Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma ilusão de pertença Tenho Facebook basicamente desde que a plataforma chegou a Portugal. A primeira coisa que notei, à medida que o número de utilizadores ia aumentando, foi a facilidade em encontrar amigos de que se tinha perdido contacto. Toda a gente estava – ou estava a entrar – no Facebook. E durante algum tempo foi simpático ver ressurgir das sombras do passado uma catrefada de gente que já apenas habitava o subsolo da memória. Recentemente decidi fazer uma pausa. Desliguei o Facebook uma semana e, quando o voltei a reactivar, passei a ir lá muito menos vezes e a demorar-me pouco tempo em cada visita. O modelo de negócio do Facebook é basicamente o mesmo que o do Google: maximizar o tempo de estadia do utilizador para desse modo incrementar tanto quanto possível a quantidade de anúncios que vê e em que clica. Não interessa propriamente se o utilizador fica mais tempo ou volta mais vezes por causa dos gifs de gatinhos ou da desinformação acerca das vacinas. Há oitocentos mil engenheiros, sociólogos, psicólogos comportamentais e especialistas de áreas por categorizar cuja missão na empresa é fazer com que cada utilizador passe o maior tempo possível ao ecrã do telemóvel. Desde que seja a fazer scroll no feed, pouco importa o conteúdo. E eu estava a passar muito tempo no Facebook. O algoritmo é exímio a fazer-nos perder tempo. Desperta em nós a ansiedade de estarmos a perder qualquer coisa de terrivelmente importante – não estamos – quando nos afastamos do ecrã. É uma noção difusa, pois o «importante» aqui traduz-se na sensação de que na nossa ausência acontecem coisas que de algum modo aproximam as pessoas que a elas assistem e interagem com elas – botando likes, partilhando-as, etc. É um problema de comunhão, empatia e identidade. Um tipo gosta de se sentir compreendido, respeitado, admirado. Gosta de se sentir parte de qualquer coisa. O Facebook e a sua legião de programadores e cientistas consegue transformar – admiravelmente – aquela salganhada de conteúdos numa constelação de sensações capazes de criar um sucedâneo de sentido e de comunhão. Mas esse conjunto de sensações com rosto de experiência não corresponde de todo à verdade das coisas, ou seja, a experiência de comunidade aparentemente palpável. De vez em quando temos sinais disso, quando damos conta por qualquer razão que alguém nos bloqueou – o Facebook não nos avisa disso; aliás, não nos avisa de nada que nos possa perturbar, pois isso poderia diminuir o tempo que passamos na plataforma –, ou quando nos apercebemos que o like é uma unidade monetária sobrevalorizada. A sensação de que fora do Facebook não se perde grande coisa é acompanhada de uma lucidez acrescida: a de que o Facebook, aparentemente capaz de induzir uma leve anestesia na confusão dos dias, faz exactamente o contrário; o desfile incessante de notícias, indignações e radicalismos de todo o tipo reforça num sujeito razoavelmente normal a sensação de que o mundo é um lugar estranho e, em muitos casos, inóspito. Esse reforço, por sua vez, acaba por encaminhar o sujeito para contextos onde se sente mais confortável, seja do ponto de vista político, religioso ou simplesmente do ponto de vista afectivo. O Facebook, prometendo a máxima diversidade e transparência, é na realidade uma câmara de eco construída de forma a proporcionar uma ilusão de exterior. E, como em todas as ilusões, é mais fácil percebê-las estando de fora.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasLá atrás Quando entrei na faculdade, em filosofia, estava tudo menos preparado. Não só para a faculdade como para a idade adulta, se assim o podemos chamar. Tinha vinte anos, era mais velho do que os meus colegas de primeiro ano e, ainda assim, não estava preparado. A vida é toda ela um pouco isso, cenário destas divergências entre a idade legal ou socialmente idealizada para fazer uma coisa – beber, tirar a carta, casar, abrir um negócio – e a idade em que um sujeito se sente capacitado para tal. Há muitas pessoas que poderiam perfeitamente ter tirado a carta aos dezasseis, ou até antes, e há pessoas – que vemos todos os dias na estrada – que nunca o deveriam ter feito. Há pessoas que acertam praticamente sempre na altura de tomar decisões – seja vender a casa, ir de viagem ou apenas o caminho a tomar naquele dia. E há pessoas que falham quase sempre. Somos tempo e é por ele que medimos o acerto e o fracasso. Eu vinha de Albufeira e fui morar para uma casa típica perto de Santa Apolónia. Quatro quartos – começámos com três, mas pobretanas como éramos, rapidamente prescindimos da sala para dar espaço a outra pessoa –, uma cozinha, uma casa de banho. Vínhamos todos do Algarve. Lisboa era apetecivelmente enorme e havia tudo o que não havia em Albufeira: teatros, cinemas, livrarias, alfarrabistas, a noite com todos os seus espaços e possibilidades, um sem-fim de raparigas bonitas, de amigos por descobrir, de gente com quem traçar tangentes a caminho do trabalho final de curso. Filosofia. Depois do final do curso, não se adivinhava uma saída profissional que não o ensino ou a árida e insegura carreira académica. Felizmente, nessa altura era-se demasiado tonto para equacionar devidamente as consequências. Há coisas que, felizmente, só fazemos porque não sabemos mais. A casa estava quase sempre desarrumada, a loiça quase sempre por lavar. Cada um retirava com basto nojinho o prato, a faca e o garfo que ia utilizar, lavando-os tão bem quanto sabia para no final da refeição os deixar no lava-loiça, novamente sujos, novamente à espera do desespero do próximo esfomeado. Era uma baderna masculina sem qualquer tipo de romantismo salvífico. A coisa boa dessa impreparação para a convivência, para a idade adulta e para as coisas dos adultos, fruto também da forma como cada um tinha crescido e sido educado, era a possibilidade de, longe e com medo, cada um se reinventar sem ninguém fosse capaz de fazer luz sobre a inconsistência da criatura face ao seu passado. De repente, tudo quanto eu via reflectido no espelho da minha interioridade – e não gostava – era passível de ser mudado (claro que não o era, mas muita coisa é-o e não o fazemos por conveniência ou medo). A minha aprendizagem, fora do espaço das aulas, foi sobretudo essa: despir-me, vestir-me, olhar-me ao espelho e tentar perceber a pessoa em que me estava a tornar e a pessoa que, desesperadamente, não queria ser. O que eu queria ser era apenas ideal: um tipo mais ou menos correcto, mais ou menos capaz de encontrar o amor, mais ou menos fiel a uma voz interior a que na altura prestava pouca atenção. Quando sai da faculdade, cinco anos depois e uma tentativa de doutoramento frustrada pelo meio, era outra pessoa. Ganhara a segurança que é a valiosa poeira que as refregas vão soltando cada vez que eclodem, tinha alguns preceitos morais – fruto da tentativa e erro – e tinha a certeza de que o amor, mesmo que raro e esquivo, podia ser encontrado.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasParabéns, Gui! Parabéns, Guilherme. Dezoito anos. Uau. Parece que foi ontem. No dia em que nasceste, eu e a tua mãe tínhamos ido almoçar fora. Já no fim do almoço ela começou a sentir algumas contracções mais fortes. Sabíamos que estavas perto. Não nos tínhamos apercebido de que estavas mesmo ali. Estávamos tão romanticamente embevecidos com a tua vinda que nem quisemos saber se eras menino ou menina, para desespero cromático de toda a família e amigos. Nos primeiros três meses da tua vida vestiste-te unicamente de bege. Lembro-me da tua mãe, à porta da entrada das parturientes, na maternidade Alfredo da Costa, a acabar um corneto de chocolate entre contracções. Não se ia afinal desperdiçar um gelado por conta de um assunto que podia tranquilamente esperar quinze minutos (passadas aquelas portas a única coisa que existe é tempo). Nasceste às 19:34. Lembro-me que estava a dar um jogo do Benfica na televisão da sala de espera. Não me lembro do resultado ou com quem jogava, mas pareceu-me adequado para uma sala de espera apinhada de homens a roer as unhas e num vai-e-vem para fumar cigarros lá fora. Vinhas minúsculo, embrulhado numa trapagem de hospital, entre as pernas da tua mãe, sobre a maca. Minúsculo e glorioso, feixe de luz prismática reflectindo todas as possibilidades do mundo. Irias ser médico, artista, lutador de MMA, nómada digital – como sói dizer-se agora – ou quiçá astronauta, como o teu pai sonhou ele próprio ser quando começou a olhar para as estrelas e a fazer perguntas sem resposta. Durante dois anos foste isso tudo. O teu nome foi um problema, sabes? Estávamos à espera de uma menina. Chamar-te-ias Alice, como a nossa heroína do Lewis Carol e a avó da tua mãe. O facto de vires de série acoplado com mangueirinha de irrigação estragou os nossos planos. Durante quinze dias o teu nome foi Inominável Custódio Romão. Ainda pensámos registar-te assim (mentira; eu pensei, a tua mãe nunca). Os nomes masculinos pareciam-nos quase todos banais. Ou pior, associados a pessoas de quem não gostávamos nem um bocadinho. «Que tal Rogério?», perguntava a tua mãe. «Nem pensar, conheci um Rogério que era estúpido como uma fatia de fiambre». E assim andámos até perceber que não conhecíamos nenhum Guilherme que nos tivesse deixado uma impressão negativa. E não soava de todo mal: Guilherme Custódio Romão. Fica bem numa capa, num letreiro de um filme, até na porta de um escritório. Quando percebemos que nada do que pensámos para ti serias tu tivemos de chorar algumas noites. Alguns dias. A cada golfada de ar íamos substituindo possibilidade por realidade. Como diz um verso de um poema chinês de que gosto muito «estávamos a lavar-nos impecavelmente com lágrimas». Não tem nada a ver contigo, sabes? Nós é que nos deixámos engordar com as possibilidades que deveriam ter sido apenas tuas. Mas é inevitável. Pergunta a qualquer pai. Quer dizer, se conseguisses falar talvez o fizesses. Tudo o que era romantismo em nós se converteu em feroz pragmatismo. Para teu bem, endurecemos. Tivemos de o fazer, sabes? Tentaram enganar-nos mil vezes quando eras mais novo. Médicos com mais ganância que escrúpulos, terapeutas que nos receitavam banhos de sal grosso, amigos e desconhecidos bem-intencionados com histórias tão encorajadoras como irrepetíveis. Tivemos de pôr um filtro de chumbo entre a realidade e o coração, ou estaríamos condenados a submergir até deixar de te ver. Agora começa uma etapa nova na tua vida. Acabou a escola. O estado não sabe o que fazer contigo. Não és prioridade de ninguém a não ser a nossa e daqueles que aprenderam a te amar. Deixa, a gente desenrasca-se, como sempre o fizemos. Não te preocupes, filho.