O farol da barra

[dropcap]A[/dropcap]migos, deixem que vos fale hoje de pequenos anacronismos que resistem. E se o conseguem é porque são reservas perenes de humanidade, lugares onde estamos entregues a nós mesmos na companhia de estranhos. Deixem que vos fale de um lugar tão ideal quanto próximo, tão remoto quanto quotidiano, tão necessário como desapercebido. Deixem que vos fale da cumplicidade solitária dos balcões de bares ou de cervejaria – da barra, como é conhecido entre os iniciados.

Lugar para partilha ou meditação solitária, para conversas com estranhos que provavelmente nunca teríamos com os que temos por mais próximos. A barra, até pela sua disposição física, é um lugar igualitário: todos valemos o mesmo, todos estamos sentados ao lado de quem calhar, todos somos da mesma altura.

Eu pratico há muito a barra e sempre que posso encontro lá refúgio. Convém que seja num lugar onde sejamos reconhecidos, porque a conversa e o silêncio são dessa forma facilitados. É que também há isto na barra: a possibilidade do silêncio, algo que se está a tornar raro e precioso nos dias de hoje. Não falo do silêncio de quem conversa com ecrãs e outros telemóveis: isso não é silêncio, é isolamento voluntário e perigoso. Não, é aquele silêncio de quem está entregue a si próprio e o único eco que ouve vem dentro de si.

Mesmo quem não pratique a barra sabe do que falo porque a nossa cultura está cheia de referências sobre esses santuários, algumas mais românticas do que outras. Os quadros de Hopper, Humphrey Bogart em Casablanca a ser surpreendido ao balcão por um amor que julgava perdido, as canções de abandono de Sinatra… E aqui, como sempre, tenho que parar perante o maior profeta deste estilo de vida: vejam a capa de um dos seus melhores e mais tristes discos: No One Cares, álbum de 1959 dedicado aos que perderam e ainda estão à espera. Nela vemos o homem vestido com uma improvável gabardina branca, sentado sozinho ao balcão e olhando com tristeza para um copo vazio. Atrás dele, quase como se fosse por troça, vários casais dançam sorridentes. Disquinho duro, este, e recomendável que esteja fora do alcance das crianças.

Mas distraí-me, ajudem-me. Falava desta noção solitária do amor que se perdeu e que ainda se espera ao balcão. Outro grande campeão destes que perdem foi Lupicínio Rodrigues, cantor in excelsis da dor de corno. Os seus sambas simples e com vocabulário elementar dizem mais desta maleita do que alguns romances contemporâneos. E ainda por cima foi quem cunhou originalmente a expressão “dor de cotovelo”: não amigos, não se trata de inveja – a dor de cotovelo tem origem na posição prolongada dos braços em cima da barra enquanto alguém se lembra do amor que foi embora e planeia vinganças atrozes sobre quem o levou.

Mas a barra não vive apenas de perdas e tristezas: vive da alegria das cumplicidades efémeras, dos que entregam tudo no momento e para o momento. Não há exigências de maior nessas alturas.

Nem sequer a bebida é factor necessário (embora no meu caso seja sempre bem-vinda); o que interessa é a conversa, a deriva dos dias, sem necessidade de grandes pensamentos ou aforismos rebuscados. Tive a sorte de ter grandes companheiros de barra (lembro o poeta José Agostinho Baptista ou o grande Eduardo Guerra Carneiro), uns mais cultos do que outros, uns ilustres e outros anónimos. O que fazia (e faz) a magia desses encontros é a comunhão espontânea e sem compromisso. Falamos com o outro, aprendemos com o outro, ouvimos histórias, rimos, desassossegamos. Não é de espantar que um dos mais conhecidos praticantes desta modalidade – o realizador Fernando Lopes – me tenha um dia confessado na barra de um dos mais conhecidos restaurantes de Lisboa e seu poiso costumeiro: «Quando eu morrer gostava que o meu nome ficasse aqui gravado nesta cadeira».

Gosto deste lugar onde nos podemos desaguar. E constato com alegria que, a pouco e pouco, as mulheres reclamam o seu direito à barra que estupidamente lhes foi vedado pela pressão social.

Que assim continue. São precisos lugares onde possamos exercer as nossas solidões sem complexos, por mais felizmente precárias que essas solidões possam ser.

29 Mai 2019

A verdadeira rede

[dropcap]O[/dropcap]s bons hábitos são para ser mantidos. Infelizmente nesta altura este aparente truísmo tende a ser mais valorizado na promoção de exercício físico para uma “vida saudável” do que no que diz respeito às relações humanas e aos múltiplos aspectos em que interagimos uns com os outros.

Existe um bom hábito de que me orgulho de ter e sobretudo de o conseguir manter. Trata-se de poder contar com vários interlocutores (amigos, conhecidos) cuja opinião sobre variadíssimas matérias me merece confiança. É uma declinação adulta da troca de cromos: mostramos uns aos outros coisas que potencialmente achamos que o outro poderá gostar. Como esta actividade exige reciprocidade, toda a gente fica ganhar. E eis a raridade nestes tempos entrincheirados: muitas vezes discordamos e argumentamos, não para termos razão mas apenas para dizermos o que pensamos e dessa forma prestarmos um elogio a quem nos anunciou o que discutimos.

Este ritual tomou formas diversas aos longos dos anos: primeiro em reuniões adolescentes, com discos ou livros a serem exuberantemente dissecados com a palermice e a paixão da juventude; depois em conversas mais restritas, jantares, almoços, coisas de crescidos; e agora, de forma mais abrangente e imediata, graças à internet e às redes sociais.

Sim: nem tudo que a social media faz é mau. A sua função matricial – a partilha de informação – cumpre-se da melhor maneira quando alguém nos chama a atenção no momento. A função de argumentação é que já não corre tão bem; mas isso advém também deste clima e já são outros quinhentos.

Por isso resolvi fazer de vós interlocutores disto que vos quero mostrar. Melhor: de partilhar o conhecimento de alguém que na minha modesta opinião vale a pena. Chama-se David Brooks, tem vários livros publicados e nesta altura é colunista no New York Times. Uma pesquisa simples dir-vos-á que Brooks é um conservador da linha Edmund Burke (e da sua derivação americana, Alexander Hamilton), um homem de centro-direita excomungado pelos Republicanos pelas suas posições anti-Trump ou pró –casamento entre pessoas do mesmo sexo (coisa que qualquer conservador que se preze defende sem problemas em qualquer lado menos num país onde a direita religiosa tem um peso antigo e forte).

Mas apesar de me identificar com a família política de Brooks não é por isso que aqui o trago: é pelo que escreve, pelo que defende e que vai além da política. As suas colunas no NYT falam de valores, de comportamentos éticos: lealdade, moderação. São, neste tempo de radicalismos fáceis, beneficamente subversivas. Brooks fala de comunidade – abrangente, diversa – por oposição a tribo – exclusivista, beligerante. É um royceano: adjectivo que criei agora e que vem do filósofo americano Josiah Royce que cunhou uma expressão mais tarde utilizada por Martin Luther King, Jr – “the beloved community”, uma comunidade onde os opositores políticos reconhecem e honram a lealdade dos seus antagonistas às causas que defendem e sobre essa base as discutem.

Se isto parece distante aos valores propalados pela ortodoxia em que vivemos é porque é. Se puderem, um conselho: da mesma forma que um amigo me chamou a atenção para um podcast de uma entrevista de David Brooks assim eu o faço perante os que me lêem. Trata-se de uma espantosa conversa com Ezra Klein (“The Ezra Klein Show”) a partir do último livro de Brooks, The Second Mountain: The Quest For A Moral Life, um livro mais biográfico e escrito durante o seu annus horribilis, 2013, em que perdeu muito. A dada altura confessa: “Sobrepus o tempo às pessoas”. E di-lo não de uma forma salvífica ou de auto-ajuda: apenas uma constatação de que houve ali uma altura em que foi menos humano.

Se alguém for conhecer o que este homem pensa e escreve, mesmo que mais tarde vá discordar dele, já fico feliz. Porque acredito – acredito mesmo – que esta partilha simples, apaixonada e aberta de conhecimento é que continua a ser a verdadeira rede.

22 Mai 2019

Dos estranhos tributos

[dropcap]C[/dropcap]omo eu gostaria que as angústias do cronista fossem relevantes, leitores! Não são. E mesmo as alegrias levam, tantas vezes merecidamente, tratos de polé. Mas o cronista tem este pequeníssimo poder: o de domesticar as palavras para que elas façam acrobacias sempre que alguém as queira albergar. E é por isso que aqui estou, e é por isso que as minhas irrelevâncias podem ganhar lantejoulas, assim me veja quem me lê.

Isto nem sempre é fácil de explicar nem provavelmente tem de ser explicado. Quem escreve sobre as pequenas coisas que moram nos dias não tem nada a proclamar senão um breve aceno a tudo o que pode estar diante de nós e que não temos tempo ou paciência para ver. Uma memória, um gesto, um sorriso, um valor, um obstáculo: o quotidiano que se pode ver do café – mas que graças a essa possibilidade, é raro ver. Valham-nos então os poetas, os romancistas, todos os coleccionadores de almas. A crónica, quando funciona, é uma espécie de single comparado com os álbuns da grande escrita: breve, de vida efémera mas com sorte com refrão cantável.

A razão deste prólogo teórico – em que arrisco a partilhar esta estranha idiossincrasia francesa de tudo teorizar e que toda a vida combati – tem a ver com, lá está, o quotidiano. Há alguns dias um amigo perguntou como é que eu conseguia “achar” tantas coisas semanalmente. Este achismo, para os mais distraídos, corresponde a ter uma opinião. É uma boa pergunta que não tem uma resposta de sentido único. Aqui, o que “acho” provém do espanto, da perplexidade, da curiosidade. Não é um dogma e muito menos lei: apenas um tipo que se pergunta “mas por que diabo…?”. A ambição, se alguma há, é instalar a dúvida. E com isso deixar tudo em aberto, poder falar. Tenho saudades de poder falar.

De forma que chegámos ao que interessa, o espanto du jour. Conto: numa saída com amigos fui parar a um bar que bem conheço e bem me conhece. Muita gente, a possibilidade rara de nos ouvirmos uns aos outros. A música ambiente estava alta, demasiado alta; mas a casa estava cheia e isso compreende-se. Por terrível deformação profissional detive-me por momentos no que estávamos a ouvir. Reconheci: “Ena, ainda passam Pink Floyd!”, disse divertido e não sendo particular admirador da banda. Logo alguém me cortou cerce: “Não é Pink Floyd. É Brit Floyd”.

Juro que esperei alguns segundos por algo que se parecesse com uma punch line, um sinal de ironia. Nada. A música que ouvia era de facto dos Brit Floyd (e é a última vez que escrevo isto sem me rir), uma banda de tributo dos Pink Floyd (a sério, fiquem comigo) e que replica nota por nota a música do grupo a que prestam “tributo”.

E é aqui que entra a perplexidade: tributo como? Tributo a quem ? E, do ponto de vista de quem os vai ver (os, hum, esses mesmo, ao que parece esgotaram um Coliseu), a que prestam homenagem? A resposta à última pergunta parece-me fácil: a nós próprios e ao que fomos. Compreendo mas maça-me.

O melhor “tributo” que uma banda ou artista poderá ter é ver alguém pegar no seu legado e acrescentar. Sempre terá sido assim na história da música popular e da criação artística em geral. A reprodução pura e dura é uma aldrabice, memória de fancaria. Mas o mercado da saudade é uma armadilha comum: as próprias bandas desdobram-se em reuniões que normalmente não dão em nada, apesar do aforismo do maior iconoclasta do rock, Mark E. Smith dos The Fall:« Se for eu e a tua avozinha nos bongos é The Fall». Não é. Não pode ser.

