria próximo, mas horas depois continua sem haver uma solução final.

Vídeos amadores de vários dos momentos do dia suscitaram críticas, depois de se ver Xanana Gusmão a esbofetear pelo menos duas pessoas, uma delas familiar do falecido e de fazer várias críticas a responsáveis de saúde timorenses.

Xanana Gusmão esteve no local rodeado de vários apoiantes mais próximos, incluindo deputados e dirigentes do seu partido, o Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), e elementos da segurança da força política.

Nos dois acessos à rua onde está o centro de Vera Cruz e nas imediações do centro em si, centenas de efetivos policiais mantiveram um apertado cordão de segurança, travando grupos de centenas de manifestantes que, ao início da manhã, se juntaram em apoio a Xanana Gusmão.

Entre os apoiantes, muitos deles jovens, ouviram-se várias críticas não apenas à questão da covid-19 mas, particularmente, à situação socioeconómica difícil com que vive a população de Timor-Leste, em virtude das medidas implementadas para responder à covid-19.

Responsáveis do CIGC admitiram durante a tarde que poderiam recorrer à força, caso sejam fossem impedidos de retirar o cadáver do homem, natural de Ermera, do centro Vera Cruz.

“Claro que vai haver resistência, mas vamos tentar esclarecer a situação e, em último caso, podemos ser obrigados a tomar medidas de força em relação a esta questão”, disse o brigadeiro-general João Miranda ‘Aluk’.

O coordenador da ‘task-force’ para a Prevenção e Mitigação da covid-19, Rui Araújo, explicou que o homem de 46 anos entrou no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) com um quadro grave, com tensão elevada, respiração dificultada e hemorragia, tendo-lhe sido feito o teste PCR à covid-19.

“O resultado foi positivo com um nível ativo elevado de 25.1. O paciente foi transportado para Vera Cruz e foram recolhidas análises a três pessoas da família, das quais duas tiveram resultados positivos: ou seja, três dos quatro habitantes da casa deram resultado positivo”, afirmou.

Rui Araújo mostrou-se sensibilizado com a importância dos rituais, usos e costumes, mas recordou que o vírus “está a propagar-se desenfreadamente, não só em Díli, mas noutras partes do território” e que todos devem cumprir as regras de saúde pública.

Na sequência da polémica, o primeiro-ministro de Timor-Leste encorajou hoje os médicos “a continuarem a trabalhar, a não ficarem tristes e nem perderem a esperança porque o Governo e o Estado” estão ao lado dos profissionais de saúde.

Em comunicado, Taur Matan Ruak referiu que “esta situação está a criar sentimentos negativos de algumas pessoas contra os profissionais de saúde, sendo que algumas pessoas apedrejaram ambulâncias e não têm confiança nos médicos”, acrescentando que “esta atitude não ajuda a combater a doença” no país.

13 Abr 2021

Apoio económico | Governo vai dar 8.000 patacas a cada residente e volta a excluir “bluecards”

Entre um subsídio inicial e um montante para descontos imediatos, o Governo vai atribuir oito mil patacas a cada residente para apoio ao consumo, que podem ser gastas através dos cartões de consumo electrónico. Este recuo do Executivo significa, porém, que os não residentes são novamente excluídos das medidas de apoio económico

 

Depois das fortes críticas da população ao plano económico anunciado há cerca de um mês, o Governo apresentou ontem em conferência de imprensa o projecto de melhorias ao “Plano de benefícios do consumo por meios electrónicos”, que tem como referência o modelo do cartão de consumo adoptado no ano passado. O plano envolve cerca de 5,9 mil milhões de patacas. Cada residente permanente e não permanente vai ter direito a um total de oito mil patacas: cinco mil de montante inicial e três mil para descontos imediatos. Em comunicado, o Governo descreve que o projecto pretende “promover o consumo” bem como “aliviar as dificuldades da população”.

Os cidadãos passam a ter a hipótese de escolher se querem usar estes benefícios através de pagamento móvel ou cartão de consumo electrónico. Prevê-se que os subsídios possam ser utilizados entre Junho e Dezembro, com a inscrição para a escolha do método do uso a arrancar no próximo mês.

“Após a primeira publicação e divulgação do plano anterior ouvimos muitas opiniões dos diversos sectores, dos cidadãos, se há formas para simplificar o processo e também outras opiniões manifestaram intenção de ter um montante inicial. Por isso é uma conclusão científica”, disse o secretário para a Economia e Finanças. Lei Wai Nong acrescentou ainda foi seguida a “vontade da sociedade”.

O novo programa assenta no princípio de “subsídios do Governo, desconto imediato no consumo e benefícios para todos”. No entanto, à semelhança dos apoios lançados no ano passado, os trabalhadores não residentes (TNR) estão novamente excluídos. O secretário apontou que a maioria das pessoas concorda com o plano actual.

“Quanto à parte dos trabalhadores não residentes esperamos ouvir mais opiniões. Temos de ter um debate suficiente. Quando chegarmos a uma conclusão avançamos para o próximo passo”, disse o secretário. Apesar de não descartar o lançamento de outras medidas, ficou claro que não serão nos mesmos termos. “Seja como for, os trabalhadores não residentes não vão ter o montante inicial, mas estamos a preparar todos os trabalhos para ouvir mais amplamente os cidadãos”, afirmou.

O subsídio não pode ser usado para pagamentos em estabelecimentos de jogo, tarifas de água e energia eléctrica, serviços de turismo no exterior, serviços médicos, bancos, instituições financeiras ou casas de penhores.

Ajudas cumulativas

Na prática, o montante inicial de 5.000 patacas pode ser usado nos pagamentos da mesma forma que no plano de subsídio de consumo do ano passado, mantendo-se o limite máximo de 300 patacas por dia. Além disso, são atribuídas 3.000 patacas para descontos imediatos de 25 por cento. Os dois mecanismos podem ser usados cumulativamente. Tai Kin Ip, director dos Serviços de Economia e Desenvolvimento Tecnológico, exemplificou que um produto que custe 400 patacas pode ser adquirido de forma gratuita se forem usadas 100 patacas do desconto imediato e o limite máximo diário de 300 patacas do montante inicial.

Quando o montante inicial acabar de ser usado, mas os residentes ainda têm saldo do valor para descontos, podem fazer carregamento de dinheiro para continuar a beneficiar desses descontos, deixando de haver limite máximo diário.

Para usarem os benefícios, os residentes devem inscrever-se através do sistema online da Autoridade Monetária de Macau, entre Maio e Dezembro. Se for escolhido o meio de pagamento móvel, as verbas são injectadas automaticamente na conta no início do período de utilização. Caso seja escolhido o cartão de consumo electrónico, é necessário fazer o carregamento durante o prazo fixado. No caso dos menores, os benefícios são levantados pelos pais e pode ser feita transferência dos subsídios para as carteiras digitais dos pais, mediante confirmação junto do banco.

O Governo explicou que “uma minoria” da população carregou os cartões de consumo electrónico distribuídos no ano passado para os utilizar como um MacauPass. Quem os usou desta forma vai ter de gastar todo o montante no cartão e regressar à estaca zero, antes de poder usufruir do novo programa de apoio através do cartão de consumo. Os residentes que tiverem perdido o cartão devem comunicar o seu extravio às autoridades e pedir uma segunda via.

De braços abertos

A iniciativa, que envolve dados pessoais de mais de 730 mil pessoas, ainda precisa de receber luz verde da Assembleia Legislativa. Au Kam San, que chegou a convocar uma manifestação contra o plano anterior, disse ao HM que aceita as melhorias apresentadas. “O Governo ouviu a opinião pública. A atribuição do montante inicial de 5.000 patacas já corresponde à esperança do povo, e o montante de 3.000 patacas para descontos imediatos significa que o Governo ainda quer elevar o consumo via subsídio, equilibrando a vontade da população com a sua”, comentou.

“Acho que é um plano muito melhor. Devo dizer que vai além das minhas expectativas”, afirmou Agnes Lam. A deputada considera que a nova iniciativa responde às vozes de quem pediu para se ajudar as pessoas a cobrirem algumas das suas despesas, destacando a possibilidade de se poder optar pelo cartão de consumo electrónico. “O Governo ainda pode impulsionar a economia ao pedir às pessoas para gastarem mais”, disse.

As mudanças também tiveram o apoio de Chan Chak Mo. “Depois de ouvir o público, é uma melhoria muito boa. Claro que todos os detalhes têm de ser anunciados e têm de dizer às pessoas o que fazer. Mas o esquema geral acho que é muito bom porque na verdade, o Governo está a pagar a cada pessoa oito mil patacas (…)”, respondeu ao HM. O deputado afirmou ser um “bom programa” e que o apoia “completamente”.

Numa publicação na rede social Facebook, Sulu Sou destaca que o novo plano acrescenta a opção de se continuarem a usar os cartões de consumo electrónico, pelo que é “temporariamente abandonada” a tentativa de acelerar o pagamento através de telemóveis. “O novo plano já não se foca na “promoção do consumo” (o chamado resgate do mercado) mas também tem o elemento de “assistência económica” (salvar as pessoas), mas ainda não há assistência adicional a quem está desempregado, em licença sem vencimento ou grupos de baixos rendimentos”, reflectiu o deputado.

Já Leong Sun Iok considera que “o Governo basicamente já respondeu às exigências das associações e dos grupos”. Em declarações ao HM, o deputado observou que o Governo recolheu diferentes opiniões, incluindo a Federação das Associações dos Operários de Macau, para definir as melhorias a adoptar. “Também propus no Conselho para o Desenvolvimento Económico que o montante não devia ser inferior ao da primeira e segunda fase do plano de subsídio de consumo. Agora o montante total não é inferior a 8.000 patacas, por isso estou satisfeito”, apontou.

Apesar disso, persistem apreensões sobre a aplicação das medidas. “A maior preocupação é que algumas lojas subam os preços, ou até que os preços não correspondam às etiquetas, como em situações ocorridas no ano passado”, disse Leong Sun Iok. Assim, o legislador espera que o Governo reforce os trabalhos de regulamentação, por exemplo, aumentando as inspecções sobre os preços e aplicando sanções às lojas que subam os valores “de forma indiscriminada”.

13 Abr 2021

Cães acolhidos em edifício industrial levantam questões de saúde pública

Fundadora de associação dedicada à protecção dos animais alugou duas fracções num edifício industrial perto da Estrada do Pac On para acolher cerca de 100 cães abandonados. O caso veio a lume após um relato anónimo que considera a situação perigosa para a saúde pública, dado o cheiro “nauseabundo” e a infestação de ratos que surgiu no edifício onde trabalham várias pessoas. O IAM diz estar a acompanhar a situação “de perto” e que não foram detectadas “irregularidades”

 

O cenário é rocambolesco e as queixas sucedem-se há meses. O facto de a recém-criada associação de protecção dos animais “心肝寶貝浪浪義工團” (ainda sem nome em português) ter alugado um espaço num edifício industrial para acolher cães abandonados, tem suscitado apreensão ao nível de eventuais perigos para a saúde pública, mas também quanto às condições em que vivem os próprios animais. O edifício localiza-se nas redondezas da Estrada do Pac On e a fracção em causa alberga cerca de 100 cães, revelou ao HM a fundadora da associação que gere o alojamento, Anita Cheang.

De acordo com o relato apresentado ao HM, por uma fonte que pediu para não ser identificada, a situação terá começado “há cerca de seis ou sete meses atrás”, após as duas fracções em causa terem sido arrendadas para albergar cães. Pouco tempo depois, o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM) terá sido chamado ao local para averiguar a situação, tendo afirmado que tudo estaria dentro da legalidade, dado que os animais têm acesso a água e comida.

No entanto, segundo a mesma fonte, com o passar do tempo “o cheiro “nauseabundo foi aumentando” e a qualidade de vida no andar “deteriorou-se bastante”, manifestando-se inclusivamente numa “insuportável” infestação de ratos.

“Trabalha ali muita gente e eu vejo nesta situação um caso de perigo para a saúde pública. Além de que, os próprios cães estão em sofrimento. Ouve-se constantemente os cães a ladrar e a agredir-se uns aos outros (…) até porque não vejo cães a sair de lá para ser passeados. Os cães estão lá fechados dia e noite”, partilhou a mesma fonte.

Sublinhando ser da opinião de que se trata de um caso de saúde pública e de protecção dos direitos dos animais, o queixoso contou ainda que, após uma segunda visita, o IAM terá dito que não pode intervir porque os animais não se encontram em espaços comuns, mas sim em propriedade privada.

“Na minha óptica isto é o mesmo do que alguém ter a música alta em casa e a polícia for chamada a intervir. Por isso, não sei até que ponto haver um cheiro nauseabundo num prédio também não será motivo para se fazer alguma coisa”, partilhou.

Escada acima

Não é preciso chegar ao segundo andar, onde estão alojados os cães, para se sentir o cheiro. O HM esteve no local, tendo sido possível comprovar que em várias áreas comuns do edifício, incluindo corredores, patamares e escadas, a atmosfera foi efectivamente afectada pela presença dos animais.

No mesmo corredor onde estão albergados os animais e onde a luz quase não entra pelo meio de maquinaria e mercadoria amontoada, estão várias empresas, entre as quais uma padaria. No andar de baixo há uma outra empresa dedicada a serviços de transporte e a serviços fúnebres de animais de estimação chamada “Pet Paradise”, que garante nada ter a ver os animais acolhidos por Anita Cheang.

Contactada pelo HM, a fundadora da associação revela que o espaço que arrendou já alberga cerca de 100 cães e que esta foi a solução encontrada para continuar a proporcionar uma vida melhor aos animais vadios com os quais se depara na rua ou que precisam de apoio, sobretudo por temer que acabem abatidos, caso permaneçam ao abandono.

Afirmando que desde 2015 tem levado uma vida dedicada a ajudar os animais, Anita Cheang, partilha ainda que, antes de alojar os cães na actual morada na zona do Pac On, estes estavam num outro edifício situado em Coloane, do qual teve de sair devido à decisão do proprietário de vender o imóvel.

Questionada sobre se considera que albergar os animais nas actuais condições e num edifício industrial pode constituir um perigo para a saúde pública, Cheang admite que o cenário não é o ideal e que está actualmente a procurar um novo espaço para os cães, mas descarta responsabilidades relativamente à infestação de ratos.

“De facto, os ratos são muitos e podem afectar a saúde pública, mas não posso usar veneno ou acabo a matar os meus cães. O máximo que posso fazer, e faço sempre que tenho tempo, é limpar todo o piso, incluindo as áreas comuns. Não é razoável pensar que são os cães que atraem os ratos, mas sim que a comida é que é a principal fonte de propagação. Não sei de onde vêm os ratos, mas toda a gente tem o dever de assumir as suas responsabilidades, até porque no mesmo andar existe, por exemplo, uma fábrica de alimentos”, partilhou.

Sobre as queixas relativas ao mau cheiro, Anita Cheang aponta que tem vindo a ser recorrentemente multada pelo IAM no seguimento das várias queixas apresentadas.

Cheang conta ainda que a pandemia tem dificultado em muito o apoio prestado aos animais, até porque, para além de ter perdido o emprego, as despesas mensais com a alimentação e cuidados médicos dos cães que acolhe “são caras” e dependem maioritariamente do seu investimento pessoal e de doações.

“Se tivesse mais recursos claro que já tinha encontrado um espaço melhor para os animais. De qualquer forma, estou ciente que esta é uma morada temporária e que, no futuro, vou mudar-me, até porque devido às queixas, estou certa que não vou conseguir renovar o contrato de arrendamento”, acrescentou.

Tudo controlado

Em resposta enviada ao HM, o IAM diz ter conhecimento do caso e que, desde o final do ano passado, tem enviado funcionários para garantir que, tanto o bem-estar dos animais, como a saúde pública estão assegurados.

“O IAM está a acompanhar de perto a situação do alojamento em questão, que é mantido por um grupo de protecção animal de Macau. Desde o quarto trimestre do ano passado que o IAM tem enviado funcionários mensalmente para inspeccionar se as condições do local estão em linha com o estipulado na Lei de Protecção dos Animais, assim como o bem-estar dos animais. Não foram detectadas irregularidades”, pode ler-se na nota.

Por outro lado, o organismo sublinha que a entidade que gere o espaço “deve cumprir as medidas necessárias para evitar impactos na saúde pública”, tendo sido já prestado o devido aconselhamento.

“Relativamente ao mau cheiro, o IAM prestou aconselhamento aos responsáveis e indicou medidas para realizarem melhorias das condições sanitárias e continuará a supervisionar este local em questão e outros similares por forma a garantir a saúde pública, o bem-estar dos animais e o cumprimento da lei.”

