Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma alegoria Uma alegoria Bukowski correspondeu-se com Barbara Frye – a sua primeira mulher, pelo menos de papel passado – durante algum tempo antes de se conhecerem em pessoa. Ela era editora da revista de poesia Harlequin, sediada no Texas, uma das muitas publicações independentes, na América dos anos cinquenta e sessenta, cuja vocação principal era a descobrirem e dar voz aos poetas que de outro meio contavam apenas com edições de autor e um público especializado mas muito restrito – a maior parte estava nessa situação. Bukowski escapara à morte por um triz, em 1955, quando uma úlcera hemorrágica o atirou para as urgências dos desvalidos do Hospital de Los Angeles. Precisou de inúmeras transfusões de sangue e, como não tinha seguro, estava dependente de ter crédito de sangue no hospital; não tinha. Acabou por ser o crédito de que o seu pai dispunha que o salvou – tendo em conta o quanto odiava e desprezava o seu pai não deixa de ser uma cruel ironia ter sido ele a salvá-lo, mesmo que de forma mediada. Não tinha ainda publicado poesia. A sua primeira plaquete acaba por sair em 1960 com o título «Flower, Fist and Bestial Wail». Sem poder beber – como estava habituado a beber – atira-se a entupir as caixas de correio das dezenas de revistas especializadas em poesia nos Estados Unidos com poemas seus e, não raras vezes, longos lamentos acerca do seu génio não reconhecido. Numa das cartas, para um editor literário do Novo México, Judson Crews, escreve «ou publica estes poemas ou suicido-me». Judson for lesto a devolvê-los. Quando Barbara acede a publicar os seus poemas na Harlequin, tecendo-lhes e a Bukowski rasgados elogios – diz considerá-lo o maior poeta da língua inglesa desde William Blake –, estabelece-se imediatamente uma relação. Rapidamente o plano profissional dá lugar à troca de entusiasmos e queixumes. Ela lamenta-se repetidamente de poder nunca vir a casar, visto ter uma deformidade física que afasta os homens – faltavam-lhe duas vértebras no pescoço; além de não conseguir virar a cabeça, dava a sensação, a quem a via, de que ela estava sempre de ombros encolhidos. Cansado daquela ladainha, e de certo modo familiarizado com a noção ser preterido pelo aspecto, Bukowski certa noite escreve-lhe uma carta (provavelmente bêbedo) em que lhe garante não ser por meras duas vértebras a menos que Barbara iria ficar solteira. Ela era uma rapariga simpática e inteligente e, afiança, ele próprio casaria com ela se ela assim o quisesse – o equivalente dos anos cinquenta, hoje em dia, às mensagens de Facebook depois de uma noite de Incógnito. Passados uns dias e esquecido do conteúdo da missiva que enviara, recebe uma carta de Barbara na qual ela diz aceitar o seu pedido, assim como algumas fotografias dela própria. Aí sim, Bukowski assustou-se. Ainda assim, combinam encontrar-se em Los Angeles; ele fica de esperá-la na estação rodoviária. Mas Bukowski tem um plano: coloca-se num sítio pouco visível de onde pode vê-la sair do autocarro à socapa. Acaso ela lhe pareça tão terrivelmente disforme como ele a antecipa, pisgar-se-á dali como se nunca tivesse lá estado. As desculpas ficarão para depois. Mais vale perder a oportunidade de publicar numa revista do que hipotecar o já de si precário futuro, pensa. Quando a avista, pensa «olha, acho que é possível». Passado algum tempo, casam em Las Vegas. O casamento, repleto das atribulações típicas da vida de Bukowski, dura apenas dois anos. Barbara Frye morre em circunstâncias misteriosas, na Índia, em 1984. 2020 é capaz de ser a Barbara Frye das nossas vidas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO gato desejável [dropcap]H[/dropcap]á quem os deteste e a quem não possa passar sem eles. Há quem lhes seja alérgico e quem os ache a melhor companhia do mundo. Há quem assegure que são demoníacos. Há quem os acuse de serem falsos deuses; falsos, mas ainda assim, deuses. São capazes de provocar todo o tipo de reacções, excepto a indiferença. São, ao mesmo tempo, simples e imprevisíveis. São o exemplo mais cabal de que duas teses contraditórias podem ocupar o mesmo espaço e tempo. São gatos. Quem nunca teve um gato ainda é capaz de ir ao engano e pensar que ao adoptar um gatinho está na verdade a escolher uma espécie de cão menos dependente. Nada pode estar mais longe da verdade. Um gato não é um cão com casa de banho própria; não é uma versão um pouco mais moderada do amor infinito canino. É outra coisa, tão radicalmente diferente do cão que nem deviam estar ambos incluídos na mesma categoria de «animal de estimação». Em termos de comportamento, talvez a criatura mais parecida com o gato seja o adolescente humano. Ambos têm uma capacidade estratosférica para a indiferença. Não reagem quando se chama por eles; fazem ouvidos moucos a qualquer reprimenda e são capazes de nos ignorar tão perfeitamente que nem aparecendo em chamas na sua presença conseguiríamos que eles levantassem os olhos do chão ou do ecrã do telemóvel. O seu desinteresse por tudo quanto não lhe diga imediatamente respeito está ao nível de um funcionário das finanças. É claro que, tal como o adolescente, são capazes de generosidade. Melhor: são capazes de nos manipular ao ponto de nos fazer sentir gratidão pelo afecto que nos dispensam a troco daquilo que querem de nós. Nada no gato – ou no adolescente – acontece sem um propósito. Ao contrário do cão, que esbanja amor como um chinês em véspera de ano novo num casino, o gato e o adolescente são extremamente parcimoniosos na distribuição do afecto. Nunca o dão; trocam-no. Uma pessoa que tenha um gato ou um adolescente sabe sempre que por detrás do ronrom ou do carinho filial se encontra a perspectiva de uma latinha de whiskas ou de uns fones Bluetooth. Durante os poucos minutos que temos o bichano aparentemente desinteressado, no colo, expondo a barriga à mão gulosa de festas, ainda conseguimos ser enganados (ou enganarmo-nos a nós próprios), mas mal passa a névoa da surpresa, damos por nós a pensar: «será que tens água? Será que tens comida? O que terás escavacado agora?» Tal como um adolescente, um gato não serve para nada. Ainda assim, tem algumas vantagens sobre o adolescente. Come menos, suja menos, ocupa menos espaço e tem uma manutenção muito mais barata. O gato, por outra parte, tem o defeito de ser adolescente enquanto dura, i.e., de nunca ultrapassar o estado em que indiferença e manipulação convivem no mesmo bicho em todos os momentos da sua vida. Alguns adolescentes ultrapassam essa fase e tornam-se criaturas remotamente suportáveis (têm ainda a grande vantagem de, acaso terem cursado outra coisa que não humanidades, acabarem por sair de casa lá pelos vinte e nove, trinta anos). Alguns gatos, já velhinhos, ficam mais permissivos na gestão do espaço próprio e são mais facilmente convocáveis ao carinho. Não se pense, no entanto, que ficam mais generosos ou pacientes com a idade. Na verdade, falta-lhes apenas a pachorra e a força para nos porem no nosso lugar com uma garfada de unhas precisa. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO ditador desejável [dropcap]A[/dropcap] ideia que fazemos normalmente de um ditador é a de um tipo autoritário exercendo o seu poder de forma absoluta, ou quase. Mas isso é apenas a fase final da evolução da criatura. Um ditador não começa nunca com poder (a não ser nos pouco regimes onde ainda é o berço a determinar o trono) mas com vontade de poder. E essa é uma das características fundamentais de um ditador: querer sempre mais do domínio que exerce sobre os outros. O ditador não é um sujeito tão incomum como pensamos. Na verdade, ele existe um pouco por toda a parte; nas repartições públicas, na hierarquia das empresas, nas salas de aulas e até nas estruturas aparentemente menos atreitas a organizar-se verticalmente por níveis de autoridade. Sucede apenas existirem muito menos lugares de poder do que criaturas com vontade de os ocupar, pelo que os menos impiedosos ou talentosos ficam pelo caminho e, frustrados na sua vocação, acabam por engrossar as fileiras dos alcoólicos, dos perpetradores de violência doméstica ou dos vizinhos que contestam todas as decisões das assembleias de condóminos. O ditador é, na verdade, a resultante de uma peculiar disposição do humano. Além da indispensável sede de poder, o ditador precisa de ser guiado por uma ideia não raras vezes em confronto com a realidade. Há no ditador um peculiar sentido de justiça. Esta não visa corrigir os males do mundo operando no âmbito da moral vigente; a moral vigente é, para o ditador, uma consequência do decadentismo da sociedade que pretende refundar. O ditador, aquele de amplo espectro de concretizações, aquele que toma as rédeas de um país e congrega em seu redor a maioria da população, está normalmente a braços com uma batalha. Qualquer batalha serve. Pode ser com o sistema judicial do seu país, com a oposição – onde quer que esta ainda exista – ou contra um grupo étnico ou social. Mas um ditador precisa de inimigos, pois a sua promessa de mudança carece de obstáculos para os quais ele possa surgir como providencial figura de resolução. Quando não existem obstáculos ou inimigos, inventam-se uns e outros. Como o ditador tem o controlo praticamente absoluto das estruturas de poder que normalmente fiscalizam e admoestam o governo – porque dele são independentes – não lhe é difícil inventar espantalhos que mobilizem a fúria popular e assim consolidem o seu domínio. Paradoxalmente, o pior que pode acontecer a um ditador é conseguir que a realidade finalmente coincida com a ideia faz da realidade desejável. Deixa de conseguir justificar as medidas excepcionais a que teria de recorrer acaso a discrepância cujo diagnóstico justifica a sua existência existisse. Imaginemos uma Alemanha nazi sem judeus, sem tratado de Versalhes, uma URRS sem kulaks, um Napoleão cuja Europa já lhe pertencesse. Se a vontade de poder é o combustível do ditador, a ideia é o seu motor. E essa ideia pode ser tudo, desde que seja o contrário absoluto de um estado de coisas diagnosticado. É claro que nada disto funciona sem o apoio popular generalizado – pelo menos numa primeira fase. O «povo» é que de facto faz andar a máquina. O povo, na sua eterna propensão para confiar nos homens providenciais e a eles entregar o seu destino, faz de rodas. É ele que leva ditador e ditadura na direcção de uma sociedade sem ou de uma sociedade com (preencher a gosto). E, para enorme fortuna do ditador, o povo tem memória de peixe de aquário. Bastam duas gerações volvidas sobre um tremendo erro para, de repente, a mesma fórmula bafienta parecer de novo tremendamente atractiva. E do nada – aparentemente – lá surge um homem que parece estar tão fora da história como o divino para meter nos eixos um país prestes a descarrilar. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO motivador desejável [dropcap]H[/dropcap]oje venho aqui falar-vos de uma pequena criatura que se tem multiplicado de forma galopante a despeito do aparente anacronismo da sua expansão. Em pleno século XXI, assistimos a esta proliferação sem fim à vista de uma das actividades humanas mais inúteis do catálogo histórico das actividades humanas: o motivador profissional. O motivador começa por aderir entusiasmado à fé capitalista, na esperança que esta lhe faça pelo bolso o mesmo que uma vida inteira de confessionário pode fazer pela alma. Ele acredita piamente na tese segundo a qual o sucesso depende do esforço. Toda e qualquer contrariedade advém de um esforço mal dirigido ou de um esforço em falta. No mundo do motivador profissional, não há contexto, não há acaso, não há pontos de partida melhores do que outros. É uma espécie de Ratatouille do mundo dos empreendedores: “toda a gente pode enriquecer”. Em breve, acumula fracasso atrás de fracasso. Mas não deixa de professar a fé. Aliás, o motivador está para o capitalismo como o padre católico para a igreja de Roma: um pequeno farol onde se vêem espelhadas as virtudes professadas pela casa-mãe. Decidiu desde cedo que a sua falta de conhecimento geral dos princípios económicos elementares ou do negócio específico onde empata tempo e dinheiro nunca seriam um problema. O entusiasmo é o ingrediente secreto através do qual espera transformar qualquer empreitada num glorioso sucesso à escala planetária. O Bill Gates desistiu da faculdade para ir fazer dinheiro; o Steve Jobs também. O conhecimento, aliás, está sobrevalorizado, pensa. A mola pela qual se galga a escadaria do sucesso é o entusiasmo irrestrito. O motivador pode perder a fé em tudo, menos nisso. Mas até o mais tonto dos motivadores acaba por entretanto perceber que não tem puto jeito para aquilo em que se implica todos os dias. Isso do negócio não é para ele. Ele bem tenta, com todas as suas forças, mete lá dinheiro, mete lá tempo, mete lá contactos, arrebanha tudo a quanto chega num abraço geral para que a coisa dê certo, mas a coisa teima em cair da árvore antes do tempo e apodrecer no chão. Este é o ponto crucial para as aspirações do motivador. Deprimido pela sucessão de falências, o motivador precisa apenas de um pequeno empurrão para descobrir o seu verdadeiro talento. Ele porventura não nasceu para o negócio propriamente dito mas para catalisar a energia daqueles cujo sucesso depende apenas de um esforço suplementar. O motivador, por muito que queira, não sabe jogar à bola; não tem talento para isso, tem dois pés esquerdos. Mas pode ser um excelente treinador. Pode ser o treinador cujo toque de Midas transforma uma equipa banal de programadores numa startup de sucesso com aspirações a ser deglutida pelo Google a troco de uma generosa compensação monetária. O motivador, antes de se fazer à estrada, tem de dar um jeitinho ao currículo. Há que expurgá-lo das dezenas de infortúnios e empolar – até à caricatura – os pouquíssimos sucessos. Nada que não esteja habituado a fazer desde sempre (o motivador tem de ter algo do mentiroso patológico, do obsessivo, do sociopata – de preferência, um pouco dos três – ou não funciona). Ajeitado o currículo, o fato e o cabelo, o motivador atira-se furiosamente ao word para lá plasmar a sua versão das “regras essenciais para o sucesso”, que não diferem das inúmeras versões que, ao longo do tempo, foram entupindo as prateleiras das livrarias um pouco por toda a parte. Se tiver alguma estaleca, o motivador consegue arranjar um par de palavras em inglês para passar por conceitos fundamentais. Todo o motivador que se preze tem de apregoar a descoberta de um ingrediente secreto. E os ingredientes secretos, como se sabe, falam a língua de Sua Majestade. De livrinho debaixo do braço e empestando toda e qualquer rede social com a banalidade das suas tiradas, o motivador vai promovendo cursos, workshops e masterclasses. Sonha com o dia em que encherá um pavilhão atlântico ou em que conhecerá os seus heróis de além-mar. Por enquanto, pelo menos, já consegue pagar algumas contas. É a primeira vez que tira algum dinheiro de um negócio. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO motivador desejável [dropcap]H[/dropcap]oje venho aqui falar-vos de uma pequena criatura que se tem multiplicado de forma galopante a despeito do aparente anacronismo da sua expansão. Em pleno século XXI, assistimos a esta proliferação sem fim à vista de uma das actividades humanas mais inúteis do catálogo histórico das actividades humanas: o motivador profissional. O motivador começa por aderir entusiasmado à fé capitalista, na esperança que esta lhe faça pelo bolso o mesmo que uma vida inteira de confessionário pode fazer pela alma. Ele acredita piamente na tese segundo a qual o sucesso depende do esforço. Toda e qualquer contrariedade advém de um esforço mal dirigido ou de um esforço em falta. No mundo do motivador profissional, não há contexto, não há acaso, não há pontos de partida melhores do que outros. É uma espécie de Ratatouille do mundo dos empreendedores: “toda a gente pode enriquecer”. Em breve, acumula fracasso atrás de fracasso. Mas não deixa de professar a fé. Aliás, o motivador está para o capitalismo como o padre católico para a igreja de Roma: um pequeno farol onde se vêem espelhadas as virtudes professadas pela casa-mãe. Decidiu desde cedo que a sua falta de conhecimento geral dos princípios económicos elementares ou do negócio específico onde empata tempo e dinheiro nunca seriam um problema. O entusiasmo é o ingrediente secreto através do qual espera transformar qualquer empreitada num glorioso sucesso à escala planetária. O Bill Gates desistiu da faculdade para ir fazer dinheiro; o Steve Jobs também. O conhecimento, aliás, está sobrevalorizado, pensa. A mola pela qual se galga a escadaria do sucesso é o entusiasmo irrestrito. O motivador pode perder a fé em tudo, menos nisso. Mas até o mais tonto dos motivadores acaba por entretanto perceber que não tem puto jeito para aquilo em que se implica todos os dias. Isso do negócio não é para ele. Ele bem tenta, com todas as suas forças, mete lá dinheiro, mete lá tempo, mete lá contactos, arrebanha tudo a quanto chega num abraço geral para que a coisa dê certo, mas a coisa teima em cair da árvore antes do tempo e apodrecer no chão. Este é o ponto crucial para as aspirações do motivador. Deprimido pela sucessão de falências, o motivador precisa apenas de um pequeno empurrão para descobrir o seu verdadeiro talento. Ele porventura não nasceu para o negócio propriamente dito mas para catalisar a energia daqueles cujo sucesso depende apenas de um esforço suplementar. O motivador, por muito que queira, não sabe jogar à bola; não tem talento para isso, tem dois pés esquerdos. Mas pode ser um excelente treinador. Pode ser o treinador cujo toque de Midas transforma uma equipa banal de programadores numa startup de sucesso com aspirações a ser deglutida pelo Google a troco de uma generosa compensação monetária. O motivador, antes de se fazer à estrada, tem de dar um jeitinho ao currículo. Há que expurgá-lo das dezenas de infortúnios e empolar – até à caricatura – os pouquíssimos sucessos. Nada que não esteja habituado a fazer desde sempre (o motivador tem de ter algo do mentiroso patológico, do obsessivo, do sociopata – de preferência, um pouco dos três – ou não funciona). Ajeitado o currículo, o fato e o cabelo, o motivador atira-se furiosamente ao word para lá plasmar a sua versão das “regras essenciais para o sucesso”, que não diferem das inúmeras versões que, ao longo do tempo, foram entupindo as prateleiras das livrarias um pouco por toda a parte. Se tiver alguma estaleca, o motivador consegue arranjar um par de palavras em inglês para passar por conceitos fundamentais. Todo o motivador que se preze tem de apregoar a descoberta de um ingrediente secreto. E os ingredientes secretos, como se sabe, falam a língua de Sua Majestade. De livrinho debaixo do braço e empestando toda e qualquer rede social com a banalidade das suas tiradas, o motivador vai promovendo cursos, workshops e masterclasses. Sonha com o dia em que encherá um pavilhão atlântico ou em que conhecerá os seus heróis de além-mar. Por enquanto, pelo menos, já consegue pagar algumas contas. É a primeira vez que tira algum dinheiro de um negócio. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO turista desejável [dropcap]C[/dropcap]omo toda a gente sabe, fazer um turista é extremamente fácil. Está lá tudo: a insuportabilidade do quotidiano, o mesmo horizonte repetindo-se dia após dia sem qualquer piedade, o jantar que se segue ao almoço que se segue ao pequeno-almoço que se segue a uma noite de sono povoada com as mais banais fantasias de ameaça ao chefe ou ao colega, porque o único heroísmo possível veste-se com a capa do sonho, a voz da mulher ou do marido ou dos filhos ou dos pais ou dos sogros, todas as vozes confluindo no coro da modorra, da lassidão, do que não se querendo ver-lhe o fim, nunca mais acaba. A esta receita infalível, só lhe falta o dinheiro. Quando o sujeito cronicamente farto de tudo consegue por milagre apartar uns cobres e não lhe sobra contas por pagar – ou, sobrando, estão no território mágico do futuro desabitado – a primeira coisa em que pensa é onde torrar aquele dinheiro (poupar é um luxo a que apenas um coração tranquilo ou determinado de pode dar). Perto ou longe, o que interessa é mudar de cenário. Nem tudo são rosas, claro está. Embora o horizonte de facto mude, continua a haver prédios, restaurantes, passeios, cães, pessoas e, inevitavelmente, rotina. A novidade, mesmo nos recantos mais exóticos do planeta, nunca é absoluta, pelo que um sujeito, passados apenas uns dias, já dá por si a torcer o nariz à repetição que nos primeiros dias lhe aparecia com a roupagem da jovialidade adolescente. Um par de daiquiris generosos em rum ajudam, assim como aquele pôr-do-sol que o sujeito normalmente conhece apenas do wallpaper do ambiente de trabalho do Windows, mas até o álcool e a paisagem têm efeitos limitados. Não tarda, o sujeito dá por si a implicar com o que o rodeia; é a praia – a areia demasiado fina que não sai nem com uma oração à Nossa Senhora do Elefante Azul –, a comida – demasiado picante, demasiado insossa, demasiado diferente – e, claro está, os outros turistas canibalizando a experiência da novidade. Passados poucos dias, o turista já veterano, especado à frente daquele monumento que no rectângulo do folheto desdobrável lhe parecia absolutamente imperdível, consegue apenas dizer – normalmente entredentes e para si mesmo – “em casa temos melhor”. Não se pode culpá-lo. O turismo de massas não é propriamente pródigo na veiculação de experiências. Os percursos, por mais incríveis que pareçam, foram desenhados para serem consumidos, e não usufruídos, e as cidades que se prestam a transformar-se em atracções turísticas são uma linha de montagem onde o turista, cansado das filas, deixa uns trocos a troco de um sorriso para a selfie. E no fim sobram apenas as fotos, uma t-shirt de má qualidade cujo “I <3 Berlim” estampado desbotará por completo na terceira lavagem e um par de feridas nos pés. Mas valem-lhe as fotos, postadas de cinco em cinco minutos num instagram onde no resto do ano só se vêem memes de 2012 e fotos de gatinhos. Nas fotos, o turista não conhece desânimo ou cansaço, desilusão ou tédio. Os sujeitos que estão do outro lado do monitor, encafuados no escritório, suspiram na contemplação do paraíso que o sujeito regista em jeito de fotodiário. Um e outro – aquele que está e aquele que vê estar – partilham a mesma má-fé. As fotos são a evidência de um privilégio, mesmo que esse privilégio esteja constituído na banalidade. A experiência, essa, pode ser torcida até coincidir com o molde dos retratos de férias. A verdade, em última análise, é a última coisa que um sujeito quer apresentar num jantar onde calhe a falar das férias. A verdade seria o fim de um negócio bilionário e, muito mais importante, da possibilidade de escapar ao vazio da rotina com que um sujeito sonha onze meses por ano. A verdade, lol. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO comentador desejável [dropcap]H[/dropcap]á muitos anos que não tenho televisão; quer dizer, tenho um ecrã de não sei quantas polegadas ao qual está acoplada uma box android por onde entra o mundo dos filmes e séries. Bem sei que a televisão mudou muito. Dos dois canais da minha adolescência passámos para os 160 do pacote mínimo oferecido pelos principais fornecedores de internet. Um sujeito já não é obrigado a regular o seu horário pelos programas que quer ver; a qualquer hora pode recuar no tempo e assistir à final do Roland Garros como esta foi transmitida originalmente. A televisão, para poder competir com a internet e a sua infinidade de conteúdos, modernizou-se – não é estranho que a essa modernização corresponda uma tendência para mimetizar a forma da internet. A modernização também chegou ao estranho mundo do comentário televiso. Nos poucos e longínquos anos em que fui jovem, os comentadores vinham à televisão na qualidade de especialistas. Eram veterinários a falar da encefalopatia espongiforme nas vacas, engenheiros agrónomos a avisar para o míldio da vinha e o Nuno Rogeiro a falar de tudo quanto acontecia lá fora, pela razão de pescar algum inglês e de ter uma parabólica a bombar na CNN vinte e quatro horas por dia. Os critérios para se ser comentador, hoje em dia, “achataram a curva”, se me é permitido a metáfora epidemiológica da moda. É necessário saber muito menos de muito mais coisas. O comentador contemporâneo ideal consegue num momento discorrer sobre uma crise humanitária no médio oriente e, no momento seguinte, alinhavar um diagnóstico relativo aos problemas de balneário no Boavista. Tudo isto, claro está, sem que nos últimos vinte anos se tenha assistido a qualquer incremento na capacidade de processamento de dados do humano. O milagre não decorre do facto de o comentador contemporâneo estar de algum modo melhor apetrechado para a complexidade do mundo e dos seus desafios. O comentador contemporâneo não estuda mais do que o seu vetusto predecessor, não o ultrapassa em largueza ou profundidade de saber. O comentador contemporâneo é apenas o decalque contemporâneo da nossa precisão de conhecimento, e esta, por via das transformações inerentes à súbita abundância na disponibilidade de tudo quanto pode ser estudado, tem-se vindo a tornar cada vez mais competente na acumulação ecléctica de banalidades. O nosso medo de perder pitada e de sermos socialmente humilhados na confissão de que pouco ou nada sabemos do cinema russo dos anos setenta ou das mais recentes técnicas de recorte genético acaba por nos manipular a adquirir uma vaga notícia de conhecimento que passa pela coisa em si. Este conhecimento em pó raramente é desmascarado pelo simples motivo de raramente um especialista o auscultar. Os especialistas, além de raros, são cada vez menos apreciados. São símbolos indesejáveis da nossa ampla mediocridade, são recordatórios pelos quais antevemos agoniados o longo percurso que é necessário para que um sujeito seja capaz de assomar a cabeça à tona do oceano de banalidades em que normalmente navega. O comentador contemporâneo é ainda, muito especialmente na política, capaz de equacionar e resolver em abstracto todos os problemas que, em concreto, não foi capaz de desenlaçar. Muitos dos comentadores de alto gabarito na televisão portuguesa, com honras de programas semanais com nomes pomposos, nos quais se prestam as explicar às criancinhas deste lado do ecrã a incompetência ou a excelência daqueles que nos governam, fizeram parte de um ou mais dos executivos responsáveis pelo estado-de-coisas a que chegámos. A tudo isto se prestam sem qualquer assomo de decoro pela contradição inerente a explicar uma calamidade de que historicamente fizeram parte. O púlpito do comentário é uma espécie de água baptismal através da qual se redime ou se esquece todo um passado lamacento. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO activista desejável [dropcap]É[/dropcap] mais fácil do que parece. O activista desejável não precisa de ser inteligente. Pelo contrário. O seu desconhecimento face ao assunto em que milita é uma vantagem. O seu desconhecimento é, aliás, inversamente proporcional à força das suas convicções. Um activista preocupado com apreender a diversidade de pontos de vista disponíveis sobre um mesmo assunto pode paralisar sob o peso da escolha. Ou tornar-se moderado. A moderação está para o activismo como chantilly para a sardinha. Não combina. A criação de um activista depende de uma série de factores contextuais e esses dependem em última análise do tempo em que o sujeito vive. Não é possível condicionar o sujeito a adoptar uma causa demasiadamente datada, por mais justa e moral que esta pareça ser. Cada época tem o seu caleidoscópio de activistas e activismos e é dentro desse registo que se deve empurrar o sujeito para a escolha. Algumas causas são praticamente intemporais, indo e vindo em ciclos de indignação consoante a opinião pública as coloca mais ou menos em foco. Há assim períodos em que a floresta amazónica é o epicentro da revolta. Noutras ocasiões, uma catástrofe em África recorda-nos momentaneamente de que há fome no mundo. Algumas causas são circunstanciais e existem apenas enquanto o problema não se resolve ou enquanto a indignação não encontra melhor ninho. É o caso de uma guerra, por exemplo, ou de uma espécie exótica ameaçada. Embora este tipo de activismo seja incapaz de mobilizar o sujeito para além do tempo da causa que lhe subjaz, é no entanto uma porta de entrada para o mundo da indignação geral onde o recém-formado activista pode rapidamente encontrar terreno mais fértil para a sua pulsão justiceira. Mas as causas fundamentais são aquelas contemporâneas ao sujeito. Um dos pilares do activismo é a sua forte componente moral. O activista tem de sentir que está do lado certo da história e que de algum modo participa no gesto geral da criação de um mundo melhor. Tal como no caso da inteligência, não é necessário que de facto o sujeito se encontre mesmo do lado certo. Precisa apenas de acreditar que está. A complexidade moral e as subtilezas éticas são dispensáveis. Só iam confundi-lo. E a confusão pode levar ao esclarecimento ou ao imobilismo, sendo qualquer um deles prejudiciais à manutenção do moralismo justiceiro que move o activista. Há que alimentar-lhe diariamente a indignação. No início convém ministrar-lhe doses generosas de injustiça. Podem ser requentadas. Basta colhê-la das páginas da história. Com o tempo, o paladar do activista torna-se mais refinado e já não aceita senão indignação fresca. A sorte é que nesse período da sua evolução, o activista precisa de muito menos alimento; qualquer espinha de iniquidade serve. O activista transforma a mais pequena das ocorrências num manjar capaz de saciar uma mesa de cardeais. O que o activista não dispensa é a companhia da causa. Podem não ser muitos, mas têm de ser engajados. Para o activista, todos os aspectos e momentos da vida reflectem de algum modo a causa a que se dedica. O activismo é um oásis à volta da qual se estende um imenso deserto, mesmo que nesse deserto vivam e cresçam pessoas. Enquanto o mundo não reflectir com precisão quântica o modo como o activista o deseja ver reflectido, está fundamentalmente errado. Para tal é preciso converter a mole ignara para a causa que assume o primeiro lugar no pódio dos males do mundo. A companhia reforça o activista, ampara-lhe as crises de fé e escuda-o da iniquidade que vê por toda a parte. Por último, convém que que o activista seja relativamente cego para a distinção do mundo em que vive e da realidade da sua causa. A maior parte dos activistas não habitam nos motivos da sua indignação. Felizmente, o humano vem equipado de série com a má-fé necessária para ser ambliope face à mais evidente contradição. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO político desejável [dropcap]J[/dropcap]á foi muito mais complicado entrar para a política. Tempos houve em que os titulares dos cargos de topo faziam gala das suas habilitações, dos seus doutoramentos nas mais reputadas universidades mundiais, de terem escrito ou revisto códigos civis, penais ou a própria constituição. Outros ainda chegavam à política por de algum modo se terem distinguido socialmente: empresários de sucesso, desportistas notáveis, artistas que mudaram a nossa forma de ver, ouvir e sentir. A política era um microcosmo elitista com regras inconspícuas de admissão. Hoje em dia é muito mais fácil dar vazão a necessidade de poder que pauta a existência de certos humanos. Criaram-se inclusivamente clubes – funcionando ao modo de escolas – para ensinar aos futuros governantes as múltiplas artes pelas quais se conquista e se mantém o poder. As juventudes partidárias são uma espécie de academias de formação em futebol à volta das quais gravitam uma série de olheiros prontos a identificar o próximo secretário de estado da energia. A competição é naturalmente renhida, mas não exige as competências excepcionais que outrora fechavam as portas a tantos candidatos infinitamente mais sequiosos de poder do que a maior parte daqueles que lá andavam. As habilidades apreciadas são muito distintas, até. Ao jovem promissor é exigida uma fidelidade canina ao partido e um respeito religioso pela hierarquia, coisa que a maioria dos candidatos cumpre com afinco, dado estas características os dispensarem de mostrar quaisquer outras competências. A calhandrice, não sendo um requisito eliminatório, é praticamente indispensável para progredir no sistema, cuja forma labiríntica e mal sinalizada exige do jovem promissor uma capacidade de leitura dos mais variados duplos sentidos, das mentiras sistemicamente disseminadas e da hipocrisia dos grupos que se fazem e desfazem ao sabor dos interesses e das circunstâncias. O candidato que almeje ser mais do que um mero agitador em vésperas de eleições tem de investir com pertinácia no jiu-jitsu da rasteira ao próximo, no terrorismo do carácter alheio e na disseminação de toda a sorte de boatos. Mas não chegará longe se não se rodear de quem possa oferecer o peito às balas por ele, i.e., de quem se dedique a assumir as responsabilidades pela ignorância ou pela canalhice dos seus actos. Os candidatos têm a força do grupo a que pertencem, pelo que escolher bem o grupo onde se quer progredir é fundamental. Dá igualmente jeito ter uma consciência tão mansa como um golden retrivier vegetariano. É esta que permitirá ao jovem promissor dormir uma noite descansada depois de ter cumprido o ritual de esfaquear o melhor amigo pelas costas. É também esta que lhe permitirá mentir descaradamente numa conversa ou num debater sem levantar qualquer alarme moral interior. A consciência é um peso e o candidato, se quer chegar longe, tem de se aliviar dela o mais depressa possível. Tudo o resto se joga no reino das aparências, no qual o candidato tem de gerir a sua imagem da melhor forma possível. E gerir, neste contexto, é um eufemismo generoso para a extrapolação hiperbólica de si próprio necessária para galgar a escadaria do sucesso. O prestígio vestigial tem de ser convertido numa notoriedade ampla e concreta, nem que para isso o candidato empole a importância da mais pequena banalidade académica, profissional ou pessoal. Quem estiver minimamente preocupado com a equivalência das aparências com a realidade não tem lugar no ecossistema das juventudes partidárias, nas quais a trivialidade envernizada é a moeda de troca mais comum entre egos concorrentes. Como nota final, realçar a importância do killer instinct, ou seja, da capacidade de perceber o momento ideal, dentro de um determinado contexto, para fazer tombar a criatura ocupando o galho para onde o candidato quer subir. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão Artes, Letras e Ideias hO rico desejável [dropcap]S[/dropcap]ão aristocratas, industriais, czares das redes sociais, banqueiros, reis do retalho, gestores de fundos de investimento, génios financeiros. Para cada área de actividade humana, há um grupo de criaturas competindo entre si que ocupam o cume mais rentável dessa actividade. Criaturas munidas dos meios mais sofisticados disponíveis, cujo objectivo é diariamente acrescentar ao muito que têm um pouco mais. Vivendo num ecossistema geograficamente próximo daquele que restantes humanos partilham, utilizam o artifício da cercania para conviverem quando e como querem com os que vivem nos substratos inferiores sem nunca se misturarem. São os ricos. Como preâmbulo, é importante avisar o leitor de que para um português é mais difícil ter a noção do que é um rico de verdade. Por uma questão de escala, Portugal tende a produzir poucos exemplares da espécie. Tirando talvez um par de excepções, os ricos portugueses estão para a riqueza o que um carrinho de brincar de um Happy Meal está para a Fórmula 1. Ainda assim, o fosso que o rico português consegue cavar entre ele próprio e a restante sociedade é em tudo conforme àquele que os ricos de verdade geram. A riqueza, mesmo em quantidades relativamente modestas, comporta em si a propriedade pela qual produz um afastamento entre o seu portador e todos aqueles que têm menos. Em havendo oportunidade, a melhor forma de fazer um rico é pô-lo a começar do zero. Consegue-se assim um isótopo muito mais estável de rico porque em cada passo da criação da sua fortuna está presente a noção de merecimento. E a confiança é um elemento fundamental na manutenção dos níveis hormonais necessários para o rico estar constantemente desejando mais. Além disso, estimula-lhe a capacidade predadora. Um rico desmotivado até pode continuar a deleitar-se na riqueza que já tem mas é um rico triste, um chihuahua de colo assustado assistindo ao que se passa lá fora, no lugar da vida de que ele se lembra com nostalgia. O melhor rico é o rico disposto a tudo para ser o primeiro. Seja na sua área, na sua faixa etária, na sua cidade ou no seu país. Há que lhe dar um objectivo argutamente colocado entre o possível e o impossível e motivá-lo e repreendê-lo em doses semelhantes. Ultrapassados os primeiros objectivos e desde que se coloquem outros de capacidade motivacional equivalente, obtém-se um rico de longo curso, capaz de gerir melhor o esforço e de utilizar mais eficazmente os recursos acumulados. Já o isótopo de que se declinam os ricos-herdeiros carece da estabilidade do rico começando do zero. A não ser que seja obstinadamente seguro de si ou demasiado estúpido para ver as suas próprias limitações, falta cronicamente ao rico-herdeiro a confiança necessária para evitar o pânico moral que se instala depois do massacre. A traição ao sócio ou o despedimento injustificado caem-lhe no estômago com um peso que os torna difíceis de digerir. Ao contrário do rico começando do nada, que vê o mundo na óptica monocromática do matar ou morrer, o rico-herdeiro nunca passou fome, nunca acordou com sangue nas mãos. Se for um rico de segunda geração, o seu grande problema é precisamente a sua herança – ou porque se lhe exige estar ao nível daquele que originariamente produziu a riqueza ou porque despreza a forma como esta foi conseguida. Se for um rico de uma longa linhagem de ricos, o meu conselho é perceber o negócio mas deixá-lo na mão de quem o saiba gerir e dedicar-se à filantropia. Deste modo, não imporá a si próprio as exigências que a decadência da sua condição não lhe permite cumprir. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO CEO desejável Por vezes acontecer nascer no seio de uma família perfeitamente banal um bebé que não ri. É a todos os níveis uma experiência desconcertante, mormente porque acontece sobretudo em famílias pobres (apenas por razões estatísticas: há mais pobres e estes tendem a procriar mais) e, como se sabe, o riso é dos poucos luxos acessíveis aos remediados. Na família não falta quem tente fazer rir a criança. Pai e mãe revezam-se diante do berço e retiram à vez da pilha de brinquedos que a família reuniu o macaquinho risonho a que o pequeno Joaquim não resistia, a Fada do Arco-Íris que era a preferida da Matilde e o palhaço do McDonald’s numa versão joint venture Kinder surpresa que despontava sempre no pequeno e roliço Joãozinho um riso de buda satisfeito, dado fazê-lo lembrar-se das batatas fritas que o tio Franco lhe dava para às mãos à socapa quando em dia de fast food. Nada. O pequeno é um júri dos Ídolos em dia de fraca fornada. Claro que há sempre aquele tio capaz de fazer rir uma convenção de ressacados que exclama: “vocês não têm jeito nenhum! Saiam daí! Deixem-me trabalhar!” e diante da criança como de um público exigente desmultiplica-se em macaquices e em chalaças e passados apenas quinze minutos toda a gente no quarto ri a bom rir. Menos o miúdo. O miúdo olha para o tio como um pinguim para uma torradeira. A situação torna-se obviamente motivo de conversa. Nunca nos jantares de família, claro. Muito menos nas festas de aniversário. O pobre, como se sabe, tem uma relação complicada com a verdade. Não é que ele não perceba perfeitamente. Mas evita dizer aquilo que se fosse ele a ouvir o poderia magoar. A força do pobre é o número, e o número não se obtém alienando a própria família. Por isso o pobre nunca fala abertamente na cozinha onde reúne à volta de uns camarões pré-cozidos ou na sala onde celebra a inútil mas pioneira licenciatura em sociologia do Pedro. As conversas do pobre são conversas de corredor, e é nos corredores das casas das famílias onde o pobre convive que este expressa a sua preocupação. “Uma moça minha amiga que trabalha na Escola diz-me que só pode ser autismo”. “Mas o menino fala”, atravessa-se uma prima. “O autismo é muito mais complicado do que aquilo que se vê nos filmes”. “Pois, pois”, diz alguém em surdina (os pobres sussurram tanto quanto gritam, desconhecendo o registo médio). Há um dia em que estão todos à mesa no contexto de uma celebração qualquer e, enquanto uns falam distraidamente e outros só têm olhos para o prato à sua frente, a pequena Maria, com três anos apenas, espeta um garfo na mão do pequeno Vicente, mais velho que ela um mês. Segue-se a confusão previsível: correrias à casa de banho com toalhas ensopadas em sangue e acusações de má educação de parte a parte. A única coisa que destoa da algazarra confusa é o riso do pequeno Martim. O pequeno Martin, pela primeira vez, ri. Ora isto acontecendo numa família sem visão de futuro poderia ser desastroso, sobretudo para a criança, condenada desde logo ao isolamento e à desconfiança perenes. Mas o pai do pequeno Martim, ávido consumidor de documentários de todo o tipo, percebe numa repentina epifania estar diante de um futuro gestor. A criança é incentivada a ter boas notas, sobretudo a disciplinas científicas. O pai lê-lhe capítulos de livros de empreendedores para o adormecer. Aos treze anos oferecem-lhe um portátil em segunda mão onde está instalado apenas o Excel (com a esperança de que este dure mais do que os dois hámsteres que o Martim sacrificou ao altar da curiosidade infantil – a versão oficial da família). Com dezasseis anos o já-não-tão-pequeno Martim domina a língua críptica dos gestores de activos e entretém-se nos encontros de família a ridicularizar os que desconhecem o cálculo de juros. O pai, à distância e do canto do olho, sorri um sorriso de orgulho. “Este já se escapou do subúrbio”, pensa. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO pobre desejável [dropcap]C[/dropcap]omo é que se faz um pobre? Parece simples, até porque pululam receitas um pouco por todo o lado, mas fazer um pobre exige cada vez mais cuidados. Não é qualquer pobre que serve à manutenção da ordem social. Um pobre demasiado pobre poderá tentar colmatar as suas necessidades mais básicas por via de uma marginalidade intermitente, i.e., não lhe será alheia a noção de furto em caso de fome, por exemplo. A sua energia intelectual concentrar-se-á na elaboração de planos que lhe permitam sobreviver. Pouco se importará com a lei e a noção de justiça desde que não seja apanhado. A sua argúcia nunca deixará de ser uma argúcia de desenrascado e os constrangimentos que possa sentir por estar entre a sociedade e as suas regras e o outro lado onde impera a necessidade mais animal nunca serão suficientes para sentir uma vergonha autêntica, uma vergonha social capaz de lhe refrear o ímpeto criminal. A necessidade falará sempre mais alto. A consciência nunca terá a força da fome. Um pobre assim, para além de contribuir muito pouco do ponto de vista fiscal – pois a sua sobrevivência implica furtar-se tanto quanto possível a todo e qualquer imposto – não é fiável. É capaz de votar da forma correcta desde que lhe façam promessas adequadas – mesmo que irrealistas e cronicamente incumpridas – mas não é leal. A qualquer momento é capaz de entregar o seu voto a um populista qualquer porque este lhe propõe a revolução – mesmo que não dessa revolução não se anteveja qualquer mudança no seu estado de pobreza. Um pobre deste tipo não é fiável; por razões óbvias, não tem ideologia. Fazer um pobre implica algum contra-senso, pois o pobre é tanto melhor quanto mais se investir nele. Há que limar-lhe com precisão as necessidades fundamentais. É importante que não passe fome, pelo menos aquela fome que implica um défice calórico de tal ordem que o desejo se converte em desespero. O seu desejo deve ser moderado. Deve-lhe ser garantida a possibilidade de comer um bife de vez em quando. De jantar fora em dias de festa. De provar uma ou duas vezes na vida os acepipes acessíveis apenas às pessoas que não padecem de pobreza. A sua satisfação deve ser cuidadosamente contrariada pelo seu desejo de mais e melhor. Só assim é possível inculcar-lhe de forma permanente o conceito de esforço. Mas mais importante do que o esforço é a inveja. O pobre deve invejar tudo quanto esteja imediatamente acima dele. Mas não pode ser uma inveja cega; esta deve vir acompanhada de uma noção clara de merecimento. No seu espírito de pobre tem de se ir sedimentando a ideia de que o sucesso alheio é justo e, de algum modo e através do esforço, atingível. Um pobre tem de sonhar que pode deixar de o ser. Um pobre sem sonhos é um pobre conformado, preguiçoso, exangue do voluntarismo necessário para produzir mais. Apesar de pacífico e obediente, um pobre assim não cumpre o seu potencial. É absolutamente necessário providenciar-lhe meios para arrendar ou comprar uma casa, mesmo que seja apenas uma gaveta minúscula num arrabalde distante. Os pobres sem meios acabam por ir parar à rua e são, para além de um problema de higiene pública, uma visão aborrecida e desagradável. Outros ainda constroem autênticos enxames de tijolo e chapa de zinco – por vezes nas zonas com melhor vista e mais potencial imobiliário – e depois é praticamente impossível tirá-los de lá. Nesses ambientes infectos gera-se todo o tipo de problemas e vícios decorrentes da pobreza organizada: crime, tráfico e consumo de drogas, doenças contagiosas, etc. Um pobre tem de ter um tecto a que chame seu. Tem de estar convencido de que esse tecto, mesmo que na orla mais longínqua da sociedade, faz parte dela. Quanto à bebida, a fórmula é amplamente conhecida. É necessário censurar publicamente a ingestão exagerada de álcool não fazendo porém qualquer oposição legislativa à sua disponibilidade. Um pobre com inveja tem tendência a afogar as mágoas pelo menos semanalmente. É deixar. Apesar dos pequenos desacatos que possa causar, a garantia de uma ressaca em que toda a culpa do seu estado miserável recai sobre ele como um piano de cauda é absolutamente desejável. A culpa gera vergonha e a vergonha gera obediência. A longo prazo, o pobre é até capaz de se convencer de que é responsável pelo mundo que habita. Um pobre convertido a esta ideia é de uma lealdade incorruptível. É este o pobre desejável. Sigam-me para mais receitas.