Num excelente artigo no New York Times (“Reunion Tour! The Band Is Back! Wait, Who Are These Guys?”) Rob Tannenbaum escreve sobre o fenómeno das reuniões de bandas outrora famosas. Muitas vezes, como no caso dos Foreigner (nome enorme do rock FM americano) apenas existe um único membro da formação original – e ninguém sabe e ninguém se importa.

De forma, leitores, que mais uma vez não acho nada. Ou acho: acho que uma das bênçãos dos praticantes de géneros mais juvenis e enérgicos da música popular é saber quando parar. O mesmo é aplicável a nós, portadores de memórias imaculadas. Porque depois pode acontecer como no concerto americano de Peter Hook ( Joy Division, New Order) em que alguém perguntou, referindo-se sem saber a Ian Curtis: “Onde é que está o tipo que morreu?”

Está certo: quando prestamos tributo ao que fomos nós somos quem morreu.

15 Mai 2019

E se…

[dropcap]O[/dropcap]s dias começam a estar quentes e a pedirem algum ócio merecido, nem que seja para escapar das pequenas e médias tragédias que sempre nos oferecerá a vidinha. Os leitores sabem do que falo: longe de tudo e perto de nós, dedicados de alma e cérebro por uns minutos a questões tão essenciais para a humanidade como “qual será a temperatura ideal de uma imperial” ou, um pouco mais dramático, “que livro é que me apetece ler agora”.

Aqui no bairro é certinho: os cidadãos seniores ganham vida e espaço e as suas alegres rabugices são partilhadas com todos, sem medo nem pudor. Nada é poupado, desde a política ao clássico “onde é que esta juventude irá parar?” e passando pelo melhor lugar onde comer uma lampreiazinha decente. Eu, que tal como o personagem e autor do livro a que roubei o nome desta coluna, me encontro (espero) no meio do caminho da minha vida, gosto de os ouvir. Sento-me perto da mesa em que estão e discretamente tento pescar o máximo de sabedoria e frases saborosas que deles saem. É um ofício delicioso, temperado ainda por cima com uma modesta ambição: um dia gostaria de ser como eles.

E assim aconteceria sem sobressaltos, não fora o aparecimento súbito da menina Marina e da sua filosofia involuntária, que muitas vezes são semente para estas palavras. Como hoje, aliás.

Enquanto atendia um cavalheiro que estava ao meu lado aproveitou para perguntar de forma displicente, um olho em mim e outro no abatanado prestes a sair: “O senhor Nuno já alguma vez pensou como seria se não tivéssemos a vida que temos e fossemos todos mais ricos e felizes?”

Manhã de ócio definitivamente arruinada com esta questão. Por outro lado, crónica assegurada. O que mais me inquietou não foi sequer a presunção de que sendo mais ricos seríamos mais felizes – o que verdadeiramente me perturbou foi o “se”, a ideia da vida no condicional.

Nunca compreendi este exercício, que me parece inútil, triste e perigoso. Mas é uma armadilha em que já vi muito boa gente cair. Viver a vida no condicional é um limbo que deveria ter sido considerado por Dante (sim, outra vez) como mais um círculo no seu Purgatório. Pensar o que poderia ter sido é uma espécie de ingratidão face ao que temos, mesmo quando o que temos não nos agrada. Numa teologia laica seria pecado mortal. Aquele amor que falhou, aquela carreira que não aconteceu, aquele romance que poderíamos ter publicado – pobres minutos, tão desperdiçados neste território de ninguém, que de útil e de belo têm tanto como os famosos prognósticos depois do jogo.

Idealmente, passado, presente e futuro devem estar no mesmo lugar. E se esta formulação parece parente dos tempos preconizados por Santo Agostinho – “o presente do passado; o presente do presente; o presente do futuro” – então é porque é. O famoso carpe diem de Horácio volta a lembrar-nos a profunda tristeza de entregar as nossas almas ao “e se”. Agarrar o dia é aproveitar para pensarmos constantemente no que somos e como podemos fazer para sermos melhores para nós e para os outros, já que não sabemos o minuto seguinte (e não, não é um convite desabrido ao trólaró da vida).

É tão escuro viver no condicional. Uma estrada sem saída, uma rua sem luz. Já nos chega o maior e mais indelével dos “ses” que é nascer. E esse, francamente, já se sabe como irá acabar.

8 Mai 2019

Cansaço

[dropcap]E[/dropcap]m 1982 um dos grandes cronistas em língua portuguesa – o brasileiro Rubem Braga – publicava mais um daqueles textos que deveriam ser ensinados nas escolas. Na aparência tratava-se da recordação de um jogo de futebol entre amigos, na praia. Braga lembrava, de forma suave e melancólica, um essencial desafio que tinha acontecido trinta e sete anos antes.

A crónica é na verdade sobre o efeito da passagem do tempo e da forma como vemos o mundo consoante essa passagem nos afecta. Não resisto em citar este pedaço, para benefício do amigo leitor e do universo em geral: “Ah, roda de amigos e de mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente, uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, será aflita e feia, azeda e triste”. E terminava com esta frase lapidar e resignada: “Ultimamente têm passado tantos anos.”.

Tem razão, o cronista. Pior: parece que os anos que passam ultimamente são cada vez mais. Em pouco mais de uma semana os dias foram ingratos para os amantes das pequenas coisas: a destruição comovente da grande beleza, como aconteceu em Paris (para não falar de outros valores que para aqui deixo de fora); a chacina horrível no domingo pascal no Sri Lanka; e tantas outras atrocidades que não nos chegam ou pelo menos chegam em diferido.

Derrotado, cansado, precisei de uma pausa, do regresso àqueles que escreveram e onde me sinto em casa. Nem aí, nem aí: na mais recente edição da revista Spectator – que historicamente albergou muitos dos que formaram e formam o meu modo de ver o mundo, da política às artes e sempre com a possibilidade de debate – aparece um extraordinário artigo assinado por um James Tooley. Chama-se They Tuck You Up (traduzido à pressa, “Eles Aconchegam-te”) e é um trocadilho com o primeiro verso de um célebre poema de Philip Larkin, This Be The Verse: “They fuck you up, your mom and dad”. Este poema, publicado no livro High Windows, é de Abril de 1971. É um exemplo feroz do cepticismo do poeta, neste caso sobre o conflito de gerações – mas mais do que isso, é uma reflexão pessimista sobre a natureza humana. O poema defende que os pais enchem os filhos com os seus defeitos, embora não o desejem, já que os seus pais também o terão feito. E termina com esta extraordinária quadra, que conclui e dá sentido ao poema: “Man hands on misery to man. / It deepens like a coastal shelf./ Get out as early as you can, / And don’t have any kids yourself “.

O articulista responsabiliza este poema – e este poeta e outros artistas como ele, afirma – como os responsáveis pela decadência e quase extinção da família tradicional que teria começado no final dos anos 60 e na década seguinte. Não se trata portanto de uma opinião literária: trata-se de um panfleto moralista em que se afirma que alguma arte é responsável pela decadência da sociedade e dos valores “decentes “ que essa sociedade deverá ter. E sempre que há alguém que defende este tipo de argumentação sabemos logo duas coisas: é estúpido e é perigoso.

Por coincidência, antes de chegar a este artigo tinha regressado a casa com uma magnífica edição de The North Ship, o primeiro livro de Larkin e que um amigo me ofereceu. A ele regressei imediatamente, como que a procurar santuário. Mas o mal estava feito.

Ah, meu Rubem Braga, você continua a ter razão: ultimamente têm passado muitos anos. O problema é que muitos, tantos, têm sido para trás.

30 Abr 2019

A timidez da coroa

Ao Francisco Amaral, in memoriam

[dropcap]E[/dropcap]xiste um fenómeno natural que tem um nome poético: timidez da coroa. É um processo observado em algumas espécies arbóreas, em que as copas frondosas das árvores não se tocam entre elas. Vistas do solo criam uma espécie de mapa em que o céu aparece como uma fronteira de azul, como um rio aéreo em que as árvores são as margens. A causa deste fenómeno, descoberto em 1920, ainda não está definitivamente assegurada. Alguns cientistas afirmam que esta timidez existe para proteger as árvores de insectos nocivos; outros concluem que é uma forma de sobrevivência, para que a luz que entra por estes intervalos entre as copas possa permitir uma melhor fotossíntese e, por consequência, um melhor desenvolvimento da árvore. Um entendimento entre gigantes que não se tocam para benefício de todos.

Descobri há dias esta timidez da coroa – belíssimo nome, paradoxo involuntário e genial – graças a um vídeo que me apareceu numa rede social. Pouco antes, a mesma rede social tinha anunciado, de surpresa e sem filtros, a morte de Francisco Amaral, radialista de excelência entre outros atributos. E de imediato achei que ambos os acontecimentos estavam relacionados.

Porque nas nossas vidas existem pessoas assim. Não as conhecemos mas estão próximas.

Olhamos para o lado, vemo-las mas não nos cruzamos. Ajudam-nos sem o saberem. O Francisco Amaral foi uma dessas pessoas, não só para mim mas para muitos que cresciam com a rádio a sinalizar os dias, a libertar todas as emoções. O seu programa, Intima Fracção, era uma referência para os que gostavam e queriam saber da nova música que se fazia na altura. Num registo de sereno lirismo, anunciado pelo genérico do programa – o instrumental Mar d’Outubro, do primeiro disco da Sétima Legião -, a Intima Fracção entrava devagarinho pelo coração adentro, cada emissão a causar espantos vários e nunca repetidos.

Em 1988 o jornal O Independente tinha crítica de rádio. Nada de extraordinário – a não ser em Portugal – mas pouco provável nos dias de hoje. Quem a assinava era eu, jovem deslumbrado e nunca saciado pelo que ia ouvindo. Naturalmente uma das primeiras críticas foi um elogio desavergonhado mas justo ao Intima Fracção. Pouco tempo depois da publicação da crítica recebi uma carta do Francisco, a agradecer de forma singela as minhas palavras. Ainda guardo essa carta. Depois disso cruzámo-nos duas ou três vezes, sempre de raspão.

A rádio continua a ser o mais subestimado dos meios de comunicação. A vertigem televisiva tudo sugou e a própria rádio foi perdendo a sua humanidade em favor de playlists anódinas. O programa de autor quase desapareceu. Quase: o Francisco era um desses autores e tê-lo-á sido até ao fim. Depois de ter sido dispensado de uma rádio sem vocação para o albergar, a RADAR foi buscá-lo porque o compreendiam. Ficou feliz o Francisco, com a felicidade de quem regressa a casa.

Esta crónica, que preferia nunca ter escrito, é também de certa forma um regresso a casa. Um agradecimento a partir do Francisco a todos os gigantes que, sem nos tocarem, nos tocam e nos protegem. O último gesto que recebi do Francisco foi o envio, através de uma familiar que com ele trabalhava, de um pin do Intima Fracção. Amanhã usá-lo-ei, não só para lembrá-lo mas para brindar aos grandes que nos seguram, à timidez das coroas.

17 Abr 2019

O que funcionar

[dropcap]A[/dropcap] menina Marina, já famosa por ser a sábia do bairro, pergunta-me: «Senhor Nuno, o costume? Meia de leite e croissant com queijo, não é ?». E sei que a resposta está contida na pergunta e sei que nem sequer me deveria incomodar. Mas não: digo que sim mas não é o costume. Tenho problemas ontológicos por resolver, menina Marina. Antes esses do que outros e parecidos. Quem sou, quem diz o que sou, quem diz o que fui – enfim, um croissant com queijo enquanto maço os leitores.