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa discrição Visitei o Brasil em 2014. Enfim, visitei o Brasil é manifestamente exagerado; estive lá quinze dias e vi um pouco do Rio de Janeiro e um pouco de São Paulo. O Brasil é um continente, é uma escala a que não estamos de todo habituados – resta saber se é possível uma pessoa habituar-se a uma experiência de território como o Brasil, a China ou a Rússia. Como todos os portugueses que visitam o Brasil pela primeira vez, eu ia carregadinho de preconceitos e de medo. A América do Sul é geralmente bastante mais violenta do que Portugal. Uma pessoa que veja um par de documentários sobre o Rio de Janeiro fica imediatamente em alerta. Os meus amigos brasileiros, em chegando a Lisboa, levavam umas boas três semanas a perder os hábitos de segurança do Rio. Queria muito conhecer «a cidade maravilhosa», mas ia cheio de miúfa. Levei roupa velha, discreta. Uns calções horríveis que nunca uso a não ser nas poucas vezes que vou à praia. Umas t-shirts rotas para as quais ninguém olharia duas vezes. Umas sapatilhas de boca aberta para calçar à noite e umas havaianas para usar de dia. Nota: eu odeio chinelos e calções de qualquer espécie. Custa-me disfarçar o desprezo e o asco que sinto quando os meus amigos aparecerem nesses preparos. Um homem não usa chinelos e/ou calções. É indigno. Passadas poucas horas de estarmos no Rio, as minhas havaianas deram de si. Foram provavelmente vítimas da secura acumulada no bas-fond do meu roupeiro e da minha inépcia a andar com elas. Tinha de comprar outras; a ideia que me tinha sido veiculada pelos meus amigos brasileiros era a de passar o mais incógnito possível; nunca parecer um gringo endinheirado. Blend in. E isso implicava usar uma t-shirt discreta, uns calções de banho e umas havaianas. Muito a contragosto, fui a uma daquelas lojas gigantes de havaianas. Era tão grande e tinha tantos chinelos à mostra que mais parecia um museu ou o guarda-fato do Quaresma. Era daqueles sítios onde não me apetecia passar mais de dois minutos, mas que, por ter as paredes repletas de coisas, dificultava tanto a escolha que acabei por me decidir por um par de chinelos relativamente brancos e sóbrios apenas meia hora depois de lá ter entrado. Felizmente o sítio tinha ar condicionado. Era fevereiro no Rio e estava muito calor. As havaianas são umas coisas horríveis de se enfiar no pé. Além de grotescamente feias, são desconfortáveis, sobretudo para quem ainda não ganhou um calo interdigital que amorteça as agressões daquele plástico cheio de fome de carne humana. Turistar longas distâncias com aquilo é uma provação a que só um idiota se submete. De cada vez que parava para me sentar num banquinho via a cara dos meus amigos brasileiros, muito compadecidos, a repetirem como num coro grego o quão necessário era aquele sofrimento por este afastar outros, esses sim muito mais fundos e prolongados. Chegada a noite, nem tive coragem de trocar de calçado. Embora nunca o fosse admitir, estava demasiado calor para usar sapatos fechados. Além disso, aqueles chinelos eram bastante mais discretos que os meus ténis Adidas amarelos. Ou assim pensava eu. Quando o sol se pôs dei por mim a ser mais mirado na rua do que era previsto. As crianças apontavam para mim, falavam com o adulto que as levava pela mão e riam-se. Os adultos por sua vez, miravam-me e abanavam a cabeça em jeito de desaprovação. As havaianas baratas e «discretas» que tinha adquirido umas horas antes tinham um revestimento de tinta fluorescente que, de dia, as tornava bastante sóbrias, de facto, mas que, de noite, as fazia brilhar num tom amarelo-esverdeado visível a uma distância considerável. Eu pensava que ninguém lhes pegava na loja por serem brancas e relativamente inócuas. Afinal a razão era outra. Mas, como o corno, o turista é sempre o último a saber.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm SG Ventil, se faz favor Das coisas que melhor me lembro do meu pai é de vê-lo fumar na varanda, olhos postos no mar (que entretanto perdemos por interposição predial especulativa), provavelmente a pensar no coelho ou na perdiz descomunais que lhe escaparam na última caçada. Pensar no meu pai é pensar em SG Gigante e em SG Ventil, os cigarros da sua vida. Começou a fumar SG Ventil quando deu conta que o tabaco lhe estava a acrescentar degraus à escadaria do prédio. Pensando que um cigarro mais curto não lhe fazia tanto mal, desistiu com relutância do SG Gigante. Eu vivi rodeado de fumadores. O meu pai e os seus amigos fumavam em casa, para desespero da minha mãe e dos meus pulmões asmáticos. Fumava-se dentro do carro. Fumava-se nos escritórios. Não se fumava já nos hospitais por conta do oxigénio e dos perigos que comporta acender um isqueiro na sua presença. Como estávamos em Clermont-Ferrand da França, uma terra ali mais ou menos no umbigo do hexágono, rodeada de montanhas e vulcões extintos, fria ao ponto de nevar copiosamente no inverno, as janelas estavam sempre fechadas. As do carro ou as de casa. Tirando aquela primavera serôdia e pálida em que nos era permitido dois dedos de corrente de ar, o ambiente onde quer que fosse confundia-se amiúde com o cenário de um filme noir. Em criança abominava o cheiro a cigarros e como nos anos oitenta, em França, já se faziam algumas campanhas antitabagismo, eu, tentando juntar o útil ao agradável, massacrava o meu pai até ao ponto de ele preferir fumar no alpendre, ao frio e à chuva. Quando trazia uns amigos para casa, nada a fazer: juntavam-se na sala e dali só saiam quando tivessem prodigalizado o mais perfeito nevoeiro dickensiano. Eu afirmava, naturalmente, que nunca fumaria um cigarro na vida. Como todas as crianças, tinha absoluta confiança nas minhas convicções. Fumar era coisa de velhos. Um hábito pouco salutar adquirido na errância e na pobreza. O meu pai começou a fumar muito cedo. Nunca lhe foi dito que os cigarros o iriam matar – como o fizeram. Fumar estava na moda. Era – senão saudável – perfeitamente inofensivo. As pessoas fumavam em todo o lado. As celebridades fumavam. Se o tabaco fizesse mal, elas não o fariam. A lógica era inatacável. Comecei a fumar com quinze anos. Roubava tabaco ao meu pai, à noite, e fumava na escola. Toda a gente que aspirava a não ser olimpicamente ignorada fumava. E, nas matinés de domingo à tarde, bebia. Eu não gostava de beber. Não gostava do sabor da cerveja. Não conseguia perceber como é que alguém podia suportar aquele sabor só para, passado apenas meia hora, rir-se do ziguezaguear de uma mosca para, no momento seguinte, descambar num choro freudiano. Eu pedia uma imperial e ficava ali hora e meia a fingir beberricá-la. Quando tinha sede, ia à casa de banho beber água da torneira. O meu pai morreu quando eu tinha dezasseis anos. Numa noite de quarta-feira de cinzas, não resistiu a um enfarte, consequência de uma angina de peito diagnosticada há um par de anos. Ficar sem pai aos dezasseis anos é tremendo. É precisamente a idade em que eles começam a nos achar alguma piada e, quiçá, a nos compreender – e vice-versa. É como finalmente entabular conversa com um vizinho com o qual um sujeito se cruzou nas escadas anos a fio apenas para saber que ele se vai mudar para a semana. Não devia ter continuado a fumar. Não com este exemplo tão próximo e tão trágico. Mas as coisas que fazemos raramente se definem pelos seus contornos racionais, por mais que tentemos traçar uma orla precisa à amálgama difusa a que chamamos desejo ou decisão. Nunca fumei um cigarro com o meu pai. Até nisso não nos cruzámos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasProezas a não repetir Quando uma pessoa tem dezasseis anos é geralmente muito estúpida. É uma espécie de efeito Dunning-Kruger geracional: quando mais um tipo desconhece da vida mais assertivas são as suas certezas acerca da mesma. Há obviamente honrosas excepções, adolescentes cuja invulgar maturidade os previne de fazerem os mais diversos disparates. Infelizmente, esses sábios prematuros pouco ou nada retiram de positivo dessa santidade temporã – a não ser, claro está, a manutenção da integridade física. Os outros, do alto das suas pirâmides de desastres coleccionáveis, apoucam-nos sempre que podem. Estes passam ao lado de quase tudo que é inseguro e divertido; não se entopem de drogas numa festa com desconhecidos, não conduzem como se tivessem tido aulas no poço da morte de uma qualquer feira popular, não partem a cremalheira em volteios de skate ou bicicleta. São uma seca. Eu, que sempre fora bom aluno e, por isso, relativamente solitário, queria muito ser adoptado. Pelos tipos das motas, das bandas de garagem ou pelos noctívagos profissionais. Não queria era estar sozinho. Sendo bastante tonto à altura, não me custava embarcar em todo o tipo de aventuras. Tudo quanto não comportasse perigo era insonso. Por isso todos os dias, a seguir às aulas, ia para um baldio atrás de casa fazer cavalinhos com a minha Target. Assim, quando estivesse com a malta a que eu aspirava a ser, poderia eventualmente fazê-los olhar, pelo menos uma vez que fosse, para mim. Ser bom aluno é suficiente até às hormonas começarem a falar. A partir desse momento, a conversa passa a ser outra. Houve um dia em que nos lembrámos de empinar papagaios. Eu e mais dois amigos, na rua da minha irmã, em Albufeira. O Benjamin, o mais velho, teve uma ideia: «isto com mais vento até funcionava, e se o fizéssemos de mota?» Claro que a ideia me pareceu genial. Lamentei apenas não ter sido eu a tê-la. A mota era do Benjamin, pelo que o mais expectável era ser ele a conduzi-la. Mas o papagaio também era do Benjamin, e era natural que quisesse ser ele a guiá-lo. Como não podia fazer ambas as coisas – os adolescentes podem ser malucos, mas até eles têm alguma noção dos limites – ficou combinado que eu conduziria a mota do Benjamin e ele, no banco de trás, empinaria o papagaio. Durante uns quinze minutos, a coisa correu bastante bem. O papagaio lá esvoaçava com aquele vento forçado, rodopiando atrás de nós como um cão aéreo. Só não era sucesso absoluto porque o papagaio era baratucho e difícil de controlar. Mas já estávamos a pensar em comprar um papagaio mais robusto e mostrar a proeza perto da praia, onde decerto alguma gaiata mais curiosa apreciaria o nosso engenho. Tudo estava a correr de feição até eu decidir que também merecia ver o que se estava a passar atrás de mim e não só ouvir os berros de satisfação do Benjamin mesmo à porta do tímpano. Passavam poucos carros naquela rua e, sendo uma recta, tinha mais que tempo para espreitar o que se estava a pensar sem nos colocar em perigo. Assim o fiz. Rapidamente percebi que a proeza só se tornaria matéria de conversa se o papagaio fosse capaz de nos seguir com alguma elegância e não com aqueles trejeitos de enguia epiléptica pela trela. Feito o diagnóstico, voltei-me para a frente. A mota descaíra ligeiramente para a direita (o lado para que me tinha virado). Mesmo diante de mim, a parte de trás de um carro estacionado. Não dava para travar a tempo de não bater. Ainda assim, travei a fundo. Gritei. O Benjamin, ocupado com o papagaio, foi o último a perceber. Saltou por cima de mim, batendo-me com o joelho na nuca no processo. Escusado dizer que a queda foi bastante mais espectacular do que a proeza em si. Acorreram as pessoas da rua, os vizinhos da minha irmã, o dono do carro. Chamaram-nos uma ambulância e sublinharam a nossa inconsciência. «Estes miúdos só estão bem fazendo asneiras», ouvi dizer a um velhote, do passeio. Verdade. Mas quando se lhes sobrevive, que belas histórias dão.