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA evolução às bolinhas [dropcap]A[/dropcap] história da nossa evolução enquanto espécie está fundamentalmente ligada a uma característica específica do humano a que comummente chamamos inteligência. No reino animal a que pertencemos, não somos os mais fortes, os mais altos, os mais velozes ou os mais ágeis. Não temos a visão mais aguda ou a audição mais apurada. Fisicamente e descontando a postura vertical e o polegar oponível, não apresentamos nenhuma característica que nos separe de forma radical dos restantes animais. Pelo contrário. Em termos físicos – e até genéticos – somos muito semelhantes aos chimpanzés, por exemplo. É difícil (e não cabe de todo no espaço de uma crónica) definir inteligência. Como inúmeros conceitos com os quais operamos quotidianamente, o significado de inteligência recai sob o paradoxo agostiniano da definição de tempo: “se ninguém me perguntar o que é, eu sei; se me perguntarem, eu não sei”. A linguagem – porventura a mais emblemática das conquistas da inteligência – não é transparente para si própria. Mas funciona (mais ou menos, mas essa é outra conversa). Tomemos da inteligência apenas um dos seus componentes mais simples: a capacidade de resolver um determinado problema. Este pode ser o acto de abrir um coco (ou um crânio) com recurso a uma pedra ou o de postular a equação pela qual se rege a força da gravidade. A inteligência visa tudo. É uma forma peculiar de desocultamento progressivo da realidade e a pedra basilar do nosso vasto domínio enquanto espécie. É graças a ela que o macaco relativamente imberbe que somos se tornou o predador incontestado de todos os restantes animais, da terra e dos seus recursos (e aqui cabe tanto orgulho quanto vergonha). De um ponto de vista evolutivo, a inteligência é o meio pelo qual acedemos ao trono deste ínfimo recanto do universo, para o qual espreitamos com a curiosidade de um recém-nascido incapaz chegar aos brinquedos pendurados sobre o berço. Estatisticamente, a inteligência (ou pelo menos o QI, a sua medida) tem vindo a aumentar desde que começámos, no Séc. XX, a aferi-la globalmente. Parece haver razões contextuais para isso, nomeadamente o aumento da qualidade de vida por vida da medicina e da nutrição (é sabido que um estômago vazio pensa pior). Neste momento da nossa história enquanto espécie, há autores que defendem que nos próximos cem anos ela continuará a aumentar de forma continuada e outros que dizem exactamente o contrário, ou seja, que chegámos a um ponto de inflexão e que daqui para diante seremos – como dizer – cada vez mais estúpidos. Isto por que, de um ponto de vista evolutivo, a inteligência deixou de ser o factor capaz de fazer a diferença entre a sobrevivência e o seu oposto. Resumindo: o macaco imberbe cansou de ser esperto. Se olharmos à nossa volta – e sem necessitarmos de ser excessivamente dramáticos, até porque a maior parte dos indicadores de qualidade de vida nos colocam numa posição mais confortável do que aquela em que estávamos no século passado – não é difícil verificar – e até é relativamente corriqueiro – que esta “capacidade de resolver problemas” não é a principal forma pela qual as pessoas asseguram a sua sobrevivência. A sobrevivência parece depender sobretudo do país em que se nasce; da cidade, do bairro, da língua, da cor da pele, da família em que se nasce. Até por que – em havendo dinheiro – a resolução de muitos dos problemas práticos da vida pode ser banalmente adquirida. A sobrevivência não depende tanto da capacidade do humano de resolver o mundo em seu redor (até porque este já se encontra a esse nível e na sua maior parte, resolvido) mas das posses que abrem ou fecham as diversas possibilidades que o mundo – como num cardápio – oferece. A possibilidade de um decréscimo global da inteligência coloca outros problemas. Embora sejamos a espécie regente do burgo, a nossa sobrevivência a longo prazo não está de todo assegurada. Talvez o facto de sermos cada vez mais e possivelmente cada vez mais estúpidos não seja uma vantagem. E, na verdade, talvez não haja nada a fazer em relação a isso.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasEstágio para a morte [dropcap]Q[/dropcap]uando era criança, só os velhos morriam. Era uma coisa natural, eram velhos. Às vezes era até uma coisa bondosa: depois de anos a sofrerem avcs até perderem o mais básico controlo dos seus corpos ou carcomidos pelo cancro, o acontecimento da morte acabava por ser o momento pelo qual uma luta inglória e injusta encontrava finalmente o seu fim. Embora ninguém o dissesse abertamente, sob pena de censura social, era um alívio para quem ficava. A morte, quando eu era criança, ainda estava em processo de mudança para os lares de terceira idade e era-nos mais próxima. Aparecia nos velhos com a boca ao lado, vítimas das tromboses que agora inspiram outro cuidado hospitalar e um desfecho bastante menos incapacitante. Aparecia nas estradas secundárias portuguesas, repletas de carros em terceira mão (antes do dinheiro da Europa) e de condutores incapazes de recusar o quinto digestivo e agarrados à ideia de que o cinto de segurança era uma mariquice passageira. A morte, apesar de não vir por mim, andava muito mais na rua. Neste jogo em que participamos simplesmente por assistir à passagem do tempo vemos a morte acercar-se todos os dias cada vez mais. Toda a gente conhece as regras: à medida que o tempo decorre, as hipóteses diminuem. Não dá para protelar nem desistir. Desistir é, aliás, entregar o jogo e antecipar o desfecho. Mas a morte está muito diferente. A massificação dos lares de terceira idade transformou a experiência da morte para a família dos velhos e moribundos. Há quarenta anos não havia tantos lares; as famílias eram ainda mais remediadas do que agora. Na maior parte dos casos, os velhos eram cuidados em casa até chegar a sua hora. Não subjazia a este hábito nenhum princípio humanitário: apenas não havia dinheiro para ser de outro modo. A omnipresença dos lares e a imperiosa necessidade do trabalho feminino (eram as mulheres e as crianças sob supervisão das mulheres que cuidavam do acamado) acabaram por introduzir uma espécie de estágio para a morte. Já é muito raro os velhos passarem os últimos anos das suas vidas em casa ou na casa dos seus filhos, cuidados por estes. E, provavelmente – não tenho números, apenas a evidência anedótica de estar atento ao que me rodeia – cada vez mais cedo. A morte vai acontecendo cada vez mais longe: na cama do lar, no leito do hospital. Teoricamente, não tenho nada contra o conceito dos lares. Até sei – todos sabemos, pelas migalhas de notícias cândidas que intervalam os desastres em série que são os o grosso dos telejornais – de histórias enternecedoras de velhos que foram para lares e que se apaixonaram e tiveram direito a uma última e inesperada volta no carrossel antes de serem expulsos da feira. A especificidade desta pandemia global – cuja mortalidade é directamente proporcional à idade de quem vai infectando – revelou sem margem para grandes dúvidas aquilo que todos sabíamos sem o querermos admitir: que a maior parte dos lares, dos mais baratos aos mais caros, são verdadeiros entrepostos de corpos frágeis e mal cuidados alternando períodos semi-comatosos resultantes da sobremedicação com intervalos de rara lucidez desesperada. Não há nada de bondoso no lar, nada que o redima. Os velhos são postos lá para morrer e tudo corre contra eles. Os filhos lá vão cuidando das suas vidas, uns visitam os pais nos lares, outros só lhes ligam de duas em duas semanas, outro nem isso. Até um dia chegar a notícia da morte. E porque os filhos são pais e os pais têm filhos e o tempo passa, de espectadores mais ou menos interessados acabamos por passar todos a utentes.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm segundo na história do universo [dropcap]P[/dropcap]oder-se-ia dizer que nascemos entubados, porque este pequeno passeio a que damos o nome de vida, a nível cósmico, não chega a ser um piscar de olhos. Para complicar mais, nascemos nus – em todos os sentidos. Ao contrário dos bichos que legam aprendizagem por via da hereditariedade, o humano aparece no mundo absolutamente desprovido de qualquer competência. É puro acontecimento de curiosidade. Essa plasticidade primordial é na verdade a sua grande vantagem evolutiva e, e simultaneamente, um dos focos fundamentais de ansiedade do sujeito, pois quanto mais história da espécie vai ficando para trás, mais há para aprender e o dispositivo pelo qual se dá essa aprendizagem é basicamente o mesmo há milénios. O cérebro não acompanha em termos evolutivos a sedimentação acumulativa do saber. É como escavar uma mina cada vez maior com a mesma colher com que se começou a fazer um buraco na terra. A sobrevivência da espécie tal como a conhecemos implica a sobrevivência de um grande número de indivíduos e dos suportes de conhecimento adquiridos ao longo dos séculos. Acaso um cataclismo varresse o planeta e levasse com ele, para além da maior parte da humanidade, tudo quanto esta se socorre para não estar constantemente a reinventar a roda, outra espécie de humano surgiria, condenado – como está desde sempre – a resolver progressivamente a natureza que o rodeia. Desta feita, sem consulta aos manuais. Todo o básico da física, biologia, química e restantes áreas do saber teriam de ser redescobertos. A notícia feliz – a haver uma –, é que o conhecimento – pelo menos científico – parece ser unívoco e as suas conquistas parecem resistir ao tempo. Para os gregos antigos, o humano é uma criatura que caminha de costas para o futuro com os olhos postos no passado. Criatura às arrecuas, condenado a desconhecer o sítio para onde caminha e impedido de voltar para trás nos seus passos. E ainda assim, mal-grado a sua aparente insignificância na ordem geral das coisas, cada sujeito comporta em si a possibilidade de mudar tudo. O conhecimento é a tentativa e erro de muitos consagrado no acerto de um. Formiguinhas laboriosas, cada uma com a sua pequena colher, procurando fendas nas rochas para se abrigarem. Cada descoberta individual beneficia toda a humanidade. Do mesmo modo, cada descoberta individual pode condená-la. Temos a responsabilidade de proteger o nosso património de adquiridos. De cuidar do edifício que começou a ser construído muito antes de nascermos e que continuará a ser edificado muito depois de já termos desaparecido. E essa responsabilidade não se limita a preservar o conhecimento e as suas formas de transmissão do olvido mas também – e cada vez mais – dos ataques do achismo pandémico que o século XXI tem vindo a revelar. Não, a terra não é plana. As vacinas não provocam autismo. Não há nenhuma conspiração mundial que se interesse por tudo quanto fazes e dizes. Nos últimos cem anos temos estado a assistir a dois movimentos inteiramente distintos: por um lado, a indústria do entretenimento de massas tem vindo a promover uma imbecilização crescente nos conteúdos que produz. Por outra parte, o conhecimento científico tornou-se tão complexo e especializado que para se falar sobre determinado assunto com propriedade é necessária uma precisão subatómica e uma vida dedicada a áreas cada vez mais reduzidas e precisas em âmbito. Essas duas culturas totalmente distintas chocam quotidianamente. Não são aldeias vizinhas, são continentes distintos com linguagens mutualmente ininteligíveis. Os efeitos desses choques sentem-se de forma cada vez mais profunda, seja nas políticas de saúde ou energéticas, seja no modo como as pessoas se arriscam a contrariar tudo quanto não compreendem, confundido uma pueril revolta adolescente com um acto de liberdade. A humanidade, quando não acha perigos com que se entreter, inventa-os. E este, ao contrário do meteorito possível ou do desastre climático, está em cada um de nós.