De que vale o tempo

[dropcap]D[/dropcap]e que vale o tempo, de que nos valerá essa entidade criadora e criatura inventada por nós, mesmo que a tentativa de a domesticar tenha falhado? “Time must have a stop”, diz um personagem de Shakespeare no seu desespero lúcido. Mas não há paragens, só passos irreversíveis. E por vezes, quando temos sorte, há tempos que se cruzam e que fazem com que compreendamos o que antes não seria possível porque pura e simplesmente ainda não tínhamos tempo suficiente dentro de nós.

Para bem do leitor tentarei explicar o parágrafo anterior, entre o místico e o críptico, com o que sempre norteia estas crónicas: o quotidiano, princípio e fim de tudo. Melhor ainda, recorrendo à música popular, arte próxima, palpável e que medra dentro dos dias. Pela audição de dois discos três tempos encontraram-se: o meu e o dos dois autores e compositores. O primeiro disco chama-se Thank You For The Dance, legado póstumo mas desejado de Leonard Cohen. Prossegue o caminho de You Wanted It Darker, o derradeiro disco que o canadiano editou em vida (viria a morrer dezanove dias depois do disco ver a luz). É mais um acerto de contas com a vida e sobretudo com a morte mas ainda mais frágil. As canções de Thank You For The Dance foram compostas por vários músicos a partir das gravações da voz de Cohen, já muito debilitado e em reclusão domiciliária. São pequenas pérolas negras, algumas de alegria, outras de raiva, outras ainda de resignação irónica de alguém que vê o seu tempo terminar e está preparado para isso. No extraordinário um minuto e doze segundos que demora a canção The Goal, ele resume o seu estado e o que fica: “No one to follow /And nothing to teach/ Except that the goal /Falls short of the reach”. A visão do finito – que de resto sempre passeou pela obra de Cohen – ganha aqui o último acabamento de uma catedral de beleza.

Mas para o tempo de Cohen já estava preparado. O espanto veio com a descoberta de Bookends, disco de Paul Simon e Art Garfunkel, editado em 1968. Sendo o que vos escreve admirador de Paul Simon, nunca tinha ouvido este disco como deve ser. Por misteriosas razões ( provavelmente porque agora era o tempo certo, quando o posso compreender na plenitude, “no meio do caminho da nossa vida”, para citar o padroeiro desta coluna) peguei nele. E perdoai a recensão tardia mas tenho que a fazer: é um disco extraordinário, conceptual. Os temas são a velhice, a mortalidade, o tempo. Mais extraordinário ainda quando se sabe que foi escrito por um jovem de vinte e tal anos – num tempo de inícios. O tempo está por toda a parte: Overs, por exemplo, é uma canção de separação que me fez lembrar do célebre sermão de António Vieira sobre o tempo e o amor: “O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.” A colagem de vozes de velhos (Voices Of Old People, feita por Art Garfunkel) é ainda mais explícita sobre o que se pode ver no final desta nossa corrida. Old Friends e Bookends são elegias melancólicas ao que passou e ao que está inexoravelmente por passar.

A parte conceptual do disco dura apenas um lado. Depois seguem-se canções de temas mais ou menos sortidos. Ou não: Hazy Shade Of Winter, que conta com um dos melhores riffs que conheço, abre com as palavras “Time time time, see what’s become of me/ While I looked around for my possibilities” – e não é reconfortante que pelo meio o narrador afirme “Hang on to your hopes, my friend/ That’s an easy thing to say/But if your hopes should pass away/Simply pretend/ that you can build them again”.

Não é por acaso que o nosso olhar não está preparado para assimilar o muito que nos é dado quando nos é dado pela primeira vez. É preciso que a vida nos atravesse e atravesse as coisas. Que haja tempo, e que esse tempo que não irá parar possa por momentos demorar-se em nós. Do tempo vem o espanto, o entendimento e a desilusão. Todos são preciosos. Até porque como escreveu um ainda mais jovem Paul Simon (a lembrar Beckett) “Hello, hello, hello, hello/ Goodbye, goodbye, goodbye, goodbye/That’s all there is /And the leaves that are green turn to brown.”