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasQuando a emel lá no estrangeiro me deu um gato Quando descobri, em Clermont-Ferrand, que os parquímetros da cidade tinham sido arrombados todos na mesma noite mas que, ainda assim, davam a aparência de estarem fechados e a funcionar, vi-me de repente em tio Patinhas, banheira cheia de moedas para trocar por livrinhos de banda desenhada, gelados de seis andares no Verão e saquetas de cromos para acabar todas as cadernetas a que faltavam apenas meia dúzia em cada uma. Os meus pais davam-me dinheiro, como é óbvio. Uma espécie de mesada que tinha de dividir com cuidado para ir comprando um lanche aqui e ali na escola e umas canetas. Mas pouco sobrava. Ou, na minha opinião, pelo menos, não o suficiente. Pelo que quando me apercebi de que todos os parquímetros da cidade se tinham transformado no meu mealheiro, não só passei a demorar cada vez mais tempo da escola para casa como passei a chegar cada vez mais pesado. Os mealheiros que me tinham oferecido ficaram a abarrotar em menos de nada. Comecei então a depositar o fruto das minhas passeatas pós-lectivas num vaso de plástico a que a minha mãe não tinha ainda atribuído morador. Guardava-o debaixo da cama e, a seguir ao jantar, com os meus pais ainda à mesa, refugiava-me no quarto e contava as moedas, com medo de que entretanto alguém me tivesse surripiado umas quantas (o dinheiro vem de mão dada com uma série de coisas pouco simpáticas que eu, à altura, desconhecia). Certo dia aproveitei o bom humor do meu pai para lhe confessar que preferia gatos a cães. Ele, nascido e criado no campo, na serra algarvia, não percebia porquê. Os animais, para o meu pai, ou tinham uma serventia ou não tinham lugar no círculo doméstico mais alargado. Era-lhe absolutamente estranha a ideia de «animal de estimação». Isso era coisa de gente a quem o dinheiro a mais espoletava a adopção de toda a sorte de comportamentos excêntricos pouco desejáveis. «Um gato para quê?», perguntou-me? «O que vais fazer com um gato?» Na verdade, nem eu próprio sabia. Sentia-me sozinho, tinha pouquíssimo amigos e imaginava que um gato pudesse de alguma forma suprir ou pelo menos minorar essa carência. «Para brincar com ele», respondi, timidamente. «Um gato sai caro», asseverou. «Já temos dois cães, já gastamos tudo quanto podemos gastar em comida para os bichos». Tinha esperança de que ele me tentasse dissuadir sacando do trunfo do dinheiro. «Eu pago», repliquei. «Eu tenho dinheiro». Ele riu-se. «Então mostra lá esse dinheiro», gracejou, «a ver quantos dias consegues dar de comida ao animal, que tu não tens noção do preço das rações». Eu fui buscar um dos mealheiros, atulhado até à boca de moedas e despejei-o em cima da mesa da cozinha. Ele olhou para as moedas, para mim, para as moedas novamente e logo para mim. Não fez perguntas. Eu mantive-me estrategicamente em silêncio. «Quando aparecer aí nas redondezas uma gata que tenha uma ninhada, a gente conversa». Acabei por ter um gato, um mês e pouco depois. O meu pai, pensando que eu era a criança mais poupada da história das crianças poupadas, não só mo trouxe a casa como me acompanhou orgulhoso ao supermercado para comprar um areão e comida para ele. A senhora da caixa, impermeável à vaidade paterna, reclamava da quantidade de moedas que tinha de contar. O meu pai, impassível, repetia: «algum problema? É dinheiro, não é?». Certa vez, vínhamos para Portugal em Agosto, cumprir a romaria de imigrantes a que estávamos votados na altura, o carro avariou, perto de Bordéus. Tivemos de ficar dois dias num hotel. Eu, o meu pai e a minha mãe num quarto e os dois cães e o gato num anexo no último andar. Na hora de pagar o arranjo e as diárias, o meu pai viu-se curto de massas. Discutiu o assunto com a minha mãe; que ali não havia uma dependência do banco dele, que o melhor seria pedir emprestado a alguém, que pudesse mandar um vale postal, e pagar depois. Mas teríamos de ficar mais dois ou três dias, o que encarecia bastante a situação. Eu ofereci-me para cobrir a parte que faltava. «Afinal, também vou no carro», atirei. «E assim não perdemos tantos dias de férias». O meu pai riu-se. Quando depositei sobre a colcha da cama o dinheiro em falta, o sorriso transformou-se num esgar de perplexidade. Tive de lhe explicar tudo, obviamente. Nem a mais poupada formiga das histórias infantis era capaz de reunir aquela maquia. Ele riu-se e acho que entredentes resmoeu «filho da puta», mas na altura não percebi bem. Pagámos e passado dia e meio estávamos em Portugal. Nós e os bichos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm troféu imaginário Já foi bastante mais novo e bastante mais estúpido. Felizmente, e na maioria dos casos, a idade tende a corrigir – ainda que desigualmente – ambos atributos. Quando tinha cerca de catorze anos, por exemplo, eu e um amigo meu descobrimos um cemitério abandonado, mesmo ao lado de uma igreja, onde se conseguia aceder trepando umas rochas que davam acesso a um dos muros do cemitério. De cima do muro avistavam-se jazigos de família, já muito degradados, as pedras tumulares pontuando o recinto como dentes incertos e estragados numa boca que se abre para um sorriso e o matagal viçoso envolvendo quase tudo num abraço cujo desleixo humano de décadas acabara por se tornar o melhor adubo possível. Da primeira vez que lá fomos, não ousamos entrar. Percebemos rapidamente que não seria difícil; uma amendoeira ladeando a parte de dentro de um dos muros dava um bom escadote. Do lado de fora do cemitério, uma inscrição ininteligível para adolescentes imortais: «Como tu és eu já fui / Como eu sou tu hás-de ser / Lembra-te / Hás-de morrer.» Combinámos imediatamente regressar na noite seguinte devidamente equipados. Lanternas, facas de mato como as que víramos no Rambo e uma máquina fotográfica Nikon EM, herança paterna, para registar adequadamente a proeza. Uma ida a um cemitério abandonado, de noite, era coisa para engordar a nossa esquálida popularidade. Pelo menos junto dos geeks com que nos dávamos. Como prevíramos, descer foi tão fácil como subir. A natureza, retomando conta do espaço, fornecia-nos os pontos de apoio necessários para que os nossos corpos magros e ágeis (há de facto vantagens físicas inegáveis na juventude) não encontrassem qualquer dificuldade em galgar os ramos que davam para o recinto. Lá dentro, tudo se complicava. Eu tenho pavor a aranhas e o meu amigo detestava ratos. Tínhamos a certeza de que havia ambos em abundância naquele lugar – afinal, onde se haviam de reunir os nossos terrores primordiais senão num cemitério? Fomos muito devagarinho caminhando entre as pedras tumulares e lendo as suas inscrições. A maior parte eram de pessoas que haviam vivido no século XIX. Pessoas que, salvo raras excepções, tinham vivido muito pouco tempo. Lembro-me de fazer contas e de pensar que o meu pai, nos sessenta e tais, já tinha vivido mais tempo do que a maior parte da gente ali enterrada. Lembro-me também de pensar que muitas daquelas pessoas nunca tinham visto luz eléctrica ou um automóvel. Uma pequena travessia no espaço, uma grande viagem no tempo. Eu pedia ao meu amigo para apontar a lanterna para tal e tal sítio para eu ter luz suficiente para fotografar. Tinha um rolo novinho de trinta e seis fotos. Não tínhamos dado mais de uma dúzia de passos e já ia a meio. Tudo era fascinante. O João decidiu que devíamos entrar num dos jazigos. Para mim, aquilo já era demais. Uma coisa é passear no bairro onde as pessoas moram; outra, bem diferente, é entrar-lhes em casa. Mas o João estava determinado. Não tinha decidido ir ali para ver de perto aquilo que já conseguia ver lá de cima do muro. Ainda tentei convencê-lo a voltar noutro dia, a fazer a coisa de modo gradual. Nada. Estava irredutível. Nem todos os jazigos estavam abertos mas encontrámos um – por sorte, logo o maior – que o estava. Lá dentro, uma espécie de beliche de cada lado da parede e quatro caixões, três deles fechados. Daquele que estava aberto pendia uma mão – o que restava dela. Uma mão que no fundo era apenas a estrutura óssea da mão, aquilo que restava de um corpo depois da bicheza se ter encarregado de o limpar. A mão estava dentro de uma luva delicada, feita de um tecido que nos parecia tule ou renda miudinha – a capacidade de dois rapazes de catorze anos de identificar tecidos é, como se sabe, bastante diminuta. No dedo anelar, um anel. Esgotei o que faltava do rolo a documentar aquele insólito em jeito de prémio: não só entráramos no cemitério como tínhamos tido contacto com um morto. Um daqueles a sério, não dos que se vêm nos velórios. O João quis ficar com o anel como recordação. Achei péssima ideia. Aquele anel já era uma recordação e não era a nossa recordação. De certeza que existiam leis dos homens e regras divinas que desaconselhavam fortemente ficar com as coisas que os mortos levam para a tumba. Mas o João já se estava a ver a contar a história da nossa proeza e a exibir o troféu arvorado em cereja no topo do bolo. Eu não estava de todo convencido (e as doenças? E a fúria divina? E as dúzias de maldições em que justissimamente incorremos?) Mal tocou no tampo do caixão semiaberto este caiu, separando sem esforço a mão do resto da frágil assemblagem de ossos em que uma pessoa se torna. A mão caiu no chão, o barulho assustou-nos. Os cães da vizinhança ladraram e corremos dali para fora como dois ladroecos apanhados em flagrante. Sem o anel-troféu, o João rematava sempre a história dessa noite – que repetiu vezes sem conta anos a fio – realçando o carácter enigmático daquele súbito movimento do tampo do caixão. «Era como se o caixão a estivesse a proteger, porque nem lhe tocámos». Era mentira, claro. Mas sem o anel, que podíamos fazer?
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasPensar a vida As cidades, por maiores que sejam, acabam por se dividir em pequenos bairros, por vezes não maiores que duas ou três ruas, nos quais toda a gente – para o bem e para o mal – se conhece. Isso não acontece na suburbia porque a suburbia não foi, de raiz, pensada para ser assim; não foi, aliás, pensada. A suburbia é um polvilhado difuso de blocos de apartamentos que aparecem onde quer que haja espaço e ligações à cidade que a alimenta. É uma necessidade habitacional criada pelas oportunidades de emprego intensivo e mal pago que a cidade oferece. Essa oferta não inclui, claro está, direito de habitação ou usufruto. A cidade, para aqueles que a frequentam na perspectiva única de formiga obreira, empurra para fora de si à tarde aquilo que, pela manhã, convoca e abraça. E a vida dos bairros da cidade pode ser mais ou menos a mesma anos a fio. Duas pastelarias razoáveis – uma com o café mais barato do que na outra mas mal servida de bolos –, uma funerária onde amolece amarelada, na montra, uma Nossa Senhora sem protector solar, uma loja de fotografias involuntariamente transformada em museu-galeria do bairro, por onde as pessoas passam, apontando: «olha, que é feito desta?», uma lavandaria onde a mitralhada da rua vai beber café na máquina de venda automática – porque é mais barato – e na qual a turistada vem lavar e secar a roupa, tasquinhas de bêbedos intemporais, tasquinhas de carapauzinhos fritos com arroz de tomate, tasquinhas de bola, minis e tremoços com balcões altos onde a dona, nos dias de mais algazarra, se pendura, furibunda, alçando-se naquela voz de atrair morcegos, de tão aguda: «mas vocês pensam que estão em casa???» Estes bairros correspondem a ciclos de vida na cidade. E estes ciclos existem desde sempre (ou, pelo menos, desde que há cidades e desde que há bairros). As pessoas nascem e morrem, os negócios aparecem e desaparecem consoante as necessidades das pessoas e os avanços tecnológicos, as fachadas vão levando umas obras a ver se a coisa se segura, o recheio das casas vai mudando. É todo um ecossistema urbano no qual as pessoas modificam e são modificadas por aquilo que os rodeia. Esse ecossistema, em grande parte de lisboa histórica, estava em claro declínio. Nalguns casos, estava mesmo moribundo. A casualidade de termos sido descobertos como destino turístico bom e barato revitalizou grande parte desses bairros, embora o tenha feito ao modo da erva daninha, reclamando espaço apenas para si e sufocando o que crescia, a custo, a seu redor. Os edifícios cai-não-cai já não caem; pelo contrário, têm bom aspecto. Mas são enclaves de turistas onde os moradores só entram, no máximo, para limpar e fazer camas. Nada do que foi recuperado na cidade o foi pensando nas pessoas que nela habitam. Estas são, no limite, figurantes com interesse zoológico, adereços para esconder o plástico que vai corroendo e substituindo, todos os dias um pouco mais, a vida. Esta interrupção impensada e involuntária causada pela pandemia devia pôr as boas alminhas que nos governam a pensar no modelo de cidade que propuseram como necessidade pós-troika. Por essa Europa fora não faltam exemplos de sítios que o turismo descobriu e rapidamente consumiu na ânsia de tudo ver e catalogar sem realmente se imiscuir. O teste de fogo são estas autárquicas que se avizinham e o Verão de 2022. Até ver, business as usual.