Problema maior

Contactada pelo HM, Fátima Galvão fundadora da Masdaw – Associação de Cães de Rua e Protecção dos Animais de Macau, considera que infelizmente este tipo de situações, em que a população acaba por tomar as rédeas no que toca a resgatar e prestar apoio aos animais, são recorrentes no território, acabando por criar situações indesejáveis, sobretudo quando Macau “tem tudo para ser um exemplo” nesta matéria.

“Se o Governo tivesse vontade esta situação era resolvida muito rapidamente, inclusivamente envolvendo clínicas particulares para esterilizar os animais. Macau podia dar um exemplo ao mundo. Há tantos terrenos que o Governo está a reaver, que era perfeitamente possível criar um ‘santuário’, vedar um espaço onde os animais pudessem viver e depois colocá-lo à responsabilidade das associações, por exemplo. De facto, não se justifica que as associações tenham de ter os animais em edifícios industriais, não é saudável. Os animais devem viver ao ar livre e de se exercitar. Tudo isto é um contra-senso. É uma pena que, numa terra onde há tanto dinheiro não tenhamos um Governo que tenha vontade de dar um exemplo ao mundo”, referiu.

Sobre o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pelo IAM, Fátima Galvão aponta haver melhorias, mais concretamente um “esforço” para não abater cães e comunicar com as associações que, na maior parte dos casos, tal como acontece na Masdaw, “estão a abarrotar de cães”.

Sobre Anita Cheang, que afirma conhecer, a fundadora da Masdaw aponta que “é uma pessoa com um grande coração que vive completamente dedicada aos animais e desenvolve um esforço absolutamente incansável”. “No dia 1 de Janeiro de 2021 às 4 da manhã, a Anita andava a alimentar cães ao frio”, partilhou.

Quanto ao futuro, Fátima Galvão espera que o Governo “comece a pensar em fazer alguma coisa por quem tanto faz pelos animais”, arranjando espaços para as associações e envolvendo as mesmas na procura de soluções.

AL | Agnes Lam pede esterilização de animais e colaboração com associações

Agnes Lam considera que o Executivo deve encontrar soluções para pôr termo ao “círculo interminável em que o Governo captura os animais e, depois, a população é que os salva”.

Afirmando ter recebido pedidos de apoio de vários voluntários que não têm capacidade de adoptar cães e gatos vadios e cujos encargos financeiros atingiram um nível “insuportável”, a deputada quer que Governo e população “estejam do mesmo lado”, defendendo planos de esterilização e a criação de zonas de protecção.

“Como os residentes não querem que os animais sejam abatidos e o Governo precisa de garantir a sanidade e a prevenção de epidemias na cidade, algumas associações de protecção dos animais apresentaram, há anos, o Programa de esterilização dos gatos e cães vadios (TNR), propondo ao Governo a atribuição de terrenos para criarem zonas de protecção para asilo dos gatos e cães vadios. O Governo poderia continuar a capturar animais vadios e, depois da esterilização, estes seriam colocados nessas zonas de protecção, e as associações responsáveis pela sua gestão e os cidadãos poderiam tomar conta deles e apelar à sua adopção”, defendeu Agnes Lam na passada quinta-feira, na Assembleia Legislativa (AL), durante o período dedicado às intervenções antes da ordem do dia.

Para a deputada, caso a actual situação persista “os recursos das associações de protecção dos animais vão acabar por esgotar-se um dia, pois estas têm, constantemente, de salvar os animais do abate”.

12 Abr 2021

Demolir paredes demolindo a História Chinesa de Macau – De Ferreira do Amaral ao Instituto Cultural de Macau

Análise de António V. de Saldanha 薩安東, professor da Universidade de Macau

 

Há poucos dias, com mais repercussões nos media de língua chinesa do que nos portugueses, uma notícia agitou o meio dos que cuidam e se preocupam com o património histórico-cultural de Macau. O caso conta-se em poucas palavras: após alguma discussão, o Conselho de Planeamento Urbano de Macau, baseado em parecer do Instituto Cultural de Macau, considerou a irrelevância arqueológica do lote de 563 metros quadrados localizados no Pátio do Amparo nos.5-7, e autorizou a edificação no local, sujeita às habituais restrições de altura, etc. A decisão suscitou a oposição imediata de um dos membros desse Conselho, o Arq. André Lui (呂澤強 Lǚ Zeqiang) — destacado especialista em questões de património cultural e membro da Chinese Association for the Protection of Historic Sites — invocando o facto de o Conselho de Planeamento Urbano de Macau ter decidido apressadamente sobre um parecer erróneo do ICM. Ou seja, um parecer emitido pelo Instituto Cultural onde se avaliou deficientemente o facto facilmente provado de o terreno em causa estar sobre o local do antigo Guanbu Xingtai關部行臺, desde 1688 a antiga sede da delegação alfandegária imperial de Macau (a “Alfândega Grande da Praia Pequena”), encerrada pelo Governador Ferreira do Amaral em 1849. Para Lǚ Zeqiang, o local do Guanbu Xingtai não deveria ser já considerado como “uma relíquia cultural de Macau mas um autêntico tesouro nacional”. Mais: a decisão do Conselho redundaria num atentado ao património histórico de Macau inviabilizando uma rara oportunidade de pedagogia histórico-cultural e de carácter “patriótico”.

A posição de Lǚ Zeqiang não pode deixar de merecer o maior apoio e solidariedade de todos aqueles que têm interesse pelo património histórico de Macau pois há um risco sério de uma página da história chinesa de Macau ser rasgada sem remissão. Contudo, o problema é bem mais sério do que o denunciado pelo Arq. Lǚ e merece ser abordado aqui em toda a sua extensão.

Os 500 e tal metros quadrados vazios e os restos do que poderá ter sido a fachada nobre da antiga Alfândega imperial de Macau valem pouco por si mas (e é isto que se esquece) valem muitíssimo se devidamente incluídos no conjunto dos cinco locais mais simbolicamente representativos da autoridade imperial Chinesa que durante trezentos anos prevaleceu em Macau. A saber: 1) a porta fortificada do istmo com competências de fiscalização aduaneira, chamada depois de Porta do Cerco, no local onde está hoje a bem conhecida Kwan Chap, Guanzha關閘.

2) a residência (documentada desde os anos 70’s do sec.XVI) do chamado “mandarim de Macau”, o famoso Zuotang 佐堂ou Xiancheng县丞, responsável pela gestão dos assuntos dos chineses e dos estrangeiros de Macau. Esse edifício, pela sua utilidade não apenas residencial, mas também pela finalidade cerimonial, de secretariado e de tribunal judicial, podia ser classificado verdadeiramente como o yamen do Zuotang de Macau. 3) o edifício central da administração alfandegária de Macau, o Niangmajiao shuiguan娘妈角税馆, a primeira delegação da Alfândega imperial Cantão em Macau, o “Hopu da Barra”, fundado em 1684/1685 e chefiada por outro mandarim ou magistrado, o Guanaoweiyuan關澳委員, o chamado “Hopu da Praia Pequena”. 4) a residência deste magistrado e de outros mandarins de visita a Macau, construída nos anos 70 do século XVIII, não longe do corpo da grande alfândega. 5) o átrio do Senado de Macau onde estavam erectas as duas grandes lápides de pedra com os decretos dos Imperadores Wanli (1614) e Qianlong (1749) que enunciavam o complexo normativo pelo qual até ao séc. XIX se pautou a existência da comunidade Portuguesa de Macau no interior do sistema imperial de governança da cidade.

É de notar que muitas das tão famosas ”chapas sínicas”, documentos oficiais chineses de contacto com as autoridades portuguesas de Macau, custodiadas pelo Arquivo Nacional de Portugal e recentemente classificadas como património mundial pela UNESCO, foram produzidas e emitidas em Macau pelo gabinete dos Mandarins Zuotang de Macau e Guanaoweiyuan da Alfândega Grande sediados nos precisos locais que acabamos de referir!

É por demais conhecido como esta lógica e esta logística do poder imperial chinês foi totalmente pulverizada entre os anos de 1846 e 1849 por acção do Governador Ferreira do Amaral. O Procurador do Senado, o Yimu 夷目, o “olho dos bárbaros”, detentor de um ínfimo grau mandarínico, perdeu então o seu papel de liaison officer junto dos magistrados chineses e as lápides com os decretos imperiais existentes no Senado foram destruídas ou remetidas para Lisboa. A Porta do Istmo foi alterada e redenominada como “Porta do Limite” para significar a extensão territorial da cidade para lá das velhas e depois derribadas muralhas e portas da cidade até à garganta do istmo. Os mandarins Zuotang e Hopu foram expulsos de Macau, as residências confiscadas e vendidas, a Alfândega Grande da Praia Pequena encerrada e esventrada, e o mastro fronteiro com as flâmulas imperiais derrubado à machadada na manhã do dia 13 de Março de 1849 perante uma atónita população chinesa.

É hoje possível compreender que o objectivo da estratégia do Governador Ferreira do Amaral foi não só político mas também psicológico. Expulsando os mandarins e, simultaneamente, arrasando, esvaziando e “dessacralizando” a logística do poder imperial chinês em Macau, Amaral arrancou-o do coração da cidade chinesa à beira do Porto Interior e tirou-o da vista da sua comunidade original, apagando a sua memória. De imediato, criou um espaço alternativo para um novo centro de poder, político, judicial e administrativo, agora Português, na outra ponta da cidade, à beira da Praia Grande, onde, por sinal, ainda hoje se conserva como sede do Governo da RAEM.

Pergunta-se, o que resta de tudo? Resta mais do que se pensa nesta cidade patrimonialmente martirizada, o suficiente para servir de sustento e amparo à divulgação da história de Macau pré-colonial, à história chinesa de Macau que ainda tem tanto para explorar e trazer ao grande caudal da história moderna da China.

Neste como noutros campos, são as fontes históricas portuguesas que continuam a suprir as deficiências informativas ou mesmo a inexistência das fontes chinesas pertinentes. Foi aliás o próprio arquitecto Lǚ Zeqiang que no seu apelo e para efeitos de prova sublinhou a importância da utilização de um largo mapa de Macau traçado em 1831 e actualizado em 1838 pelo cartógrafo da Marinha Portuguesa Cândido António Osório existente em Lisboa nos arquivos do Exército, agora digitalizado e incluído na muito útil e bem organizada colecção especial de cartografia de Macau, desenvolvida pela Biblioteca da Macau University of Science and Technology. A consulta do mapa de Osório pode ser ainda mais alargada e o traçado sobreposto a um simples mapa Google. Os resultados são surpreendentes e de uma exactidão que facilita a compreensão do que resta deste antigo centro histórico : numa área de algumas centenas de metros que correm para baixo da fachada lateral poente da Igreja de S. Paulo até à Rua de N. Sra. do Amparo (a bem conhecida rua dos quase desaparecidos tin-tins) concentram-se os sítios e as ruínas do que foram as sedes das autoridades Chinesas de duas dinastias que, indisputadas, governaram Macau e as duas comunidades, Chinesa e Portuguesa, até meados do século XIX. Junto a S. Paulo e à travessa de S. Francisco Xavier, o palacete mourisco que abriga a Associação Hó-Song-I-Tong 何族崇義堂聯誼會 assenta no que foi o yamen do Zuotang, o mandarim de Macau. Mais uns metros abaixo, na grande área compreendida entre o Pátio do Amparo 顯榮圍e o Pátio da Mina李家圍, limitada a poente pelo R. de N. Senhora do Amparo關前後街 (referida na documentação portuguesa dos finais do século XIX como sendo a “Tai-kuan-háu-cae” 大關後街 Da Guan Hou Jie, isto é, a “Rua de trás da Grande Alfândega”), está o local da Alfândega Grande da Praia Pequena que o Instituto Cultural veio agora negar a prova que ali se localizasse. Ainda na R. de N. Sra. do Amparo, umas centenas de metros para norte está o pórtico do Pátio das Calhandras山蔴雀 圍; logo à entrada, à esquerda, um edifício pesado que contém os restos ou assenta sobre a antiga residência dos mandarins da alfândega e magistrados visitantes (hoje ao que parece propriedade da associação Tung Sin Tong); à esquerda do pórtico está o bloco compacto de uma antiga casa de penhores que no mapa de 1831 já era referida como tal, fronteira a casa dos Mandarins.

É neste contexto de riquíssimo e profundo significado histórico para Macau e, consequentemente, para a história da Grande Baía e moderna da China que nos surge a iniciativa do arquitecto Lǚ Zeqiang e o seu apelo para que as autoridades de Macau entendessem o que estava em jogo e que se respeitasse uma memória da história da cidade; isto é, uma memória agonizante que, por um esforço pedagógico e patriótico, deveria ser elevada a memória colectiva da comunidade de Macau.

É verdadeiramente chocante que esse apelo tenha sido rejeitado, aparentemente baseado num parecer produzido pelo Instituto Cultural de Macau que avança o argumento pueril da inexistência de vestígios arqueológicos probatórios da existência do Guanbu Xingtai, a Grande Alfândega da Praia Pequena, no local. Ignora-se que restos arqueológicos se esperaria encontrar no local provando a existência de uma repartição burocrática como a alfândega cujos armazéns e guarda marítima se situavam noutro local, mais abaixo sobre a Praia Pequena, como o prova o mapa de Osório (“Opu da Praia Pequena”) Aliás, um outro documento oficial português de 1877, revela-nos que nesta data já só existiam neste mesmo espaço do Pátio do Amparo as fortes paredes da Alfândega e um amontado de casario miserável.

O Instituto Cultural de Macau já nos vem habituando de há muito a uma impressão de incapacidade no que respeita a uma política racional e informada de salvaguarda do património histórico de Macau, limitado pelo que parece ser uma noção impressionística e de vistas curtas mais voltada para o “turismo de massas” do que para os interesses e formação cultural da comunidade que aqui vive há várias gerações. Desta feita, a questão não parece ser o turismo de massas mas o interesse vulgar de viabilizar mais uma construção de raiz nos 563 metros quadrados cravados num centro histórico da cidade. Claro que não se questiona o indisputado mérito dos arquitectos e dos arqueólogos do ICM; questionam-se sim as noções e conhecimentos que o ICM tem (se é que tem) da secular história política, social, económica e cultural de Macau e das responsabilidades inerentes da sua preservação e do seu desenvolvimento para os quais uma bem orientada contribuição dos arquitectos e dos arqueólogos é fundamental.

Porque não é certamente aos responsáveis pelas Obras Públicas de Macau que essas mesmas responsabilidades cabem: é ao Instituto Cultural, como a outros institutos culturais do mundo civilizado. Nesse campo — o da sabedoria, o da inovação e o do critério de valorização e potencialização do património – devem pôr-se os olhos na China, mesmo aqui ao lado, que tem dado e continua a dar exemplos absolutamente notáveis.

Entendamo-nos: o que parece esconder-se por detrás da manifesta incapacidade do ICM para lutar pela preservação do sítio da antiga alfândega imperial, não é a indiferença mas a pura e simples ignorância da História de Macau e a menoridade cultural de quem crê que o “património” urbano se reduz à unidade que se vê, ao que se palpa e ao que eventualmente serve de pano de fundo a mais uma selfie. Numa cultura riquíssima como a Chinesa onde o símbolo, e sobretudo o símbolo transcendente do poder, teve e continua a ter um lugar privilegiado, é verdadeiramente inacreditável que isso não aconteça em Macau RAE. É, de facto, espantoso que a superior instituição local em matéria de Cultura não tenha compreendido que ao proteger e acarinhar um elemento do núcleo simbólico de trezentos anos de pleno exercício de uma Autoridade Imperial — que também foi Governo Central da China — esteja a cometer um erro cultural e, sobretudo um erro pedagógico. Num momento em que as mais altas instancias da R.P. da China apelam ao reavivar, ou mesmo à reconstrução, de uma história nacional para a qual devem fluir as histórias locais numa lógica de legitimidade, de unidade e de continuidade, é, de facto, inacreditável que em Macau se ignore e desperdice a oportunidade de, para lá da cultura livresca e erudita, ensinar à sua comunidade através de um itinerário marcado na malha urbana e pela exibição dos restos simbólicos ainda existentes no seu espaço, que houve um Macau pré-colonial gerido com competências específicas por autoridades delegadas de um Poder Central, com assento em Macau e com uma logística própria e adequada ao seu estatuto. Foi isso que o Governador Ferreira do Amaral atacou com precisão, selecionando os alvos de maior carga simbólica para fazer esquecer um passado que lhe era impossível deixar coexistir com a nova legitimidade colonial.