Os amigos, quando o são, intimidam-nos. Apanham-nos desprevenidos – nós, que assobiamos descontraídos pelas pequenas alamedas da vidinha – e zinga!, perguntam, incomodam, obrigam a tirar o pano dos espelhos. O resultado nem sempre é agradável (nunca, já posso dizer) mas é sempre necessário.

Os amigos, quando temos essa sorte, limpam-nos os fantasmas sem nunca abandonarem o lugar da assombração. Quando isto sucede – esta mistura de indulgência, indiferença e espanto – podemos ajoelhar e dizer como o padre Brown de Chesterton: o mais incrível dos milagres é que eles acontecem.

Passaram já por isto, queridos leitores (e leitoras, mas acaba aqui a cedência aos tempos, os substantivos plurais são para se utilizarem)? Claro que sim. Aquele amigo ou amiga que já não encontram há algum tempo (leia-se: meia vida) mas que no entanto continua curioso, receptivo, que quer saber mais com uma ternura violenta mas bem-vinda. Aqueles que nos acompanharam na guerra mas só agora na paz têm tempo e vontade de fazer perguntas e ficar maravilhados com as respostas. E aceitam, e partilham as suas profundas dissonâncias, e vamos para casa com a barriga cheia desta coisa invulgar que começa a ser as pessoas falarem umas com as outras.

Escrevo isto sem me queixar, consciente que é um privilégio e um pouco monotemático nestas crónicas. Mas se insisto é porque – lá está – não pode ser um privilégio. Mais uma vez Oscar Wilde tinha razão: um amigo é aquele que te apunhala pela frente. Mas quando não existe frente, quando só existe ecrãs e ilusões de proximidade?

Sei lá. Talvez esteja velho, como sempre desejei. Talvez não compreenda nada e numa ingenuidade que não desejo nem pratico lute ainda pelos pequenos grandes gestos, que nos salvarão uns dos outros no quotidiano. Essa “medida temporária de graça” que surge no monólogo final de Whatever Works, o filme de Woody Allen que mais cito e onde fui buscar o título à crónica.

Olho a minha agenda e vejo que irei ler Beckett com o mano João Paulo Cotrim, que conheço desde os quinze anos e que nos voltámos a reconhecer há algum tempo, com surpresa, confirmação e festa. Mas porque nos olhámos, porque nos falámos e não vimos nada do que fomos, apenas do que agora somos.

É ir para a rua e não ter medo de olhar e falar com quem achamos que melhor nos conhece. O resultado é maravilhoso e garanto – o mundo fica um bocadinho melhor. Pelo menos durante um bocadinho mas provavelmente é esse bocadinho que interessa.

Menina Marina, é um croissant com queijo e fale comigo, fale comigo.

10 Abr 2019

Entre amigos

[dropcap]T[/dropcap]empos estranhos estes, leitores. Mas por outro lado, terá havido alguns que o não tenham sido? Duvido. Mas é com estes dias que temos de lidar; e estes são os dias em que todos os dias existem “estudos”.

Sabeis do que falo. É difícil escapar a uma publicação que nos grita que um “estudo” decidiu que o pepino não existe; que respirar é perigoso; que usar pijama está por enquanto fora de moda; que ler crónicas de sujeitos com o apelido Guedes pode ser nocivo à saúde. E por aí fora.

A ideia que parece transversal às conclusões destes “estudos” é esta: “estudámos” o óbvio, e concluímos que o óbvio não apresenta grandes interpretações. É, como dizem os “estudos”, óbvio.

Mas pronto: toda a gente tem direito a “estudar” o que quiser, embora não me importasse nada de conhecer quem financia estas actividades. Dava um jeitão ser subsidiado para um “estudo” que concluísse que à noite temos sono, por exemplo.

Daí que sem surpresa tropecei em mais uma investigação rigorosíssima e essencial à humanidade que concluía que a amizade entre homens heterossexuais durava mais e melhor do que as relações românticas ou casamentos dos sujeitos estudados. Deixem-me colocar a coisa em termos modernos: o “bromance” – contracção entre ‘brother’ ou ‘bro’ (mano) e romance – é coisa mais perene do que namoros ou matrimónios. Ainda bem que alguém pagou a alguém este “estudo”, sob pena de vaguearmos nas trevas até ao fim dos tempos.

Mas pelo menos deu-me assunto, o que nem sempre é fácil. Numa altura em que existe uma fúria igualitária que chega mesmo ao modo de sentir, haja um “estudo” – por mais ocioso e parvo que seja – que lembre que há diferenças. E é nelas que devemos rejubilar. Não falo de hierarquias: a amizade masculina não é melhor, mais leal ou seja o que for do que a amizade entre mulheres. É apenas diferente. E sinceramente, se é ou não mais duradoura do que as “relações” é irrelevante.

Há muitos exemplos públicos e notórios deste fenómeno agora “estudado”: Sinatra e Dean Martin, Kingsley Amis e Philip Larkin, Lobo Antunes e Cardoso Pires. E tantos outros que vivem felizmente no quotidiano. Como é o meu caso e poderá ser o seu, leitor.

Eu conto, só como exemplo: há pouco tempo fiz uma longa viagem, cerca de cinco a seis horas de carro. Um terço desse período foi passado em completo silêncio, com a excepção da música que se fez ouvir na rádio. Os outros dois terços foram mais ruidosos: inventaram-se línguas estranhas para canções, partilharam-se escatologias sem pudor, disseram-se grosserias a sorrir, falou-se de cinema e de episódios marcantes da vida, lembraram-se lengalengas infantis e brejeiras. Rimos, rimos muito. O silêncio foi apenas um parêntesis necessário para tudo isto. E “isto” são quatro amigos em viagem. Nem sequer quatro amigos “íntimos”, de frequência constante e confidentes – apenas gente que se gosta e que circunstâncias profissionais junta de quando em vez.

Isto, para mim, que não tenho “estudos”, é a essência de uma amizade masculina (e pronto, no caso heterossexuais apenas porque calhou assim). A assiduidade nunca está em questão, nunca está à prova. O silêncio é suportado naturalmente e até bem-vindo. Partilhar o silêncio com uma amiga é muito mais difícil. E isto não é um julgamento, apenas uma constatação de quem tem grandes amigas mulheres.

Isso e esse regresso a uma adolescência artificial e efémera faz um pouco da amizade masculina.

Os homens adultos, quando se juntam, transformam-se em crianças velhas e livres. A escritora Iris Murdoch, que não era exactamente uma admiradora deste estado, definiu-nos bem: “ [a companhia masculina] é uma espécie de cumplicidade no crime, (…) de deglutir o presente de forma gulosa mesmo que o inferno esteja por todo o lado”. Terá razão. Mas ainda assim prefiro o que escreveu Montaigne após a morte do seu grande amigo La Boétie: “Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria: ‘Porque era ele, porque era eu’ ”.

Olho uma fotografia: mostra Humphrey Bogart a aninhar o seu grande e pequeno amigo Peter Lorre sob um enorme abraço, com o olhar benevolente de Lauren Bacall. E penso que este sim, é o mundo, e que se lixem os “estudos”.

3 Abr 2019

Da infância

[dropcap]O[/dropcap]que fazemos da infância? De que nos serve, como usamos esse prefácio de nós mesmos? Demasiadas perguntas retóricas para um início de crónica, talvez. E no entanto.

Sobre a infância e a sua influência no que mostramos que somos muito se pode dizer – sobretudo nesta era pós-freudiana, que justifica análises de personalidade com acontecimentos e memórias dessa época de crescimento. Mas daqui desta varanda só vejo o dia-a-dia, e é isso que me interessa. E desta varanda proclamo: a infância está sobrevalorizada. Um pouco como a juventude, de resto. Mas essa será outra conversa.

O mais importante da infância é garanti-la. Fazer com que exista, com carinho, protecção e amor. Quando isto acontece – o que é uma sorte, diga-se – toda a idealização me parece descabida e menor face ao adulto que somos. Para variar, socorro-me da literatura para dar a perceber duas maneiras antagónicas de enfrentar o nosso inicio: Philip Larkin dizia da sua infância que foi um “tédio esquecido” (“a forgotten boredom”). Conhecendo a biografia do poeta sabemos que estava a exagerar um pouco – mas só um pouco. No outro extremo, outro poeta inglês: AE Housman dedicou belíssimos poemas a esses dias longínquos, e para eles cunhou o seu verso mais célebre: “That is the land of lost content”. O país do contentamento perdido, inalcançável, a que nunca mais iremos regressar. O primeiro, um melancólico; o segundo, um nostálgico. Como de costume, e como em quase tudo, estou com Larkin.

Há algum tempo pude rever alguém com quem partilhei os recreios da escola primária e que desde então não tinha voltado a ver. A vida tem o hábito de desrespeitar qualquer tipo de nostalgias. E se bem que consegui colocar o rosto dessa minha amiga em folguedos e contentamentos perdidos, quem eu conheci foi outra pessoa e foi a essa pessoa a que reagi. De nada me valeram ou interessaram presumíveis momentos dourados de pureza e inocência. Eram fantasmas, por mais amáveis ou bem embalsamados que estivessem; e não é muito interessante conviver com fantasmas.

O que vale mais, uma suposta inocência ou a perda disso mesmo? Eu voto pela segunda. A primeira terá que ser precavida, mas nunca idealizada. As culturas que dão valor à velhice percebem que a infância não é um tempo ideal: apenas uma etapa necessária para uma sabedoria transmissível. Não se pode responsabilizar algo com que crescemos indefesos. É por isso que as nostalgias das reuniões de antigos colegas são falácias suportadas. Ninguém se quer ver como era ou pelo menos comparado com o que é. A infância, embora tenha de ser suportada, é sobrevalorizada.

Compreende-se o culto: por vezes a infância é uma urgência que nos acontece em adultos. Leio o excelente Fotografia Apontada À Cabeça, terceiro livro do mano José Anjos, e pressinto nos versos uma infância entalada na garganta, uma criança que caiu e pede ajuda para se levantar. Interessa-me isto, a infância como motor de criação; mas não como lastro para a vida adulta. A velhice é-me mais grata e bem-vinda porque é sempre sabedoria. E como dizia Píndaro, uma velhice honrada e graciosa é a infância da imortalidade.

 

20 Mar 2019

Julgar a arte pelo artista

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] caso é conhecido. No passado dia 3 estreou um documentário realizado por  Dan Reed que está a causar sensação e a desencadear opiniões apaixonadas : Leaving Neverland.  Não que seja necessário muito para que isso aconteça, nestes dias em que o mundo está transformado numa caixa de comentários. Mas o que Reed apresentou tinha tudo para que as emoções mais profundas se soltassem de onde cada vez menos parecem estar presas. Leaving Neverland é, aparentemente, um documentário sobre Michael Jackson; mas não é, como o próprio realizador afirmou: é um panfleto, uma denúncia. “Não é um filme sobre Michael”, disse o cineasta ao site Hollywood Reporter, “É um relato de abuso sexual, de como esse abuso acontece e como as suas consequências estão presentes na vida adulta das vítimas”. O que o documentário de quatro horas ilustra é difícil de ver: dois depoimentos de homens adultos ( Wade Robson e James Safechuck) que revelam em detalhe os abusos que Jackson lhes terá imposto enquanto crianças – e a forma como essa memória afectou as suas vidas a partir daí.

Os rumores sobre a pedofilia de Jackson circulavam desde há muito, assim como outras excentricidades bem menos graves que o cantor parecia cultivar: o branqueamento da sua pele, o comportamento infantil, a sua relação com Elizabeth Taylor, a crença de que se entregava à criogenia numa tentativa desesperada de não envelhecer. Durante a sua vida e sobretudo a partir do momento em que alcançou fama planetária os tablóides nunca mais largaram as canelas de Jackson.