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO segredo do cool Esta crónica terá provavelmente o tom de uma reflexão de velho. Um tipo chega a uma determinada idade e o mundo que parecia mais ou menos compreendido começa a deixar de o ser. À medida que os mais jovens vão redefinindo aquilo que é «cool», rejeitando no processo os ícones da cultura popular e as múltiplas modas que um sujeito adoptou ou viu florescer à sua volta, o mundo torna-se menos simpático, dado que basicamente nos mostra na rua, nos cafés, no cinema, nas revistas de actualidade, na roupa que as pessoas vestem e um pouco por toda a parte, que a não só as nossas noções de arrojo estético e de beleza vão sendo substituídas por outras, como nos esfrega na cara a fatuidade da nossa contribuição para a grande passerelle da humanidade e, no processo, a nossa própria efemeridade, que tanto nos esforçamos por disfarçar, adornando-a com o pouco que cada um de nós aprendeu ou foi possuindo. As redes sociais vieram redefinir essa noção de ícone que, há apenas duas décadas, pertencia quase exclusivamente à indústria do entretenimento. «Cool» era ser parecido com uma estrela de cinema ou da música, vestir-se como eles, fumar como eles, viver no limite do perigo e com um pé na decadência, se possível, como eles. «Cool» era uma daquelas propriedades subtis, difíceis de precisar de um ponto vista objectivo mas absolutamente evidentes ao contacto. «Cool» era qualquer coisa que os outros tinham e que nós, o resto, se esforçava por copiar ou a passar a vida fingindo não se lhe dar qualquer importância. «Cool» tinha um rosto. Melhor: tinha alguns rostos. Era uma espécie de caleidoscópio que o tempo girava para, como na frase do romance de Tomaso di Lampedusa: «tudo mudar para tudo ficar como estava». Como muita coisa desde o advento da Internet e das redes sociais, o «cool» democratizou-se. Deixou de pertencer com exclusividade aos actores e cantores deste mundo (apesar do finca-pé que estes fazem na tentativa de segurar o manto do rei que se afastando) e começou a aparecer um pouco por toda a parte. Os «influencers», palavra que me custa tanto a dizer como a grafar tornaram-se um porta-estandarte do «cool» contemporâneo. Através das suas publicações, sobretudo no Instagram, cativam a atenção de milhões de pessoas que, embasbacadas em frente aos ecrãs dos seus telemóveis, sonham com passar férias onde aquela foto foi tirada, sonham com ter aqueles lábios, aquelas sobrancelhas (um dos maiores e para mim mais incompreensíveis fenómenos do «cool» dos últimos anos: a estética da sobrancelha), aquele corpo. «Cool» é, em grande parte, sonhar. Sonhar com poder, com a forma de poder mais imediata que existe, que é aquela que radica na beleza: o poder que se tem só por se aparecer. Ser «cool» é ganhar mesmo antes de o jogo começar, apenas por comparência. Pelo que é muito natural que a beleza – e o «cool» – seja sobretudo pertença dos mais jovens. Como uma tocha olímpica, aqueles que vão perdendo a juventude ou a sua aura vão passando à geração seguinte (embora muito relutantemente) o fardo de alumiar. Com a democratização do «cool» sucede um fenómeno mais ou menos semelhante ao das «start-ups» e do empreendedorismo. Toda a gente acha que ser «cool» é possível. Há cursos de Instagram. De selfies. Cada um dos aspirantes ao «cool» devota uma boa parte do seu tempo a escolher ângulos favoráveis para as fotos, a estudar onde, dentro das suas possibilidades económicas, consegue passar férias e causar inveja e/ou admiração aos seus seguidores. Mas há um contra-senso lógico nisto tudo. Por definição, ser «cool» está reservado a poucos. É um dos pilares da noção. Se toda a gente pode ser «cool», ninguém, por definição, o será verdadeiramente. É como ser herói, ou maluco. O resultado é que cada página de Instagram de uma determinada faixa etária se parece com todas (salvo raras excepções) as páginas de Instagram daquela faixa etária. Toda a gente copia as poses, os trejeitos físicos, as expressões faciais de toda gente. A coisa não lhe cai a máscara ou acaba por efeito de um particular fenómeno de reforço em cadeia. Cada um vai mostrando o seu apreço em termos hiperbólicos pelo outro na esperança que o outro o retribua. Criam-se assim milhões de câmaras de eco do «cool» mediante as quais as pessoas que nelas habitam se vêem todos os dias diante de um simpático espelho de feira. É um círculo vicioso – e viciante. Um sujeito mente todos os dias na apreciação que faz dos outros – e sabe que está a fazê-lo – mas acredita que apreciação que os outros fazem dele é real. E leva isto a sério. E perde imenso tempo com isto. E entretanto envelhece. E é substituído.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCulpa ensolarada Lembro-me perfeitamente da primeira vez que senti um ataque de pânico. Tinha acabado de subir os três andares do prédio da minha namorada e na parte comum do andar desenhava-se uma espécie de óculo oval que dava para ao exterior. Lembro-me de me encostar ao pequeno muro e olhar pelo vão, lá para baixo, fixamente, e de me ocorrer a ideia de que afinal talvez fosse melhor estar morto do que estar vivo. Desatei num pranto, solucei, tive a sensação de, como um peixe, me estar a afogar em terra. Um ataque de pânico é como ter a morte a bater à porta; quando finalmente atendemos, não está lá ninguém. Nos dias seguintes fiz uma espécie de curso intensivo da doença mental. Na minha família toda a gente tem uma componente ansiogénica e depressiva acentuada. Cada um deles, da minha mãe às minhas irmãs, se apressou a dar-me dicas de como controlar a respiração, de o que fazer acaso o fenómeno ocorresse no trabalho ou nas aulas (eu tinha, à altura, dezoito anos), de o que tomar e como. Cada um deles me trazia, em segredo, na concha da mão, uma lamela da sua droga preferida e indicações passadas em surdina: «quando isso começar a dar-te, metes dois destes debaixo da língua, corres para a casa de banho e encharcas o rosto em água até ficares mais calmo». Senti-me como se tivesse nascido para aquela família pela segunda vez. Ou como numa espécie de crisma para maluquinhos. Pese a boa vontade de todos eles, a coisa não melhorou muito. Eu, que tinha assistido boa parte da minha vida ao deglutir desesperado das minhas irmãs e mãe de todo o tipo de calmantes e antidepressivos sem grandes melhorias evidentes, estava céptico em relação aos benefícios reais da medicação. Os psiquiatras e psicólogos também não eram figuras pelas quais nutrisse grande estima. Enfim, para além da solidão em que um sujeito se enfia quando se descobre diferente (seja que diferença for) acrescentava-se ainda a desconfiança em relação à eficácia ou bondade de tudo quanto de algum modo podia mitigar essa diferença ou a solidão que dela decorria. A minha namorada pouca paciência teve para os meus achaques (tinha também dezoito anos, não estava propriamente preparada ou motivada para uma temporada de enfermagem na ala psiquiátrica – mais a mais, era Verão). Acabei por ir tomando umas coisas ao sabor dos sintomas, sem compromisso. Quando estava mais instável, tomava. Quando me sentia melhor, deixava, até porque me apetecia beber uns copos e tinha medo de que a mistura de álcool e antidepressivos me arranjasse uma vaga no hospital psiquiátrico de Faro para fazer parte da exposição permanente. Só comecei a melhorar quando levei a coisa com a seriedade que esta merecia. Quando tomei os comprimidos a tempo e horas e confiei o suficiente num médico para respeitar o diagnóstico traçado e terapêutica proposta. Tem sido um carrossel com o qual me tenho habituado – cada vez melhor – a viver. Passados muitos anos sobre aquele garoto efemeramente suicida, percebo que o que realmente me afligiu naquele Verão atípico foi ter entrado nele em contraciclo disposicional. Explico-me: eu não tinha qualquer razão para estar deprimido; pelo contrário. Apaixonara-me recentemente, era correspondido e eu e ela andávamos de scooter a desbravar praias nos dias em que não trabalhávamos e a torrar o dinheiro das gorjetas em jantares opíparos. Não é possível – ou permitido – ser infeliz nesta situação, pensava eu, quanto mais deprimido. Eu próprio não tinha – não tive – grande paciência para os achaques daquele rapaz. De cada vez que hoje em dia me sinto mais chocho naqueles dias de Primavera em que o mundo parece novamente fazer sentido, penso naquele garoto assustado, a sentir-se culpado por ser diferente, por não corresponder ao que dele esperavam, por não saber sequer aproveitar a bonança da natureza e saber ser feliz. Penso nele e vingo-me com um dia cinzentão na cama, a mandar foder aquela gente toda que, à altura, não soube ou não quis fazer melhor. Eu incluído.