4 Dez 2019

O que fica

Jamais digas , acerca do que quer que seja , ‘perdi-o’, antes ‘devolvi-o’.
Epicteto (55 – 135) , A Arte de Viver

 

[dropcap]H[/dropcap]á poucas semanas houve uma notícia que me chamou a atenção: o famoso detective de arte holandês Arthur Brand (alcunhado de “Indiana Jones do mundo da arte” por ter recuperado várias peças valiosas roubadas) conseguiu mais um feito: encontrar um anel que Oscar Wilde ofereceu a um colega estudante na altura em que frequentou Magdalen College, em Oxford. O anel tinha sido roubado num assalto à universidade há cerca de vinte anos, juntamente com outras peças. A história da sua recuperação é rocambolesca e cinematográfica. Mas para o que nos interessa isso não será relevante.

Não terá sido apenas o facto de o anel pertencer a um escritor e dramaturgo de que sou confesso admirador que terá sido o causador destas palavras: é que o anel em causa é um “anel de amizade”, comum nos tempos vitorianos. É em forma de cinto e fivela, de ouro de 18 quilates e com uma gravação em grego que diz mais ou menos isto: “Uma oferta de amor para alguém que deseja amor”. Ao lado desta inscrição estão as iniciais dos dois ofertantes – Oscar Wilde e Reginald Harding – e o feliz destinatário, o amigo comum William Ward. A oferta terá sido feita em 1876.

Um objecto, vindo dos confins do tempo e que pode conter tanto. Algo que ultrapassou a mortalidade dos que o ofereceram e de quem o recebeu. Ao vê-lo interessou-me não o valor histórico mas o emocional, o que de humano sobrevive ao tempo e à nossa triste condição finita. Quantas memórias, quantos sorrisos, quantas alegrias e partilhas estão confinadas naquele pequeno círculo de ouro?

O que fica de nós deveria superar sempre aquilo que somos e deixaremos de ser. É nossa missão tentar devolver e não perder o tanto que nos acontece, como ensinou o Estóico em epígrafe. Voltar a dar para os que nos seguem e outros a seguir, até ao final dos tempos. E para isso devemos estar atentos a tudo, inspirar cada alegria ou tristeza com o mesmo valor e gratidão. Mesmo que a memória nos traia, mesmo que o que fica não tenha a grandeza do ouro. Há uma história que me contaram que acho belíssima: uma mulher tinha visitado os Alpes em pequena com os seus pais, numa viagem que muito a comoveu. Mas, muitos anos mais tarde, de toda a grande beleza das montanhas só conseguia recordar-se de uma coisa: umas flores azuis, que crescem apenas no lugar que visitou. Nestas flores cabe tudo o que não consegue recordar mas o essencial irá sobreviver. São as pequenas coisas que nos irão resgatar, a nós que não temos ambição de posteridade e glória. Um anel, uma amizade, uma flor azul: é isso que é preciso devolver. Isso é o que fica.

27 Nov 2019

Aqui, Rádio Cabeça

[dropcap]Q[/dropcap]ue o mundo não está a facilitar a vida já nós o sabemos. Calamidades sortidas, raiva e desespero abundam numa altura em que os seres humanos preferem construir trincheiras onde deveriam existir pontes. Enfim, o leitor saberá porque para o saber basta estar vivo. Mas nada nos prepara, acreditem, para acordar com uma canção dos Supertramp a bailar-nos na cabeça. Nada.

Aconteceu-me a mim. Sem pretexto ou causa à vista, uma pessoa abre penosamente os olhos à realidade e leva como banda sonora o It’s Raining Again, vinda das profundezas de nós. Com a letra completa, por Deus.

Aqui chegado terei de pedir desculpa aos admiradores desta banda mas não me incluo entre eles. De facto, acho a canção que me perseguiu durante todo o dia – e ameaça, insidiosa, regressar à medida que escrevo estas palavras – uma estupenda pepineira. Opiniões, claro. Mas para o que para aqui interessa é que não a ouvia há décadas. Procurei na memória a razão deste fenómeno: teria sido uma conversa, um excerto da canção ouvido ao acaso numa rádio, uma viagem de táxi mais traumática? Zero. E o problema é que não é a primeira vez e nem sequer a pior. Recentemente dei por mim no duche a cantar uma única frase de um anúncio (“Dreams/are my reality” lalalala….Um tormento). Mas aqui identifiquei a raiz do mal: tinha sido exposto ao anúncio na internet e daí ter retido este naco precioso que veio macular o meu repertório ducheano (que inclui êxitos obscuros como o magnífico Baby I Don’t Care, de Elvis Presley. Obrigado por não perguntarem). Já com a canção supracitada o mistério permanece.