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA Joana [dropcap]T[/dropcap]irando os obscenamente ricos cujos investimentos e negócios os impossibilitam de não fazer dinheiro, mesmo que amarrados a uma cadeira até ao final das suas vidas, muito pouca gente ficou melhor do que estava com a pandemia e respectivo confinamento. Uma das raras excepções terão sido os animais de estimação. Estes, habituados a estar em casa à espera de que o dono regresse do trabalho, viram-se subitamente brindados com a presença ininterrupta dos seus cuidadores. Em boa verdade, estando juntos fizemos caminhos opostos: quanto mais confinámos, mais eles desconfinaram. Eu tenho bichos desde que me lembro. O meu pai era caçador e sempre tivemos cães. Recordo-me com especial carinho de um casal de Épagneul Breton a que o meu pai chamou Tarzan e Chita. A fêmea ficava em casa durante o dia e o macho ia com ele para o trabalho. O meu pai foi telhador durante algum tempo, em França. O cão subia as escadas e andaimes para estar perto dele enquanto este trabalhava. Mas não conseguia descer. O meu pai tinha de o trazer às costas. Lembro-me de uma fotografia documentando esse pequeno número de circo amador. Ter-se-á perdido numa das muitas mudanças de casa. Para infelicidade e incompreensão do meu pai, que fora educado para ver nos bichos um valor equivalente ao seu uso, eu queria um gato. Os cães eram muito grandes para mim; muito apegadiços, muito desprovidos da noção de espaço pessoal. E, muito especialmente depois de lhes chover em cima, cheiravam mal. Os gatos pareciam-me mais simpáticos do ponto de vista social, na medida em que porventura eram mais parecidos comigo nesse aspecto: prezavam e exigiam algum distanciamento e, ao contrário dos cães, eram parcimoniosos na distribuição do amor. O meu pai acedeu. A contragosto, deu-me um gato. O Sr. Sardinha. Quando entrei no curso de filosofia, bastos anos mais tarde, uma colega de casa reuniu-nos para nos perguntar se nos importávamos que ela adoptasse uma gatinha. Que seria ela a cuidar da comida, da areia e de toda as coisas práticas relativas ao bicho, que a educaria tanto quanto possível para não destruir a pouca mobília que tínhamos; que não nos preocupássemos: os gatos passam praticamente desapercebidos, dizia-nos. Eu disse logo que sim. Desde que regressara de França com dez anos que não tinha um gato (o meu pai teve paciência para uma excepção, o Sr. Sardinha, e durou até numa viagem para Portugal ele mijar o carro todo e o meu pai amaldiçoá-lo até à quinta geração de descendentes). Recebemos a pequena bichana com o entusiasmo da novidade. A Inês, consciente da diplomacia necessária para dirimir os pequenos conflitos capazes de surgir numa casa na qual as pessoas não estão ligadas por laços familiares, insistia noite após noite para que a gatinha dormisse no quarto dela. Mas esta miava e miava e passado algum tempo a Inês tinha de lhe abrir a porta. A gata vinha ter comigo e dormia na minha cama. Uma semana volvida sobre este ritual diário, a Inês confidenciou-me: eu acho que ela te adoptou. Eu acenei silenciosamente que sim com a cabeça e o assunto da paternidade ficou encerrado ali. A gata mudara de mãos sem mudar de casa. Chamei-lhe Joana e viveu comigo dezasseis anos mais. A única ninhada que teve, de um gato mais afoito que conseguiu entrar em casa pela janela, teve-a em cima de mim, estando eu a dormir. Viu-me acabar o curso de Filosofia. Viu nascer o meu filho Guilherme, de quem cuidava como se fosse filho dela: quando este acordava choramingando vinha-nos chamar. Dormia ao lado do berço dele. Dediquei-lhe um livro – Dez razões para aspirar a ser gato. Foi o bicho mais extraordinário que tive oportunidade de conhecer. Salvou-me mais de um milhão de vezes. É para ela que escrevo hoje.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO dia da grande dança [dropcap]J[/dropcap]á se passou muito tempo e isso nota-se. Sobretudo à noite, quando algumas pessoas vagueiam pelas ruas meio perdidas, perscrutando numa incredulidade que se renova a cada olhar a porta teimosamente fechada do bar onde, noite fora, diluíam às feridas no álcool até da dor restar apenas uma vaga memória a que regressariam somente no dia seguinte. Estranho paradoxo destes estranhos tempos: o álcool nas mãos impede a propagação do vírus; no bucho, fomenta-a. Também eu sinto falta da amizade desordeira e de regá-la até a algazarra ganhar um sentido a que apenas os iniciados têm acesso. A normalidade, ou o que quer que isto seja, voltou manca de onde quer que tenha estado. Embora tenhamos regressado ao dia-a-dia e às suas coisas, falta-lhes densidade e, sobretudo, diversidade. Esta normalidade é como entrar a medo na casa recém-assaltada e reparar que está tudo mais ou menos no sítio menos o que era essencial para dispersar temporariamente as tragédias que se vão acumulando. Na rua organizam-se como se pode pequenos convívios. Os minimercados indianos, obrigados a fechar às oito da noite, mantêm a porta encostada depois da hora e pela frincha vão passando garrafas de cerveja que as pessoas recebem num murmúrio agradecido. Há uma certa clandestinidade em quase tudo: nas pessoas que se juntam em número maior do que o permitido ou o aconselhado para jantar em casa de alguém, naqueles procuram um restaurante que lhes venda umas médias porque o indiano da rua já foi ou tem medo de ser multado por estar aberto depois da hora a que estava obrigado a encerrar. Beber depois das oito da noite tornou-se um acto discretamente revolucionário. Dançar é ainda mais difícil. As discotecas serão provavelmente os últimos sítios a abrir. Nota-se um pouco por todo o lado a ressaca dessa pouca catarse a que nos habituámos. Eu vejo a dança a insinuar-se no quotidiano das pessoas e nos seus gestos mais simples. Vejo-a na forma como as mãos se movimentam a entregar dinheiro e a receber troco; vejo-a na maneira como as pessoas abanam quase imperceptivelmente a cabeça ao som dos ritmos do trânsito na paragem do autocarro; vejo-a quando as pessoas, depois de meia dúzia de cervejas, fecham os olhos e batem compassadamente com a ponta do pé no chão, atentos à música que só eles ouvem. Há pessoas para quem a dança é uma coisa estranha que acontece nos outros. E há pessoas que precisam de dançar até deixar no chão da pista o rebanho de demónios variáveis que carregam diariamente às costas. Eu preciso dançar. A nossa contemporaneidade, muito salubre e bem-comportada, propõe que possamos viver mais tempo e com melhor qualidade se evitarmos o excesso. Há toda uma ética da preservação ideal do indivíduo, da sua mente e do seu corpo, mediante a qual se desvaloriza quem preferiu os shots de tequila nocturnos aos batidos de açaí ao pequeno-almoço. O fumador é absolutamente desprezado. Para alguns, nem deveria merecer cuidados médicos quando na roleta do cancro lhe calhar garganta, boca ou pulmão. Eu bebo, e fumo, e danço. Provavelmente a minha passagem por aqui será mais breve do que a do meu compatriota vegano que mete no bucho seis horas de ginásio por semana. Dançar é o meu ginásio. O meu templo. Não sei quando acabará esta semi-vida a que estamos obrigados. Mas sei como se celebrará esse dia. A dançar.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA história está cheia de homens [dropcap]H[/dropcap]á um aroma de fim do mundo neste 2020. É um ano que parece condensar em si tudo quanto de mau teria de ser distribuído por pelo menos meia dúzia de anos para ser razoavelmente normal. A grande anomalia negativa – uma pandemia de nome manso – tem vindo a fazer sobressair em cada um de nós os aspectos de personalidade que o dia-a-dia normalmente não exige. As circunstâncias excepcionais revelam as pessoas, sobretudo o seu aspecto moral, e a ética é fundamentalmente imprevisível, por mais que à mesa do café se jurem as acções mais nobres. Há quem ache que, passados três meses de semi-isolamento bem comportado, já chega. A economia está de rastos. A maior parte das pessoas está a ser obrigada a fazer contas à vida e a racionar (ainda mais) as despesas. Há obviamente uma casta de criaturas que passa por isto sem que as suas finanças sejam minimamente beliscadas. São aqueles cuja conchinha protectora lhes permite entrar e sair de casa pela garagem e ver da cidade apenas o que o percurso do costume lhes mostra através do vidro lateral do banco traseiro. Até nisso esta crise tem sido cruelmente reveladora: a maior parte de nós pode perder o pouco que constituiu como barreira para a indigência num espaço de meia dúzia de meses. Ter uma casa e comida na mesa é um trabalho a tempo inteiro. Não há anos sabáticos para o sobrevivente. Não há almoços grátis. O pouco que somos capazes de fazer numa alegria despreocupada surge nos breves intervalos da nossa fixação apreensiva no futuro e no que ele nos reserva. Embora o Facebook seja território estupidamente fértil para toda a sorte de especialistas poliédricos – num dia as alterações climáticas, no outro a epidemiologia estatística – a verdade é que imediatamente por baixo de uma espuma muito superficial de dados e citações o que se salta à vista é uma ignorância confrangedora. Uma ignorância como laivos de bully, que se defende da sua própria insegurança atacando em todas as direcções, como um bêbedo socando o ar em seu redor. Uma ignorância que acha os factos desinteressantes e as explicações insuficientes. Uma ignorância que se foca aquém ou além do que está a acontecer e não no que está a acontecer. Uma ignorância que atira para cima da mesa toda a espécie de conspirações descabeladas. Uma ignorância que por detrás de qualquer acontecimento vê parte de um plano mais vasto de domínio, mentira e controlo. Não chega ser uma pandemia, foi criada. As máscaras não são apenas uma forma de determos a propagação do vírus, são uma forma de controlo. Um medicamento não é só um medicamento, é uma decisão política. E deste espartilho com que se vestem para interpretar o mundo, zangados e tristes, acusam os restantes de medo infundado. Andámos séculos para conseguir expurgar da natureza Deus e o diabo e os seus inúmeros agentes. Newton ensinou-nos que as maçãs não caem por nos quererem dizer coisas, mas por causa da gravidade. A medicina contemporânea mostrou-nos que o desrespeito às leis de Deus não causa doenças; as bactérias e vírus sim. Quanto tempo mais será preciso para desparasitar a realidade dos nossos medos subconscientes? Ou dar-se-á o caso de sermos estruturalmente incapazes de viver sem estarmos sempre a tentar encontrar, mesmo que o facto se apresente pornograficamente nu, o lado escondido das coisas?