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA miúda mais bonita da turma Já não me lembro se foi no sexto ou no sétimo ano que dei conta de que existiam mulheres e que isso não me era indiferente. Com doze ou treze anos, o sexo era a penúltima das minhas preocupações. O sexo era, aliás, um abstracto mais ou menos curioso que correspondia a conversas que os mais velhos – ou os mais afoitos – tinham. O meu interesse pelas raparigas adveio antes do meu interesse por sexo. Ou, como dizia o Santo Agostinho das Confissões a respeito de assuntos mais nobres, «eu já amava antes de saber amar». Baixinho, tímido e basicamente amaldiçoado pelo facto de a minha mãe insistir em ser ela a escolher-me a roupa, poucos argumentos tinha para que uma rapariga tivesse qualquer interesse extracurricular em falar comigo. As pessoas com quem me dava, aliás, eram os proscritos do continente inacessível da popularidade, aqueles que faziam um grupo de não serem aceites em grupo nenhum. E, tirando a questão feminina, era um grupo bem mais interessante do que o dos aspirantes a motários ou a delinquentes (mas muito menos sexy, obviamente). Quando a Luísa, provavelmente a miúda mais bonita da turma, meteu conversa comigo acerca do quão violentos os rapazes podiam ser nas suas brincadeiras, senti-me, pela primeira vez na vida, especial. Outra humanidade, à margem dos penteados decalcados da Bravo e das calças da Chevignon, era possível. Eu sempre achara que a Luísa, a interessar-se por alguém, iria naturalmente sucumbir ao charme do Ivan, um latagão magríssimo de metro e setenta (eu olhava para ele de baixo para cima sem nunca ousar dirigir-lhe uma palavra) com um mullet cujos caracóis loiros faziam inveja a qualquer querubim do renascimento. Eles eram o par perfeito. Com o seu aspecto irrepreensivelmente nórdico, contrastavam de tal modo com o nosso ar marroquino de algarvios queimados do sol que não acabarem juntos era uma ideia que roçava o pecado. Quando a Luísa me convidou para ir ao cinema com ela, ver o Robocop, devo ter demorado uns bons dois minutos até lhe dizer, muito baixinho, que sim. Já era difícil acreditar que a Luísa pudesse achar em mim qualquer interesse que justificasse uma troca breve de palavras, mas convidar-me para o cinema tinha laivos de história para um daqueles defuntos jornais de notícias do bizarro e do além. Pedi emprestado umas calças de fato de treino a um amigo mais atreito à questão da moda e aperaltei-me com pude. Duas gotas do Old Spice do meu pai atrás das orelhas completaram a minha transformação. Às 19:15 estava à porta do café na baixa onde tínhamos combinado encontrar-nos. Era verão e a íamos à sessão das 20:30, pelo que pelas minhas contas, a nervoseira resultante de uma hora a tentar não fazer figuras de urso diante da Luísa dava para ensopar duas vezes a roupa impecavelmente passada a ferro que vestia naquele dia. Passou-se o tempo, muito devagar, e a Luísa não apareceu. Tão desanimado quanto estranhamente aliviado, dirigi-me para o cinema. Era o universo a retomar o seu curso natural, pensei. Na bilheteira, vejo a Luísa e ainda pensei em gritar-lhe do outro lado da rua. Ainda bem que não o fiz. Ela estava com o Ivan. Ele, naturalmente imune ao embaraço, não parava de lhe contar o que eu imaginava serem, pelo riso dela, as melhores piadas do mundo. Eu, por dentro, desmoronei de amores pela primeira vez. Fiquei sentado duas filas por detrás deles. O Ivan, alto, fez-me pelo menos metade do filme com aqueles caracóis que me pareciam cada vez mais ridículos a cada minuto que passava. Do nada, saquei da pastilha corpulenta que mastigava há horas (preceitos para o hálito, conselho do amigo das calças) e atirei-a de modo a que fizesse ninho no cabelo do Ivan. Se estiveres aí desse lado, meu querido, aceita as minhas tardias desculpas. Sim, fui eu. Sim, tu não tinhas culpa nenhuma de seres insuportavelmente bonito. Espero-te bem. Lamento teres tido que rapar esses gloriosos caracóis. Ah, e lamento pela Luísa. Afinal preferia morenos. Tans pis.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasTemos de falar sobre isto Com mais de cem anos de prática de ciência a sério no lombo, já era tempo de falarmos mais seriamente das charlatanices que vamos aceitando porque erradamente, lhes atribuímos uma inocente função paliativa. Sim, eu sei o que é olhar nos olhos de uma pessoa cuja réstia de esperança ficou no chão do consultório do oncologista. Eu sei o que é perceber subitamente a radical impotência das palavras e dos gestos perante o mais absurdo desespero: «mas eu sinto-me bem… Como é que é possível que isto esteja a acontecer quando eu me sinto tão bem, é só uma dor aqui junto às costelas, mas nem é nada de mais…» A medicina tem de lidar muitas vezes com a questão do fim de vida. Nem sempre o faz bem, muito especialmente em Portugal e nos países onde existe uma forte tradição de a família se substituir ao doente quando um diagnóstico é especialmente difícil. Mas tem de lidar com isso; não pode dizer «olhe, não perca a esperança porque pode acontecer um milagre». Não digo que milagres não aconteçam. Mas um milagre, do ponto de vista da medicina, é apenas um fenómeno para o qual ainda não temos uma explicação adequada. É qualquer coisa ao modo da Terceira Lei de Clarke: «qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.» Quando a medicina capitula, consciente dos seus limites tecnológicos e éticos (sim, há uma ética em comunicar o fim, uma ética sobre a qual se funda, aliás, todo o edifício do que deve ser o comportamento adequado de um médico) entra então sorrateiramente a chamada «terapia alternativa». Normalmente, não promete a cura. Regra geral, as terapias alternativas são astutas em relação ao que oferecem (até porque a única coisa que têm, de facto, para oferecer, está do lado do paciente e reside na capacidade que este tem de ser sugestionado). Não podem oferecer uma cura, pelo menos ao modo da medicina, porque não a têm. Pelo que têm de percorrer caminhos tão alternativos como o adjectivo que as qualifica. Na maior parte das vezes, dizem-se preventivas: nesse aspecto são uma espécie de «medicina» no sentido grego da palavra: uma forma de vida cujo objectivo fundamental é preservar a saúde e impedir a doença. Mas quem muitas vezes lá chega já está para lá desse pináculo. Precisa de soluções. Não podendo prometer curar o cancro (e, ainda assim, alguns têm o descaramento moral de o fazer, sendo essa forma de exploração da fragilidade alheia um dos rostos mais asquerosos da ganância humana) advogam toda uma panóplia de mezinhas para «tornar a vida mais confortável», «ajudar com os efeitos secundários», «lidar com a dor» e, com alguma esperança (quase sempre albardada no lombo do paciente que «tem de ter fé no poder se curar!», recaindo sobre este o motivo do sucesso ou insucesso da terapia), «prolongar a vida» ou mesmo «ousar o milagre», coisa que dizem quase em surdina, acendendo assim uma luzinha na consciência do desesperado sem se comprometerem em demasia. Dir-me-ão «mas que mal tem? as pessoas precisam de esperança!» Não. O que as pessoas precisam, e essa é uma comodidade relativamente em desuso nesta época, mal-grado os nossos avanços tecnológicos e a nosso orgulho na modernidade, que usamos como um brinco de pérola à orelha, é da verdade. Da radical e muitas vezes dolorosa verdade. Porque essa é que nos permite traçar um caminho exequível com o pouco tempo que nos resta. Sim, estamos todos a prazo. Muitas vezes, o prazo chega anuncia-se mais cedo e nesse tempo, nesse pouquíssimo tempo que nos resta, precisamos de estar atentos àquilo que de facto nos pode iluminar, mesmo que por breves segundos apenas, o rosto. Não precisamos de todo daqueles que antes mesmo de nos termos findado já nos vêm somente como carniça, caveiras sorridentes para onde riem enquanto nos metem as mãos nos bolsos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs homens que abrem caminho Tinha dezasseis anos quando o meu pai morreu. Tinha dezasseis anos e alguma esperança de que o meu mundo estivesse finalmente a melhorar. Chegado de França com dez anos e portador de uma infância basicamente infeliz, Portugal constituía-se como um reduto possível de familiaridade no qual eu conseguiria limar os aspectos mais anti-sociais da minha personalidade e, finalmente, fazer amigos. Não foi de todo assim. Fui recebido com a estranheza a que os imigrantes são normalmente votados. Trazia ainda muita França em mim. Não era só o meu mau-jeito social que tinha de desbastar, era também a minha roupagem gaulesa, os meus modos demasiado reservados, algumas palavras que teimavam em não sair em português. O facto de ter uma consola (ainda que pré-histórica) e um zx spectrum a cassetes ajudou a levar alguns amigos a casa. Pela primeira vez na minha vida, os miúdos não me viam apenas como o nerd sem jeito para jogar à bola ou andar de skate e cujo passatempo era falar apaixonadamente de astronomia e ficção científica. Eu era, ao lado disso, um nerd com brinquedos fixes. Numa altura em que Portugal corria já sem fôlego atrás de uma Europa orgulhosa da sua abundância, ter brinquedos fixes era um atributo social nada despiciendo. Pouco a pouco, fui sendo convidado para aniversários, matinés com banda sonora de Europe regadas a sumol de ananás e idas à praia quando o sol algarvio começava a despontar. Passei de ser tolerado a ser aceite. Para um solitário como eu, que já tinha feito contas à vida e ao futuro e que aspirava socialmente, no máximo, a não morrer virgem aos quarenta e poucos, nada mau. Quando o meu pai morreu, eu tinha acabado de experimentar a adolescência na sua componente de excessos irresponsáveis. Era quarta-feira de cinzas e eu estava de ressaca. Tinha saído na sexta, no sábado, na segunda e na terça e em cada um desses dias eu tinha bebido mais do aquilo a que estava habituado. Pela primeira vez na minha vida, tinha contacto, ainda que muito difusamente, com o conceito de ressaca. Pela primeira vez na minha vida, percebia o significado de «dia seguinte». O meu pai morreu em casa, nos meus braços. Demasiado repentino, demasiado cedo. Tínhamos finalmente descoberto o filão de uma linguagem comum. Já não passávamos um pelo outro no corredor como dois estranhos que se cruzam numa estação de comboios. Vê-lo partir assim, antes de ser possível recuperar as centenas de abraços que não demos e todas as ideias que não trocamos, arrancou um bom pedaço de mim. O edifício não cai apenas porque se vota parte dele ao abandono e se cola o restante com cuspo. Há uns dias morreu-me um amigo, o Cândido. Tive a sorte de conhecer e o azar de não o ter conhecido há muito mais tempo. Era um homem maior do que o corpo que habitava (e não era nada pobre em corpo, diga-se de passagem) e morreu cedo. Teve a sageza de privilegiar sempre na sua vida a generosidade e o acto de distribuir o que fosse com as mãos abertas em flor. Era uma espécie de líder tribal que conseguia congregar à sua volta novos e velhos, família e amigos, conhecidos e desconhecidos com uma autoridade natural que decorria de uma espécie de budismo heterodoxo, súmula escolhida a dedo daquilo que a vida lhe tinha posto diante em cada momento. Actor portentoso, talvez a Comunidade do Pacheco tenha sido o texto que mais prazer lhe deu levar a cena. Não por acaso: se há uma palavra que o Cândido abraçaria com aqueles braços capazes de envolver o mundo e o levar ao peito seria essa mesmo. Comunidade. À Blau, à Marta e ao Ivo, o meu abraço possível. Até já, camarada, e quando estiveres com o meu pai diz-lhe que já faltou mais.