Mas agora é diferente. O ídolo está morto e não se pode defender. Estão cavadas as trincheiras entre os que acreditam nas graves acusações e os fiéis defensores de Jackson, muito organizados e que lhe dedicam uma lealdade canina. A estreia do documentário teve revistas policiais e cães à procura de bombas. Os herdeiros de Jackson processaram a produtora HBO em cem milhões de dólares ao mesmo tempo que produziam um contra-documentário.

Aqui chegamos ao que queria hoje conversar convosco. Entre as reacções mais imediatas ao documentário sobressaíram as muitas estações de rádio e televisão que a partir de agora se recusam a passar a música do homem. E naturalmente, como sempre acontece em tempos à beira do totalitarismo, ouviu-se de imediato a palavra tenebrosa: proibir.

As decisões de entidades privadas começam e acabam nessas entidades. Estão no seu direito, por mais erradas que possam estar. Mas proibir é perigoso porque universal. É uma imposição, o que deveria ser um último recurso. Neste caso cai numa armadilha comum na arte: confundir a obra com o artista. Eu sei que é um exercício difícil; mas tem que ser feito, sob pena de alienarmos muito do que muitos génios nos ofereceram. O facto de Leni Riefenstahl ter sido uma apoiante de um dos mais sórdidos ideais não retira um milímetro ao seu génio. O mesmo, no espectro oposto, se poderá aplicar a Eisenstein. Rimbaud foi traficante de armas, Pound defendeu convictamente o fascismo de Mussolini. Vamos proibi-los? Céline, simpatias nazis. Colette, anti-semita (apesar de casada com um judeu…). Picasso, um orgulhoso e notório misógino.

A arte é para ser apreciada, não para ser julgada em função das imperfeições dos seus autores: não é boa ou má em função das características dos artistas.  Existem em planos separados embora sempre ligadas pela sua singularidade, que é dada pela presença da autoria. A arte vive do artista mas não tem de ser necessariamente uma literal interpretação biográfica. A vida está sempre lá, por definição. É uma mediação, uma verdade que é criada – é a isso que nos devemos ater. Se a música de Michael Jackson me irá soar ao mesmo caso sejam provadas as alegações de pedofilia? Não, nunca. De facto, já não soa, a audição foi maculada. Se as canções se tornaram piores? Impossível.

A arte precisa por vezes de se libertar dos seus autores. Mais ainda: de se libertar de quem os admira, como é sempre o nosso caso.

13 Mar 2019

O pudor da dor

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]credito que os grandes inícios da literatura, aqueles que se tornam tão verdade de arranhados pelo uso, merecem ser lembrados. Estão lá devido ao génio de quem os escreveu, prontos para nos socorrerem sempre que deles precisamos. Como é o meu caso agora, que invoco essas primeiras linhas extraordinárias de História Em Duas Cidades (A Tale of Two Cities) de Charles Dickens. Conhecem, certamente: « Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação da escuridão, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero». Dickens falava dos dias que antecederam e sucederam à Revolução Francesa; mas as palavras são tão atemporais que se podem colar aos dias de hoje e a outros que não conhecemos. Traduzem a velocidade e as contradições de alturas em que o mundo nos parece escapar, tão vertiginosa se apresenta a mudança. E é por essa razão que hoje aqui surgem: para justificar uma crónica baseada na perplexidade que as mudanças velozes podem criar.

Reparem: não se trata de julgamentos ou sequer opinião – embora ambos estejam sempre presentes, em maior ou menor grau. O cronista, mesmo quando questiona e se surpreende, tenta sempre ter razão ou pelo menos conseguir partilhar essa razão. Mas perante o assunto que aqui me traz não posso nem devo impor seja o que for – apenas tentar transmitir o que sinto. Porque é algo tão íntimo que não pode ambicionar a ser nada mais do que uma reflexão, um desabafo. Falo da dor e do que me parece ser a sua banalização.

É algo que os tempos trouxeram e que é familiar a todos; algo que muitos praticam e eu próprio não fui excepção (embora, para ser sincero, me tenha arrependido): a partilha do luto ou da iminência da perda, a exposição daquilo que é mais íntimo, mais primevo até. O anúncio da morte, do luto ou do sofrimento nas redes sociais – e mais propriamente naquela que utilizo, o Facebook –  tornou-se banal, quase quotidiano. Falamos da mais terrível dor para uma multidão que não conhecemos – coisa que provavelmente não faríamos há alguns anos – porque vivemos numa ilusão de proximidade. O algoritmo parece transformar toda a gente em amigos e confidentes. E não é verdade.

Mas a pergunta que mais traduz a minha perplexidade é: porquê ? Porque fazemos isso? O que esperamos quando o fazemos? A comunicação de uma perda é feita há muito e ainda sobrevive nos poucos jornais em papel. Mas só pede uma resposta daqueles que realmente nos conhecem e estimam e que irão estar presentes na despedida. Não é assim no Facebook: escrevem-se elegias, antecipa-se mesmo o luto. Mas o que se recebe é pouco. As reacções são simples, anónimas, até gráficas. Ninguém que não nos conheça está a chorar, asseguro-vos: poderão ter empatia, conhecer por experiência aquilo que lê. Mas o que ali recebemos pela partida de um ente querido – likes, emojis, “forte abraço” – fica assim no mesmo plano afectivo daquilo que recebemos quando nos morre um animal de estimação. E não, não: um bicho, por mais que o adoremos e consideremos “da família”, nunca poderá equivaler a um pai, um filho, um ser humano.

Não duvido por um segundo da autenticidade da dor de quem assim a anuncia. Não é disso que falo. Está-se a perder, parece-me, um pudor que considero essencial para ser humano. A intimidade da dor e da sua partilha banaliza-a; e como a vida é também sofrimento, por extensão banaliza a própria vida. Repito: não existe uma forma ideal de exprimir algo tão do nosso âmago, e muito menos uma classificação de correcto ou incorrecto. Isso seria a mais totalitária das regras. Mas fico perplexo, fico perplexo.

O cristianismo primitivo tinha uma forma específica de oração que pedia a Deus o dom das lágrimas, porque chorar é aceitarmo-nos como imperfeição que sempre seremos. Não será preciso pertencer a uma confissão religiosa para perceber a beleza e pertinência desta atitude. Se perdermos as lágrimas, perdemos tudo – e estamos em risco de o perder. Salvemos pelo menos a perplexidade e o pudor da dor nestes tempos vorazes, Primavera de esperança, Inverno do desespero.

6 Mar 2019

Das perguntas que se vão

[dropcap]À[/dropcap] medida que o tempo avança existem perguntas que ficam para trás, soterradas sob o escombro de modos e olhares em permanente mudança. E agora que já consegui ganhar o prémio de Melhor Truísmo do Dia, deixem-me que vos ofereça esta história.

Há perguntas que se vão, que se despedem ou se desvanecem sem sequer darmos por isso. Lembro-me desta: quantos de nós, jovens ou com mais vida, ainda perguntam: “Vamos hoje dançar?”. E aqui dançar não se refere a uma ida a uma discoteca para efectuar movimentos espasmódicos, individuais e aleatórios que mais ou menos seguem um padrão rítmico; para isso inventou-se um eufemismo fracote que é “Vamos hoje sair?” e que contempla um número mais abrangente de actividades. Não: dançar, juntos e agarrados, o simples acto raro e festivo que significava “ir dançar” modificou-se com a sua banalização e a chegada de novos gostos musicais que não requerem grande aprendizagem de movimentos para exibição na pista e ao parceiro. E isso está certo porque simplesmente não há um valor oposto, moral ou ético, que se possa colocar (estético talvez, mas isso sou eu que tenho mau feitio).

Era nesta e noutras perguntas extintas em que pensava sob um calor primaveril (vamos, por uma vez, fazer um brinde ao aquecimento global), na esplanada do costume. E mais uma vez surgiu a menina Marina – a sábia do bairro, já vos disse -, que, reparando no livro que estava pousado na minha mesa, disse: “O senhor Nuno lê muito. O que anda a ler agora?”.

Magnífica, proverbial, divina menina Marina! Ofereceu-me, ali e então, mais outra pergunta que há muito não ouvia ser feita – nem a mim nem a outrem. Admito que a questão exista e seja praticada em rituais reservados a iniciados ou em clubes de leitura; agora de um modo quotidiano a pergunta já não se aplica como dantes. Mas a dificuldade da resposta permanece, sobretudo perante um interlocutor que mal conhecemos: ao referir o que andamos a ler as reacções podem variar do interesse por cortesia ao julgamento em silêncio (quase sempre aplicável se estivermos a ler poesia). Neste caso obtive o primeiro; mas a minha felicidade não diminuiu por isso. Sobretudo porque o livro que ando a ler – já que não perguntaram – é dos mais belos hinos à leitura, aos livros e aos leitores com que deparei há muito tempo. Chama-se The Uncommon Reader ( A Leitora Real, na versão portuguesa) e foi escrito por Alan Bennett, um dramaturgo e argumentista inglês de que gosto muito. É uma pequena fábula cómica de pouco mais de cem páginas – mas com tanto para dar! Publicado em 2007, só agora o descobri, num timing perfeito e da melhor maneira – quando passeava o olhar pelas estantes de uma livraria. Bennett imagina a rainha Isabel II de Inglaterra a descobrir por acaso a biblioteca ambulante de Westminster, estacionada perto de uma das portas do palácio de Buckingham. E com a colaboração de um leitor apaixonado que é ajudante de cozinha, a rainha entra na odisseia extraordinária da descoberta dos livros e dos mundos dos autores, a ponto de descurar as suas funções oficiais.

Os comentários da rainha ao que lê são maravilhosos, um prodígio de economia humorística e inteligente. Mas o que nos fascina é a sua viagem: sem mapa, estrada ou teorias, lê pelo prazer de ler, sem qualquer espécie de preconceito. Da biografia de Sylvia Plath (de que não gostou) passa sem medo para as memórias de Lauren Bacall (de que gostou e por quem sente uma ponta de inveja); a análise psicológica de Henry James maça-a, bem como os autores que convida para uma recepção no palácio; não consegue compreender bem o humor subtil de classe social dos livros de Jane Austen porque simplesmente viveu sempre acima deles… E mais, muito mais que não irei estar aqui a desvendar.

O que queria dizer é isto: dificilmente os livros – ou a leitura – nos fazem melhores pessoas, moralmente falando. Mas são uma aventura necessária, a que nos devemos entregar sem reservas nem bússola para podermos traçar a nossa rota. O espanto da rainha de Inglaterra é belo e acessível a todos. E ajuda a salvar perguntas extintas e de porte imponente. Vamos a ele, vamos a ele.

27 Fev 2019

O que fica

[dropcap]T[/dropcap]alvez haja de facto uma misteriosa ordem das coisas que se reflicta na nossa existência. Não falo de desígnios divinos ou extraordinárias influências planetárias úteis para sedução pirosa e charlatanice sortida. Não: será mais algo que a dado momento nós atraímos por dedicarmos tanto do nosso tempo a pensar em silêncio sobre o assunto.

Explico: os meus dias mais recentes têm sido assolados por perdas mais ou menos próximas, mais ou menos públicas. O livro – extraordinário, por sinal – que me ocupa agora é Nada A Temer, de Julian Barnes, uma reflexão filosófica e autobiográfica sobre a mortalidade que deve muito a Montaigne. Há uma semana esta página falava-vos da partida de um homem livre. Senti que seria necessário fazer uma pausa nesta anatomia da perda mas não sabia como fazê-lo nem como escrevê-lo.