O fenómeno, no entanto, é comum. O leitor já terá sofrido semelhante flagelo, dando por si a certa altura com o conhecimento involuntário da obra completa de Quim Barreiros ou coisa semelhante. E esta condição tem nome: Stuck Song Syndrome (Síndrome da Canção Encalhada, numa tradução colorida). Está bem identificada por psicólogos, psiquiatras e neurocientistas que associam o fenómeno a earworms (ou, na maravilhosa tradução de Miguel Esteves Cardoso, otovermes) que podem disparar estas pérolas dos confins do nosso inferno. Segundo o British Journal of General Practice, os otovermes estão associados à memória mas também a situações de stress. O mais impressionante é que quanto mais o cérebro tenta parar essa informação mais ela se torna mais forte, num loop interno criado pelo próprio Satanás. No limite são sintomas de Perturbação Obsessiva Compulsiva mas em 98 por cento dos casos é uma situação perfeitamente normal e não patológica.

Pois sim, acredito. Mas não o mereço. Porque é que a mesma condição não me leva a recordar todas as deixas de Clifton Webb no filme Laura, ou todos os aforismos de Wilde ou um detalhe soberbo de uma pintura de Caravaggio ? Com isto poderia eu viver bem durante todo o dia. É por isso que apelo à comunidade científica que prossiga com afinco os estudos sobre o mais negro e misterioso órgão do ser humano: o cérebro. É uma questão de prioridades, de saúde pública. O mundo já é o que é, volto a dizer. Ninguém precisa de levar comigo a trautear um êxito de José Malhoa durante 24 horas. Vejam lá isso.

20 Nov 2019

O escuro que criamos

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And—which is more—you’ll be a Man, my son!
If, de Rudyard Kipling (excerto)

 

[dropcap]E[/dropcap]screvo estas palavras no Remembrance Day. É um dia em que no Reino Unido e na Commonwealth são lembrados e honrados todos os que tombaram em combate em vários conflitos, tendo como pretexto o Armistício que pôs fim à Primeira Grande Guerra. Há cerimónias sentidas, depoimentos extraordinários de veteranos que salientam aquilo de que é capaz o ser humano sob enorme pressão. E o que é capaz é do melhor e do pior. Forjam-se amizades eternas em instantes partilhados num abrigo de uma chuva de balas. Todas as limitações são superadas perante a iminência da morte. Muitos não regressaram. Outros sobreviveram mas ficaram reféns de algo muito pior: a desumanização que o campo de batalha sempre oferece.

O Remembrance Day é respeitado por toda a Commonwealth e por todas as suas forças políticas. A papoila que lhe serve de símbolo e que originalmente foi criada para lembrar o sangue dos que caíram na batalha de Flandres – que na verdade são várias e que decorreram do início ao final da Primeira Grande Guerra (sendo que a quarta, a de La Lys, resultou no massacre de quase todo o Corpo Expedicionário Português) – é usada por toda a gente com orgulho e sentimento, do cidadão à rainha.

Não se trata de uma exaltação do belicismo, pelo contrário: só a memória nos torna humanos e ao lembrar a guerra deseja-se a paz. E é extraordinário voltar a descobrir os imensos contrastes que oferece o que parece ser um determinismo da nossa natureza. Existe sempre a arte, neste caso a poesia, que acompanhou homens e mulheres na mais negra das horas. Vejam os versos em epígrafe: é a última estrofe de If, um poema de Rudyard Kipling (hoje desdenhado por supostamente representar o imperialismo e o colonialismo britânico ). Aquele poema ganhou uma imensa popularidade entre os soldados que combateram nas trincheiras na guerra de 1914-18.

Levavam-no nos bolsos dos uniformes, como um bálsamo. Muitos morreram com ele.
Ao meu lado tenho outro objecto extraordinário: uma reedição (1930) de The Spirit of Man: An Anthology in English & French from the Philosophers & Poets made by the Poet Laureate in 1915.