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDa infância Bukowski escreve algures, num poema dedicado ao pai: «mas sobrevive-se: o suicídio antes dos dez anos / é raro.» De facto, a infância e adolescência do velho tarado não foram propriamente fáceis: a um pai autoritário e austero que lhe aviava copiosamente a malinha quando para aí virado juntava-se uma mãe absolutamente conivente com o programa pedagógico do marido. Como uma desgraça nunca vem só, na puberdade aparece-lhe um camadão de acne tão grande que tem de ficar em casa quase um ano para não ser diariamente humilhado na escola. A minha infância está longe de comportar tamanha quantidade de desastres. E, ainda assim, foi tudo menos feliz. Nasci em França em 1974, em Clermont-Ferrand, a cidade-sede da Michelin, para onde acorriam imigrantes pobres à procura de trabalho. Escusado dizer que a vida de imigrante não é fácil. O meu pai aprendeu francês já adulto e tinha um sotaque característico ao falá-lo. A minha mãe, como esteve menos tempo em França do que ele, nunca chegou a saber mais do que umas frases balbuciadas a custo. Eu aprendi francês na escola, pelo que o meu vocabulário e sotaque eram os de um nativo (muita coisa, no entanto, se foi perdendo com o tempo). Mas, mesmo assim, os meus coleguinhas trataram de nunca me fazer esquecer de onde vinha. Eu era imigrante. Estava lá como convidado. Tinha de me portar bem, deixá-los passar à frente e corresponder aos estereótipos. Ser-se muito bom aluno não ajuda a fazer amigos. Ser-se muito bom aluno e imigrante é a garantia de que nunca se será convidado para uma festa de aniversário, que nunca se entrará na casa de um dos colegas de turma, que nunca se será seleccionado para um jogo qualquer no intervalo das aulas. A infância, despida ainda do verniz civilizacional que nos torna relativamente toleráveis e tolerantes, é a altura da vida em que um sujeito arranja cicatrizes que se entretém a lamber até ao fim dos dias. Os putos, capazes do melhor e do pior, conseguem ser extremamente cruéis de modo absolutamente gratuito. O meu pai matriculou-me num colégio de freiras. Como já estava em Clermont-Ferrand há alguns anos e tivera contacto privilegiado com os resultados do ensino público, decidiu esticar tanto quanto possível os cordões à bolsa e proporcionar-me uma educação privilegiada. Eram poucos os filhos de imigrantes na minha escola. Os nativos – os legítimos – já achavam a minha presença pouco condizente com aquilo que era esperado de mim, enquanto filho de imigrantes pobres, em França. Ser bom aluno era apenas acrescentar insulto à injúria. Os filhos dos emigrantes portugueses eram conhecidos em França – com mais ou menos justiça na composição do retrato – por serem uns rufias semi-abrutalhados com apetite precoce por vinho tinto. Os seus pais eram homens e mulheres atarracados, com modos campestres, que resolviam desavenças de vizinhança de machado em punho. Nem eu nem os meus pais correspondíamos ao retrato-robô. Não me foi difícil escolher entre ficar em França ou regressar a Portugal quando o meu pai me propôs, aos 10 anos, essa escolha (note-se que «regressar» nesse sentido era um conceito vagamente metafísico – como regressar quando nunca foi a casa o sítio para onde se «regressa»?). Nada tenho contra os franceses, muito menos contra os miúdos que, à altura, apenas estavam a ser o que são os miúdos um pouco por todo o lado. Mas eu era tremendamente infeliz em França. Tão infeliz que sair dali para Portugal e chamar-lhe regresso ou para qualquer outro sítio era irresistível. Que guardo de bom? O sabor das galettes na padaria perto de nós; alguns gestos esparsos mas importantes de amizade e de carinho; a forma como alguns professores olhavam para mim e que me enchia de orgulho e acendia alguma esperança. A minha sorte, em relação a quase tudo o resto, foi ter péssima memória a longo prazo. Quando olho para trás é como se aquela criança fosse outra pessoa e não eu. Acedo aos vestígios do seu passado com algum distanciamento saudável. E, ainda assim, não consigo evitar sentir pena dela.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDepois de grande No dia 2 de Abril assinalou-se o dia mundial da consciencialização do autismo. Já escrevi um par de crónicas aqui para o Hoje Macau sobre o assunto; nem sempre o faço, nem sempre tenho a energia para voltar a dizer mais ou menos as mesmas coisas a pretexto de divulgação pedagógica ou de página de diário. Há imensa gente a trabalhar todos os dias para desfazer os mitos acerca do autismo e das suas consequências, para quê acrescentar ao ruído? Na verdade nada tenho a dizer sobre o autismo, essa constelação tão vasta e desconexa de características. Nunca conheci dois autistas iguais. Mas reconheço um autista ao longe. É como se o autismo fosse uma nacionalidade e não uma condição: a gente percebe que todas aquelas pessoas, muito diferentes umas das outras, vêm do mesmo sítio. Sabemos muito pouco acerca dos factores que espoletam o seu aparecimento (daí proliferarem tantos charlatães a fazer dinheiro à conta do desespero dos pais). Não há medicamentos, as terapias que existem são extremamente caras e apresentam resultados muito díspares e mesmo os melhores profissionais e as melhores práticas não garantem qualquer melhoria significativa. O meu Guilherme vai fazer dezoito anos em Setembro. Não fala. Não consegue abrir a porta de um armário para roubar um pacote de bolachas. Não sabe limpar o rabo depois de ir à casa de banho. Não consegue dizer se lhe dói alguma coisa ou onde lhe dói. Tende a meter tudo quanto é migalhinha à boca (uma condição chamada «pica»). Nunca beijou uma rapariga (ou um rapaz). Não gosta de desenhar, de colorir, de fazer puzzles ou legos, de brincar com outras crianças (ou não sabe). Tudo quanto gosta de fazer é de ver desenhos animados na televisão ou no telemóvel. É surpreendentemente ágil a deambular nos seus vídeos preferidos do Youtube e nesse aspecto maneja um telemóvel com a desenvoltura expectável para um adolescente da sua idade. No próximo ano ou no seguinte deixa de ir para a escola (que funciona, para um autista com as suas limitações, mais como um centro de terapia ocupacional do que qualquer outra coisa). Não sabemos bem o que fazer com ele depois disso. Ninguém sabe. Os apoios aos autistas vão sobretudo no sentido de recuperá-los para uma vida tão normal quanto possível na maioridade. O investimento social e público pára por aí. Percebe-se. Há umas décadas, nem isso acontecia. Nem os autistas nem as suas famílias sabiam com o que lidavam. Eram simplesmente «atrasados», crianças atoleimadas incapazes de aprenderem a ler ou a escrever, excêntricos míopes para os códigos sociais, os tontos da aldeia. Quando os pais morriam ou se fartavam deles, eram entregues a uma instituição qualquer (quando esta existia) ou viviam da caridade alheia. Apesar da manifesta insuficiência dos apoios estatais e/ou sociais, demos uns passinhos desde então. Já existem algumas associações cuja vocação é acomodar a vida pós-escolar dos autistas. Mas são ou insuficientes e com longas listas de espera (vaga um lugar quando morre um dos seus usufrutuários) ou extremamente dispendiosas. Mas de que estávamos à espera num país que enfia os seus velhos em sítios onde não conceberia deixar o cão nas férias? A massificação do trabalho teve a consequência positiva de permitir a todas e todos prosseguirem uma carreira e serem independentes, mas acabou por desfazer a rede familiar e social que sustentava a possibilidade de uma vida condigna para os mais velhos e os mais frágeis. Vou saboreando este fim de festa enquanto a realidade não vem – mais uma vez – arrancar-me bruscamente ao meu torpor. Todos os dias me repito a mim mesmo que tenho de começar a pensar agora. Todos os dias adio. Chegará um dia em que não poderei adiar mais.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDa Certeza Não fomos programados para nos descobrirmos enganados acerca de qualquer coisa. Platão descreve a filosofia e o acto de filosofar como um «apego indespedível à verdade». Para o ponto de vista humano, a verdade é o oxigénio que permite toda a amplitude dos nossos registos, desde o mais quotidiano e aborrecido ao mais épico e inusitado. A verdade é o chão, a cor, o que sentimos e como o sentimos, a luz do amanhecer, as fórmulas matemáticas da infância tragadas à colherada, o preço das coisas, o princípio, o meio e o fim. Estar equivocado comporta graus de insuportabilidade distintos, dependendo do quão fulcral na constituição da identidade do sujeito – coisa que dificilmente sabemos e ainda mais dificilmente podemos prever – é aquilo sobre o qual nos encontramos «três pontos ao lado», para trazer novamente Platão à conversa. Pelo que percebo perfeitamente as pessoas que se agarram às suas crenças como se elas constituíssem o chão sobre o qual caminham; na verdade, é isso mesmo que sucede com as «proposições empíricas fossilizadas» como lhes chamava Wittgenstein, naquele opúsculo tardio «Da Certeza», escrito sobretudo como resposta ao «A Defense of Common Sense», um ensaio assaz estúpido de Morre, publicado em 1925. As mais diversas crenças, a maior parte delas absolutamente inconspícuas – por fazerem parte do ponto de vista, tal como as lentes dos óculos «fazem parte» do olhar – são o fulcro do sentido que constituímos diacronicamente e o diapasão da certeza pela qual nos guiamos, das tarefas mais elementares às mais complexas. A tensão indespedível que nos liga a essas crenças é fundamental para a sobrevivência. Imagine-se um tipo a duvidar da firmeza do chão, da salubridade da água da identidade diacrónica daqueles que ama? Não obstante, há que evitar confundir a necessidade absoluta dessa tensão para a verdade (pela certeza) com qualquer tipo de critério capaz de aferir a lógica do mundo. O facto de eu me sentir absolutamente convencido de que X é verdade ou certo não torna X um ou outro. Esta modalidade de certeza é, aliás, do domínio do operacional: constitui e mapeia o mundo sem se preocupar em inquiri-lo do ponto de vista filosófico (o que levantaria ao ponto de vista natural problemas capazes de entravar o quotidiano constituído que este tão arduamente defende). O senso comum, como bem aponta Wittgenstein, não precisa de defesa: ele é desde sempre o seu melhor e mais abrangente amparo. Tecer uma defesa do senso comum sem procurar determinar a sua constituição, âmbito e função dentro do ponto de vista é aportar uma solução para algo que, dentro do ponto de vista do senso comum, nunca foi um problema. É uma tolice. Moore 0 – Wittgenstein 1. O que não se percebe de todo é a razão pela qual uma panóplia de criaturas descendentes do bas-fond das ideias dos anos setenta (os newagers encravados entre o regresso de uma Índia em regime de pousada na praia e a incapacidade de dissiparem os efeitos do excesso de drogaria psicadélica consumida) se convence de que o amor (em forma de apego indespedível, como enunciado) que sentem por determinada tolice converte automaticamente essa tolice em algo com valor epistemológico. Não, o tarô não tem qualquer valor de verdade; a homeopatia não é uma alternativa à medicina (o que esta pandemia demonstrou amplamente, para quem ainda tinha dúvidas); os cristais são apenas composições da natureza e não portais para qualquer tipo de realidade vibrando ao lado da nossa; o teu interesse por medicina tradicional chinesa não te converte em médico de porra nenhuma – quando estiveres doente a sério nada do que estudaste te ajudará; não há conspiração 5G para te infectar o cérebro com o que quer que seja – para além de já toda a gente que quer saber por onde e o que fazes o saber, por conta do telemóvel através do qual lutas todos os dias contra o capitalismo e a opressão – ninguém quer saber do teu cérebro ou de ti. És apenas um átomo na constelação de big data através da qual o marketing poderá caminhar uns degraus em direcção ao panteão das ciências exactas. Não és especial. Quase ninguém o é. Respira e abre mão das tolices em que encontraste refúgio ou, pelo menos, admite a sua natureza epistemológica: no melhor dos casos, são apenas um jogo onde te distrais e vais aliviando o peso dos dias. Não curam ninguém, nunca o fizeram. Deixa-te de merdas.