E de repente, lá está: a tal ordem misteriosa das coisas a entrar pelos minutos dentro. Há alguns dias fui convidado para dizer alguns poemas num jantar cujo tema era “A Noite Poética de Nova Iorque”.

Imediatamente pensei num dos autores que associo a essa cidade: Ron Padgett. Assim, ao percorrer mais uma vez os seus poemas deparei com um de que gosto muito e já não me recordava: O Agrafador (que foi traduzido de forma esplêndida pela Rosalina Marshall). Nele o poeta fala do que ficou depois da perda da mãe: roupas velhas, trocos, pratos, quase nada. E um agrafador, que o seduz. Nesse objecto, que o poeta reaprende a apreciar e a usar está a sua mãe, como uma aragem. Este poema lembrou-me outro (são melhores do que cerejas, sim), também belíssimo. Chama-se cazaquistão e foi escrito por Rosa Oliveira. A mesma perda, a mesma memória, um objecto: um casaco. O poema perde força e beleza se o truncar mas sinto necessidade, para o que aqui quero dizer, de repetir os últimos versos: “O casaco era da mãe/ A mãe estará sempre no casaco”.

Percebi: é altura de escrever e de pensar sobre o que fica, esta indizível permanência que tanto pode confortar como desesperar ou mesmo revoltar. O legado, mesmo assim, parece ser o pouco que dá sentido a este breve passeio pelo mundo. O que fica de nós – um gesto, um filho, uma obra-prima, o que for – irá sempre transcender o que ambicionamos. Essa linha invisível ajuda-nos a lidar com a ideia de finitude. E, para quem como eu prefere a herança à mudança, leva a um tipo de atitude que vai do político à escolha mais trivial ou quotidiana.

Direis: mas há quem deixe legados terríveis. Sem dúvida, e uma breve visão da história da Humanidade chega para alimentar esse cepticismo. Mas esse confronto com o horror que herdámos tem de servir para fortificar o que queremos deixar. A vida, além de despesa, é investimento. Precário, desconhecido, inseguro, de altíssimo risco – mas investimento.

Talvez a famosa lenda da morte do grande poeta chinês Li Bai (701 – 762) consiga ajudar-me a dizer o que pretendo. Segundo ela, este poeta – grande apreciador de prazeres sensuais e especialmente etílicos – resolveu percorrer o rio Yangtze, ébrio depois de uma festa. Escolheu uma pequena embarcação e olhou para o céu: estava uma noite de luar perfeita. Li Bai não terá resistido à extrema beleza da Lua e ali mesmo escreveu um poema sobre isso. Fascinado com os reflexos que a Lua projectava no rio, o poeta ter-se-á debruçado na ânsia de os recolher; caiu à água e afogou-se. A pequena embarcação seguiu o seu caminho, levando apenas o último poema que Li Bai escreveu, até gentilmente encalhar numa das margens, onde alguém o recolheu. Foi assim que o poema sobreviveu até aos nossos dias.

Parece-me uma bela metáfora para como pode ser o que fica: apaixonarmo-nos pelos dias, fazer tudo o que for possível para os tornar mais fáceis e graciosos. Assim para que no dia em que o barco seguir o seu caminho, à deriva e vazio, poder haver uma margem e alguém que possa salvar o poema.

20 Fev 2019

Elegia para um homem livre

[dropcap]J[/dropcap]á que aqui estamos para nos conhecermos melhor, permitam que vos confesse, outra vez: é-me difícil levar alguém a sério, a começar por mim – levar a vida a sério. Não é um defeito nem será uma qualidade: é apenas uma característica condicionada pelo conhecimento do desfecho que todos iremos ter e que portanto é passível de tudo relativizar.

Não me interpretem mal, por favor. Não se trata nem de leviandade nem de morbidez senão de um esforço titânico de manter alguma lucidez perante a injustiça que será sempre viver. Reconheço e admiro atributos como a bondade, o talento ou a honra, entre outros. Levo a sério os que amo porque os meus afectos serão, se tiver sorte, o meu parco legado. Cumpro as responsabilidades que me exigem da maneira que posso. Gosto da vida, sobretudo quando considero a alternativa. “It’s a hell of a ride”, canta o meu ídolo Paddy McAloon dos Prefab Sprout, para logo a seguir concluir “but a journey to dust”.

Isto para vos dizer que, apesar do seu sorriso e da sábia e impenitente desfaçatez, a morte levou há algumas semanas um poeta. Mais, bastante mais: um homem livre, sabedor do preço e do valor que custa manter essa liberdade e sobretudo da diferença entre estes dois substantivos. Rui Caeiro – é este o seu nome – deixou entrar finalmente quem sempre conheceu e com quem sempre dialogou num misto de troça e de reconhecimento. Não vou mentir e dizer que o conhecia; mas dizendo-o não minto, porque o li. Porque os versos que escreveu eram palavras-espelho para tanta gente, para mim. Tratou por tu a sua mortalidade e de caminho ofereceu-lhe versos como estes: “Porque a verdade é esta: se tu levas a vida / a sério a morte vence-te com a maior das limpezas// Se a levas a brincar ela vence-te à mesma /porém sem glória: o que é vencer um brincalhão?”.

Bastariam estas palavras que ecoam como uma gargalhada de condenado para fazer de Rui Caeiro um exemplo – coisa que o próprio, suspeito, desdenharia. Caeiro combateu a morte da única maneira possível: vivendo. Era homem de amizade fácil, de saber enciclopédico mas nunca ostensivo; assim disseram os que com quem ele privaram e beneficiaram da sua generosidade e acutilância. Nós, os leitores, conseguíamos pressentir isso mesmo nas notáveis traduções que fez – lembro uma de Cesare Pavese, outro que andou às voltas com a morte até se apaixonar por ela – e sobretudo na sua poesia. O excelente (e auto-explicativo) Sobre a nossa morte bem muito obrigado é um conjunto magnífico de ensinamentos que não ficariam mal a um moderno Séneca que estivesse armado de ternura e de ironia: « A morte, provavelmente.», escreve Rui Caeiro. « O tempo que falta até lá. O que ainda resta.

Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de exaltação, de sabedoria.
Diante da morte o importante é estar.»

Custa-me muito ver partir homens livres por ser a condição a que mais aspiro e o valor que mais defendo. Mas talvez a morte seja a derradeira liberdade; não sei. Até lá, e seguindo o que aprendi, diante dela estarei.

14 Fev 2019

A amizade que se perde

[dropcap]E[/dropcap]ra um daqueles dias que Lisboa costuma oferecer em Janeiro: um sol de Inverno esplêndido, um azul límpido e com um gume doce que contraria qualquer assomo de tristeza. Estava sentado na esplanada do café do costume com um velho amigo, observando em silêncio quem passa. A amizade antiga tem esta coisa maravilhosa: não se inquieta com o silêncio do outro; compreende-o e partilha-o sem questões ou ansiedades. E assim nos mantínhamos, resistindo ao frio que se fazia sentir até a menina Marina – a sábia do bairro – disparar de forma inatacável: «Está frio».

Pois estava, concordámos nós de forma estremunhada, o silêncio quebrado. Mas o meu amigo pareceu aproveitar a boleia das palavras da menina Marina e sem aviso perguntou-me:
– Conheces alguma canção sobre a perda de um amigo?
– Sobre a morte de um amigo?, indaguei surpreendido.
– Não. Sobre o fim da amizade. Sobre a morte de um amigo mas em vida, amigos que deixam de o ser, que se zangam. Conheces?

Aqui tenho de fazer uma pausa para explicar o porquê do enunciado da pergunta. Gosto e conheço muitas canções devido a, entre outras coisas, ter o inócuo defeito de ver a vida também como um musical – cada emoção, cada situação que enfrento é passível de ter banda sonora apropriada. Esta convicção já me levou a ter de suportar olhares reprovadores em lugares públicos quando começo a trautear baixinho, sobretudo em repartições de Finanças. Enfim, mais uma vez divago. Adiante. De forma apressada respondi com duas canções, uma mais conhecida do que outra: o auto-explicativo We Used To Be Friends, dos Dandy Warhol; e o famoso canto de separação de Lennon e McCartney, Two Of Us. Em ambos os casos são expressões dolorosas, a primeira mediana e a outra genial – mas ambas com um fundo negro de dor por sarar.

E foi só depois de exibir mais uma vez o breviário de conhecimentos inúteis que me habita que percebi: o meu amigo estava a sofrer. Tinha perdido uma amizade que julgava – como tantas vezes julgamos – ser para a vida. Uma zanga por motivos que para aqui não interessam deitou fora um património acumulado de anos, que nada nem ninguém podem substituir. Sei do que escrevo, sei como o olhei porque me reconheci: a perda de uma amizade – essa flor de cristal que exige uma terna vigilância – pode ser e muitas vezes é mais sentida do que qualquer amor. Já me aconteceu, infelizmente, e mesmo enquanto escrevo esta crónica tenho de enfrentar demónios que julgava desfeitos.

A perda de uma amizade não é fácil justamente pela raridade que é tê-la e mantê-la. Muitas vezes dói mais do que a separação amorosa. Num texto magnífico, escrito no século XVII , D. Francisco de Portugal explica a diferença entre amizade e amor: «O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si». E deixa esta verdade bela como a neve: « (…) a amizade é uma afeição reverente, ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer do que desejo.». Isto, quando se vai em vida, é insubstituível. Para os amigos que partem deste mundo teremos sempre a saudade e o fraco consolo de termos sido vítimas de uma lei que um dia também nos irá condenar. Mas a amizade que se perde por afastamento intencional não dói pela distância: magoa pela proximidade, pela impossibilidade de chegarmos ao que já esteve em nós e está agora tão perto. E fica sempre um grão de culpa – improvável, rasteira, insidiosa culpa.

O dia pareceu ficar mais frio. Ouvi os lamentos do meu amigo sem saber o que responder pela simples razão de que nenhuma resposta iria servir. Ao despedirmo-nos, abraçámo-nos sem uma palavra embora ao mesmo tempo estivéssemos a dizer “não me deixes, que a vida já é o que é”. Sim, deveria haver mais canções sobre isto.

30 Jan 2019

O mito do primeiro amor

[dropcap]H[/dropcap]á dias em que o mundo nos exige que paremos, que pousemos as armas e as angústias nem que seja por um instante. Contemplar apenas o que está próximo e, se for necessário, escrevê-lo sem ambições de falar de temas maiores. “Há um certo meio de começar uma crônica por uma trivialidade”, escreveu Machado de Assis aos 38 anos. E depois prosseguia, explicando que bastaria dizer, por exemplo, “Calor! Que desenfreado calor!”. O genial brasileiro escrevia em 1877 sob a canícula do Verão do Rio de Janeiro: percebe-se como a trivialidade se torna essencial naquele momento.

Estando muitíssimo (e infelizmente…) longe dos escritos do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas esta crónica tende a ser trivial. Fala de amor, do amor dito romântico; e o amor é trivial porque é comum e existe. Não porque não seja precioso mas porque não é raro. Pode é não nos acontecer – e isso sim, é tragédia maior. Mas de todas as matizes amorosas que experimentamos na vida – e agora sim, chegamos ao cerne da conversa – a mais sobrevalorizada é a força irrepetível do primeiro amor.

A ideia de que não há amor como o primeiro é publicidade enganosa. O primeiro amor é um princípio normalmente titubeante que nos prepara para a montanha-russa das paixões – isto se tivermos sorte. George Bernard Shaw dizia que o primeiro amor é apenas um pouco de tolice e muita curiosidade e o aforismo parece-me que acerta na batata. É verdade que a arte e a literatura em particular ajudaram à difusão deste mito; mas pensem em Romeu e Julieta: será que o desfecho da história seria tão trágico se os amantes tivessem um pouco mais de bagagem amorosa de experiências prévias? E por outro lado: como poderia Camões ter escrito o magnífico soneto “Tanto do meu estado me acho incerto” se não soubesse bem do que falava? Como poderia Sinatra cantar com tanta verdade o que cantou se não tivesse atravessado por inúmeras vezes o coração negro das paixões verdadeiras?