É uma antologia em papel bíblia (India paper), feita por Robert Bridges para os que iam combater e para os que ficavam. Poemas e frases portáteis. Está dividida por temas – Desejo Espiritual, Amor Ideal, Melancolia, Vida Na Morte, etc – e os autores de cada texto escolhido só são revelados no final do livro. Não há nomes: há um espírito maior, há uma arte que com sorte consola. Não é uma arte que salva, porque nenhuma arte é capaz de ter essa ambição salvífica e muitos são os que não querem ser salvos. É uma arte próxima, prática, solitária, confidente.

Gosto destes dias de lembrança, confesso. Sobretudo pelas piores razões, que nos levam a olhar mais fundo quem somos e do que somos capazes. Steven Pinker, um magnífico ensaísta e ainda mais corajoso optimista sobre a natureza humana, afirma no seu The Better Angels Of Our Nature que apesar de tudo a violência tem vindo a decrescer sob todas as formas na nossa época.

Acredito. Como receio que nunca irá parar até ao final dos tempos. Mas que sobreviva um poema, algo que nos alumie no escuro que nós próprios criamos.

13 Nov 2019

Geografias da alma

[dropcap]O[/dropcap]s dias continuam a viver connosco lá dentro. Não temos alternativa, relembro e relembra o meu poeta mais próximo. E alguns passam lestos, vertiginosos, quase sem deixar outro rasto que não seja um leve aroma a alegria. São os dias felizes, aqueles em que acreditamos que o mundo foi criado à nossa medida e à nossa espera. Talvez um dia desses tenha feito Keats escrever Give me Women, Wine and Snuff, onde exalta o hedonismo e garante que passaria de boa vontade a eternidade com vinho, mulheres e rapé, “My beloved Trinity”, garante-nos.

Depois há os outros, vagarosos, plúmbeos, eternos. Dias de que queremos sair, jaulas de tempo triste que provavelmente não merecemos mas que sabemos que iremos sempre enfrentar. Nós e os outros, os que amamos e os que desconhecemos. Escrevo estas notas ainda sem caminho à vista, um caos doce que com alguma sorte conseguirei transformar em crónica. Estou a meio caminho entre os dias de que vos falo, sentado num cais a olhar os barcos atracados num baloiçar suave. Há silêncio e algumas pessoas que passam. E sem querer descubro-me a pensar nos dias que esses desconhecidos carregam, cheios de conquistas e angústias, iguais aos meus e aos de toda a gente.

“No man is an island”, e o famoso verso de John Donne parece ganhar ainda mais sentido e força quando se está só à beira-mar. Não o somos, de facto, por mais que por vezes gostássemos de o ser. Não o somos e esta certeza tem de ser constantemente relembrada num mundo em que paradoxalmente tudo é criado para encurtar distâncias e oferecer proximidade. Tal é um dos critérios contemporâneos do que se julga ser o progresso. Só que muitas vezes essa proximidade não passa de uma quimera, uma homeopatia para a solidão: existe mas não cura nem resolve.

Saber a geografia da alma e praticá-la parece-me importante. Há pouco tempo falava com uma amiga sobre a insularidade que não é apenas territorial mas sim um traço de personalidade de quem vive em ilhas. Uma vocação contemplativa, melancólica e um eterno dilema entre a fuga e o regresso. Percebo e constato. Mas contraponho a peninsularidade que me habita, talvez fruto de um determinismo geográfico, não sei. Preciso de olhar para o mar mas não vivo sem esse pedaço de terra que me liga ao Outro. Para mim é talvez o melhor dos estados porque a solidão pode coabitar sem problemas com a necessidade de ver e estar com alguém.

Quero acreditar que os tempos não nos estão a transformar em arquipélagos humanos, próximos mas ao mesmo tempo distantes. Não existem substitutos virtuais para a amizade ou o amor, nada que substitua o olhar e a presença. O que temos à nossa disposição – as redes virtuais, a rapidez de informação – são ferramentas e não valores em si. Saibamos aproveitá-las sem as venerar.

E amigos, a ordem misteriosa das coisas voltou a atacar: mal acabei de escrever a frase anterior recebi uma mensagem de alguém que nunca vi mas que pertence à minha rede de contactos virtuais. É uma rapariga colombiana. Escreveu-me que nesta data, há nove anos, ouviu um fado com letra minha que a comoveu e fez com que me contactasse via Facebook. O fado chama-se De Que São Feitos Os Dias. Voltei a olhar para os barcos e juro que vi alguns a sorrir.