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDaqui para ali Mudei recentemente de casa. O registo relativamente inusual da pandemia e a queda a pique do turismo de curta duração fez com que um ror de casas very cozy and typical in downtown Lisbon ficassem vazias, tendo os seus donos sentido a necessidade – tudo menos altruísta – de as devolverem ao mercado de arrendamento de longa duração. Neste contexto de incerteza, e com o meu contrato a terminar em Setembro do ano passado, pensei que o meu senhorio – cuja filosofia não passa pelo alojamento local a suecos – ia ver com bons olhos uma renovação de contrato, pelo menos por um ano, até as águas clarearem e se perceber melhor a margem de extorsão passível de ser aplicada aos arrendatários à luz do olhar imparcial do mercado. Para minha surpresa, o senhor tinha planos inadiáveis para a modesta habitação que eu partilhei durante largos anos com o Rim e o Croquete, os meus dois gatos: queria fazer obras de fundo e colocá-la num segmento superior do mercado de arrendamento. E não ia ser uma pandemia a demovê-lo. A ideia de mudar de casa, em Lisboa, sempre se me afigurou como um pesadelo. Além das complicações normais decorrentes de uma mudança – o transporte, o reequacionar de mobiliário e pertences, os livros que NUNCA cabem em lugar nenhum – há a questão não despicienda da inflação galopante no mercado de arrendamento. Uma pessoa faz um contrato e passados três meses apenas já se sente afortunada por estar a pagar um valor que no momento da assinatura contratual lhe parecia abusivo. A pandemia, se alguma coisa de bom teve, foi a devolver alguma sensatez – ainda que parcelar e naturalmente transitória – a um mercado cujo fervilhar hormonal prometia enviar todos os remediados para a orla mais distante da subúrbia. Como se costuma dizer, há males que vêm para bem. Consegui encontrar uma casa – que uma amiga minha arrendava até no final do ano passado comprar uma casa bem longe de Lisboa, visto que não lhe apetecia continuar a pagar para estar num parque de diversões de usufruto alheio – muito perto daquela onde estava, a preços razoavelmente humanos e, para meu grande contentamento inesperado, com um pequeno mas glorioso terraço por onde o sol vagueia à tarde e de onde se vê Lisboa a namorar com o tejo. Uma casa em Lisboa a preços comportáveis é um achado; uma casa com terraço e vista devia ser passível de entrar no registo testamentário de bens legáveis a família ou amigos em registo de direito preferencial de opção. Claro que nem tudo é maravilhoso. A casa é último andar, os tectos são baixos e há zonas esconsas onde já deixei algum escalpe. Termicamente, é muito mais agreste do que o meu primeiro andar antigo generosamente ensanduichado entre dois pisos. O problema maior, no entanto, é o facto de as divisórias entre andares serem tão finas que consigo ouvir tudo quanto a minha vizinha de baixo faz em casa. É uma espécie de janela indiscreta sobre a vida alheia na modalidade auditiva. A minha vizinha é uma senhora idosa e bastante surda. Há decerto muito tempo que o controlo do volume de voz encravou nos nove. Não deve – como muitos idosos – ter dinheiro para comprar um aparelho auditivo (que são estupidamente caros), pelo que fala alto, atende o telefone como se tivesse a anunciar um incêndio e quando liga a televisão é como se vivesse comigo. Há muito tempo que optei por não ter antena ou serviço de subscrição televisão. A maior parte das coisas que estes oferecem não me interessam; as poucas que me interessam vejo-as alhures. Infelizmente, neste momento estou exposto das dez da manhã às dez da noite à procissão de conteúdos inenarráveis que os nossos três canais generalistas oferecem à população idosa. Qualquer dia ainda mando vir uma caixa de calcitrim. A verdade é que o aspecto mais dramático desta situação é pensar que dezenas de milhares de velhotes cuja idade acaba por incapacitar para as actividades que os afastavam do ecrã em tempos acabam por ter como única companhia a televisão e o seu chorrilho de disparates. São pessoas que cresceram em condições difíceis, sem acesso à educação e sem hábitos de leitura. A minha vizinha, acaso tivesse adquirido o gosto pelos livros, em vez de partilhar acriticamente uma realidade absolutamente desinteressante com todos aqueles que assistem aos mesmos programas ao mesmo tempo, podia escapulir-se através da janela sempre receptiva das páginas de um livro e alimentar paisagens interiores capazes de se bastarem a si mesmas e de frutificarem nas conversas com os outros. E isso tudo, muito convenientemente para mim, em silêncio.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasCoisas de tempo e de lua Os meus avós viveram toda a vida num sítio chamado Vale de Ebros, um ermo no interior algarvio, sempre a subir para quem vem de Cacela Velha, a estrada serpenteando naquela cacofonia de montes e vales onde pequenas courelas competiam por sol e água, a certa altura o alcatrão desaparecia, desapareciam também os postes por onde telefone e luz circulavam e tínhamos de fechar as janelas do carro, mesmo em pleno Verão num carro sem ar condicionado, e se eu me esquecia porque ia a ler (não leias no carro, que ficas cego antes de tempo!), o meu pai virava-se para trás e fulminava-me com um olhar que a memória tratou de adocicar até dele só restarem saudades. A distância que ia da nossa casa em Tavira até à casa dos meus avós era medida em tempo: o tempo que se levava a chegar lá e o tempo a que se recuava na chegada. Lamparinas de petróleo, água de cântaro, uma fogueira generosa para nos receber na cozinha, o meu avô, já tremelico de mãos, a servir-nos uma malga de cozido (couves, carne de porco, o melhor chouriço que já comi na vida) e a minha avó a varrer o soalho de pedra com uma vassoura de palha. De repente, o passado. Para um miúdo que crescera em França, bastião de primeiro mundo orgulhosamente tecnológico, a casa dos meus avós tinha tanto de fascinante como de assustador; faltavam-lhe interruptores, televisão e demais impulsos digitais tranquilizadores. Quando ia dormir, soterrado por camadas infindáveis de mantas ásperas (dias de infernal calor, quarenta graus de um sol capaz de chamuscar a orla do inferno, noites gélidas em que a geada, mesmo no Verão, queimava as folhas mais frágeis), a minha avó vinha apagar a lamparina e aconchegar-me no seu algarvio indisfarçável «drome filho, drome». Eu passava imenso tempo a tentar perceber de onde vinham os ruídos que me acompanhariam noite fora e que, na minha cabeça, pertenciam a criaturas muito mais fantásticas do que os mochos e insectos de onde me afiançavam originar. Certa noite mais amena, estava eu e o meu avô no alpendre, a olhar para aquele céu estrelado que acontece somente nos sítios onde a civilização rareia, comentei, apontando para a lua «já viste, avô, é incrível já termos ido lá, não é?», ao que o meu avó me respondeu, como se eu fosse meio atrasado «lá onde, filho?», «à lua, avô, Neil Armstrong e os outros dois, uma das maiores aventuras da história dos homens», e o meu avô, cada vez mais convencido de que eu tinha um problema qualquer, «ó filho, mas tu acreditas em tudo o que te dizem», prosseguiu, entre o paternalista e o preocupado, «já viste o tamanho da lua, como é que achas que alguém podia ir para lá? E fazer o quê?», «é maior do que parece daqui», comentei, «na verdade é grande o suficiente para construir cidades. Um dia até poderemos viver lá. Nós não, mas no futuro…», «ó filho», continuou ele, desanimado, «tens de ter cuidado com o que te dizem. Há gente muito má por aí. E tu és novo. Cautela.» Nunca consegui convencer o meu avô de que a lua era maior do que ele a via ou de que havia pessoas tão reais como ele que tinham caminhado sobre o seu solo, também este tão real como uma porção de terra ressequida por onde se passa entre sítios. Entretanto, os meus avós morreram. O Vale de Ebros é ele próprio uma espécie de paisagem lunar; deserto, destroços do quotidiano espalhados aqui e ali, um carro enferrujado deixado ao abandono, um cenário pós-apocalíptico pouco condizente com a vida síncrona com as estações que há apenas vinte anos se avistava da estrada a caminho. O telhado da casa dos meus avós desabou. É um mundo que finda, uma porção de passado à qual deixa de ser possível regressar, um continente que se afasta. Sob o olhar atento da lua.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasEstá quase, já passou Daqui a pouco, a Primavera. Que faremos então com tanto sol? É mais fácil confinar no Inverno; mais intuitivo. É mais fácil respeitar as regras de distanciamento social, as recomendações de que se evitem contactos desnecessários, as proibições das festas. A Primavera – onde ela existe – foi sempre uma época de renovação e de festejo; está ligada a bonança das colheitas, à fertilidade, ao engordar do dia. Os animais reaparecerem na Primavera e pontuam a paisagem onde tudo quanto é verde se estende em direcção ao sol e ao céu. Tudo é mais suportável na Primavera. Esta poderá ser a segunda Primavera de que seremos subtraídos. Pouco me importa que me levem o Inverno e boa parte do Outono; está frio, chove. Podem ficar com os poucos dias de clemência meteorológica. Já a Primavera é outra coisa. É como acordar de um longo sono salpicado de sonhos oblíquos e estranhos estados de vigília e não poder sair da cama para celebrar a vida na igreja das coisas. Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente. Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato. Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado. Do que me lembro bem era do cheiro acre da terra na Primavera, do meu pai procurando os meus dedos magros e frágeis para me ajudar a passar por um curso de água, dos gaios para que apontava com minúcia de coleccionador. Da Primavera que tudo renova.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasUm sol inesperado Há praticamente um ano que andamos nisto. Aprendemos entretanto palavras novas (aprendemos a repetir palavras que não esperávamos um dia dizer). Deixamos a vida à porta quando entramos ou saímos de casa como um guarda-chuva encharcado. Na verdade, não sabemos bem o que fazer com ela enquanto ela não volta. É o mais longo intervalo de que tenho memória nesta relação que já dura há uns bons anos. Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu. A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte. E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos. Uma muito querida amiga minha engravidou. Talvez esta seja a pior altura para se engravidar (ou para qualquer tipo de acontecimento que celebre a vida em geral). Mas a vida não alimenta a metafísica com que lhes revestimos os ossos. Ela acontece. E acontece no momento em que alguém expira pela última vez e volta a acontecer – sempre cegamente, sempre sem tomar qualquer partido – quando alguém inspira pela primeira vez. É maravilhosamente caótica, é tenaz e salpica irrestritamente os sítios por onde passa com a bonança da sua criação. O Francisco nascerá este ano. Ouvirá muitas histórias a respeito do ano da sua vinda. Talvez acabemos por falar desta pandemia como os antigos falaram da pneumónica (a gripe espanhola de 1918), sem as terríveis consequências a nível de mortalidade – esperemos – que esta última acarretou. Se tudo correr excepcionalmente bem, talvez acabemos por somente com algum esforço de rememoração nos lembrar deste intervalo. O Francisco, para mim, carregará o augúrio do símbolo deste ciclo de renovação e continuidade, os dedos que se tocam no princípio e no fim de tudo, a história que se faz entregando corpos ao berço e à cova. O Francisco é um sol inesperado desfazendo uma neblina de gesso.