Admito que se trate de uma posição radical mas no primeiro amor não vejo inocência e candura – apenas medo do desconhecido e do terrível momento em que tudo se irá esboroar. A revisão nostálgica dessa época que parece perfeita a tanta gente está contaminada por uma idealização que pode aleijar. Num livro de que todos conhecem a magnífica frase inicial (“The past is a foreign country; they do things differently there”), o protagonista de sessenta anos relembra o seu primeiro amor e a consequente perda de inocência que o irá marcar para o resto da sua vida. Não é uma história optimista e romântica – antes pelo contrário.

Pela minha parte lembro-me bem do meu primeiro amor correspondido (e generosamente deixo de fora as paixonetas que me consumiram em silêncio até lá chegar). Vejo um rapaz desengonçado e aterrorizado a tentar ganhar coragem no whisky-cola e a falar bastante depressa. Lembro um desespero optimista, um suspiro de alívio mesmo antes do apocalipse. Felizmente chegou o segundo amor e alguns outros depois desse. Foram necessárias várias provações para poder chegar à pequena sabedoria com que hoje vivo: a modesta ambição de quem ama outrem não é ser o primeiro mas o último. E é nisso em que todos os dias me empenho.

23 Jan 2019

A arte como campo de batalha

[dropcap]D[/dropcap]e quando em vez a vida oferece-nos pepitas inesperadas e muito bem-vindas, que com sorte irão ficar connosco até ao fim. Foi o que me aconteceu, há alguns meses: graças a uma sessão dos Poetas do Povo – encontros poéticos idealizados pelo meu amigo Alexandre Cortez e que já vão no quinto ano de existência – vi-me, pela minha condição de anfitrião, a jantar ao lado de Mestre Cruzeiro Seixas. Para quem não sabe de quem falo, poupo uma ida ao Google: Cruzeiro Seixas é, juntamente com Fernando Lemos, um dos sobreviventes dos surrealistas portugueses. Poeta e pintor, aos 98 anos apresenta um humor e lucidez fabulosos, para além de uma disponibilidade encantadora. Muitos foram os momentos que retenho dessa noite; mas para o que aqui me interessa houve este que passo a contar.

O restaurante-bar onde se realizam estas sessões acolhe também uma residência artística de jovens fadistas. E assim, durante o jantar e entre conversas, ouvimos fado. No final da actuação da artista perguntei ao mestre o que pensava ele do fado: «Adoro!», disse-me com os olhos a brilhar. «Sempre adorei mesmo quando não se podia gostar de fado porque era coisa do regime e outras asneiras parecidas…Eu gosto e gosto porque o sinto.»

Foi esta resposta, tão anacrónica e marginal no clima destes dias, que me interessou. Eis um homem que manteve durante a sua vida posições políticas que quase lhe custaram a liberdade; que sempre se envolveu com o seu tempo e que no entanto proclamava para um género artístico a quintessência do prazer solitário – o prazer estético, sem intenções, função ou moral: apenas sentir.

Só que nos dias que correm este tipo de sentimento parece ter perdido valor e sentido. A arte é definida não pelas impressões que provoca ou cria no espectador mas pela sua função de educação social e política. Se não tem uma “mensagem” não é “arte” – será coisa menor, entretenimento ou, no pior dos casos, subversão.

Wesley Morris, crítico de arte e cinema, disse-o melhor num excelente artigo publicado no New York Times em Outubro de 2018 (e neste excerto que opto por não traduzir) : «A disagreement over one piece of culture points to where our discourse has arrived when it comes to talking about all culture — at a roiling impasse.

The conversations are exasperated, the verdicts swift, conclusive and seemingly absolute. The goal is to protect and condemn work, not for its quality, per se, but for its values. Is this art or artist, this character, this joke bad for women, gays, trans people, nonwhites? Are the casts diverse enough? Is this museum show inclusive of enough different kinds of artists? Does the race of the curators correspond with the subject of the show or collection? Increasingly, these questions stand in for a discussion of the art itself.» Ou seja, quando se discute arte não se está a discutir estética mas ética – ou a ausência dela face aos valores prevalecentes nesta cultura. Morris é um produto da academia dos anos 90, que embarcou nesse lamentável flagelo que é a “morte do autor” definida pelo estruturalismo. E é desse modo que percebe os erros que este tipo de avaliação incorre.

Mas piores do que os erros são os perigos. Num ensaio de 1913, Lytton Strachey – para mim o mais interessante e talentoso membro do chamado “Grupo de Bloomsbury” – prevê na perfeição este cenário: a intolerância, depois de estar presente na Metafísica (com as perseguições religiosas) terá passado para a Ética (com a condenação de comportamentos “desviantes” como a homossexualidade) para finalmente ir procurar refúgio no derradeiro abrigo: a Estética. Acertou. Todos sabemos o que está a acontecer: livros que são banidos por serem “racistas” ou “homófobos” ou, de uma forma vaga, ofensivos. A cultura popular ressente-se imediatamente: a série de animação Family Guy (até agora com um humor livre e ácido) vai ser higienizada pelos seus autores de forma a não incluir piadas que possam ofender a comunidade gay; o grupo de rock Guns n’ Roses, famoso pelo seu modo de vida, hum, rock n’roll, anunciou que vai retirar de futuras compilações algumas canções que podem ser “ofensivas” – o que deveria logo fazer-nos perguntar de que raio vale estar num grupo de rock se não podemos ofender ninguém.

Nesta intolerância estética nem os personagens de ficção são poupados: James Bond – repito: o personagem criado por Ian Fleming – foi condenado por um grupo de respeitáveis profissionais de saúde por ser “alcoólico”. E já há pressões para que passe a ser representado por actores de cor ou transgénero, para que as minorias supostamente ofendidas fiquem tranquilas.

É este o estado do mundo. Um amigo lembrou-me há alguns dias como nunca teria pensado ser outra vez necessário defender o célebre prefácio de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, onde o autor irlandês defende coisas como «Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco. Os que procuram decifrar o símbolo correm também seu próprio risco» até ao seu famoso desfecho «Toda a arte é inútil». Talvez não o seja – e não é – mas essa possibilidade terá sempre de existir.

16 Jan 2019

Elogio da rotina

[dropcap]E[/dropcap]star vivo pode ser um espantoso acaso cósmico e sabemos que não acaba bem. Mas a viagem vale a pena. As paisagens que iremos atravessar nem sempre serão as mais bonitas ou as mais desejadas; algumas irão deixar feridas e mazelas de que nunca iremos recuperar. Mas do tanto de bom que inevitavelmente guardaremos pelo caminho existirá sempre este maravilhoso truísmo: aprendemos. É um modo de usar a vida que nos chega naturalmente, quer por tentativa e erro quer apenas por estar atento ao que fomos e ao que somos.

Aprender exige, mais tarde ou mais cedo, um acto de contrição. Algo de que julgávamos ter uma certeza inamovível transforma-se de repente num quase embaraço pelo simples facto de termos arrecadado experiência e conhecimento. E se vos maço com um início de crónica que quase ameaça o registo dos piores livros de auto-ajuda (há “melhores” ?) é porque aqui venho confessar o meu caso e procurar redenção.

Porque houve um tempo em que desprezava a rotina. Queria fugir dela, como se foge de uma doença ou se tenta evitar um mau presságio. Considerava uma coisa menor, pouco digna e sobretudo algo que impedia de “viver a vida como ela deveria ser vivida”. Naturalmente este tipo de considerações coincidiu com a juventude, que é o mais próximo que o ser humano irá estar da imortalidade – e consequentemente o período em que estamos dispostos a correr mais riscos e a ser mais patetas em geral. Mas divago.

Todos conhecemos essa noção romântica da fuga à rotina, difundida na nossa sociedade sobretudo a partir do advento da Revolução Industrial, em que os dias ficaram mais presos por horários rígidos. Mas a rotina não é uma banalização: é uma âncora, um caminho percorrido que conhecemos bem. São rituais que nos estruturam, gestos e jeitos que procuramos pela sua familiaridade e conforto.

Nem sequer é um obstáculo à criatividade ou às mais importantes decisões. O poeta inglês W.H.Auden afirmava que a rotina numa pessoa inteligente é sinal de ambição. Os seus dias eram pontuados de forma implacável: despertar e palavras cruzadas às seis da manhã; cerca de onze horas de trabalho movidas a Benzedrina (o nome comercial da anfetamina, então substância legal e muito popular entre escritores), pausa para receber convidados e beber vodka martinis fortíssimos, jantar e recolha ao leito com ajuda de um soporífero (recusava-se a trabalhar durante a noite porque “só os Hitler deste mundo trabalham à noite”).

No dia seguinte a fórmula repetia-se, numa rotina capaz de empalidecer o mais profissional dos boémios. E podia continuar com muitos exemplos, o mais famoso sendo o do grande homem que com as suas decisões solitárias salvou a Europa durante a Segunda Guerra: o dia de Winston Churchill envolvia vários banhos, um pequeno-almoço regado a whisky com soda, horas a ditar discursos e memorandos, pausa para um almoço de três pratos, vinho e brandy, jogar às cartas com a mulher, trabalho outra vez, bebidas antes de jantar, jantar, trabalho e dormir. Assim, nos dias considerados “normais”.

Mesmo nós, os que não somos tocados pelo génio, compreendemos a manutenção destes rituais. Os nossos são mais próximos e menos grandiosos: a ida ao café do costume, a leitura à noite, uma bebida antes do jantar. Mas é de rotina que se fala; não é um método nem sequer uma solução. É uma arte da repetição, momentos que se aprendem a acarinhar, mesmo na sua ausência. É uma forma de domesticar o tempo, fazê-lo saltar pelo aro de metal quando nos bem apetece enquanto se contempla uma plateia que conhecemos bem. E agradecer, agradecer sempre.

9 Jan 2019

Esperança e memória

[dropcap]É[/dropcap] difícil evitar esta onda de optimismo sazonal que nos invade no início de cada ano. O clima é tão forte e a pressão social tão intensa que mesmo velhos pessimistas antropológicos como este vosso escravo são compelidos a sorrir e a acreditar que o que aí vem será melhor. Não faz mal: é uma ilusão doce e inofensiva que, se formos a ver, até sabe bem. E há sempre a risível probabilidade de ser verdade, pelo menos durante algum tempo. É bom pensar que por algum misterioso motivo tudo se regenera para melhor a partir do primeiro dia do calendário gregoriano, como se os factos mais desagradáveis da vida ficassem suspensos por um instante num território remoto e inacessível. Para quem duvida mas despreza determinismos, como é o meu caso, é uma oportunidade perfeita para utilizar a nossa palavra preferida: “talvez”.

Mesmo assim sentimo-nos desconfortáveis neste universo paralelo momentâneo. Não queremos ser desmancha-prazeres mas também não conseguimos embarcar de boa vontade nas promessas e esperanças desmedidas que muitas vezes apenas reflectem os falhanços passados que gostaríamos de mudar. Mas há muito que é assim e, suspeito, assim será durante os próximos tempos – quanto mais não seja porque disso precisamos.