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasE tudo o vento levou [dropcap]O[/dropcap] fim da Segunda Grande Guerra e a queda do muro de Berlim pareciam anunciar uma era de paz e prosperidade global. Embora a guerra da Jugoslávia e as atrocidades cometidas nos Balcãs avivassem a memória recente nos quais a esperança era ténue e frágil, era uma situação de excepção e não a regra. O mundo ocidental parecia ter chegado ao fim de uma longa e penosa caminhada, ao longo da qual tinha largado a canga do imperialismo colonial e a apetência bélica. A própria União Europeia, titubeando aqui e ali mas basicamente certa da necessidade de transformar a Europa multicelular numa potência global capaz de se sentar à mesa com os adultos, era a prova de que se podia fazer algo do sangue derramado no passado que não fosse mais sangue. Fast Forward até 2020: o Brexit é uma realidade inelutável, os nacionalismos grassam um pouco por todo o lado e tirando uma ou outra excepção, é nítida a falência dos partidos que construíram a Europa. O zeitgeist da época é profundamente anticientífico, as livrarias transformaram-se em bricabraques onde se vendem toda a sorte de compêndios esotéricos, guias de dietas e manuais de auto-ajuda e pululam as teorias da conspiração. A própria ciência tem de adoptar – de forma absolutamente contranatural – uma postura de permissividade face às múltiplas tontices infundadas que se vão sucedendo. Na maior parte dos países as terapias alternativas estão enquadradas legislativamente e configuram muitas vezes uma possibilidade complementar de tratamento no sistema de saúde pública, embora haja zero evidências da sua eficácia terapêutica. As pessoas estão aparentemente fartas da civilização. Querem regressar a um estado de “harmonia com a natureza”. Fazem uma selecção do conhecimento disponível e privilegiam apenas aquele que se conforma com a sua visão do mundo. Recusam tudo o resto, rotulando-o de excesso civilizacional cujo propósito é afastar-nos da origem a que pertencemos. O tédio da civilização não é novo. Baudelaire escreve sobre a difícil relação do homem com a cidade moderna. O movimento New Age dos anos setenta constitui-se por via da recusa de tudo quanto era símbolo da supremacia americana. A humanidade burguesa comporta em si um adolescente irado e cheio de certezas negativas que nunca mais cresce e sai de casa. O fenómeno das redes sociais acaba por ser o megafone de que toda a esta gente meio perdida precisava. Um tipo num arrabalde de Berlin percebe que espalhados por todo o planeta existem pessoas que, como ele, acreditam nos efeitos maléficos das vacinas. “Pessoas despertas”, como cada um dos maluquinhos conspirativos se auto-intitula. Todos aqueles que aceitam os fundamentos científicos que nos permitiram basicamente duplicar a esperança de vida no Séc. XX são “o gado”, a massa informe a caminhar autista para o matadouro do controlo que “eles”, os poderosos, instituíram. Estas pessoas, como é óbvio, não trabalham com lógica. A enciclopédia delas é o youtube. O critério de verdade é a conformidade com o que passaram a pensar. E tudo piora quando têm filhos e resolvem submetê-los a uma infância de acordo com as suas crenças. Sou absolutamente a favor da liberdade de cada um pensar, escolher e agir de acordo com a sua consciência dentro de um quadro leis equilibradas e justas. Daí se impõe que não se possa proibir um cidadão de optar por resolver o seu divórcio mal digerido com o professor Karamba e não com um psicólogo. Mas não proibir não é o mesmo que incentivar. E o que o Estado tem feito, nomeadamente com o enquadramento legal das terapias alternativas e com a promoção académica das mesmas, é muito mais do que permitir. É conferir uma aura de legitimidade a saberes que se escusam a passar pelo crivo do método científico. É dar a medalha a quem atalhou a corrida.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda a ciência [dropcap]É[/dropcap] absolutamente inacreditável a velocidade a que o sentido ou o controlo podem resvalar. Sobretudo numa conversa. A certa altura fala-se da autonomia de Hong Kong face ao regime chinês e, não se sabe bem na arriba de que brisa, acabamos por desabar cabriolando no território fértil e caótico das teorias da conspiração. Eu adoro teorias da conspiração. Como adoro um grelhador no Verão ou uma série de pessoas: ao longe. Desde que possa usufruir descomprometidamente das últimas descobertas dos terraplanistas ou da confirmação de que na genealogia da coroa britânica há provas de existirem lagartos infiltrados, sou todo ouvidos. Para as teorias da conspiração terem piada, o assunto tem de comportar uma certa distância da vida e não ter o potencial de perturbar o já de si frágil dia-a-dia. Não pode ser sobre a conspiração dos produtores de OGMs para nos envenenar lentamente ou sobre o uso das vacinas para nos adoecer e controlar. Aí só dá vontade de esbofetear a pessoa até à lucidez. Perde metade da graça. Para um optimista antropológico do século XIX, as teorias da conspiração actuais teriam ainda menos sentido do que têm para nós. De certo modo, a arte moderna e a sua propensão para cartografar e logo estourar com os limites preparou-nos para todo o tipo de frikalhada discursiva. Mas os antigos acreditavam na progressão da lucidez, pelo que não faria qualquer sentido para eles que em pleno século XXI e com toda a sorte de progressos científicos e tecnológicos nos alforges, nos andássemos a entreter a contestar as básicas leis da física. A pandemia actual teve o condão de semi-silenciar alguns dos disparates que compõem a constelação da crendice. Por um lado, concentrou o foco geral da atenção, normalmente incerto e titubeante como um bêbedo a tentar regressar a casa, num assunto específico de inegável importância; por outra parte, ficou inegavelmente demonstrada (mais uma vez) a indiscutível incapacidade de todos quanto gravitam em redor da ciência à cata das migalhas gordas do desespero em oferecer um contributo que fosse – nem que paliativo – para a solução deste estado-de-coisas. Se isto fosse um jogo de futebol, seria 12-0 para a ciência a cinco minutos do intervalo. Claro que subsistem – subsistirão sempre – aqueles para quem nada do que possa ser conseguido pela ciência prova o que quer que seja. Porque a ciência acaba por ficar sempre “aquém” ou “além” do que realmente interessa e é arrogante a despedir o improvável. Porque a ciência abarca unicamente um pequeno enclave de um território muito mais vasto de possibilidades do humano. No fundo, porque a ciência ao exigir provas sólidas para qualquer teoria que vise explicar ao como e o porquê do mundo, acaba por estabelecer barreiras claras ao que pode ser considerado conhecimento e, deste modo, reduz o âmbito global do ser. O humano consegue pensar em mais coisas do que aquelas que há. E para muito humanos, o poder da ciência de delimitar e circunscrever o perímetro do discurso válido sobre o mundo, é de uma arrogância gnosiológica imperdoável. Porquê ficar pelo que se pode provar quando há tanto mais em que se pode pensar. A inegável vantagem da ciência consiste na sua inesgotável capacidade para a revisão contínua. As explicações científicas são válidas e aceites até surgir explicações melhores. A gravidade de Newton não era fundamentalmente errada: apenas explicava menos do que explica Einstein ao debruçar-se sobre o mesmo fenómeno. A ciência seria injusta se tivesse regras diferentes para a química e para a alquimia, para a acupunctura e para a anestesiologia, para a mezinhas das ervas e para a farmacologia. Não tem. Mas continua a haver quem não goste de jogar pelas regras.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA normalidade [dropcap]L[/dropcap]entamente, a coisa vai-se compondo. As pessoas saem de casa, primeiro muito a medo, de máscaras e luvas e com álcool suficiente nas malas tacarem fogo a um prédio. Passado algum tempo e porque somos criaturas de hábito fácil, vão deixando cair os acessórios de protecção, um a um, e porque o Verão já pisca o olho e a reclusão caseira já esfrangalhou a réstia de sanidade que vinha de origem, os abraços regressam e o viço vai regressando à plantinha desacostumada da luz e do calor. Lentamente, a normalidade. Os nossos políticos, descalços do turismo que lhes permitiu sonhar com um aeroporto na margem sul onde aterrassem todos os dias estrangeiros de toda a sorte com os alforjes a bolçar guita, voltam a ter uma corzinha no rosto. Saem à rua e sorriem o sorriso dos visionários: o sonho comanda a vida e em cada esquina um turista abastado, em cada rosto os cifrões reflectidos nos olhos como nos desenhados animados da Disney onde entrasse o Tio Patinhas. Lentamente, a normalidade. A normalidade acaba por estar para a crise como um buraco insalubre onde dormir está para viver na rua. É a merda a que nos habituámos. A cama de pregos a que chamamos conforto. Pelo que o regresso à normalidade no país da europa onde a taxa de esforço para conseguir meramente viver nos grandes centros urbanos é a maior da Europa devia ser tão saudada como o regresso da peste bubónica. A nossa normalidade antepandémica é acordar todos os dias no sufoco de sermos desapossados do modestíssimo objectivo de podermos habitar um cubículo na cidade onde escolhemos fazer vida e à qual os nossos pais chegaram vindos do êxodo físico e mental de uma ruralidade imposta por decreto. A nossa normalidade é vermos fugir por entre os dedos das mãos o pouquíssimo que conseguimos conquistar desde que o povo saiu à rua de cravo à lapela. A nossa normalidade é uma merda, tem sido uma merda, e deveríamos trocar o contentamento liliputiano de a ela regressar de braços esticados pela inflexibilidade de um “não” incondicional. Não. Não queremos voltar à normalidade, não queremos ser cúmplices do estado-de-coisas a que chegámos para o “bem maior” de uns poucos quantos que por fortuna ou merecimento se sabem aproveitar disto. Não pedimos desculpa pelo egoísmo. Foi a única coisa que nos deixaram crescer. Lisboa desinquieta-se com a falta de gente a comprar patos de borracha, pastéis de bacalhau com queijo da serra e conservas psicadélicas. As consequências? Pela primeira vez em meia dúzia de anos, aparecem umas casas no mercado a preços quase comportáveis. Pela primeira vez em meia dúzia de anos, a banda sonora oficial de Lisboa, “a marcha do trólei”, deixou de se ouvir de cinco em cinco minutos. A inutilidade pornográfica dos coffe labs noruegueses e dos brunches eco-vego-paleolíticos salta tanto à vista que até faz doer os olhinhos. Pela primeira vez, a cidade parece minimamente habitável. Mas lá de cima garantem-nos que lentamente, a normalidade. A máquina de propaganda da corja de malfeitores instalada no poder já arrancou. Acenam com a responsabilidade do povo português, com os excelentes resultados – um estatuto, no mínimo, discutível – do confinamento, com clean houses certificadas não se sabe bem como e com o rebuçadinho costumeiro das inúmeras coisas que Portugal tem para oferecer ao turista do primeiro mundo. “Voltem depressa, que temos saudades das vossas carteiras.” Lentamente, a normalidade. Eu quero é que a normalidade se foda.