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDa vergonha Confesso-vos: não tenho jeito para ser português. Não nutro aquele entusiasmo irrestrito por tudo quanto é luso e que, não raras vezes, se traduz em profusas hipérboles capazes unicamente de me causar vergonha. Vergonha talvez seja a palavra certa para descrever o que se tem passado no rectângulo desde que chegou o primeiro lote de vacinas para a COVID. Não duvido que em Espanha, França e Estados Unidos aconteça um pouco do mesmo que se tem passado por cá. Mas a coisa aqui assume contornos de grotesco pelo facto de aqueles apanhados com a boca na botija – ou com a seringa no braço, para ser mais preciso – não sofrerem quaisquer consequências excepto um muito transitório vexame público. Além de não se mostrarem especialmente arrependidos, arranjam toda a sorte de justificações para justificarem o injustificável num estado democrático: o facto de terem abusado do poder conferido pelo lugar que ocupam para subtrair uma ou mais doses de vacinas a quem mais precisava. Em Março do ano passado escrevia aqui nesta coluna que estes momentos de crise acabam por ser uma espécie de janela e de espelho. Uma janela no sentido em que cada um de nós assiste ao outro revelando-se – como o conhecíamos ou como nunca imaginamos que seria – e assiste – mais ou menos satisfeito com o resultado – à sua própria revelação. Uma coisa é a ética em conversa de café; outra, muito diferente, é como cada um de nós reage numa situação excepcional. Somos capazes dos mais desobrigados sacrifícios e do mais abjecto egoísmo. A história é uma sucessão de homens que, perante a adversidade, cresceram ou mirraram. O que tem vindo a lume, porém, são maioritariamente histórias do pequeno abuso de poder tão costumeiro em Portugal. Autarcas cujo ego não cabe no reflexo do espelho, convencidos que estão isentos do cumprimento das regras do jogo democrático; pequenos dirigentes intermédios de organismos públicos habituados a levar resmas de papel do escritório para casa a colocarem na lista dos vacinados prioritários mulher, filhos, sogra e periquito; a malta rés-do-chão da hierarquia logística cujos dedos pegajosos alimentam diariamente a estatística do desperdício nos serviços públicos a desviarem aquilo que podem, vacinas incluídas. Portugal em dois vocábulos: desenrascanço e jeitinho. Por isso tremo quando ouço falar de qualquer tipo de multiplicação de poderes locais. Seja por via da divisão de território para a criação de Juntas de Freguesia adicionais, seja por via da regionalização, uma daquelas bandeiras clássicas que a pretexto de aproximar o poder do povo serve unicamente para distribuir umas migalhas suplementares pelos indefectíveis do partido (qualquer que ele seja). Portugal tem cerca de dez milhões de pessoas – o tamanho de uma cidade média na China – mas só estaremos satisfeitos quando cada um de nós for uma minúscula dependência autárquica por onde passem uns cobres públicos aos quais possamos deitar mão. Imaginem então os poucos mas prezados leitores quando chegarem os fundos da bazuca europeia. Não há partido que não salive pela cascata de dinheiro prometida. A pretexto do hidrogénio verde, da TAP ou dos bancos cronicamente de cuecas – ao contrário dos seus gestores, impados de tanta opulência – o dinheiro há-de desaparecer à vista de todos como a água da chuva numa sarjeta (ou melhor, até, porque não consta que os bolsos desta gente alguma vez entupam, por mais que se lhes despeje dentro). O ideal, acaso queiram a minha opinião, é implementarmos uma cláusula através da qual se exclua automaticamente dos lugares de poder todo e qualquer cidadão de nacionalidade portuguesa. Portugal é um país com boa comida, um clima fantástico e algum potencial geográfico. Só falta quem, desinteressadamente, ponha mão nisto.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasUm locutor de trailers Um sujeito calha a estar num sítio com televisão à hora em que começa o telejornal da noite. Este abre, como não podia deixar de ser, com o resumo diário do estado da pandemia em Portugal. O que não é normal, porém, é a montagem da peça: enquanto o jornalista de Auschwitz relata o quotidiano dos hospitais e os números da pandemia, sucedem-se planos rápidos do interior de uma unidade de cuidados intensivos. Os doentes, de bruços sobre a cama e entubados, são filmados em registo de puzzle: enquadra-se um braço inchado e imóvel, um olho fechado e – o preferido de quem filma ou de quem edita – o tubo por onde circula o oxigénio entrando na boca do paciente. Quando não incide sobre os doentes, a câmara mostra os médicos – cujo equipamento faz eco dos filmes apocalípticos tão em voga neste início de século – deambulando pelas camas dos pacientes, os dispositivos que monotonamente oxigenam os pulmões, um enfermeiro a desfraldar a agulha de uma seringa, o pormenor de uma viseira. Tudo isto ao som da máquina que faz bip. Para quem, como eu, não costuma ver televisão, o registo da peça é, no mínimo, desconcertante. Que aconteceu à sobriedade enfadonha com que se costumava abordar os assuntos mais sensíveis? Que é feito da circunspecção e da reserva que os doentes nos cuidados intensivos e os seus familiares em casa merecem e quase certamente apreciariam? A filmagem e edição são muito mais condizentes com um trailer de um telefilme apocalíptico de série B do que com uma peça informativa emitida à hora de jantar. Eu lembro-me de dar conta, há meia dúzia de anos, de que o canal National Geographic – antes uma coisa razoavelmente soporífera a que se assistia em família, no domingo à tarde, depois de almoço – passara a ser uma espécie de sucedâneo, em registo vida animal, dos piores filmes de acção de Hollywood. “The solitary lion will be confronted with its worst nightmare in just a couple of hours. Its archenemy, the hyena, is after him and packs a powerful bite, one of the most powerful in the predator world. Let’s compare stats and so we can forecast the outcome of this epic battle!” Nada disto – deste tom entre o comentário de wrestling e o filme de acção – me interessa. Nem percebo que possa interessar a alguém. A vantagem que eu via nos programas sobre a natureza – além da contemplação na segurança do sofá daquilo que é exótico – era a de oferecem um contraponto em termos de formato e de estilo para a restante programação televisiva. Outrora, cada programa tinha um registo muito próprio. Era impossível confundir o 70 x 7 com a Tieta do agreste ou o Telejornal com o Big Show Sic. Era uma das coisas que apreciava na televisão – enquanto apreciei televisão – havia conteúdos para – mais ou menos – todos os gostos. Lembro-me bem de assistir ao Monty Python Flying Circus na RTP2, já muito a desoras, ou ao Northen Exposure, ou ao Hill Street Blues. A televisão de agora – e posso estar a ser tremendamente injusto nesta generalização, tendo em conta o pouco a que assisto – parece mais ou menos toda criada pela mesma cabeça tentando parecer, em cada um dos seus ângulos, uma coisa diferente. É tudo confrangedoramente épico – tudo o que é e tudo o que não é. Faz lembrar o Manuel Alegre a ler uma ementa de um restaurante armado em cama de espargos. Ora este tipo de registo, num telejornal, só contribui para, em vez de suscitar a reflexão por via da notícia – sóbria, objectiva e ponderada –, amedrontar aqueles que já têm medo e afastar os que passaram a desconfiar do jornalismo convencional, não servindo, portanto, a ninguém. A vida, no que tem de bom e de mau, é desigual, múltipla, dinâmica. Como escrevia Wittgenstein no Tratactus: “O mundo é tudo o que é o caso”. Não me parece que o mundo ou a vida possa ser adequadamente reflectidos, em toda a sua complexidade e beleza, por um locutor de trailers de maus filmes.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasUma questão darwiniana Um sujeito senta-se para escrever uma crónica depois de uma interrupção de mais de um mês e pensa: deve certamente haver um assunto sobre o qual valha a pena discorrer que não gravite à volta da pandemia e dos seus efeitos. Quase toda a gente escreve diariamente sobre a COVID. Mais do que esclarecer ou ajudar a dissipar a bruma noticiosa na qual navegamos à vista, a multiplicação interminável de opiniões contribui para adensar o ruído e concorre para a confusão instalada. A “Era da informação”, como era gloriosamente apelidado o acontecimento da Internet e da comunicação global em tempo real revelou-se, afinal de contas, a era da confusão, e um sujeito, em vez de ter mais informação disponível e informação de maior qualidade, vê-se pelo contrário a navegar num charco onde a maior parte daquilo que pretende passar por informação é apenas opinião infundada amplificada pelo meio que a veicula. Há apenas uma vintena de anos, o futuro parecia risonho. O século XXI prometia acabar com o cancro e a maior parte das doenças, com a fome ainda escandalosamente instalada nos países mais pobres e até se falava na possibilidade cada vez mais presente de descobrirmos por fim que não estamos sozinhos no universo. Talvez não estejamos tão longe de cumprir alguns dos desígnios a que nos propomos. Talvez o século XXI acabe por ser estupidamente generoso do ponto de vista técnico. Todos os dias milhões de mulheres e de homens trabalham – com meios técnicos cada vez mais sofisticados – para tornar a nossa vida mais fácil, mais prazerosa e menos propensa aos achaques com que a natureza nos presenteia desde sempre. A esperança média de vida aumenta todos os anos. A sobrevida ao cancro, um dos grandes ceifeiros planetários, também. Erradicámos a varíola. A poliomielite. Estamos no caminho certo para desacelerar e, porventura, travar esta pandemia. Nunca tivemos tantos recursos para o fazer. E, no entanto, subsiste – e não tão discretamente assim – uma aura de desesperança que perpassa todos os estratos sociais e aspectos do quotidiano. Durante muito tempo pensei que seria razoável alocar grande parte da responsabilidade pelo estado-de-coisas desanimador na estupidez generalizada e na aridez espiritual de que nenhuma técnica ou artefacto nos consegue aliviar. Por mais tecnicamente competentes que nos tenhamos tornado, cada homem e mulher continua a nascer tão oco como no início dos tempos. Acresce ainda a dificuldade de cada vez haver mais para conhecimento produzido por apreender, digerir e integrar. A educação, no sentido helénico do termo, continua a ser um percurso e uma responsabilidade individual. Pode ser que estejamos tão entretidos com a passagem do tempo e com a necessidade de preencher avidamente cada segundo desse andamento que não prestemos a devida atenção ao vagar, ao silêncio e ao que está mesmo ao nosso lado, a pedir olhos que vejam e mãos que cuidem. A minha tese no entanto, é por um lado mais optimista – no sentido em que isto não será um estado-de-coisas permanente – e mais pessimista – no sentido em que as coisas não melhorarão antes de piorar. Eu acho – sem qualquer fundamento científico que suporte esta tese, mas há ideias demasiado atractivas para não serem partilhadas – que estamos a viver, enquanto humanos, em pelo menos duas velocidades evolutivas diferentes. Parte da humanidade é ainda homo sapiens, o homem moderno cujos fósseis mais antigos foram descobertos em África e datam de há quase trezentos mil anos atrás. Tudo muito bem, o homo sapiens deu-nos as equações newtonianas, a relatividade geral e especial, Bach e o barroco e os antibióticos. Mas talvez já se esteja a esgotar – ou mesmo a regredir – do ponto de vista evolutivo. Outro homem, mais adaptado às circunstâncias deste mundo, delicadamente em equilíbrio entre o espírito e o chip de silício, reclama o seu lugar e, a seu tempo, uma nova classificação. Embora partilhem geografias, língua e cultura, um e outro nãos e entendem. Aquilo que promovem e pretendem, para si e para os outros, é radicalmente distinto. E este acontecimento, este choque evolutivo, não se dissipará sem que uma espécie erradique a outra.