6 Nov 2019

O tempo este tempo

[dropcap]E[/dropcap]xiste um terrível paradoxo para pessoas que não são nostálgicas e que gostam de viver no seu tempo: é que por vezes não gostam de viver no seu tempo. Quando esse sentimento atravessa demasiados dias torna-se um incómodo difícil de ignorar. Sentimo-nos (e aqui uso o primeiro pronome do plural porque me incluo neste grupo) como exilados mas sem termos um lugar a que regressar.

Começa a ser quase impossível deparar com algo que contrarie este clima de polarização e falsa justiça social. E, por convicção e feitio, quando o assunto se estende às artes não consigo estar sossegado. A omissão é a pior forma de acção nestes casos e normalmente leva a territórios muito escuros que suspeito que os leitores estejam a par.

Acompanhem-me por favor em mais um exemplo do que vos quero dizer. Parece, num primeiro olhar, algo trivial; haverá sempre uma calamidade mais importante no planeta. Mas é real e próximo. E actua sobre mais áreas de influência social do que poderão pensar. Explico o meu exemplo de hoje: há uns dias o realizador Martin Scorsese insurgiu-se sobre a qualidade dos filmes produzidos pela Marvel, como por exemplo Avengers, Homem-Aranha e tantos que fazem parte do universo criado por o que começou por ser (e ainda é) uma editora de comics. Imediatamente as manchetes gritaram “Scorsese diz que os filmes Marvel não são cinema!”. Fiquei intrigado por semelhante afirmação dita por aquele que considero o melhor realizador contemporâneo; achei estranho que usasse uma terminologia totalitária que se baseasse no “isto é cinema, isto não é “.

Claro que não disse isso. O que disse foi que esses filmes não reflectem “seres humanos a tentarem passar experiências psicológicas e emocionais a outros seres humanos”. [citação do The Guardian, tradução minha]. Realizadores como Coppola ou Ken Loach afinaram pelo mesmo diapasão (o primeiro chegou mesmo a usar o adjectivo “desprezível “).

Eu, que gosto dos filmes da Marvel, não posso concordar inteiramente com estas críticas. Provavelmente Scorsese ter-se-à esquecido de Logan (2017), um magnífico filme de James Mangold que sob o formato de um road movie canónico e com personagens desse universo supernatural não faz outra coisa senão reflectir de modo sublime o que Scorsese diz não existir.

Mas compreende-se: é um juízo estético legítimo de alguém cuja visão artística é diferente.
O pior veio a seguir e dito pelos defensores da Marvel Cinematic Universe (MCU). Um deles, Helen O’Hara, resume na perfeição os argumentos dos restantes: afinal os filmes da Marvel são bons porque são complexos. Captain America: Civil War fala da guerra do Iraque. Thor: Ragnarok teria uma filosofia anti-colonialista. Captain Marvel é um testemunho feminista. E claro, Black Panther é assumidamente anti-racista. Como podem então aqueles realizadores incorrerem em tamanhos dislates?

É fácil: porque a sua argumentação é- repito- estética, artística. Os filmes não são valorizados pela mensagem política ou social que obrigatoriamente teriam de veicular e que no momento em que o fazem se transformam em arte da boa.

Sim, eu sei que já falei aqui deste clima que exclui a possibilidade de a arte ser apenas isso mesmo. Foi a semana passada, quando lembrei Harold Bloom. Mas amigos, a batalha vem de longe. O primeiro a diagnosticar este estado de coisas foi Robert Hughes num livro seminal de 1994: Culture of Complaint. Hughes foi um crítico de arte e um divulgador de primeira ordem. Este livro- que reúne uma serie de palestras suas dadas em 1992 – fala pela primeira vez de uma cultura de vitimização que estaria na base do politicamente correcto e do desaparecimento de critérios estéticos para a avaliação artística. Para fazer-lhe justiça terei de citar um parágrafo no original, com as minhas desculpas ao leitor:” And then, because the arts confront the sensitive citizen with the difference between good artists , mediocre ones and absolute duffers, and since there were more of the last two then the first, the arts too must be politicized; (…) the idea of quality in aesthetic experience is little more than a paternalist ficrion designed to make life hard for black, female and homosexual artists, who must hencefortg be judged on their ethnicity, gender and medical condition rather than the merits of their work”.

Estas palavras, escritas há quase trinta anos, só não são proféticas porque são constatações lúcidas sobre aquele tempo que também é este tempo de que tanto gosto e em que não me apetece viver.