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA esperteza dos bichos [dropcap]N[/dropcap]os anos oitenta e noventa o golfinho era o maior. A comunicação social, hiperbólica no seu entusiasmo, garantia-nos que os golfinhos só não nos tinham suplantando no domínio do planeta porque viviam no oceano e tinham corpos desprovidos da anatomia necessária para fabricar e manejar utensílios (a falta que um polegar oponível faz). É verdade que os golfinhos têm um cérebro maior que o nosso, que são bichos extremamente sociais e capazes de empatia até para com animais de espécies diferentes e que, até ver, são os únicos animais – para além dos humanos – a ingerir drogas de forma recreativa (os golfinhos em grupo entretêm-se a mordiscar um peixe extremamente venenoso chamado baiacu, ingerindo apenas a quantidade de veneno suficiente para ficarem pedrados e passando-o depois a outro golfinho – nem é preciso substituir o peixe por uma ganza para a comparação ser estupidamente óbvia). Para além disso, têm um sistema de comunicação extremamente complexo e, treinados, são capazes de escolher, através do uso da ecolocação e de um painel capaz de interpretar esses sinais, o que querem comer. “Hoje tem sido carapaus”, dizia uma bióloga numa entrevista, “mas há dias em que só pede polvo”. Dias de polvo. Quem nunca? Hoje em dia, porém, os golfinhos deixaram de estar na moda. Nos anos noventa, eu achava – cavalgando a vaga de entusiasmo à volta dos golfinhos e da sua inteligência – que no dia em que conseguíssemos decifrar a linguagem deles, novos mundos se iriam abrir e muita coisa se resolveria. Em surdina garantiam-nos que os golfinhos eram portadores das peças do saber que nos faltavam para completar o puzzle da nossa interpretação do mundo. No divertido Hitchhiker’s guide to the galaxy do Douglas Adams, os golfinhos estão no segundo lugar do pódio dos animais mais inteligentes da terra (os ratos estão em primeiro; nós, em terceiro). Há filmes sobre a inteligência e empatia dos golfinhos. Há documentários suficientes para encher meia dúzia de discos rígidos. O que aconteceu então aos golfinhos para no séc. XXI deixarem de ser sexys? A explicação mais imediata (e também a mais desinteressante) é a de que a ciência – e sobretudo a ciência extremamente promissora mas ainda imberbe – não é imune a modas. Os golfinhos tinham um potencial tremendo à primeira vista. As observações preliminares permitiam tecer toda a sorte de conjecturas sobre a amplitude das suas capacidades. Um pouco com as pessoas que vamos encontrando e que nos parecem gigantes até se revelarem modestamente humanas por via do contacto prolongado. Na óptica desta explicação, os golfinhos são apenas mais um mamífero giro que prometia muito. Eu acho, no entanto, que a queda dos golfinhos do pedestal do nosso interesse não deriva propriamente da nossa avaliação errada das suas capacidades mas da inveja. Não da nossa inveja, atenção. Mas da inveja do restante mundo animal do interesse que nutrimos quase em exclusivo pelos golfinhos durante uma larga dezena de anos. Os bichos perceberam que tinham tudo a ganhar se demonstrassem competências capazes de despertar o nosso interesse. Os primatas já há muito o faziam, mas sofriam da síndrome de familiar menos dotado. Os golfinhos, por outra parte, são-nos tão distantes que qualquer manifestação de similaridade com as nossas competências (que julgamos sempre tão naturais quanto exclusivas) nos faz imediatamente verter uma pinguinha. Então e os corvos, mentalmente equiparáveis ao uma criança de sete anos na sua habilidade para resolver problemas? E os polvos, peritos no uso instrumental de diversos objectos? E os papagaios, capazes de para além de falar, de aritmética simples? Parece-me óbvio que esta bicharada se reuniu e, remodelando por completo o departamento de marketing, acabou por arranjar forma de dividir melhor o pódio. O segredo dos golfinhos continua a salvo.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAs pessoas de sucesso [dropcap]A[/dropcap]s pessoas de sucesso fascinam-me, independentemente do mérito moral dos seus propósitos. O sucesso é-me naturalmente estranho, não tenho o talento ou as competências para lhe deitar a mão. As poucas coisas que me orgulho ter conseguido acabaram por ser o resultado de percursos irrepetíveis. Como num labirinto de que se sai sem se saber explicar como. As pessoas de sucesso têm um método, são obstinadas e as contrariedades com que se deparam motivam-nos em vez de os desanimar. Para onde quer que olhem, vêem mais nítido e mais longe do que alguma vez conseguirei ver. Quando aparece uma pessoa de sucesso na televisão fico a olhar fascinado para o ecrã, medindo-lhe os gestos e a voz, tentando perceber como o fazem. Nos dias de maior ressabianço, atribuo tudo à sorte; nos de maior fascínio, a qualidades sobre-humanas. As pessoas de sucesso não podem ter dentro os mil e um registos em permanente conflito que as pessoas normais têm. As pessoas de sucesso têm de ser bidimensionais. Mas quando as ouço a falar ou leio o que dizem, não me parecem assim tão diferentes do resto dos humanos. Na maior parte das vezes até me parecem insuportavelmente banais. O que adensa o mistério: de que qualidade específica se alimenta o sucesso? Uma coisa me parece evidente: as pessoas de sucesso olham para a meta do percurso onde se encontram e não para o chão e não reequacionam os seus objectivos à luz das contrariedades que lhes surgem pelo caminho. Não perdem o foco, por mais absurdo e inatingível que o objecto dos seus desejos nos pareça. As pessoas de sucesso são como algumas das personagens dos filmes da Disney: sonham alto e longe e a despeito da zombaria do olhar alheio acabam por encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris. As pessoas normais acabam por não estar talhadas para semelhantes feitos por serem absurdamente lógicas. Tacteiam o caminho que percorrem, medem os riscos, pesam prós e contras e decidem com base em parâmetros de segurança e de certeza. Cada situação com que se deparam obriga-os a mudar de curso. Não são normalmente filhos da puta profissionais e não conseguem ser impiedosos para conseguirem o que querem. Os seus constrangimentos espartilham-nos. Para uma pessoa normal não vale tudo para conseguir o aumento, o posto ou a medalha. A lógica e o pudor moral pesam-lhes. As pessoas de sucesso, nomeadamente no ambiente empresarial ou financeiro, parecem especialmente desprovidas de empatia. Não há outra forma de explicar a forma como conseguem dormir tranquilamente à noite sabendo que as decisões que tomam têm consequências gravosas – por vezes até mortais – para os seus semelhantes. Por outra parte, as pessoas de sucesso parecem ter uma visão bastante restrita do que podem ser os seus semelhantes: são aqueles que ocupam o planalto onde eles se encontram. Para cima disso estão os seus ídolos – pessoas com mais sucesso do que eles – e, para baixo, uma mole informe de gente que encaram como combustível para o seu sucesso. O sucesso para ser resultado de uma lógica imoral e absurda: por um lado, tratar as pessoas como um meio para os seus propósitos e, por outra parte, ser irredutível à lógica das probabilidades. Nada, nem aqueles que os rodeiam nem a inflexibilidade do real se pode interpor entre aquilo que são e aquilo que querem ser. As pessoas de sucesso parecem ser especialmente dotadas para fazer da absoluta improbabilidade uma forma de vida bem-sucedida. Nós, o lombo comunitário onde as pessoas de sucesso assentam pé para galgar os obstáculos no caminho do sucesso, somos como o Raposão do Eça: vergados pela realidade e o seu peso, não temos a ousadia de afirmar.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasVidas de conveniência [dropcap]U[/dropcap]ma das coisas mais estúpidas que a Câmara de Lisboa fez no mandato deste médio-menos que por ora vai ao leme foi mexer no horário de funcionamento das lojas de conveniência, há coisa de três ou quatro anos, obrigando-as a fechar às 22:00 em vez das 24:00. Pensemos no conceito de conveniência e em como encurtar um horário de uma loja o pode servir. Let it sink. Diz-se que foi para evitar que as pessoas bebessem na rua e por isso causassem desacatos. Para nos controlar. Para nosso próprio bem, claro. Pouco tempo depois de a câmara avançar com este horário o Minipreço passou a encerrar às 23:00. Um supermercado a fechar mais tarde do que uma loja de conveniência. Mais uma acha para a fogueira da óbvia necessidade de reformular o conceito de conveniência. Adiante. Como os meus cinco leitores decerto já se aperceberam, a minha tolerância para com as políticas desta Câmara de Lisboa está ao nível da tolerância ao insulto racista. Para mim e para muitos lisboetas, as lojas de conveniência, ou lojas dos indianos – como amiúde nos referimos a elas – são parte integrante da vida citadina e das rotinas que a compõem. São o tabaco a meio do dia, um snack a caminho de casa, uma garrafa de vinho para o jantar. Mas são também um pequeno grande mistério: não se percebe – ou pelo menos eu não percebo – como fazem dinheiro e – para mim o maior mistério de todos – não se antevê o que possam fazer as pessoas que lá trabalham quando não estão a trabalhar. São Indianos. São paquistaneses. São muito semelhantes fisicamente e, do meu ponto vista ingénuo, vestem-se de forma muito parecida. Mas sob a aparente homogeneidade há decerto vida; uma vida, individual e indivisa, talhada milimetricamente à medida do corpo do seu utente. E não fazemos ideia – ou pelo menos eu não faço – do que consistem essas vidas, e os homens e mulheres por detrás do balcão ficam reduzidos à categoria de funções pelas quais o nosso dia calha a passar. O facto de frequentemente terem dificuldades em exprimir-se em português decerto condicionará a forma como comunicamos. São uma comunidade relativamente fechada, dão-se maioritariamente uns com os outros e parece ser difícil encontrar intersecções de interesses que permitam desenvolver uma conversa e, a prazo, uma ligação para lá do âmbito e do registo da loja. Na minha rua há uma média de uma loja de conveniência a cada quatro lojas. A não ser que não tenham Ventil, costumo ser fiel a uma, não por acaso a que fica mais perto da minha casa. Por vezes pergunto a um dos rapazes que lá passam dez ou doze por dia o que estão a ouvir ou o que estão a ver (quando não calham estarem numa chamada telefónica e trocarmos dinheiro e tabaco através de gestos). Às vezes respondem-me imperceptivelmente, de olhos postos no chão, e eu guardo o troco, finjo que me interesso fugazmente por uma mancha na parede e saio sorrindo e acenando. A maior parte das vezes e à maior parte das perguntas fico sem respostas. Vejo-vos muitas vezes a falarem uns com os outros ali na rua. Em que língua falam? Falam todos a mesma língua? Não perceber. Mas uma vez por outra calhamos a entalhar mais de um minuto de conversa. Falo bengali. Eles também. Eu não sei nada de bengali. Assim como não sei nada ou praticamente nada destas pessoas que vieram para Portugal para terem uma oportunidade de viverem uma vida melhor. Mas de certo modo sinto a obrigação de me desviar do caminho paralelo e seguro que traçamos para não embater no desconhecido que são os outros – e, muito especialmente, os outros que mais contrastam connosco – e de me atrever a meter conversa, à espera de que de cada vez perca mais tempo na loja de conveniência só no paleio.