Ironicamente, parece que assim e por este caminho o Instituto Cultural de Macau arrisca ganhar o título dúbio de facilitador do remate final da obra de Ferreira do Amaral. Por isso, razão e muita tem o arquitecto Lǚ Zeqiang ao sugerir que a questão já não deveria estar a correr ao nível local da preservação do património mas sim que deveria ser transportado para uma instância superior onde os tesouros nacionais da cultura chinesa são devidamente considerados e protegidos.


Nota:
Este artigo de opinião é fundado em resultados de um projecto de pesquisa que o autor lidera com o título “Logics and Logistics of Power, Commerce and Religion in Pre-Colonial Macau”.

8 Abr 2021

Estudo | Questão racial foi determinante para o estatuto privilegiado de Macau

Macau sempre teve um “estatuto privilegiado” nas representações feitas por Portugal face às colónias africanas e Timor-Leste. Não houve apropriação de costumes e modos de vida dos macaenses, nem estes foram abrangidos pelo estatuto do indígena. Ainda hoje se olha para Macau de forma diferente e, em parte, por uma razão: as diferenças na cor da pele. Esta é uma das ideias deixadas num estudo recentemente publicado pela investigadora da Universidade de Lisboa Patrícia Ferraz de Matos

 

“Colonial representations of Macao and the Macanese: Circulation, knowledge, identities and challenges for the future” [Representações coloniais de Macau e dos macaenses: Circulação, conhecimento, identidades e desafios para o futuro] é o título de um artigo académico da autoria de Patrícia Ferraz de Matos, da Universidade de Lisboa (UL), publicado recentemente na revista científica Portuguese Journal of Social Sciences.

A investigadora defende que Macau sempre gozou de um estatuto privilegiado em termos de representação por parte da metrópole por oposição às colónias africanas ou a Timor-Leste, algo que acabou por perdurar até aos dias de hoje.

“Ao viverem relativamente isolados da metrópole portuguesa entre os séculos XVI e XIX, os macaenses desenvolveram uma cultura e crioulo locais através da incorporação de várias influências que receberam das zonas marítimas da Ásia Oriental. Ao fazer isso, puderam manter o seu estilo de vida, tradições, idioma, gastronomia e profissões associadas ao Governo local”, pode ler-se.

Ao HM, a investigadora adianta que “Macau não foi um território de exploração como foi Angola ou Moçambique, com plantações, em que as pessoas eram obrigadas a trabalhar porque tinham de pagar um imposto, e por isso é que tinham o estatuto de indígena.” Acresce o facto de, perante a ONU, Macau nunca ter sido considerado uma colónia. Em algumas colónias portuguesas houve destruição de aldeias, onde foram construídas escolas e hospitais ao estilo europeu. “Em Macau isso não aconteceu”, lembrou a autora.

Em termos gerais, no período colonial, Macau “era visto e representado como um território remoto em que muito pouco era conhecido”. “Ao analisar as representações dos territórios sobre administração colonial portuguesa, é evidente que Macau desfrutava de um estatuto privilegiado, particularmente em comparação com as descrições feitas dos territórios africanos e de Timor”, lê-se ainda.

Nestas representações do tempo do Estado Novo, as práticas sócio-culturais de Macau eram vistas como “originais e uma mistura de várias culturas”. “Por outro lado, as adições (do jogo) são mencionadas, tal como o facto de a lei ser mais flexível. O fascínio em torno de Macau estava muitas vezes relacionado com o seu alegado exotismo e com o facto de podermos encontrar elementos identificáveis com a cultura portuguesa num território tão distante e diferente”, aponta o artigo.

Uma questão de pele

A cor da pele também acabou por influenciar o processo de representação de Macau. “[Os habitantes das colónias africanas] eram pessoas de raça negra, era este o termo usado nos documentos, e os seus descendentes, que não soubessem ler e escrever ou que tivessem costumes considerados primitivos [estavam inseridos no estatuto do indígena]. Isso não aconteceu com os macaenses”, adiantou Patrícia Ferraz de Matos.

A investigadora analisou exposições, livros escolares e outras iniciativas do Estado Novo onde o império colonial era descrito e mostrado aos portugueses, incluindo o espaço dedicado a Macau e às restantes colónias no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra.

“Há determinados aspectos que não encontramos nos pavilhões de África, isto no Portugal dos Pequeninos. Encontramos sementes e armas, no de Macau não. Encontramos uma escola ou uma série de lojas, algo mais próximo de existir numa sociedade ocidental. Macau era um pouco visto como mestiço, e parte desse privilégio que [o território teve] pela forma como foi visto e representado [por Portugal] terá a ver com isso.”

Esse estatuto de privilégio “comparativamente aos países africanos, penso que se mantém”, defende a académica, e é algo que tem a ver “com a cor da pele e com o racismo”.

“Portugal é um país estruturalmente racista e a questão da cor da pele muitas vezes esteve por detrás da definição de coisas como o Acto Colonial, o estatuto indígena, código do trabalho do indígena, que foi aplicado nas populações africanas e nunca em Macau”, frisou.

Patrícia Ferraz de Matos destaca o facto de, hoje em dia, existir em Portugal um intenso debate não apenas sobre o racismo, mas sobre as representações coloniais, incluindo o derrube ou a manutenção de estátuas e outros símbolos. “Isso tem muito mais a ver com a relação de Portugal com os países africanos. Macau passa ao lado disto, completamente.”

Uma nova identidade

Olhando para o futuro, Patrícia Ferraz de Matos destaca o facto de hoje em dia existir “uma nova geração de macaenses que se identificam menos com a cultura portuguesa e começaram a cultivar um novo discurso de identidade”.

Actualmente, “a comunidade macaense ilustra um processo de aglutinação para a criação de uma identidade étnica”, lê-se. Este movimento não está imune ao processo de internacionalização da própria China e também de Macau, acrescenta a autora.

Este movimento de ligação à cultura portuguesa aconteceu também muito por culpa “da presença da comunidade portuguesa, que muitas vezes é vista como aberta ao mundo e com uma incrível capacidade para se adaptar aos territórios estrangeiros”.

“Tal como no passado, e apesar de todas as transformações, Macau é ainda um lugar interessante para reflectir sobre as estratégias de poder e de internacionalização, o estabelecimento de relações, a circulação de pessoas e a formação de identidades”, frisou.

Patrícia Ferraz de Matos não deixa de destacar a realização de actividades como o Festival da Lusofonia ou a Semana Cultura da China e dos Países de Língua Portuguesa como exemplos de uma ligação a Portugal que ficou ao longo dos anos.

“O Festival da Lusofonia é algo que foi definido por Macau e não pelos portugueses. É muito interessante, tem este nome, mas poderia ter outro. É interessante também ver o que é incluído neste festival”, concluiu.

31 Mar 2021

TNR | Desemprego e falta de apoio do Governo aumenta filas de distribuição de comida da Caritas

Apesar de Macau não ter novos casos de covid-19 há um ano, a pandemia continua a causar enorme impacto social. Paul Pun, secretário-geral da Caritas, relata o aumento de trabalhadores migrantes, todas as semanas, nas campanhas de distribuição de comida. Dirigentes de associações que representam TNR esperam que o Governo os inclua no próximo plano de apoios financeiros

 

Paul Pun, secretário-geral da Caritas, acredita que os próximos meses vão trazer ao de cima um volume crescente de casos de vulnerabilidade social entre trabalhadores não residentes (TNR). Com as fronteiras praticamente fechadas, sem trabalho ou dinheiro, haverá cada vez mais TNR a depender de assistência social para sobreviver.

Actualmente, a Caritas tem um programa semanal de distribuição alimentar destinado apenas a trabalhadores migrantes, intitulado “Partilha de Alimentos – Food Sharing”, para o qual o Governo não contribui com qualquer apoio financeiro. Independentemente, da logística e apoios oficiais, Paul Pun testemunha o aumento dos pedidos de ajuda.

“Só ontem [última campanha de distribuição de alimentos e produtos] tivemos aqui 400 pessoas e 60 novos casos”, contou ao HM. “São pessoas que estão sem emprego e presas em Macau. Distribuímos embalagens de arroz e produtos de higiene, e demos vouchers de 100 patacas. Com a ajuda de 10 voluntários trabalhamos cerca de sete horas para dar algum apoio a estas pessoas. Também foi dado leite em pó para a alimentação das crianças. Temos feito isto desde Setembro.”

“Sempre que organizamos estas acções, aparecem novos casos”, adiantou. A braços também com escassez de recursos humanos, a Caritas apenas pode organizar uma campanha de “Partilha de Alimentos – Food Sharing” por semana.

“Estimo que o número de pessoas a precisar de ajuda nos próximos meses venha a aumentar. Continuam a lutar pelo trabalho dos residentes e penso que quando os contratos de trabalho dos não residentes terminarem não serão renovados. Acredito que mais pessoas peçam ajuda. Mas não creio que os voos regressem à normalidade nos próximos meses”, projectou Paul Pun, que alertou também para casos escondidos.

“Creio que existem pessoas a precisar de ajuda, mas que não pedem”, frisou. O programa da Caritas é destinado também a quem fica retido no território sem bluecard e apenas com o passaporte. “Estas pessoas não têm voz, mas também merecem a nossa atenção. É por isso que insisto em fazer este trabalho, porque estas pessoas contribuem para a sociedade de Macau e sem o seu apoio a nossa comunidade não teria oportunidades de se desenvolver. Não têm forma de voltar a casa e estão a sofrer constrangimentos, então temos de cuidar destas pessoas.”

Porquê os TNR?

Sem financiamento do Governo, Paul Pun vê-se muitas vezes obrigado a pedir ajuda a amigos para adquirir bens alimentares ou produtos de higiene, incluindo máscaras. Alguns hotéis, casinos e instituições privadas, como a Escola Portuguesa de Macau, dão uma mão na angariação de bens.

“Há uns dias pedi a uma amiga ajuda para comprar embalagens de arroz, e ela fez um donativo de arroz. Essa quantidade deu para três campanhas de distribuição. Alguns hotéis encorajam os funcionários a darem-nos comida.”

Manter o programa de assistência custa à Caritas entre 100 a 150 mil patacas por mês. “Temos conseguido manter este programa, mas espero que os trabalhadores migrantes também se consigam aguentar. Precisamos de tempo para comunicar com pessoas que possam fazer donativos. Alguns perguntam-me porque é que eu não ajudo os residentes de Macau, porque eles também não têm trabalho ou salário. E eu tenho de explicar-lhes que os residentes têm programas de apoio. Mas os não residentes não têm financiamento adicional e precisam da caridade”, adiantou.

Grito de alerta

Jassy Santos, trabalhadora doméstica filipina e dirigente da associação Progressive Labor Union of Domestic Worker, não tem dúvidas de que o número de pessoas a necessitar de ajuda irá disparar nos próximos meses.

“Todos os dias há trabalhadores migrantes a perder o emprego. E há algum tempo que estas pessoas precisam de ajuda. O Governo deve abrir os olhos para estes trabalhadores migrantes que precisam de ajuda”, referiu ao HM.

A dirigente gostaria de ver a rede de apoio social a esta franja da comunidade alargada para além dos programas de distribuição de víveres organizados pela Caritas. “Os trabalhadores migrantes também contribuem para a sociedade de Macau e e precisam de ajuda, especialmente os que perderam o trabalho. A maior parte destas pessoas não tem estabilidade financeira.”

Jassy Santos estima que haverá cerca de mil cidadãos filipinos à espera de repatriamento. O HM tentou obter dados junto do consulado-geral das Filipinas em Macau e Hong Kong, bem como o número de pedidos de ajuda apresentados, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta. Também não foi possível apurar dados relativos a trabalhadores migrantes de outras nacionalidades.

Quando foi anunciado o plano de apoio financeiro com cupões electrónicos os TNR estavam contemplados. Porém, o Governo vai rever o programa, sem que haja detalhes concretos quando aos destinatários do apoio.

“Espero que nos possam incluir, porque como trabalhadores migrantes também somos consumidores. Mas de qualquer das formas os trabalhadores migrantes necessitam de uma política especial enquanto estiverem no território.”

Benedicta Palcon, porta-voz da associação Green Philippines Migrant Workers Union, não consegue quantificar, mas confirma que “há ainda muitos” TNR a necessitar de ajuda. “Estão à espera de serem repatriados e alguns não têm dinheiro para pagar o voo que o consulado disponibiliza todos os meses, então estão à espera da repatriação gratuita.”

A dirigente associativa, que também trabalha no território como empregada doméstica, não sabe como os trabalhadores migrantes conseguem lidar com as dificuldades que enfrentam no dia-a-dia. “Têm sorte se conseguirem encontrar um grupo de pessoas que os apoie e que aceite partilhar com eles uma cama num beliche.”

A perda da esperança

Eric Lestari, representante em Macau da Overseas Worker Entities (OWE), confessa que na comunidade indonésia também há casos de pessoas desesperadas. “Estão há três ou quatro meses à espera do bilhete de regresso para a Indonésia, outros procuram soluções por eles próprios.”

Também ela prevê o aumento de pedidos de ajuda nos próximos meses. “Os serviços de migração não vão estender o visto de trabalho e eles têm de regressar rapidamente, mas não acredito que as agências consigam providenciar tão rapidamente bilhetes de avião.”

A OWE dá aconselhamento a estes trabalhadores, mas pouco pode fazer em termos práticos. “Todos os meses há um voo para a Indonésia e pode custar até cinco mil patacas, sem bagagem. Uma grande parte dos trabalhadores não consegue pagar este valor e pede dinheiro às famílias ou aos amigos. Alguns não sabem o que fazer, digo para se dirigirem à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) ou para falarem amigavelmente com os patrões e lhes peçam auxílio para comprar o bilhete de avião.”

Eric Lestari trabalha há cerca de 14 anos para o mesmo patrão e o seu salário não foi reduzido. Mas conhece muitos casos de pessoas que enfrentam enormes dificuldades e que têm vergonha de falar publicamente. “Perderam a esperança porque o Governo não dá qualquer ajuda, nem os serviços de migração ou a DSAL”, rematou.

30 Mar 2021

Despenalização do aborto | Governo sem planos para rever a lei

Os Serviços de Saúde de Macau garantem “não possuir planos” para a alteração do regime jurídico de interrupção voluntária da gravidez, de 2004, em prol de uma total despenalização do aborto. Várias personalidades garantem que este é ainda um assunto tabu na sociedade e que será difícil ir contra as posições da igreja católica e de muitas entidades do território. A China, onde o aborto é legal, é uma escolha acessível para muitas mulheres

 

Despenalizar na totalidade o aborto continua a não estar nos planos do Governo. Tudo indica que o decreto-lei de 1995, que sofreu uma revisão em 2004, deverá manter-se inalterado nos próximos tempos, segundo uma resposta dos Serviços de Saúde de Macau (SSM) ao HM.

“Actualmente os Serviços de Saúde não possuem planos para alteração da respectiva lei. Em relação à questão de alteração do Decreto-Lei n.º 59/95/M, de 27 de Novembro, que regula a interrupção voluntária da gravidez, deve-se em primeiro lugar realizar a discussão pública de forma ampla e rigorosa quanto aos eventuais procedimentos de dispensa da pena”, lê-se na resposta.

A lei em vigor prevê três situações em que realizar um aborto não é crime. Uma delas é se a gravidez pode levar ao risco de morte ou lesão grave e duradoura no corpo, ou se constituir um perigo para a saúde física e psíquica da mulher. No entanto, isto só é válido se o aborto for realizado nas primeiras 24 semanas de gestação. O aborto não é crime se houver provas de que o nascituro poderá sofrer de doença ou de malformação grave ou se ficar provado que a gravidez foi consequência de um crime contra a liberdade ou autodeterminação sexual, mas sempre se for realizado nas primeiras 24 semanas de gestação.

Agnes Lam, deputada, confessa que trazer este assunto para a agenda mediática e política será difícil porque continua a ser um tabu. “A sociedade não está pronta e em Macau esse não é um assunto porque na China é legal fazer um aborto. A Igreja Católica não iria aprovar esta matéria e penso que é um tema sensível na sociedade, as pessoas não querem falar sobre ele. E depois há o lado prático de se poder fazer um aborto na China legalmente”, disse ao HM.

Para a deputada e professora universitária, não existe sequer uma noção clara da penalização ou despenalização do aborto, porque é legal fazer uma interrupção voluntária da gravidez do outro lado da fronteira e o acesso por parte das mulheres de Macau é fácil. “É do conhecimento público que não se faz um aborto em Macau”, adiantou Agnes Lam.