Tive a oportunidade recente de voltar a confrontar toda essa desmesurada e maravilhosa carga de esperança e confiança no futuro ao assistir a um extraordinário milagre documental: chama-se They Shall Not Grow Old e é realizado por Peter Jackson (sim, o mesmo da trilogia de O Senhor dos Anéis). A partir de filme e depoimentos de época, Jackson mostra-nos o que foi ser um soldado britânico a combater nas trincheiras da I Guerra Mundial. O impacto é imenso, tanto em termos de narrativa como na parte visual. O trabalho do realizador neo-zelandês – com a essencial cumplicidade do Imperial War Museum, que colocou à disposição todos os seus arquivos – foi seleccionar, restaurar, colorir e sonorizar filmagens de época. Para isso, para além da tecnologia que domina como ninguém, Jackson contou com a colaboração de leitores labiais para recriarem o que era dito nesses filmes para depois o entregar a actores que se encarregaram de dar voz ao que vemos. Além disso alterou a velocidade dos filmes de então para os familiares 24 fotogramas por segundo, evitando assim a pátina do tempo que passou e consequentemente envolvendo o espectador de hoje numa narrativa contemporânea.

Mas apesar de todos estes prodígios o que de facto faz a força deste documentário são os depoimentos não identificados de cerca de 120 veteranos que viveram e sobreviveram ao conflito. Ouvimo-los em off, sobre as imagens; percebemos quem são os oficiais e os soldados. Acompanhamo-los desde o entusiasmo patriótico do pré-guerra até ao final, onde apenas sobrevive uma profunda indiferença sobre o desfecho dos combates. Existe um cansaço nos dois lados beligerantes e acreditamos que o primeiro a ceder será o derrotado. São homens perdidos, abandonados numa guerra que não compreendem. Apenas conhecem o que vêem e sentem: devastação, paisagens lunares cheias de morte, condições de sobrevivência infra-humanas. Mesmo quando chegou às trincheiras o boato – e é disso que falam, do “Mr. Rumour” – de que a guerra iria acabar não houve festejos – só apatia e desconfiança. Mais do que a luta contra um inimigo, o que a I Guerra Mundial trouxe aos que nela participaram foi um combate constante e duro contra a sua desumanização. E muitos perderam.

É muito o que nos dá este They Shall Never Grow Old. Mais do que honrar a memória, faz-nos vivê-la através dos olhos e das vozes de quem lá esteve. Para nós, portugueses, não nos deve ser indiferente: foi o único conflito global em que participámos, mal armados, mal preparados e não desejados, arrastados apenas por uma criminosa vontade de um regime que almejava ser legitimado internacionalmente.

E depois, depois de tudo acabado, a esperança. Que a humanidade nunca mais iria ver semelhante carnificina; de que a Europa iria enfim ficar em paz. Como se de repente fosse Ano Novo para o planeta. Mas o diktat do Tratado de Versalhes, com as terríveis condições que impôs à Alemanha, fazia temer o pior. Churchill alertou; o marechal Foch, herói francês, foi mais longe e acertou em cheio ao dizer: «Isto não é um Armistício – é um cessar-fogo com a duração de vinte anos».

Em 1933 um antigo combatente da I Guerra, forte opositor do Tratado de Versalhes, foi eleito Chanceler da Alemanha. O que se seguiu já o sabemos.

Que a esperança não morra mas que a memória nunca a deixe sozinha.

4 Jan 2019

Dos balanços

[dropcap]Q[/dropcap]uem abraça este ofício de escrever sobre os dias de maneira regular tem, mais tarde ou mais cedo, dois grandes adversários: a clássica “angústia da página em branco” ou a “angústia da originalidade”.

Sobre a primeira, grandes crónicas já foram escritas (e outras péssimas também): lembro-me de uma belíssima obra de arte do brasileiro Antônio Maria – o padroeiro desta minha casa – com o título Amanhecer no Margarida’s, onde o cronista nos descreve o seu acordar prematuro, o nascer da manhã e a multidão de pensamentos que lhe passam pela cabeça. Termina com uma breve reflexão sobre o método caótico e inesperado que está na base das suas crónicas, o que é normal porque se chama vida. É uma crónica que sem ter um assunto consegue nessa ausência preencher tudo o que nos diz respeito.

Já o desafio da originalidade é mais complexo. Escrever algo verdadeiramente original – isto é, sobre alguma coisa nunca escrita – é, por definição, impossível. O Livro do Eclesiastes já dizia que não há nada de novo debaixo do sol. De outra forma mais literária, e reflectindo sobre o acto de criação, o escritor Blaise Cendrars afirmou de forma certeira: «Se alguma vez me aconteceu ser original foi sem querer». Os temas serão, de uma maneira ou de outra, sempre os mesmos – apenas o tratamento que lhes podemos dar irá variar.

Portanto, leitor, eis o meu drama: tinha um encontro marcado com as palavras e o segundo flagelo que descrevi invadiu-me e aterrorizou-me: o que poderei eu escrever de novo, que combate ou elegia deverei escolher? E foi então que mais uma vez a menina Marina me salvou o dia. Mas estou a ser mal-educado, permitam-me que a apresente: a menina Marina é real. Trabalha no café aqui do bairro, onde tomo o pequeno-almoço, e é o meu primeiro contacto com a realidade exterior. A menina Marina já deixou há muito tempo de ser menina mas aceita esta aliteração cortês com que a saúdo todas as manhãs porque – desconfio – se sente lisonjeada. E em troca dá-me o benefício dos seus comentários. Nada de profundo: se existe alguma especialidade que a sua conversação possa ter são as platitudes. Mas há muito que aprendi a não dispensar tão depressa tudo o que parece óbvio, simplesmente porque muitas vezes é lá que mora o bom senso.

De modo que ignorando por completo estes meus dilemas de escrita a menina Marina me atirou enquanto me atendia: «Ai, senhor Nuno, estamos outra vez naquela altura em que toda a gente faz balanços e se lembra do que aconteceu durante o ano… Para que é que isso serve se já aconteceu ?». E pronto, eis a epifania servida com pastel de nata.

É de facto uma altura estranha, feita de uma festiva melancolia. Recordar o melhor e o pior do que sucedeu durante 365 dias é para mim mais um exercício desesperado contra a nossa transitoriedade. A não ser no que diga respeito a grandes e marcantes acontecimentos a memória colectiva é, sabemo-lo de forma dolorosa, muito ingrata. A nossa, a individual, basta-se a si própria, e as conquistas ou perdas que sofremos durante um ano acompanhar-nos-ão durante toda a vida. Ao olhar para 2018 não vejo grande momento para parar: a natureza humana continua a exceder-se naquilo que tem de pior, agora ajudada por um clima cultural e social de profunda estupidez e perseguição, disseminado a velocidades vertiginosas. Não, não haverá nunca um “balanço do ano” que nos redima.

Esta é e será sempre uma época difícil para um céptico, pelo que prefiro esconder-me atrás de livros e música. E ouvir as sábias palavras da menina Marina enquanto vou saindo do café: «Saudinha é que é preciso, senhor Nuno». Sim, menina Marina, sim.

27 Dez 2018

O Mundo Animal

[dropcap]A[/dropcap] bem do início desta crónica irei imaginar que algures num arquipélago remoto onde nem sequer um rumor de civilização terá chegado existe alguém que não sabe o que é um meme. E é para esse solitário que destino as primeiras linhas deste texto.

Os memes são panfletos instantâneos, comentários rápidos sobre o estado das coisas. Uma imagem, quase sempre retirada de contexto, a que se apõe uma legenda normalmente crítica e humorística. Funciona, tem graça e dado o espectro de atenção pouco acima de zero que rege a reflexão das redes sociais está quase à beira do ensaio. Mas divago: eu gosto desta forma de expressão (diria mesmo de arte pop) e recentemente deparei com um destes novos posters que me chamou a atenção para além do sorriso. Nele, podíamos ver um indivíduo com um semblante que demonstrava um imenso alívio, olhos cerrados, mão no peito e cabeça erguida para o céu (era o Robert Downey Jr, mas isso é irrelevante); e a legenda era de uma certeira percepção. Dizia: «Quando pensas que atropelaste um cão e afinal era só uma pessoa».

A frase funciona porque é um barómetro do nosso tempo. Quem consegue sorrir por causa dela sabe que é um sorriso triste, pela simples razão de que é verdade. Como também é verdade que muita gente verá uma ofensa no que acabei de descrever. E é isso que hoje é para aqui chamado. Só os mais distraídos não terão notado que há um novo paradigma de olhar para o mundo que pouco a pouco se tem imposto. É um activismo pelos “direitos” dos animais, cada vez mais ortodoxo na sociedade ocidental, onde nesta altura há pouco espaço para dissensão, e que leva a que muitas vezes o humano seja preterido em favor do não-humano. Um pouco de contexto, para que melhor nos entendamos: a expressão “direito dos animais” apareceu pela primeira vez num artigo do Sunday Times em 1965, assinado por Brigid Brophy. Mas foi em 1975 que o filósofo Peter Singer consagrou esta mundividência no livro Animal Liberation, que está na base do pensamento Animalista. Outros se lhe juntaram e sem surpresa o que era uma filosofia tomou contornos de ideologia com o aparecimento do Especismo, criado por Richard Ryder, que defende que, tal como o racismo ou o sexismo, a nossa relação com os outros animais é uma forma de discriminação sem qualquer fundamento, transformando assim os animais não-humanos num grupo oprimido e vitimizado – um pensamento subsidiário da ortodoxia corrente.

De uma forma simplificada, os Animalistas defendem que a sua doutrina é semelhante ao Humanismo (onde o Homem é o centro de todos os valores e dignidade) mas incluem na sua atitude todos os animais não-humanos que consideram seres sencientes e portanto individuais. Aceitam que não sejam agentes morais – isto é, capaz de agir em função de Bem e Mal – mas que isso não significa que não possam ter direitos e que os agentes morais humanos não tenham deveres para com eles. Do outro lado, encontramos filósofos como Roger Scruton ( Animal Rights And Wrongs, 1996) que, seguindo uma tradição que vem de São Tomás de Aquino ou Descartes mas indo para além dos alicerces teológicos argumentam que não sendo agentes morais ou sequer conscientes, os animais não têm direitos – somos nós que temos deveres para com eles sem deixar que o humano seja prioritário.

O que me interessa aqui não é uma exposição das duas filosofias ou sequer a minha opinião sobre elas (mas sempre direi que estou com Scruton): são os sintomas quotidianos que o aparente triunfo do Animalismo vem provocando. Há manifestações inócuas e ridículas, como a recente vigília que um grupo vegan de Bristol organizou por nove perus que foram mortos para o Natal. Mas existem outros sinais mais preocupantes desta tendência: o facto de a PETA – a mais credibilizada organização de defesa dos animais – pedir a alteração ou proibição de provérbios e expressões idiomáticas que, na sua opinião, reflectem a crueldade dos humanos para com os outros bichos. Isto é mais grave do que parece porque na base tem a ver com a manipulação da linguagem para condicionar o pensamento – algo que Orwell previu e que o “politicamente correcto” estabeleceu. De uma forma não institucional, bastará olhar para os comentários online de qualquer notícia que envolva toureiros colhidos, por exemplo: o desejo de morte do homem que “tortura” o animal é quase unânime, com requintes de maldade só equiparáveis aos tempos de Nero. O mesmo para famílias que devolvem cães adoptados às instituições que os recolhem: a família é imediatamente insultada (desejos e ameaças de morte incluídas) mas ninguém se oferece para ficar com o animal.

A nossa relação com os animais merece a atenção que a noção do Bem e do Mal pode oferecer. Deve haver penalizações para quem deliberadamente é cruel com os que de nós dependem ou apenas têm o essencial direito de existir. Mas o fanatismo destes dias é perigoso e insalubre, talvez até um pouco desesperado. Reflecte falta de valores e cansaço de tudo o que nos diz respeito – a nós, humanos. Atribuir características antropomórficas aos bichos faz com que o ser humano seja equivalente em todas as situações. Há um velho problema de Ética, cujo enunciado é mais ou menos o seguinte:“Imagina que numa situação limite onde estão em perigo de morte X e Y só poderás salvar um. Qual salvarias ?” . Um Animalista hesitaria pelo menos um segundo entre salvar um ser humano e um animal. E é esse segundo de hesitação que representa um mundo que eu deploro.