Mas o facto de as mulheres irem a Zhuhai realizar um aborto faz com que não haja estatísticas ou conhecimento de eventuais problemas de saúde que sejam uma consequência dessa intervenção.

“Na teoria deveria haver políticas para proteger as mulheres no caso de haver problemas de saúde, mas se vamos criar essas políticas temos de compreender toda a situação. Temos de saber o número de abortos que temos em Macau e na China, para sabermos o panorama em geral. Mas as pessoas não falam sequer sobre isso, não há dados oficiais. Podemos ter alguns dados de abortos feitos em contexto de violações, por exemplo. Mas não temos noção se o problema é sério ou não.”

Debate nunca começou

Melody Lu, professora da Universidade de Macau (UM), também disse ao HM que a posição da Igreja católica sobre esta matéria será sempre uma forte influência para as autoridades assumirem uma política.

“O Governo de Macau não vai iniciar este processo de consulta porque vai encontrar uma oposição muito forte por parte da Igreja católica mas também das escolas. [As coisas podem ser diferentes] se a Igreja mudar de postura, porque este é um princípio fundamental. Não espero uma mudança nesta matéria para os próximos anos.”

Também a professora universitária acredita que deveriam ser garantidas medidas de apoio à saúde destas mulheres que vão a Zhuhai abortar. “Sem dúvida que há falta de políticas, mas nunca se chegou a um ponto em que se considera a despenalização. A posição da Igreja católica é muito forte e, nos últimos anos, não vi ninguém iniciar esse debate.”

Melody Lu garante que, para na comunidade chinesa, a ideia geral é que “é muito mais fácil ir fazer um aborto a Zhuhai do que começar uma batalha em Macau”.

“Os cuidados de saúde do outro lado da fronteira são muito comuns. Sei que as mulheres da comunidade chinesa vão a Zhuhai, porque é muito conveniente. E mesmo se o aborto fosse legalizado as mulheres iriam continuar a ir a Zhuhai, porque não havia o registo aqui. Existe ainda o estigma”, acrescentou.

Centro do Bom Pastor é contra

Contactada pelo HM, Debbie Lai, directora do Centro do Bom Pastor, é o espelho desta posição contrária da igreja. “Com base na nossa perspectiva, a vida é algo muito precioso. Acreditamos que uma vida é a coisa mais válida no mundo, esse é o mote do nosso centro.”

Debbie Lai acrescentou ainda que muitas das mulheres que são acolhidas e acompanhadas pelo centro acabam por ter os seus filhos. “Elas acreditam que a vida dos bebés é também algo valioso, especialmente os fetos. Damos assistência para as adolescentes ou mães solteiras. Encorajamos sempre para que tenham as crianças, e também as ajudamos a encontrar recursos de apoios. Então aí elas acabam por aceitar ter o filho.”

A directora do Centro do Bom Pastor acredita que o aborto “pode magoar a mãe” e trazer consequências a nível físico e psicológico para a vida inteira.

“A lei de Macau dá prioridade à vida da criança, pelo que não há necessidade de mudar esta lei. As mulheres que decidem fazer um aborto podem também sofrer traumas como insónia, ansiedade e depressão, além de que o aborto pode causar infertilidade”, frisou.

A posição do Centro do Bom Pastor vai também contra a prática de relações sexuais antes do casamento. “Estas mulheres não estão prontas para serem mães e podem decidir abortar devido a pressões da vida e financeiras. Encorajamos o planeamento e a preparação para o casamento”, rematou.

Para Paul Pun, secretário-geral da Caritas, nem está em causa a questão religiosa, apesar de se assumir como católico. “Não encorajo a prática do aborto porque acho que os direitos da criança, do feto, devem ser protegidos.”

“O feto tem o direito a nascer, à criação. Mas há casos de adolescentes que escolhem fazer um aborto na China. Ontem tive uma conversa com adolescentes e parecia-me que tendiam a escolher a opção do aborto. Pareciam não ter qualquer ideia de educação sexual e de como se podiam proteger a elas próprias”, contou.

Nesse sentido, o secretário-geral da Caritas pede um reforço da educação sexual. “Penso que deveríamos fazer mais para educar os adolescentes e ensinar-lhes como se devem proteger. As coisas são diferentes de quando eu era estudante, há 40 anos, os adolescentes não falavam disto. [Hoje os jovens] conhecem pessoas nas redes sociais e estabelecem relacionamentos com estranhos”, rematou. O HM contactou ainda a Diocese de Macau no sentido de saber a sua posição oficial sobre esta matéria, mas até ao fecho desta edição não foi obtida uma resposta.

26 Mar 2021

Casinos | Estudo defende aposta no segmento não jogo na Grande Baía para diversificar economia

O advogado Pedro Cortés defende, num artigo académico, que o sector do jogo deve procurar desenvolver-se recorrendo à Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, através de investimentos no segmento não jogo. Pedro Cortés aponta ainda para a necessidade de flexibilizar o mercado laboral, sobretudo na área dos croupiers, em prol da diversificação do sector

 

O projecto da Grande Baía Guangdong – Hong Kong – Macau pode ser a tábua de salvação para a diversificação do sector do jogo em Macau. Ainda que os casinos não sejam permitidos na China, podem ser feitos investimentos para a abertura de resorts integrados ou outro tipo de actividades de entretenimento. A ideia é deixada pelo advogado Pedro Cortés no artigo académico “Macau Gaming Industry 8.0 – Public Policy Beyond 2022”, publicado no passado dia 18 de Março no âmbito do mestrado na Universidade do Nevada.

“Há a possibilidade de fazer investimentos, ter hotéis em Hengqin, resorts integrados que não tenham jogo ou que haja alguma participação em iniciativas de inovação. Não é desenvolver o jogo, mas diversificar a sua influência e negócios para outras áreas que possam ser benéficas para Macau. Tudo o que se faz em Macau que não seja jogo pode ser feito na Grande Baía e com isso canalizar recursos humanos e financeiros para um lado e para o outro”, explicou ao HM.

“Em relação aos critérios para atribuir concessões, o Governo de Macau deveria contemplar não apenas o montante de prémios ou contribuições a serem pagos, mas também propostas de investimento na Grande Baía”, acrescenta. O jurista fala também, neste contexto, de “propostas de investimento para criar novas fontes de turismo”.

Na ligação entre o sector do jogo e a sociedade, Pedro Cortés menciona também a importância e a necessidade de “criar um sistema de contribuições de longo prazo na área da segurança social para residentes”, planos de responsabilidade social e a aposta na inovação na área do jogo.

Sem esta inovação, o jurista não tem dúvidas de que o mercado pode mudar bastante, ao ponto de o território deixar de ter jogo. “Acredito que Macau pode deixar de ter jogo daqui a uns anos, e falo da possibilidade de o Cotai poder ser um local de visita a museus de jogo. [Devido ao facto de] não haver inovação suficiente para que isso não aconteça”, explicou ao HM.

“Macau ainda não está no seu fim, mas a dependência generalizada dos turistas chineses e a economia largamente dependente de uma só indústria podem ser suficientes para actuar como chamada de atenção para o Governo. Estudos deveriam ser conduzidos para encontrar um modelo mais apropriado para a indústria e novos modelos de desenvolvimento. A prospecção de ter hotéis de quarto vazios e os casinos transformarem-se em ‘museus de jogo’ não deve ser afastada”, pode ler-se.

Se em Las Vegas as receitas do segmento não jogo são superiores aos ganhos obtidos nas mesas de jogo, o mesmo não acontecerá em Macau. “Aplicar o modelo de Las Vegas é difícil”, descreve o autor no artigo.
Sobre a necessidade de inovação no sector, o advogado acredita que, mais uma vez, a aposta deve ser feita em parceria com empresas de alta tecnologia presentes na província de Guangdong. “As operadoras transformaram-se em empresas de tecnologia, e os dias em que apenas funcionavam as slot-machines de forma mecânica já terminaram. A inovação e os novos modelos em Macau deveriam estar no topo da inovação dos produtos de jogo.”

Contratar lá fora

A inovação do sector do jogo surge também através da flexibilização do próprio mercado laboral, o que permitiria contratar trabalhadores qualificados ao exterior. Pedro Cortés acredita que o actual Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, tem vontade de alterar estas políticas.

“Se considerarmos locais como o Dubai, Las Vegas, Singapura e Shenzhen, no continente, a conclusão é que estas cidades tiveram e têm políticas tolerantes, com critérios definidos, para a importação de trabalhadores especializados e altamente qualificados.”

Assim sendo, o jurista entende que o território deveria procurar a competição no seu mercado laboral e implementar medidas que atraiam talento e negócios.

“O problema”, assegura Pedro Cortés, “é que neste momento querem que 85 por cento dos cargos de gestão sejam ocupados por residentes de Macau, mas nós só conseguimos fazer isso se houver flexibilização de base”, disse ao HM. Tal só acontece se for permitido aos croupiers subirem na carreira.

“Percebo a exclusividade [da categoria de croupier para os residentes], mas não percebo é porque é que não há, de alguma forma, uma flexibilidade. Não digo para os nacionais da China, porque é uma situação complicada, mas porque não ter trabalhadores de outras nacionalidades?”, questionou.

Pedro Cortés frisa que “o proteccionismo revelado pelo Governo em relação aos residentes traz uma baixa competição ao mercado laboral, tendo impacto na qualidade dos serviços oferecidos pelo mercado”.

Um fundo para erguer

O artigo sugere também a criação de um fundo de investimento em que concessionárias ajudassem a erguer infra-estruturas que faltam ao território. “As políticas públicas deveriam contemplar a ideia de as operadoras investirem numa linha aérea comum a fim de ultrapassar o impacto comercial das políticas de restrições de tráfego aéreo”, exemplificou.

“O fundo de investimento é uma ferramenta, mas pode ser outra qualquer”, disse ao HM. “Imagine-se a constituição de uma sociedade com capitais públicos, e com capitais das concessionárias também, em que estas são responsáveis pela gestão e têm de ir buscar os melhores na área. Há várias formas jurídicas de o fazer.”

Pedro Cortés não tem dúvidas de que, com este modelo, muitos projectos de infra-estruturas já estariam concluídos. “Se por acaso as concessionárias, através desse fundo, tivessem sido chamadas pelo Governo para fazer o Hospital das Ilhas, tem dúvidas de que não estaria já feito? Eu não tenho. Eu sei que é quase uma substituição das competências do Governo, mas a verdade é que no passado, o exemplo que tiramos é que, se não fosse a STDM, não teríamos uma série de infra-estruturas como o porto de águas profundas ou o aeroporto.”

O advogado não defende a reprodução do modelo utilizado no período anterior à liberalização do jogo, mas pede sinergias, sobretudo a nível educativo. Como tal, o advogado entende que o Governo deveria criar um plano público de educação onde pudesse trabalhar directamente com as operadoras de jogo para antecipar o tipo de trabalhos que o sector deve criar no próximo quinquénio, e dessa forma providenciar novas oportunidades para os residentes.

Olhando para o futuro, Pedro Cortés gostaria de ver estratégias definidas no papel. “A diversificação da economia é agora o único caminho a seguir. Mas, além dos discursos, precisamos de acções, e as propostas de políticas públicas necessitam de leis e regulamentos que incluam as actuais preocupações. A este respeito, o prazo das (novas) concessões depois de 2022 deve ser considerado.”

25 Mar 2021

A Santa Aliança | União Europeia, EUA, Canadá e Reino Unido adoptam sanções contra a China

Um espectro assombra o Ocidente – o espectro da China. Todas as potências fizeram uma santa aliança para exorcizar esse espectro: União Europeia, EUA, Canadá, Reino Unido adoptam as mesmas sanções. Duas coisas resultam desse facto: a China já é reconhecida por todas as potências ocidentais como sendo ela própria uma potência; chegou o tempo dos chineses publicarem abertamente, diante do mundo todo, os seus pontos de vista, os seus objectivos e as suas tendências. Assim acontece

 

O Conselho da União Europeia (UE) aprovou na segunda-feira sanções contra 11 pessoas e quatro entidades por violação dos direitos humanos, sendo a primeira vez desde Tiananmen que há visados na China por medidas restritivas. Segundo um comunicado do Conselho, os casos de violações e atropelos graves de direitos humanos visados por sanções incluem detenções arbitrárias em grande escala, em particular de uigures em Xinjiang, na China. Esta é a primeira imposição de sanções da UE à China desde o embargo de venda de armamento de 1989, na sequência dos incidentes da Praça de Tiananmen, em Pequim.

As pessoas e entidades constantes da lista estão sujeitas ao congelamento de bens na UE e os indivíduos estão ainda sujeitos à proibição de viajar para a UE. Além disso, é proibido a pessoas e entidades da UE colocarem fundos à disposição de quem esteja incluído na lista de sanções.

O Reino Unido e os Estados Unidos juntaram-se também na segunda-feira, numa acção conjunta com a UE e o Canadá, na imposição de sanções a responsáveis chineses por abusos dos direitos humanos contra uigures.

O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Dominic Raab, disse que as medidas são parte de uma “diplomacia intensiva” do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e os 27 países da UE para forçar a acção num contexto de evidências crescentes de graves violações de direitos humanos contra o povo uigure. As sanções de Londres, a impor imediatamente, incluem proibição de viagens e congelamento de bens contra quatro responsáveis chineses, disse Raab no parlamento britânico.

Por seu lado, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse que “uma resposta transatlântica unida envia um forte sinal para aqueles que violam ou abusam dos direitos humanos”, adiantando que serão tomadas “outras acções em coordenação com parceiros que pensam da mesma forma”. “Continuaremos a apoiar os nossos aliados em todo o mundo no apelo ao fim imediato dos crimes da RPC e à justiça para as muitas vítimas”, disse ainda num comunicado.

Andrea Gacki, do Departamento do Tesouro norte-americano, indicou que “as autoridades chinesas continuarão a sofrer consequências enquanto atrocidades ocorrerem em Xinjiang”, ao anunciar sanções contra dois responsáveis chineses. Wang Junzheng e Chen Mingguo são associados a “graves violações dos direitos humanos”, incluindo “detenções arbitrárias e graves maus-tratos físicos”.

Crítica da diplomacia política

Contudo, a China respondeu de imediato, convocando o embaixador da UE em Pequim, Nicolas Chapuis, para apresentar uma queixa formal sobre as sanções, anunciaram ontem as autoridades chinesas. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, condenou o que disse serem “sanções unilaterais baseadas em mentiras e notícias falsas inconsistentes com a realidade e a lei” e que na segunda-feira levaram à retaliação por parte da China contra dez pessoas, incluindo cinco eurodeputados.

Qin instou a UE a “reconhecer a gravidade dos seus erros e corrigi-los”, bem como a “abandonar a confrontação para não causar mais danos aos laços entre os dois blocos”. A China retaliou a atitude da União Europeia anunciando sanções contra dez pessoas, incluindo cinco membros do Parlamento Europeu, em represália às sanções impostas pela União Europeia (UE) a Pequim por supostas violações dos direitos humanos dos uigures na região autónoma de Xinjiang.

Entre os sancionados pelas autoridades chinesas, que não poderão entrar no país asiático, estão os eurodeputados alemães Reinhard Bütikofer (presidente da delegação do Parlamento Europeu para as relações com a China) e Michael Gahler, o francês Raphaël Glucksmann, o búlgaro Ilhan Kyuchuk e a eslovaca Miriam Lexmann, além de outros políticos, investigadores e quatro instituições. O investigador alemão Adrian Zenz, cujos relatórios sobre os uigures em Xinjiang provocou fortes protestos de Pequim, também foi sancionado.

“Depois de assistir a uma dura troca de palavras entre autoridades chinesas e norte-americanas no Alasca na semana passada, e a réplica da China contra as acusações dos EUA em questões como Xinjiang e Hong Kong, a UE devia ter aprendido a sua lição sobre como lidar com a China”, alertaram especialistas chineses, observando que se “Pequim não teme as sanções de Washington, o que dizer de uma Bruxelas muito mais fraca”. O número de indivíduos e entidades que a China colocou na lista de sanções superou em muito os da UE, o que, segundo as mesmas fontes, “mostra a determinação da China em defender os seus interesses e lutar inabalavelmente contra a campanha de desinformação e difamação”.

“Em comparação com as sanções europeias, as sanções da China são mais fortes e mais extensas, pelo menos em termos do escopo dos assuntos sancionados”, referiu Cui Hongjian, director do Departamento de Estudos Europeus do Instituto de Estudos Internacionais da China.

“A lista estende-se das figuras-chave que têm desafiado a China sobre os assuntos de Xinjiang até aos que dentro da UE têm interferido repetidamente nos direitos humanos da China, de várias maneiras há muito tempo. As sanções têm como objectivo enviar um forte sinal de alerta à UE, instando-a a parar de interferir nos assuntos internos da China, e não apenas nas questões relacionadas com Xinjiang”, sublinhou Cui.

Wang Jiang, do Instituto de Direito da Academia Chinesa de Ciências Sociais, disse que a China também usará argumentos legais para defender os direitos legítimos de indivíduos e entidades chinesas. “Também é possível que processem as pessoas que promovem as sanções, assim como os residentes de Xinjiang que espalham os boatos por perdas económicas e de reputação”. “Uma vez que os procedimentos legais estejam em andamento, o réu terá que apresentar provas, que demonstrarão que as sanções sobre Xinjiang são baseadas em rumores”, concluiu Wang.

Entretanto, a Assembleia Nacional Popular informou que vai acelerar o seu trabalho sobre as leis contra sanções externas e interferência, de acordo com Wang. “A China pode aprender com a Rússia no combate às sanções estrangeiras, como conceder ao chefe de estado autoridade para alocar recursos administrativos no combate a essas sanções e proteger os seus cidadãos e empresas, e também acelerar a formulação da legislação anti-sanções”.

Um duvidoso capital

“Sentindo-se deixada para trás, a UE quer destacar a sua existência política pressionando por sanções sobre “questões de direitos humanos” contra a China e a Rússia, pois vê nos direitos humanos uma arma que pode empunhar para se envolver na competição entre superpotências”, comentou ainda Cui Hongjian, acrescentando que a UE encara os direitos humanos como uma “arma barata, pois não tem o poder financeiro e militar de Washington”.

“Mas a arrogância da UE cegou-a para o facto de não estar em posição de apontar o dedo ao desenvolvimento dos direitos humanos na China, já que também se encontra atolada em graves crises de direitos humanos, como o tratamento de muçulmanos nos seus próprios países e a sua miserável resposta à pandemia”, referiu o académico.

Cui Hongjian vai ainda mais longe, lembrando o passado recente: “Os nazistas alemães conduziram um massacre planeado em grande escala de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e 6 milhões morreram no Holocausto; colonos alemães em 1904 massacraram numerosos namibianos para reprimir um levantamento popular e mataram mais de 100 mil pessoas em 1908. Outros países europeus também cometeram crimes infames nas suas histórias coloniais”.

Moscovo e Pequim pedem reunião do Conselho de Segurança

A China e a Rússia pediram uma reunião com os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para explorar problemas comuns da Humanidade através do diálogo, para manter a “estabilidade global”. Num comunicado conjunto divulgado ontem, no final da visita de dois dias do ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, a Pequim, os dois países expressaram que “no contexto de crescente agitação política internacional” é necessário convocar os membros do Conselho de Segurança das Organização das Nações Unidas (ONU).

“Pedimos às maiores potências mundiais, em especial aos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que fortaleçam a confiança mútua e assumam a liderança no momento de salvaguardar a lei e a ordem internacionais, e no quadro da legislação internacional”, refere o comunicado.

Os dois países consideram que “o mundo entrou num período de mudanças turbulentas” em que a “propagação do novo coronavírus acelerou a evolução do panorama internacional, desequilibrou o sistema de governação global e atingiu o processo de desenvolvimento económico”.

Perante a situação, Pequim e Moscovo pedem à “comunidade internacional” que deixe de lado as diferenças, no sentido de “uma maior coordenação e da manutenção da paz, assim como pela construção de uma ordem internacional mais justa, ‘multipolar’, democrática e razoável”.

Na opinião da China e da Rússia, “a forma de abordar os assuntos internacionais deveria basear-se em princípios reconhecidos pela legislação internacional”, que consideram essenciais para o desenvolvimento da sociedade. Deste modo, Lavrov e o homólogo chinês, Wang Yi, consideraram a “democracia” como “uma conquista do desenvolvimento humano”, mas apontaram que “não existe um padrão para o modelo democrático” e que a “ingerência em assuntos internos dos Estados soberanos com o pretexto de promover a democracia é inaceitável”.

Por seu lado, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Hua Chunying, negou que Pequim tenha convidado Lavrov em nome dos Estados Unidos ou que tenha concordado em organizar a visita assim que os diplomatas chineses terminassem o encontro no Alasca. “O desenvolvimento das relações entre a China e a Rússia não aponta para nenhum outro país. Não somos como outros países que gostam de montar esquemas onde há conspiração tácita”, disse sublinhou.

No início deste mês, numa conferência de imprensa, Wang Yi referiu que os laços sino-russos estão “unidos como uma montanha”, que as boas relações entre Pequim e Moscovo são “imperativas nas atuais circunstâncias” e que a associação pressupõe um “pilar para a paz mundial”. Já Hua Chunying destacou que os dois países “caminham lado a lado” e que se “opõem à hegemonia e à intimidação”. O objectivo de ambas as potências, acrescentou, é dissuadir outros países de os pressionar, sobretudo no que diz respeito aos assuntos internos.

Por um mundo multipolar

“Não é muito sensato sancionar a Rússia e a China”, afirmou Lavrov em declarações à chegada a Guilin, assegurando que Pequim e Moscovo “estão à procura de uma ordem internacional “justa e democrática”, regida pelas interacções entre os países. “E o modelo de interação entre a Rússia e a China é livre de preconceitos ideológicos, não está sujeito ao oportunismo e não é dirigido contra ninguém”, disse o ministro russo. Nesse sentido, espera-se que ambos os países renovem por mais cinco anos o Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável assinado em 2001, disse Lavrov.

Nas declarações, o chefe da diplomacia russa atacou o Ocidente, em especial os Estados Unidos, por Washington pretender, “a qualquer custo”, preservar o domínio na economia global e na política internacional, “impondo a sua vontade a todos e em todos os lugares”. Segundo Lavrov, o mundo está a atravessar “mudanças complexas” com a “crescente influência dos novos centros” económicos, financeiros e políticos que, defendeu, estão a levar o mundo para “um sistema verdadeiramente multipolar”.

Nesse sentido, defendeu a promoção e o uso de outras moedas além do dólar norte-americano e da mudança dos sistemas de pagamentos “controlados pelo Ocidente” para reduzir os riscos de sanções. De acordo com Lavrov, as relações entre Moscovo e Pequim estão “no seu melhor de toda a história” e que o “diálogo mutuamente respeitoso deve servir de exemplo”.

Presidente do Parlamento Europeu ameaça com “consequências”

O presidente do Parlamento Europeu (PE), David Sassoli, anunciou que “haverá consequências” às sanções “inaceitáveis” impostas por Pequim à instituição em retaliação a medidas adoptadas no Conselho da UE. “As sanções da China a eurodeputados, à Subcomissão dos Direitos Humanos e a entidades da UE são inaceitáveis e terão consequências”, disse Sassoli, no Twitter. “Os direitos humanos são inalienáveis”, sublinhou, salientando que os eurodeputados e as entidades em causa expressaram opiniões, exercendo os seus direitos democráticos.

24 Mar 2021

Encontro EUA-China | Das acusações mútuas ao (im)possível consenso

Não foi pacífico o encontro entre as duas delegações. Um clima tenso desde o início, com acusações mútuas e “cheiro a pólvora”. No final, ambos concluíram que somente foram úteis para esclarecer as posições recíprocas e alcançar algum acordo sobre questões globais como a covid-19 e as alterações climáticas

 

Altos funcionários chineses e norte-americanos concluíram em Anchorage, no Alasca, na sexta-feira passada, um diálogo estratégico que ambos os lados acreditam ter sido “oportuno e útil e que aprofundou o entendimento mútuo”. Participaram no encontro de dois dias Yang Jiechi, director do Gabinete da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Comité Central do PCC, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Wang Yi, o Secretário de Estado dos EUA Antony Blinken e o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan. Contudo, a reunião começou mal e desenvolveu-se num clima tenso e de acusações recíprocas. A tensão começou logo na sessão de abertura, ainda perante as câmaras de televisão que captavam o momento de encontro entre as duas delegações.

Os americanos abriram as hostilidades. Anthony Blinken iniciou a reunião a criticar Pequim por acções que “ameaçam a ordem internacional e desestabilizam a estabilidade global”, enquanto Yang respondia que, mesmo dentro dos Estados Unidos, muitas pessoas “desconfiam da democracia americana”.

“Foi o lado dos EUA que provocou a disputa em primeiro lugar. (…) Há um cheiro forte de pólvora e drama desde o início das reuniões. Não era essa a intenção original do lado chinês”, disse Zhao Lijian, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros numa conferência de imprensa no final da sessão inicial. Zhao disse que as autoridades norte-americanas obrigaram a China a dar “uma resposta solene” aos “ataques sem fundamento” contra a política externa de Pequim.

Assim, Yang Jiechi acusou os EUA de adoptarem uma abordagem “condescendente” nas negociações e disse que a delegação americana não tinha o direito de acusar Pequim de abusos dos direitos humanos ou de dar palestras sobre os méritos da democracia. Yang disse que os Estados Unidos fariam bem em tratar dos seus próprios problemas, apontando especificamente para o movimento Black Lives Matter contra o racismo americano.

“Não acho que a esmagadora maioria dos países no mundo reconheça os valores universais defendidos pelos Estados Unidos, ou que as opiniões dos Estados Unidos possam representar a opinião pública internacional”, disse Yang. “E esses países não reconhecem que as regras feitas por um pequeno número de pessoas servem de base para a ordem internacional.”

O secretário de Estado Antony J. Blinken inicialmente pareceu surpreso, mas adoptou um tom mais resoluto, depois de ter afirmado que a diplomacia do governo Biden pretendia “fazer avançar os interesses dos EUA e fortalecer as regras baseadas na ordem internacional”.

Em contraste implícito com a China, Blinken disse que os Estados Unidos têm uma longa história de confrontar abertamente suas deficiências, “não tentando ignorá-las, não tentando fingir que não existem, tentando varrê-las para debaixo do tapete”. E lembrou um encontro de mais de uma década atrás entre Biden e Xi Jinping, quando os dois homens, que agora lideram os seus países, eram vice-presidentes. “Nunca é uma boa aposta apostar contra a América”, dissera Biden, de acordo com Blinken, que acrescentou: “Isso continua a ser verdade até hoje”.

Quando os jornalistas foram novamente solicitados a sair após a resposta americana, Yang voltou-se directamente para as câmaras de TV e disse, em inglês: “Esperem”. Então lançou outra longa crítica à política dos EUA.

Os diplomatas de Pequim criticaram as novas sanções económicas que foram emitidas contra 24 autoridades chinesas na véspera das negociações. “Esta não é forma de receber convidados”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi. As sanções puniram autoridades chinesas que, segundo os EUA, haviam minado a democracia em Hong Kong ao reescrever as leis eleitorais do território. Funcionários do governo Biden haviam dito que as sanções não foram deliberadamente cronometradas para afectar o diálogo em Anchorage.

Os Estados Unidos têm questionado a política externa de Pequim, responsabilizando-a pela quebra de acordos internacionais, desrespeitos pelos direitos de propriedade intelectual e sobre violação de direitos humanos no Tibete, Hong Kong e Xinjiang. Em resposta, a diplomacia chinesa apresentou uma longa lista de queixas contra o comportamento de Washington, que acusou de hipocrisia por atacar Pequim na área dos direitos humanos. Yang Jiechi acusou os Estados Unidos de não saberem lidar com os seus próprios problemas de direitos humanos dentro de fronteiras. “A China não aceitará acusações injustificadas dos EUA”, disse Yang.

Antony Blinken, que não escondeu a irritação durante a reunião, ripostou com denúncias sobre a ameaça que a China constitui sobre a estabilidade global e acusou o seu homólogo do Partido Comunista Chinês de “arrogância”, dizendo que está “preocupado em teatralizar as negociações, em vez de se centrar no seu conteúdo”.

Alguma bonança

Passadas as primeiras horas de tensão, o tom mudou e as duas partes conseguiram chegar a algum consenso sobre temas globais. Assim, a China e os Estados Unidos concordaram em criar um grupo de trabalho sobre as alterações climáticas, bem como em realizar uma “cooperação mútua e benéfica” nas suas relações bilaterais para “evitar mal-entendidos e julgamentos errados”.

A parte chinesa disse que concordava em “promover o desenvolvimento saudável e estável das relações sino-americanas de acordo com o espírito” da conversa telefónica entre o Presidente chinês, Xi Jinping, e o Presidente dos EUA, Joe Biden, a 11 de fevereiro passado.

Já no fim dos dois dias de discussões, Yang Jiechi afirmou que o diálogo foi “directo, construtivo e útil, se bem que haja sempre importantes divergências entre as suas partes”. No final do encontro, Jake Sullivan, o assessor de Segurança Nacional, disse: “Esperávamos ter uma troca dura e directa sobre uma ampla gama de assuntos e foi exatamente o que tivemos”.

Por seu lado, Blinken assegurou que a delegação chinesa reagiu de forma adversa às reclamações dos EUA, em assuntos como Hong Kong, Taiwan, Tibete e as “violações de direitos humanos dos muçulmanos uigures” na província do Xinjiang, assuntos que Pequim considera do foro interno. “Não é de estranhar que, quando colocamos esses problemas de forma clara e directa, obtenhamos uma resposta defensiva. Mas também pudemos ter uma conversação muito sincera durante estas muitas horas com uma agenda muito ampla”, disse Blinken.

As linhas vermelhas

“A China está pronta para trabalhar com os Estados Unidos para melhorar a comunicação estratégica, promover a cooperação, administrar adequadamente as diferenças e impulsionar as relações bilaterais no caminho do desenvolvimento sólido e estável, de modo a criar benefícios para as pessoas em ambos os países e promover a paz duradoura e a prosperidade do mundo”, referiu a delegação de Pequim.

Mas, para a parte chinesa, “o desenvolvimento da China não pode ser alcançado sem a liderança do Partido Comunista porque o socialismo com características chinesas é o sistema que melhor se adapta às condições da China e o segredo do seu desenvolvimento”. “O estatuto de governo do PCC e a segurança do sistema socialista da China não devem ser prejudicados e essa é uma linha vermelha que nunca deve ser ultrapassada”, sublinhou a delegação chinesa. “O objetivo fundamental é garantir uma vida melhor para todos os chineses, que é o ponto de partida de todas as políticas da China”.

“A China”, acrescentou a delegação, “sempre atribui grande importância à protecção e promoção dos direitos humanos e dá prioridade à melhoria do bem-estar das pessoas e à promoção de um desenvolvimento humano integral. A democracia socialista com características chinesas é a democracia de todos e uma democracia consultiva, cujo núcleo é o povo ser o senhor do país”.

Por outro lado, “a China não imporá seu sistema democrático e valores a outros países e, entretanto, defenderá resolutamente o seu próprio sistema político e valores e opor-se-á a qualquer tentativa de usar a questão dos direitos humanos como uma cobertura para atacar e difamar a China ou interferir nos seus assuntos internos”.

A delegação chinesa sublinhou ainda que a China segue firmemente uma política externa independente de paz, adere à independência e ao desenvolvimento pacífico, à cooperação de benefício mútuo, ao multilateralismo, à equidade e à justiça e promove continuamente a construção de uma comunidade de futuro partilhado para a humanidade. Contudo, “a China”, acrescentou, “salvaguardará resolutamente a sua soberania e dignidade nacional, opor-se-á firmemente à intromissão de outros países nos seus assuntos internos”.

Taiwan, Hong Kong, Xinjiang e Tibete

“A questão de Taiwan está relacionada à soberania e integridade territorial da China e aos interesses centrais da China, não havendo espaço para compromissos e concessões”, referiu a delegação. Os EUA devem lidar com a questão de Taiwan de forma “cuidadosa e adequada, e não enviar sinais errados às forças independentistas”, acrescentou a delegação chinesa.

Por outro lado, o sistema eleitoral de Hong Kong “é um sistema eleitoral local na China, e como o projectar, desenvolver e melhorar é assunto interno da China”, disse a delegação, acrescentando que nenhum governo, organização ou indivíduo estrangeiro tem o direito de interferir. “A melhoria do sistema eleitoral deve seguir o princípio de “Hong Kong administrado por patriotas”, disse a delegação chinesa, instando os Estados Unidos a cumprir a lei internacional, a respeitar a decisão da Assembleia Nacional Popular e parar de apoiar as forças da “independência de Hong Kong”. Foi também pedido aos EUA que revogassem “as sanções ilegais contra autoridades e instituições chinesas e que parem de tentar agitar Hong Kong novamente”. Se os Estados Unidos continuarem a seguir este caminho, a China “dará respostas firmes”.