19 Dez 2018

Das boas maneiras

[dropcap]N[/dropcap]a peça O Leque de Windermere, de Oscar Wilde, é dita uma frase que decidi adoptar como lema pessoal: « As maneiras antes da moral» (ou manners before morals, no original). É um aforismo tipicamente wildeano: cintilante, de uma falsa superficialidade e uma subversão com estilo.

A peça em questão é uma comédia de costumes que põe em causa a hipocrisia da moral Vitoriana, a mesma que iria condenar Wilde à sua tragédia final. Mas esta pequena frase contém outra verdade subjacente e cada vez mais esquecida: as boas maneiras são essenciais para as relações humanas.

No passado dia 1 de Dezembro morreu um dos seus grandes defensores contemporâneos, o italiano P. M. Forni. Este professor universitário que leccionava Boccacio e Dante na universidade John Hopkins, em Baltimore, abraçou uma nobre causa: a defesa da civilidade. Nestes dias radicais, dedicar uma vida à observação das conveniências e à polidez entre indivíduos parece uma actividade ociosa; mas precisamente por estarmos a viver neste clima cultural é que se torna ainda mais essencial. Forni escreveu dois livros bastante aclamados nos Estados Unidos: Choosing Civility: The Twenty-Five Rules of Considerate Conduct (2002) e The Civility Solution: What to Do When People Are Rude (2010). «O primeiro livro é sobre como não ser rude», disse a sua viúva ao New York Times, « o segundo é sobre o que fazer quando alguém é rude connosco». Uma formulação simples e eficaz mas que esconde muito do pensamento de Forni.

Para ele as boas maneiras – a civilidade – resultavam em maior produtividade, menos stress e maior potencial de desenvolvimento. Respeitar regras tão aparentemente óbvias como falar baixo ou falar amavelmente melhoraria as relações humanas em todas as situações. Mais: Forni acreditava que os actos de violência eram frequentemente resultado de grosserias que ficavam fora de controlo. Lembrou ao mundo que a palavra “civilidade” tem no seu étimo o latim civitas – cidade, comunidade – e que como tal não podia ser relegada para gavetas de protocolo. A civilidade está ao alcance de todos e a humanidade anda a lutar com isso desde o seu início. Forni criou também o programa de civilidade da universidade John Hopkins em 1997, que ainda funciona e é reconhecido como fundamental por diversas entidades cívicas.

A sua epifania chegou quando leccionava uma aula sobre a Divina Comédia (sim, outra vez): «Disse aos meus alunos que se soubessem tudo sobre Dante e depois maltratassem uma idosa no autocarro teria falhado como professor», afirmou.

Forni era também um crítico feroz da vida moderna, como o proclamou no seu livro The Thinking Life: How to Thrive in the Age of Distraction (2011): «Infelizmente a reflexão profunda é a vítima mais ilustre da revolução digital», escreveu.

O combate de Forni (que outros já haviam iniciado – lembro de raspão o grande ensaísta inglês do século XIX, William Hazlitt ) é particularmente necessário nesta altura. Significa o triunfo do bom senso contra a radicalização e a consequente vontade de atribuir intenções políticas ou sociais para gestos simples e quotidianos. É dizer que abrir a porta a uma mulher não é uma proclamação de uma suposta hierarquia patriarcal nem o resultado de uma mirífica “realidade social construída”, como nos gritam as políticas identitárias. É um acto de gentileza, como ouvir o outro, saudar um amigo, dar prioridade aos cidadãos mais velhos. É, na verdade, uma das maneiras de nos salvarmos uns dos outros.

12 Dez 2018

O triste aroma a realidade

[dropcap]E[/dropcap] logo de início uma confissão: pensei muito antes de escrever esta crónica. Não é que não tenha pensado as anteriores, pelo contrário; mas à medida que o tema ia ganhando força e relevância na minha cabeça comecei a duvidar da sua importância. Que quem defendeu valores mais abstractos e ideias mais literárias sobre o que o rodeia iria rebaixar-se a um assunto pequeno – vil, até. Que quem escreve sobre os dias apoiado desavergonhadamente nas muletas de grandes autores estaria a vender-se barato a uma vulgaridade desnecessária (como se alguma fosse essencial). E o mais importante: dada a natureza da conversa, ninguém iria ler. Mas o cronista é um espelho, mesmo que distorcido. Reflecte como pode e sabe o que está à sua volta e nem sempre isso é grandioso, como hoje é o caso. E é assim que esta crónica consegue juntar Natal, crianças, vida e flatulência.

Leu bem, magnânimo leitor (ou leitora, para cumprir o clima dos tempos). Se a partir daqui não quiser prosseguir a viagem, creia que compreendo. Eu próprio, como disse, cheguei aqui vindo de um território indesejado. Mas quem quiser acompanhar os meus passos depressa perceberá onde quero chegar.

Ao que interessa, então. A aventura começou por causa da quadra natalícia, onde paradoxalmente aquela que em princípio deveria ser uma época de união, fraternidade e olhar para o outro é na verdade o apogeu estatístico de utilização de ansiolíticos e tentativas de suicídio. O stress induzido pelo consumo é enorme e sofre quem nem sequer o pode ter. Mas gosto do Natal, mesmo assim. E há as crianças, destinatárias óbvias e prioritárias de todos os nossos esforços. Assim sendo, e mesmo apesar dos meus filhos serem já jovens adultos, mantenho-me atento ao que a criançada deseja. Tendo como amigos casais com filhos pequenos gosto de lhes perguntar o que está na moda, que caprichos os filhos lhes exigem. Infelizmente é muito raro que seja uma boa edição da Divina Comédia de Dante ou até a Lírica do nosso Camões (brinco: mal seria se fosse). Não: o que a miudagem quer, descobri eu, é uma série de bonecada chamada Reis dos Puns – The Fartist Club. Eu sei, continuem comigo, por favor. Trata-se de quatro bonecos, apresentados de forma majestosa pela publicidade como “os mestres dos puns!” e cujo atributo é, garantem-nos, apresentarem “puns personalizados”. Nem vou comentar a misteriosa razão pela qual se deve pagar por aquilo que qualquer um pode ter de graça, ou seja a “personalização”. Mas interessou-me a tendência escatológica e reparei que há mais: apresento-vos os Flush Force Flushies, pequenas réplicas de sanitas a que se junta água para ver aparecer criaturinhas no fundo e que, oh maravilhosa ideia!, são coleccionáveis. Há sanitas de todas as cores e tamanhos, kits de luxo e tutoriais no YouTube. E não esqueçamos – aliás, como esquecer? – o engraçadíssimo jogo Agarra o Cocó! (juro), em que os miúdos são desafiados a “sentar o senhor Cocó”. Estes são, em suma, os brinquedos em voga neste Ano da Graça de 2018.

Antes que me apodem de pedante e reaccionário (epítetos que neste caso específico aceitaria com gosto) deixem que vos diga que de certa forma até compreendo. O chamado humor de casa de banho vem de tempos imemoriais e foi utilizado por sumidades como Aristófanes, Dante, Shakespeare ou James Joyce. O enorme Jonathan Swift escreveu mesmo um panfleto sob o título The Benefit of Farting (escuso-me à tradução). Não é por aí: o que me parece – e posso estar enganado – é que numa sociedade onde parar para pensar começa a não ser possível, infantilizar os infantis (e os seus pais, por inerência de funções) pelo menor denominador comum é um passo previsível. Entre rir das funções corporais ou ser doutrinado sobre o que se pode ou não dizer para não “ofender” a distância é muito pequena.

Nada temais, no entanto; a realidade venceu. Acaba de me chegar às mãos um panfleto sobre um novo jogo de tabuleiro português para crianças a partir dos dez anos. É uma variação mais sorridente do velho Monopólio e tem empréstimos, negócios, dívidas, e recebimentos ao final do mês. Chama-se Paga e Cala. E não: quem me dera que estivesse a brincar.

5 Dez 2018

Somos ladrões

[dropcap]S[/dropcap]e conseguir escapar à proverbial (e desejável) ingratidão que rege a memória da música popular, a Canção Infinita de Manuel Fúria & Os Náufragos irá sobreviver-nos. Nesses seis minutos e dezassete segundos o cantor e autor faz uma viagem ao seu passado afectivo – as primeiras leituras, as primeiras audições, as cumplicidades juvenis que estão na base de todas as descobertas, a sua geografia de adolescente – e à sua condição de criador. Revisita heróis musicais, cita-os, invoca-os. A própria base harmónica da canção é construída deliberadamente sobre os mesmos acordes de Ceremony, tema incluído no primeiro single dos New Order, ex-Joy Division – o primeiro a ser editado depois da morte trágica de Ian Curtis e ainda com as suas palavras. Duas referências de Fúria, que depois de citar os primeiros versos de Curtis lança a extraordinária confissão e constatação: “Sou um ladrão!” , afirmação que pode ser aplicada ao longo da história da arte. Nada vem do nada e a criação artística, por mais rupturas que deseje fazer, não pode fugir a esta condição humana, felizmente humana.

Mas Canção Infinita lida também com a memória num estado particular – a nostalgia. Há um passado idealizado e a dor mansa de não lá poder regressar – no fundo o que está na etimologia da própria palavra: do grego nóstos (reencontro) e álgos (dor, sofrimento). E sempre foi algo em que não confiei. Ao longo do tempo, o próprio conceito (que foi outrora considerado condição patológica, como a melancolia) foi adulterado, tornado mercenário e mercantil. O mercado da saudade aumentou e a nostalgia perdeu a sua inocência mais ou menos contemplativa.

Por mim, se perguntado, respondo da mesma forma, com um neologismo pateta mas eficaz: sou agnostálgico. Quer dizer, preciso da nostalgia mas não a quero como normalmente me é entregue. O inebriamento de passado é perigoso pelo simples facto de que nos podemos esquecer de viver agora – e isso sim, é imperdoável. Sobre a nostalgia já fui mais inamovível: recusava-a, pura e simplesmente. Manifestações colectivas da coisa, como reuniões de bandas que admirei em jovem, eram evitadas com cinismo e precisão. De certa forma ainda o são. Lembro-me sempre das palavras de Eric Idle, um dos Monty Python, ditas aquando da mítica reunião do grupo de humoristas em 2014:«As pessoas não vêm ver um grupo de velhos a dizer piadas. Vêm para se lembrarem como eram quando eram novas».

Ainda acho que Idle tem razão. Mas a agnostalgia, tal como a entendo, não é um dogma mas uma atitude – e como tal falível. O único truque consiste em estar bem com essa falibilidade porque é de imperfeição de que somos feitos e queremos ser feitos. Há pouco tempo tive a oportunidade de pôr à prova esta teoria, durante um concerto em que tocou Fúria e logo a seguir um dos meus ídolos musicais: Johnny Marr, antigo guitarrista dos The Smiths, banda que atropelou a minha vida em 1983 e a de muita gente. Ainda continua a fazê-lo.

Preparei-me para o embate com a dignidade possível, mas durou pouco: o som da guitarra de Marr, os acordes de canções que sei de cor e com que ainda vivo deixaram-me literalmente em lágrimas.
Nostalgia ou não, sei que é bom isto acontecer. Que uma canção que nos comove é uma canção que nos redime. E assim aceito a nostalgia, nesta perspectiva de tornar a nossa existência menos sofrível. Somos ladrões, sim; mas também ladrões do tempo.

28 Nov 2018