Quanto a Xinjiang, a alegação de que há genocídio é “a maior mentira do século”, disse a delegação chinesa. O lado chinês está pronto “para se envolver em trocas com os EUA com base no respeito mútuo, e a porta de Xinjiang está aberta para o mundo”, disse a delegação. No entanto, a China “não aceitará qualquer investigação em Xinjiang com base na presunção de culpa por aqueles que são tendenciosos, condescendentes ou se comportam como pregadores”, disse a delegação. “Espera-se que o lado americano possa respeitar os factos, cancele os ataques e difamações sobre a política chinesa em Xinjiang e abandone os seus padrões dúplices sobre o anti-terrorismo”, acrescentou.

Quanto ao Tibete, a delegação chinesa indicou que “o 14º Dalai Lama é um exilado político que há muito se envolve em actividades separatistas anti-China sob o pretexto da religião”. A delegação chinesa disse “esperar que os EUA cumpram o seu compromisso de reconhecer o Tibete como parte da China e se abstenham de apoiar a independência do Tibete, revoguem as sanções contra as autoridades chinesas relevantes e parem de explorar o Tibete como meio para interferir nos assuntos internos da China”.

Multilateralismo e benefício mútuo

Para os chineses, o multilateralismo é uma pedra angular importante do sistema internacional actual, deve defender os princípios da Carta das Nações Unidas, respeitar as normas básicas que regem as relações internacionais, a soberania dos países e a diversidade de civilizações. “A China sustenta consistentemente que todos os países – grandes ou pequenos, ricos ou pobres, fortes ou fracos – são membros iguais da comunidade internacional e que as decisões não devem ser tomadas simplesmente exibindo músculos ou agitando os punhos, nem deve ao grande e forte ser permitido intimidar o pequeno e fraco”.

“A essência das relações China-EUA são o benefício mútuo e não um jogo de soma zero”, disse a delegação chinesa, acrescentando que “não estão condenados a representar uma ameaça um ao outro, as diferenças não são motivo para confronto e nenhum dos lados pode pagar as consequências do conflito e do confronto. A China e os Estados Unidos devem confiar em vez de suspeitar, compreender em vez de culpar-se mutuamente, trabalhar em conjunto em vez de um obstruir o outro, e garantir que se concentrem em lidar com suas prioridades domésticas e atingir seus respectivos objetivos de desenvolvimento”.

Neste sentido, a China propôs que os dois países cooperem nas três tarefas mais urgentes que a comunidade internacional enfrenta: a luta contra a pandemia, o combate às alterações climáticas e a recuperação económica mundial. “Os dois países têm responsabilidade, capacidade e sabedoria para encontrar uma forma de convivência entre grandes países com sistemas políticos diferentes, o que será uma contribuição histórica da China e dos Estados Unidos à civilização humana”, afirmou a delegação chinesa.

Pontos comuns

Finalmente, os dois lados concordaram em:

1. Prosseguir o espírito da conversa telefónica Xi-Biden, de 11 de Fevereiro, para manter o diálogo e a comunicação, conduzir uma cooperação mutuamente benéfica, evitar mal-entendidos e erros de julgamento, evitar conflitos e confrontos e promover o desenvolvimento sólido e estável das relações China-EUA.

2. Intensificar o diálogo e a cooperação no campo das alterações climáticas e estabelecer um grupo de trabalho conjunto sobre o assunto.

3. Os Estados Unidos reiteraram a sua adesão à política de uma só China na questão de Taiwan.

4. Os dois lados concordaram fazer consultas recíprocas para a vacinação covid-19 dos diplomatas e funcionários consulares de cada lado.

5. Manter conversações sobre como facilitar as actividades das missões diplomáticas e consulares e do pessoal, bem como sobre questões relacionadas os media, no espírito de reciprocidade e benefício mútuo.

6. Ajuste das políticas de viagens e vistos relevantes de acordo com a situação epidémica e a normalização gradual do intercâmbio de pessoal entre a China e os Estados Unidos.

Embora as autoridades americanas tenham afirmado que a temperatura das reuniões no Alasca diminuiu quando as portas foram fechadas, poucos especialistas de ambos os lados têm esperança de uma melhoria significativa nas relações. “No geral, estas negociações foram apenas para os dois lados colocarem todas as cartas na mesa, para os dois lados reconhecerem o quão grandes e profundas são as diferenças entre si”, disse Wu Qiang, um analista político independente em Pequim. “Mas, na verdade, não ajudará em nenhuma reconciliação ou mitigação”.

A lição chinesa

Wei Jianguo, antigo vice-ministro do Comércio e colunista do Global Times, escreveu, na sequência do encontro, que os EUA aprenderam uma lição. “As negociações internacionais devem ser baseadas na igualdade entre as duas partes. Não se trata de um lado reivindicar o papel de mestre e discursar à vontade. Diante dos media internacionais, o lado chinês deu uma lição não apenas para os americanos, mas também para os aliados dos EUA e para todo o mundo”, pode ler-se.

“O significado desta lição excedeu o do próprio diálogo. Esta foi uma grande demonstração da força da China, indicando aos EUA que o desenvolvimento e o crescimento da China não podem ser interrompidos. A soberania e a integridade territorial da China são as principais questões de princípio. Os EUA não devem subestimar a decisão da China de salvaguardar a sua soberania, segurança e interesses de desenvolvimento. Não devem subestimar a vontade do povo chinês em salvaguardar a sua dignidade nacional e os direitos e interesses legítimos”, concluiu Wei.

Biden orgulhoso

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse estar “muito orgulhoso” com a actuação do seu chefe da diplomacia, Antony Blinken, após a tensa troca de acusações com autoridades chinesas numa reunião no Alasca.

“Estou muito orgulhoso do secretário de Estado”, disse Biden num comunicado, quando questionado sobre o confronto retórico entre os principais representantes diplomáticos de Washington e Pequim na quinta-feira. A subsecretária de imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, descreveu a reacção do representante do Partido Comunista da China para as relações externas, Yang Jiechi, como “exagerada” e para “consumo interno”.

22 Mar 2021

Encontro China-EUA | Cui Tiankai, Embaixador chinês nos EUA, esclarece posições e levanta dúvidas

O Embaixador da China nos EUA, Cui Tiankai, reuniu com a imprensa no Alasca antes do encontro bilateral China-EUA. Esta será a primeira reunião presencial de alto nível, desde que o actual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assumiu o cargo. “A China não espera um diálogo que resolva todas as questões entre a China e os EUA”, disse Cui Tiankai. Segundo o embaixador a China não tem expectativas excessivamente altas embora espere que a reunião possa dar início a um processo franco, construtivo e racional de diálogo e comunicação entre as duas partes. “Se conseguirmos isso, poderemos considerar este diálogo um sucesso”, disse Cui

 

O Diálogo Estratégico de Alto Nível China-EUA vai começar. Nos últimos anos, as relações sino-americanas caíram no ponto mais baixo desde o estabelecimento das relações diplomáticas. Esta é a primeira reunião presencial de alto nível desde que o presidente dos Estados Unidos, Biden, assumiu o cargo. Qual é a expectativa da China para este encontro?

Este diálogo de alto nível entre os dois países em Anchorage é o primeiro diálogo frente a frente desde que a administração Biden assumiu funções. Acho que ambas as partes atribuem grande importância a isso. Fizemos muitos preparativos nos últimos dias. É claro, não esperamos resolver todos os problemas num diálogo, então não temos expectativas irrealistas. Esperamos que isto seja um começo e que os dois lados iniciem um processo de comunicação honesto, construtivo e racional. Se isso puder ser alcançado, o diálogo já terá sido bem-sucedido. Em suma, espero que ambas as partes venham com sinceridade e saiam com um melhor entendimento um do outro.

Antes deste diálogo, um alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA decidiu visitar primeiro o Japão e a Coreia do Sul após assumir o cargo. Uma cimeira por vídeo foi também realizada entre os Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália. Alguns analistas afirmam que a acção dos EUA visa conquistar aliados para firmar uma “posição dominante” neste diálogo estratégico com a China. Como analisa estes desenvolvimentos?

Sempre há alguns assuntos que precisam ser discutidos e comunicados entre os países. Na minha opinião, eles podem falar sobre as questões que lhes dizem respeito. Como é óbvio, apenas diz respeito aos Estados Unidos e a outros países que desejem desenvolver as suas relações bilaterais. Apenas esperamos que tais actividades não tenham como alvo um terceiro país ou prejudiquem os interesses de um terceiro país. Algumas pessoas podem pensar que estes encontros estão relacionados com o diálogo com as autoridades chinesas.

Na verdade, essa abordagem não é necessária nem útil. Assim como quem anda sozinho à noite e canta para ajudar a ganhar coragem, mas não adianta muito. Se tiverem alguma dúvida, devem falar directamente com o lado chinês.

Acho que a maioria dos países do mundo, incluindo alguns aliados dos Estados Unidos no mundo e na Ásia, se deparam com incógnitas. Uma é se os Estados Unidos podem realmente desempenhar um papel de responsabilidade nos assuntos internacionais. A segunda questão é se os Estados Unidos estão realmente dispostos a retomar a cooperação multilateral e a dar sua devida contribuição à cooperação multilateral.

Há outra questão. Estarão os Estados Unidos realmente preparados para demonstrar o devido respeito pelos interesses de outros países e ouvir as suas vozes? Acho que essas preocupações existem no coração da maioria dos países do mundo, incluindo aliados dos Estados Unidos, mas alguns países não se manifestam. Espero que os Estados Unidos possam entender as preocupações de todos.

Vimos ontem que o Departamento de Estado dos EUA anunciou que impôs sanções a 24 funcionários chineses devido a questões relacionadas com Hong Kong. Durante a visita anterior ao Japão, altos funcionários dos EUA fizeram repetidamente alguns comentários negativos e até mesmo críticas à China. Essas acções dos EUA afectarão a atmosfera do diálogo? A China vai diminuir as suas expectativas por causa disso?

Na verdade, não é a primeira vez que os EUA prejudicam a soberania da China e as relações bilaterais. A nossa posição é muito clara. Nós opomo-nos firmemente e tomaremos as contramedidas necessárias, e esta não é uma excepção. Também expressaremos nossa posição claramente nesta reunião, e não faremos compromissos e concessões sobre essas questões a fim de criar uma suposta “atmosfera”. Nunca faremos isso!

De acordo com as informações divulgadas pelos EUA, serão discutidas questões relacionadas a Hong Kong, Xinjiang e Taiwan neste diálogo, e somente quando forem atingidas as expectativas dos EUA, poderá haver continuidade. Como responde a China a isso? A China vai ceder em algumas questões?

Para ser honesto, os meus colegas em Pequim fizeram muitos preparativos para este diálogo, incluindo os preparativos sobre os tópicos de discussão e prevenção de epidemias. Eles adoptaram as medidas de segurança e precaução mais abrangentes e rígidas, incluindo a vacinação e os testes de Covid-19. Devo dizer que muitos esforços foram feitos. Se alguém pensa que desta vez a China veio ao Alasca para fazer concessões, então eu sugeriria que os meus colegas em Pequim cancelassem esta viagem o mais rápido possível. Para quê perder tempo em vir aqui? Espero que as pessoas com essa ideia desistam dessa ilusão.

Foi mencionado que a China tomará medidas defensivas. Há alguma acção específica que a China esteja considerando?

Já tomamos algumas contramedidas. Com a evolução da situação, continuaremos a fazê-lo, se necessário.

19 Mar 2021

Hong Kong | Portugueses em risco de ficarem sem documentação

Há portugueses a residir em Hong Kong que estão há meses sem conseguir registar os filhos recém-nascidos ou em risco de verem o visto de trabalho caducar sem terem um novo passaporte para carimbar. A solução tem passado pelo passaporte temporário, um “documento pobre” com a validade de um ano. Um grupo está a reunir queixas para serem enviadas ao cônsul Paulo Cunha Alves. O consulado diz que solução “está para breve”

 

Daniela Jerónimo considera-se uma pessoa persistente na forma como tem lidado com o consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong. A residir em Hong Kong há cinco anos e a dois anos de se tornar residente permanente no território, a empresária na área da sustentabilidade deparou-se, graças à pandemia, com uma enorme dor de cabeça: o seu visto de trabalho caduca em Abril e não consegue renovar o passaporte português para que as autoridades de Hong Kong lhe carimbem uma nova autorização de residência. Os telefonemas e emails para o consulado têm sido vários nos últimos meses, e, para já, Daniela Jerónimo só conseguiu uma solução através do passaporte temporário.

“Se não for possível renovar o meu passaporte num serviço online, vou ter de pagar um passaporte temporário, e depois no próximo ano vejo-me na mesma situação. Eu é que pago isso, a ineficiência, e acho isso indecente. Estou a dois anos da residência permanente, quero ter um visto de dois anos para depois me candidatar à residência, não quero estar todos os anos nesta aflição”, adiantou ao HM.

Daniela não é caso único, ao ponto de um grupo de portugueses estar a reunir as várias queixas e problemas com que a comunidade se tem deparado desde que o consulado deixou de conseguir enviar funcionários a Hong Kong. A carta será depois enviada ao embaixador Paulo Cunha Alves.

Um outro cidadão português, que pediu para não ser identificado, vive em Hong Kong e também tem residência de Macau. O seu problema também se prende com a dificuldade em obter um novo passaporte.

“Tive de pedir o passaporte temporário porque tive de renovar o visto. Só me dão visto de trabalho até Outubro e vou ter de pedir novamente a renovação desse visto ou com um passaporte temporário, uma coisa que me desgasta bastante, ou um passaporte normal.” Apesar das dificuldades, este português assegura que a comunicação com o consulado sempre existiu.

Bebés sem registo

A ausência de funcionários consulares em Hong Kong devido às restrições nas fronteiras levanta ainda um outro problema, o da ausência de registo de recém-nascidos como cidadãos portugueses. “Não registamos ainda a nossa filha, nascida em Maio de 2020”, contou Lídia Ribeiro ao HM. “Não tem cartão de cidadão, não está registada como portuguesa e simplesmente não podemos deixar Hong Kong mesmo que haja uma emergência porque não tem passaporte.”

A própria Lídia Ribeiro também tem o cartão de cidadão prestes a expirar, o que a impede de alterar a morada de residência. “Só espero que o nosso passaporte não caduque, senão ficamos sem visto e numa situação muito chata, em que não podemos ficar cá, nem viajar”, resumiu.

Para esta portuguesa, “deveria haver uma equipa focada nestas questões para criar soluções como o registo online ou por correio, que já são usadas por outros países, ou facilitar processos de renovação de passaportes e cartões de cidadão”.

Lídia Ribeiro diz ter conhecimento de histórias de portugueses espalhados pelo mundo que, devido às actuais limitações de viagens, “estão a deparar-se com problemas semelhantes”. “Ao mesmo tempo, sei de histórias de amigos que vivem em países onde é possível realizar estas operações remotamente. Portanto, se é possível para uns, deveria ser para outros.”

Serviço não funciona

Muito antes da pandemia fechar fronteiras e obrigar ao cumprimento de quarentenas obrigatórias cá e lá, já os serviços consulares em Hong Kong funcionavam mal, defende Daniela Jerónimo. “Não servem os interesses das pessoas que vivem aqui e a pandemia veio mostrar as partes fracas de muitas instituições. O consulado poderia fazer uma reflexão sobre o funcionamento deste gabinete.”

Daniela sugere a instalação de uma máquina para renovar documentação em Hong Kong, à semelhança da que existe em Macau. “É necessária mais do que boa vontade dos funcionários do consulado. A minha impressão é se as pessoas conseguem mesmo resolver os nossos problemas ou se a origem do problema não estará em Lisboa. Há uma falta do digital, os nossos serviços são ainda muito arcaicos. Há uma falta de flexibilidade e agilidade para resolver as coisas.”

No grupo “Portuguese in Hong Kong”, na rede social Facebook, as críticas avolumam-se. “Vou ter de registar o meu bebé em Julho e sinceramente não acredito que as fronteiras já estejam abertas. Ainda não tive a ‘sorte’ de precisar dos serviços do consulado, mas confesso que vejo tantas reclamações que me junto ao seu email”, apontou uma portuguesa que decidiu associar-se à carta que será enviada a Paulo Cunha Alves.

Outro cidadão português, que também tem nacionalidade brasileira, conseguiu encontrar uma alternativa através do Brasil. “O meu visto de trabalho precisava de ser renovado e o passaporte estava para caducar numa data próxima. Não podia estender o meu visto sem um passaporte válido de, pelo menos, mais seis meses e ao mesmo tempo não podia renová-lo porque o consulado estava fechado. Por sorte tenho dupla nacionalidade e, se não tivesse, não sei como a minha situação poderia ter sido resolvida.”

Ao HM, o consulado garantiu que está “para breve” uma solução para todos os problemas que enfrentam os cidadãos portugueses a residir em Hong Kong. “Uma solução técnica está em vias de ser implementada muito em breve, entre este Consulado-Geral e o Consulado Honorário em HK, no sentido de resolver este problema. Logo que o novo sistema esteja activo e operacional, a comunidade será informada.”

Na mesma resposta, as autoridades portuguesas dizem estar “perfeitamente cientes das dificuldades e dos transtornos causados pela pandemia no acesso aos serviços consulares por parte da comunidade portuguesa residente em Hong Kong, nomeadamente para o acesso aos serviços que exigem a presença física do cidadão para a apresentação e conclusão de seu pedido, tais como para a renovação de cartão de cidadão e de passaporte comum”.

O HM pediu ainda dados sobre quantos processos de renovação de passaporte estão pendentes, bem como quantos passaportes temporários foram concedidos desde o início da pandemia, mas não obteve resposta sobre esta matéria.

Do Vietname à Tailândia

O irmão de Daniela, Mauro Jerónimo, vive ainda uma situação bem mais complicada em matéria de serviços consulares portugueses. A residir no Vietname, em Hanói, Mauro sabe que quando precisar de renovar documentos terá de se deslocar à embaixada portuguesa na Tailândia, em Banguecoque. Para isso terá de cumprir um rol de quarentenas pagas, e faltar ao trabalho. “O meu passaporte termina em Agosto, tal como o meu contrato de trabalho. Tentei ligar para o consulado, não me atenderam e vou enviar um email. Quero tentar perceber o que devo fazer, porque se sair do Vietname, e depois entrar, é muito complicado. Não temos embaixada, apenas um serviço consular, e se quisermos resolver um problema por norma é-nos redireccionado para a embaixada da Tailândia.” Para Mauro Jerónimo, o prolongamento da pandemia já deveria ter obrigado as autoridades portuguesas a encontrarem soluções mais flexíveis. “Já deveria ter sido encontrado um sistema que permitisse renovar o passaporte sem a presença física.”

18 Mar 2021

Apoios | Governo cria programa de cupões de consumo só para pagamento electrónico

Além da necessidade de instalar plataformas de pagamento electrónico no telemóvel, é preciso gastar 14.400 patacas entre Maio e Dezembro para obter 4.800 patacas em cupões de consumo. O novo programa de consumo beneficia mais quem fizer despesas maiores

 

O Governo apresentou ontem um programa de cupões de consumo para residentes, trabalhadores não-residentes e estudantes do Interior em Macau, que vai estar disponível a partir de Maio nas plataformas de pagamento móvel. O anúncio foi uma das novidades do “Plano de Garantia do Emprego, Estabilização da Economia e Asseguramento da Qualidade de Vida da População”, que terá um custo de 5 mil milhões de patacas.

De acordo com os moldes apresentados, o programa de “promoção do consumo local” vai permitir a quem utilize métodos de pagamento electrónicos, como o MPay e SimplePay, receber 5 cupões de 10 patacas, quando fizerem um consumo de 50 patacas. Quando consumirem 100 patacas e pagarem com a aplicação de telemóvel, os utilizadores recebem 10 cupões de 10 patacas, num total de 100 patacas.

Atingidos os vales únicos de 50 e 100 patacas, o programa adopta um modelo para beneficiar as pessoas que gastam mais. Assim, por cada 30 patacas em consumo, o utilizador recebe um cupão de 10 patacas. Se, por exemplo, o utilizador pagar uma refeição de 90 patacas com o telemóvel, vai receber três vales de 10 patacas, num total de 30 patacas. É possível acumular cupões de 10 patacas até um máximo de 200 patacas por dia e um limite de 600 patacas por mês. Feitas as contas, entre Maio e Dezembro, os consumidores vão poder acumular um máximo de 4.800 patacas em vales, caso gastem 14.400 patacas.

Na apresentação, o secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong, reconheceu que o programa foi criado para incentivar a economia e compensar quem gasta mais, porque a crise já passou e se está na fase de revitalização.

“No ano passado, foi o Governo que estimulou o mercado. Mas, este ano, perante a revitalização económica precisamos de confiança. A resposta à crise não passa pelo que o Governo pode fazer, mas antes pelo que todos os cidadãos podem fazer para incentivar o consumo”, afirmou Lei Wai Nong. “Este plano é para incentivar a circulação interna do dinheiro e estimular a economia de Macau. Para as pessoas com mais dinheiro é um incentivo para o consumo. Para as pessoas em dificuldades económicas é um plano de benefícios”, acrescentou.

Sistema implementado

Durante a apresentação dos novos apoios, Lei Wai Nong foi questionado sobre os diferentes aspectos da implementação do programa como o recurso a plataformas de pagamento electrónico. Quem não utilizar estas plataformas fica automaticamente excluído do programa.

Em relação às questões, Lei explicou que já são muito populares. “Em Macau temos oito aplicações de pagamento móvel. O ano passado foi um ano de oportunidades e as transacções com as plataformas forma de 6,32 mil milhões de patacas, o que significa um crescimento de 5 vezes face a 2019. Em relação a 2018 o crescimento foi de 71 vezes”, argumentou. “Há uma generalização do pagamento móvel. Há 660 mil inscritos em plataformas de pagamentos móveis”, sublinhou.

No entanto, ficaram sem resposta uma série de perguntas sobre a implementação do programa, como a possibilidade de fazer registos em mais do que uma das oito aplicações e poder ultrapassar os limites. O Executivo não respondeu como será feito o controlo.

Cartão de idosos e hotéis

Ainda no que diz respeito ao incentivo ao consumo, o Governo vai permitir que residentes com 65 ou mais anos usufruam de descontos até 5 mil patacas, entre Maio e Dezembro, se o pagamento for feito com o cartão de consumo. Por exemplo, quando os idosos gastarem 30 patacas e pagarem com o cartão têm desconto de 10 patacas.

O desconto será de 20 patacas, se a conta for de 60 patacas. Os benefícios para os idosos vão ter um custo de 567 milhões de patacas aos cofres da RAEM e são os únicos que podem ser utilizados com pagamentos através do cartão de consumo.

As medidas de incentivo ao consumo disponibilizam ainda 120 milhões de patacas a todos os residentes para excursões, refeições, no que é encarado como uma continuação do programa Macau, Ready Go. A principal diferença é que nesta fase todos os residentes vão receber 200 patacas para gastar em hotéis locais.

Além das medidas para o “consumo local”, o Governo apresentou inovações no programa de requalificação para trabalhadores em lay-off. Quem não estiver a trabalhar a tempo inteiro pode inscrever-se em cursos de formação e receber 5 mil patacas quando concluir os mesmos. Deixa de haver limite de inscrições, uma vez que até agora os programas só poderiam ser frequentados por recomendação dos patrões.

Um embrulho diferente

O “Plano de Garantia do Emprego, Estabilização da Economia e Asseguramento da Qualidade de Vida da População” incluiu vários apoios que já tinham sido anunciados, como a comparticipação pecuniária no valor de 10 mil patacas e 6 mil patacas para residentes permanentes e não-permanentes, respectivamente.

Ontem foi revelado que, à imagem do que aconteceu no ano passado, a distribuição do “cheque” vai ser antecipada para Abril, altura em que começara a ser distribuído pelos residentes mais velhos.

Por outro lado, o Governo recordou que vai haver devolução do imposto profissional relativo a 2019, que pode chegar a 70 por cento, num valor máximo de 20 mil patacas. Esta vertente faz parte de um pacto de redução de impostos e de isenções fiscais, que vai resultar na perda de receita para os cofres da RAEM de 1.056 milhões de patacas.

Agnes Lam: Programa ajuda mais ricos

Agnes Lam criticou o programa de cupões por considerar que vai contribuir para ajudar quem tem maior poder de compra, quando devia servir desfavorecidos e desempregados. Por outro lado, a deputada indicou que o recurso a pagamentos móveis exclui grande parte da população, como crianças que não têm contas bancárias, e que o esquema com cupões de 10 patacas dificulta o consumo, o que vai fazer com que apenas seja utilizado em supermercados. Nas redes sociais, a deputada apelou ainda ao Executivo para que aposte na terceira ronda do programa de consumo, uma opção que encara como mais viável.

Pereira Coutinho recebeu queixas

José Pereira Coutinho afirmou ontem ter recebido várias queixas de pessoas idosas devido ao programa de cupões. “Hoje recebemos muitas queixas de cidadãos com mais idade, que nos indicaram que o Governo apresentou um programa de assistência com medidas demasiado complicadas. Porque é que o Governo não teve em conta a perspectiva destas pessoas antes de estabelecer as medidas de assistência”, questionou. “Conseguiram complicar uma coisa simples. É demasiado complicado”, acrescentou.

16 Mar 2021

Hong Kong | Pequim promete medidas contra a “interferência do Ocidente” na reforma eleitoral

Os dirigentes chineses disseram este fim de semana que não existe “espaço para recuar” em relação às medidas anunciadas para a reforma do sistema eleitoral de Hong Kong. Isto apesar das críticas e ameaças de sanções de países ocidentais. Para eles, as sanções são medalhas e prometem responder à letra

 

Altos funcionários chineses declararam “a sua determinação inabalável de reparar as brechas na cidade chinesa que foram exploradas pelas forças anti-China, e lutar resolutamente com contra-medidas, se esses países ocidentais continuarem a intrometer-se nos assuntos internos da China”. Na questão de Hong Kong, “o governo chinês não tem espaço para recuar, já que os problemas de Hong Kong não são uma questão de democracia, mas sim de subversão e tomada do poder”, disse Zhang Xiaoming, vice-director do Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau.

” Nos últimos anos, forças anti-China exploraram brechas e falhas no actual sistema eleitoral de Hong Kong para colocar em risco a soberania da China, a segurança nacional e os interesses do desenvolvimento, prejudicando gravemente a ordem constitucional e a governação efectiva. Portanto, o governo central deve tomar as medidas necessárias para melhorar o sistema. Tal não apenas cabe à Assembleia Nacional Popular (APN), como é a sua responsabilidade”, referiu Zhang Yong, vice-chefe da Comissão para Assuntos Legislativos do Comité Permanente da APN, em conferência de imprensa na sexta-feira.

Pelosi e as mãos negras

A China chega mesmo a nomear alguns políticos ocidentais que acusa de serem “mão negras” por detrás “da turbulência social” que agitou a cidade. Países como os Estados Unidos, Austrália e Reino Unido, que têm criticado a China na questão de Hong Kong, apoiam abertamente algumas figuras políticas anti-China na instigação de um movimento antigovernamental e anti-China em Hong Kong, e fazem parte das “mãos negras” por trás da turbulência social que arrastou a cidade da prosperidade e estabilidade à beira do colapso.

“Algumas forças estrangeiras participaram da turbulência social e do tumulto que durou meses em Hong Kong em 2019, incluindo a política democrata Nancy Pelosi, que elogiou abertamente os distúrbios como uma “visão linda”, e o líder da maioria no Senado Mitch McConnell e o senador republicano Marco Rubio, que deu apoio aos desordeiros anti-China. Quando a violência no Capitólio estourou em Washington, esses políticos classificaram-na como ‘terrorismo’, o que mostrou a típica duplicidade dos seus padrões, e eu não entendo como têm moral para apontar o dedo aos assuntos de Hong Kong”, Zhang Xiaoming disse. O MNE britânico Dominic Raab e a australiana Marise Payne foram também criticados.

Também Rita Fan Hsu Lai-tai, ex-presidente do Conselho Legislativo de Hong Kong (LegCo), afirmou que “os países ocidentais, liderados pelos EUA, muitas vezes falam sobre a situação de Hong Kong fora do contexto”. “Por exemplo, quando a Lei de Segurança Nacional entrou em vigor no ano passado, alguns políticos britânicos disseram que violava a Declaração Conjunta. No entanto, está claramente afirmado na Declaração Conjunta que a defesa nacional e a diplomacia são direito e responsabilidade da China”, disse Fan, sublinhando que a defesa nacional inclui questões de segurança nacional. Para Rita Fan, “os países ocidentais e as forças independentistas de Taiwan são os beneficiários de minar a estabilidade de Hong Kong”.

As sanções aplicadas a alguns funcionários chineses pelos EUA parecem ser medalhas, nas palavras de Zhang Xiaoming. “Estamos profundamente orgulhosos de termos sido sancionados pelos EUA”, disse Zhang Xiaoming, ao mesmo tempo que prometia contra-sanções. O governo chinês está a preparar legislação para responder a estas sanções. Por exemplo, ” se Washington tomar mais medidas, a China pode exigir uma redução do Consulado Geral dos EUA em Hong Kong impondo restrições às suas actividades.”

Rita Fan vai mais longe e pergunta: “Para alguns grupos políticos de Hong Kong que não entendem isto e clamam por uma democracia definida pelo Ocidente, quero que se sentem e pensem, vale a pena sacrificarem-se pela hegemonia ocidental?”.

Londres condena “clara violação” da Declaração Conjunta

O Reino Unido disse que a decisão da China de impor “mudanças radicais” para restringir a participação no sistema eleitoral de Hong Kong é uma nova “clara violação” da Declaração Conjunta Sino-Britânica. O ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Dominic Raab, lamentou a decisão da China de impor “mudanças radicais” que reduzem o papel dos cidadãos na escolha dos seus líderes territoriais, em vez de dar a uma comissão pró-Pequim o poder de nomear mais legisladores.

Segundo o ministro britânico, a decisão da China é parte “de um padrão concebido para assediar e suprimir todas as vozes críticas das políticas da China”. Raab acrescentou que a posição chinesa “marca uma terceira violação, em menos de nove meses, da Declaração Conjunta juridicamente vinculativa”.

“A decisão de Pequim de impor mudanças radicais para restringir a participação no sistema eleitoral de Hong Kong é uma clara violação da Declaração Conjunta Sino-Britânica, juridicamente vinculativa”, disse o ministro.

“O Reino Unido continuará a defender a população de Hong Kong. A China deve agir de acordo com as suas obrigações legais e respeitar os direitos e liberdades fundamentais em Hong Kong”, acrescentou o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico. Contudo, durante a época colonial, Londres nada fez para dar voz ao povo de Hong Kong, no sentido de escolherem os seus governantes.

15 Mar 2021

Fukushima | As dúvidas e os problemas 10 anos depois do acidente nuclear

Faz hoje 10 anos que o Japão enfrentou um grave acidente nuclear na cidade de Fukushima depois de um terramoto seguido de tsunami. O país encerrou entretanto muitas centrais nucleares mas depara-se com um dilema, dadas as responsabilidades que tem perante o Acordo de Paris. Há problemas que persistem enquanto a população continua a recusar a energia nuclear. Patrícia Neves, que esteve em Fukushima nessa altura e que escreveu um livro sobre o tema, recorda a experiência

 

Há 10 anos o Japão voltou a enfrentar o fantasma do nuclear depois dos acontecimentos da II Guerra Mundial, com os bombardeamentos em Hiroshima e Nagasaki. A 11 de Março de 2011, depois de um terramoto e de um tsunami, o país não estava preparado para um terceiro embate: um acidente na central nuclear de Dai-ichi, em Fukushima.
Patrícia Neves, à data jornalista da agência Lusa, foi destacada para fazer a cobertura dos desastres naturais e acabou por viver de perto o incidente nuclear. Dessa experiência resultou o livro “Império Nuclear – A era pós-Fukushima”, publicado em 2014, e um documentário.

Patrícia Neves só conseguiu voar para o Japão no dia 12. Quando chegou ao aeroporto de Tóquio, os sinais de caos foram imediatos. “Havia muitas filas de trânsito, continuavam a fazer-se sentir réplicas do terramoto a toda a hora”, recordou ao HM.

O objectivo era chegar a uma das zonas do país mais afectadas pelo terramoto, Tohoku, no nordeste do Japão. Patricia Neves viajou com uma equipa de jornalistas portugueses por questões de segurança. “Havia muitas pessoas desaparecidas na região e era muito difícil lá chegar. Numa situação normal essa viagem demoraria entre três a quatro horas, mas demorou cerca de 12.”

As estradas estavam cortadas, faltava o combustível em todo o lado. Foi nesse momento que começam as explosões na central nuclear de Fukushima. “Numa das explosões eu estava a atravessar a província de Fukushima. Quando chegamos à região [Tohoku] deparamo-nos com a devastação que o tsunami causou, uma coisa indescritível, um cenário de guerra. Depois havia a questão do acidente nuclear e das informações contraditórias que nos chegaram de várias fontes, das autoridades e dos media estrangeiros.”

O medo das radiações fez com que muitos repórteres tenham deixado o país nessa altura, mas Patrícia Neves decidiu ficar mais uns dias. “Impressionou-me o impacto do tsunami na vida das pessoas, mas também o acidente nuclear, algo que nunca tinha vivido e que foi muito forte a nível profissional e pessoal.”

A ex-jornalista destaca a “resiliência” com que os japoneses voltaram a lidar com um incidente nuclear. “A forma como o povo japonês reagia ao desastre também me sensibilizou, porque tem esta forma muito particular de reagir de forma muito ordeira a catástrofes.”

O incidente nuclear obrigou à deslocação de milhares de pessoas para outras zonas do Japão, tendo muitas famílias sofrido situações de discriminação. “Houve casos de bullying nas escolas, recusas de médicos em recebê-los. A população temia que a radiação fosse contagiosa, o que revelava que havia muito pouca informação sobre o nuclear. Fukushima abriu os olhos da população para o perigo do nuclear”, descreveu Patrícia Neves.

O medo que persiste

Aquele que foi o maior acidente nuclear da história desde Chernobyl, na Ucrânia, causou mais de 20 mil mortes e desaparecimentos. Ouvidos pela Reuters, os moradores da cidade de Iwaki, a 30 quilómetros do epicentro do tsunami, recordam, dez anos depois, os momentos em que a mãe natureza lhes pregou uma partida.

“Depois do terramoto e do tsunami houve muitos projectos de construção e eu fiquei ocupado com trabalho. Mas recentemente as coisas abrandaram um pouco. A minha vida está mais parecida com aquilo que era antes do desastre”, confessou Natsuki Suzuki, trabalhador da construção civil.

Persiste ainda um enorme medo em relação às radiações. Hiroharu Haga, vendedor de peixe de 49 anos de idade, disse que continua “preocupado com o que vai acontecer à indústria do peixe nos próximos dez anos”. “Há algum debate sobre o lançamento da água radioactiva tratada da central nuclear para o mar. Estou preocupado com o que vai acontecer depois disso. Há incertezas sobre o futuro.”

As preocupações não são em vão. Segundo o jornal Nikkei Asia, 140 toneladas de água são contaminadas diariamente, em média, e que é usada para remover substâncias radioactivas que permanecem na zona. Esta água é depois armazenada em tanques e já existem mais de mil, cheios a 90 por cento. A capacidade máxima de armazenamento destes tanques deverá ser atingida no Outono de 2022, altura em que a água terá de ser lançada ao mar.

Por entre os receios, há quem nunca tenha recuperado do choque, como é o caso de Yuko Yoshida, de 75 anos. “Não recuperamos de todo. Há ainda terras vazias, e não há nada que os turistas possam ver na prefeitura de Fukushima, apenas algumas pessoas regressaram”, contou.

Para Katsumi Teshima, empregada no sector de retalho, com 53 anos, é importante mostrar optimismo. “Na altura muitas pessoas estavam deprimidas e tinham caras tristes, mas penso que é importante mostrar que os nossos sorrisos estão a voltar e que isso não acontece apenas por causa dos Jogos Olímpicos. É importante mostrar às pessoas que os nossos sorrisos estão a voltar ao que eram antes.”

300 milhões para Tohoku

Mesmo com um terramoto e um tsunami, o acidente nuclear aconteceu exclusivamente por razões humanas, como disse à Reuters Kiyoshi Kurosawa, responsável pela investigação que concluiu que o incidente foi “totalmente feito pelo homem”. “Fukushima ficou marcado na história da energia nuclear”, acrescentou.

Para reerguer Tohoku dos destroços, o Governo japonês gastou 300 mil milhões de dólares americanos (32.1 triliões de yen), mas há áreas em Fukushima que permanecem por recuperar, sem esquecer que hoje a população está mais desperta para os perigos da produção deste tipo de energia.

Um inquérito divulgado pelo canal de televisão NHK revela que 85 por cento da população está preocupada com a energia nuclear. Outro inquérito, publicado pelo jornal February Asahi, conclui que 53 por cento dos inquiridos opõem-se à re-activação dos reactores, comparando com os 32 por cento que estão a favor.

“Passaram dez anos e algumas pessoas esqueceram. O zelo desapareceu. As reactivações não estão a acontecer, então as pessoas pensam que, se esperarem, a energia nuclear vai desaparecer”, declarou Yu Uchiyama, professor de ciência política da Universidade de Tóquio.

Patrícia Neves destaca o facto de hoje a energia nuclear representar apenas seis por cento do total de produção de energia do país, quando antes de 11 de Março de 2011 esse peso era de 30 por cento. As autoridades japonesas enfrentam, no entanto, um dilema, pois ao ratificar o Acordo de Paris, devem ter fontes renováveis e sustentáveis de energia. Mas o nuclear, uma energia limpa e barata, acarreta riscos.

“O que os especialistas dizem é que para [o país] cumprir com as suas obrigações há que voltar a apostar no nuclear e a colocar em funcionamento os reactores. A população continua a opor-se e o Japão está perante este dilema. Existe o problema da radiação e do armazenamento do lixo radioactivo. A situação da central de Fukushima está longe de estar resolvida e há ainda muito a fazer”, apontou.

Zero nuclear em 2069

Actualmente só nove dos 33 reactores nucleares obtiveram licença para voltar a operar de acordo com as regras de segurança pós-incidente, mas apenas quatro estão de facto a funcionar, e nenhum deles em Fukushima.  Dados do primeiro semestre de 2020 revelam que a energia nuclear representa apenas seis por cento do total das fontes de energia. Um conselheiro do Governo para as políticas energéticas, Takeo Kikkawa, lembrou à Reuters que o objectivo é que existam apenas 18 reactores em 2050 e zero em 2069, conforme foi anunciado pelas autoridades japonesas em Outubro do ano passado. “O Japão é um país pobre em recursos e não podemos abandonar de repente a opção do nuclear. Mas, na realidade, o futuro da energia nuclear é sombrio.”

Numa reportagem intitulada “10 anos de Fukushima: problemas tóxicos, poucas soluções”, o jornal Nikkei Asia relata como continuam a ser gastos milhões em matérias de segurança e de descontaminação de solos, e de como persistem as preocupações de moradores e dos que trabalham a terra.

Shinjiro Koizumi, ministro do Ambiente, declarou que vai levar tempo até que o país fique totalmente livre da energia nuclear. Isto porque o actual primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, “deixou claro que as energias renováveis devem ser uma fonte primária de energia e que deve ser maximizada a sua implementação”. Depois, “deve reduzir-se a dependência da central nuclear o máximo possível”, frisou o ministro.

11 Mar 2021

Sands | Saída da jurisdição americana pode ajudar na renovação de licenças de jogo

A venda dos negócios da Sands em Las Vegas abre portas para uma aposta ainda maior na Ásia, com Macau e Singapura à cabeça. Apesar de existirem opiniões divergentes, a maioria dos especialistas acredita que, dado o contexto político, o facto de haver menor influência americana na empresa pode ajudar na renovação das concessões de jogo. Mas, em qualquer dos casos, não há dúvidas de que o anúncio é sobretudo um sinal de compromisso com Macau

Com Andreia Sofia Silva

 

Nem tudo o que acontece em Las Vegas, fica em Las Vegas. Com o anúncio recente da venda dos negócios que detinha na região americana do Nevada, mais concretamente de dois edifícios, por 6,25 mil milhões de dólares norte-americanos (50 mil milhões de patacas) a Sands acaba de cortar o cordão umbilical com os Estados Unidos da América e apresenta-se particularmente focada em apostar no mercado asiático. Mais concretamente, no desenvolvimento dos investimentos feitos ao longo dos últimos anos em Macau e Singapura, onde a empresa é responsável por diversos activos.

Com a materialização do negócio, além de perder o prefixo “Las Vegas”, a empresa que passa agora a ser denominada apenas por “Sands”, desfez-se não só do icónico The Venetian Resort Las Vegas, que serviu de modelo para concretizar o projecto com o mesmo nome em Macau e o Centro de Convenções e Exposições da Sands. De acordo com o comunicado divulgado na passada quarta-feira, as propriedades vão ser adquiridas pelos fundos de investimento Apollo Global Management (proprietário da seguradora portuguesa Tranquilidade) e Vici Properties, que irão pagar pelo acordo, 2,25 mil milhões e 4 mil milhões de dólares, respectivamente.

Se por um lado o negócio é inevitavelmente um claro sinal de compromisso para com o mercado asiático, em particular com Macau e Singapura, dado o contexto internacional marcado pelas tensões políticas entre os Estados Unidos da América e a China, não é de afastar também a possibilidade de a decisão poder ser entendida como uma mostra de boa-vontade, um corte com a administração Trump e uma forma de oferecer garantias de não interferência norte-americana nos negócios feitos pela Sands em território chinês. Em termos práticos, em Macau, para além de investimento, isso poderá significar, maiores possibilidades de a Sands ver renovadas as concessões de jogo para continuar a explorar os casinos que detém no território, e que chegam ao fim em 2022.

Abrir caminho

Ouvido pelo HM, o economista Albano Martins é da opinião de que o negócio pode trazer vantagens nesse sentido, apesar de acreditar que a empresa deverá ter de antemão, “alguma informação de que haverá uma decisão favorável nas próximas licenças de jogo”.

“Como é sabido, o [fundador da Sands] Sheldon Adelson até há bem pouco tempo era um fervoroso apoiante do Trump. Não sei até que ponto é que, politicamente falando, as coisas não estão iguais ao que eram há uns anos atrás e que [investir noutras zonas do globo] não é um tiro no desconhecido. Mas como se costuma dizer, o risco é a alma do negócio. A Sands deve ter isso controlado e provavelmente tem alguma informação de que irá haver uma decisão favorável nas próximas licenças de jogo como eu, aliás, espero, porque o seu desempenho foi bom”, partilhou com o HM.

Contudo, alerta o economista, a questão que se coloca em termos futuros “não se põe ao nível do desempenho, nem das expectativas”, mas sim no “árbitro” que é a China, até porque, defende, “Macau não tem poder de decisão nessa matéria”.

“Se isto é uma forma de dizer, ‘nós queremos investir tudo em Macau’ e noutros sítios, isso é um sinal de compromisso [que pode facilitar a renovação]. Mas a China tem tido uma postura muito assertiva relativamente ao jogo. Por alguma razão anda sempre a pressionar Macau para se diversificar e a razão é simples: não quer o jogo. Na minha opinião, quando chegarmos a 2049 não haverá jogo em Macau”, acrescentou Albano Martins.

Também Ben Lee, sócio-gerente da IgamiX, consultora com sede em Macau dedicada à indústria do jogo considera que, além de ter sido motivada pela diminuição das receitas nas operações dos EUA, a venda “sinaliza”, perante as autoridades locais e da China, o compromisso da Sands com Macau.

“Uma interpretação possível passa por entender [o negócio] como um sinal de separação relativamente à administração Trump, com o objectivo de aumentar as possibilidades de renovar as suas consessões de jogo”, disse o especialista em declarações à Macau News Agency.

Já outro especialista com uma longa experiência na área do direito de jogo, que pediu para não ser identificado, não tem dúvidas de que passa a existir “menor influência americana na empresa” e que isso irá ajudar na renovação das licenças de jogo. Isto, apesar de considerar que, dificilmente, o cenário de não renovar estivesse em cima da mesa.

“Ao contrário de outras pessoas, nunca tive dúvidas de que a Sands China iria ver a licença de jogo renovada, independentemente de ser uma entidade essencialmente americana. Agora, se há uma menor influência americana na empresa? Sem sombra de dúvida (…) e acho que o facto de não estar sujeita à jurisdição americana ajuda à renovação”, partilhou com o HM.

Riscos e aventuranças

Para o mesmo especialista, o que pode vir a mudar com a venda dos negócios em Las Vegas, passa essencialmente por uma “diminuição do potencial para desenvolver projectos”, sobretudo porque “há sinergias que se vão perder” nas operações desenvolvidas entre jurisdições diferentes.

Em termos de apostas para o futuro, a mesma fonte disse ao HM que, além do “foco óbvio” em Macau e Singapura, tem “graves dúvidas” de que a Sands esteja interessada no Japão. Sobre outras paragens, considera que “apesar de não se falar muito”, tem havido, na Tailândia, algumas movimentações “muito interessantes” e com “grande potencial” para a Sands China.

Por sua vez, contacto pelo HM, o especialista em direito de jogo Óscar Madureira não é taxativo sobre o facto de o negócio “poder ajudar ou não na questão da renovação da licença”. “Não entendo que, à partida, isso seja encarado como algo que possa ajudar [à renovação]”, acrescentou.

Para Madureira, o que está em causa é, sobretudo, uma mudança de estratégia, que permitirá à Sands “apontar para Oriente” e até, tornar a operação mais local.

“Até há umas semanas atrás a Las Vegas Sands era considerada maioritariamente americana mas, com este passo, concluímos que está mais próxima de Macau do que de Las Vegas. É mais local”, partilhou com o HM.

Sobre a verba de 50 mil milhões de patacas afecta ao negócio, Óscar Madureira sublinha que, caso a Sands utilize o dinheiro para potenciar investimentos em Macau, esse facto pode marcar uma mudança no sentido em que circula o fluxo financeiro.

“Não há saída de capital de Macau para outros sítios mas sim o oposto e essa é uma enorme diferença na leitura que se fez até aqui. Na prática, a empresa deixa de ser vista como maioritariamente americana e agora, talvez seja exactamente o contrário, ou seja, mais local”, acrescentou.

Para Albano Martins, que considera que a curto prazo não haverá mudanças em Macau, o problema que se põe é precisamente o de “não existirem garantias que o dinheiro [da venda] vem para Macau”.

No entanto, e apesar de ser da opinião de que a Sands até pode vir a investir “noutras zonas dos Estados Unidos”, o economista voltou a frisar que “existem muitas certezas”, apesar dos condicionalismos que possam eventualmente advir das decisões tomadas pelas autoridades chinesas.

“Ninguém no mundo dos negócios faz grandes jogadas sem ter um tapete onde possa cair. E isto é uma grande jogada, portanto vamos ver se o tapete não se vai romper, porque aqui quem determina o que vai acontecer é a China”, referiu.

Espinha dorsal intacta

No comunicado em que anunciou a venda, a empresa fundada por Sheldon Adelson justificou a decisão “agridoce” com a necessidade de a companhia virar as atenções para os mercados asiáticos em desenvolvimento, apontando que as perspectivas de crescimento são “robustas”.

“O The Venetian mudou a face do futuro desenvolvimento dos casinos e cimentou o legado de Sheldon Adelson como uma das pessoas mais influentes na história da indústria do jogo e da hospitalidade. Ao anunciarmos a venda do The Venetian Resort, prestamos homenagem ao legado do Sr. Adelson, ao mesmo tempo que damos início a um novo capítulo da história desta empresa”, disse o presidente e director-executivo (CEO) da Las Vegas Sands, Robert Goldstein na mesma nota.

O presidente e director-executivo da empresa reforçou ainda o compromisso de apontar baterias para Oriente, em busca de oportunidades de crescimento.

“Esta é uma empresa focada no crescimento e, diante de nós, vemos oportunidades significativas provenientes de várias frentes. A Ásia continua a ser a espinha dorsal desta empresa e os nossos desenvolvimentos em Macau e Singapura são o centro das nossas atenções”, pode ler-se no comunicado da Sands.

“A estratégia de longa data de reinvestir nas nossas operações asiáticas e de devolver o capital aos nossos accionistas será reforçada através desta transacção”, acrescentou.

Recorde-se que a venda do icónico The Venetian em Las Vegas acontece dois meses depois da morte de Sheldon Adelson, fundador do grupo que faleceu aos 87 anos, no passado dia 12 de Janeiro de 2021, vítima de cancro.

Apesar de Sheldon Adelson ter iniciado a sua riqueza nos Estados Unidos, foi através dos investimentos em Macau que a sua fortuna explodiu. Os casinos em Macau geraram 63 por cento da receita da empresa em 2019, que foi de 13,7 mil milhões de dólares, seguidos de Singapura, que representaram 22 por cento da receita, e só depois os dos Estados Unidos.

9 Mar 2021