30 Out 2019

O homem que ensinou a ler

[dropcap]O[/dropcap] problema, em alturas como esta, é sempre o mesmo: como agradecer. Como retribuir o tanto que alguém nos deu sem nunca nos conhecer; como transformar essa dádiva numa proporção justa, benéfica para ambas as partes. Como dizer o que nos aconteceu e como nos aconteceu e como, depois desse acontecer, os nossos olhos se abriram para uma luz que nunca tinham visto e que estava ali, mesmo à nossa frente. E sob essa luz, tantos e tantos mundos à nossa espera.

Como agradecer a quem nos ensinou a ler, outra vez?

A resposta é fácil, de tão óbvia e imediata: todos os agradecimentos serão poucos. Mas são necessários e é isso que agora faço, da forma modesta e muito imperfeita que estas linhas transmitem.

Morreu Harold Bloom. Os factos, a sua vida, por esta hora já os sabemos. Bloom era um extraordinário crítico literário, possuidor de conhecimentos enciclopédicos e alguém que colocava o coração em tudo o que escrevia e defendia. Era também por isso um pedagogo fascinante, maior do que a vida e que transmitia o seu entusiasmo a quem o lia ou ouvia.

Ninguém poderia ficar indiferente a frases como “Shakespeare é Deus”. Uma dessas frases – uma crença profunda que Bloom defendeu contra tudo e todos, usei-a já várias vezes nestas crónicas, reparo agora: Shakespeare, o homem que nos inventou. O inventor do humano, diria o mestre.

Bloom foi também um homem de grande coragem. Desafiou da melhor maneira a ortodoxia académica e cultural vigente, sem medos ou reservas. Não foi fácil proclamar a superioridade de um cânone ocidental que incluía nomes como Shakespeare, Kafka, Chaucer ou Dante (o meu amor por este autor devo-o ao homem) num mundo que crescia cada vez mais para o estudo das minorias deixando para trás um óbvio legado maior. As críticas foram imediatas: todos os autores defendidos por Bloom eram brancos e mortos. A crítica literária, completamente devedora do flagelo francês do estruturalismo e a inanidades como a “morte do autor”, proclamada por Barthes, não via com bons olhos um homem que desprezava a análise do texto pelo texto e incluído nas correntes políticas, sociais e histórico-económicas em que era escrito. A essa “Escola do Ressentimento”, como ele a baptizou – e que incluía multiculturalistas, feministas, marxistas e neoconservadores – Bloom contrapunha a leitura pelo prazer estético, longe da propaganda ou da mensagem. “Politicizing literary study has destroyed literary study, and may yet destroy study itself”, escreveu em 1997 no prefácio a A Ansiedade da Influência (1973), um dos seus livros mais importantes e onde apresentou a teoria de que toda a poesia – e por extensão, toda a criação literária – era uma resposta ou uma defesa a um poema anterior. Uma teoria que deve muito ao Édipo freudiano: escrevemos para matar quem nos antecede e influenciou e encontrarmos enfim a nossa voz.

Mas havia mais: Bloom escrevia sem jargão académico, com uma preocupação pela forma que de imediato criou anti-corpos nos académicos ortodoxos. A sua escrita é reminiscente dos grandes exercícios de estilo e uso da língua que eram os panfletos ingleses no século XVIII – época que, não por acaso, era uma das preferidas do crítico. Todas as suas escolhas pareciam ir propositadamente contra os escolhos da crítica vigente: ao New Criticism de Eliot e outros – árido e analítico – respondia com uma imensa paixão pelos Românticos, então completamente desacreditados. E o que mais doía à comunidade académica: o homem era um best-seller. Os seus livros vendiam e muito – facto absolutamente impensável para os seus adversários, que consideravam que para ter credibilidade era necessário obscuridade.

Ah, Bloom foi um grande homem. Excessivo, polémico, falstaffiano por vezes. A sua velocidade de leitura e de apreensão do texto era lendária, a ponto de vários amigos dizerem que não era boa coisa assistir a Bloom lendo. Sabia de cor muitíssimos poemas, e o Shakespeare todo. Repito: todo.

E faz tanta falta. Há pouco tempo, num festival literário a que tive o prazer de ser convidado, ouvi um poeta que não irei denunciar repetir a velha ladainha estruturalista da “a análise antes da interpretação”, a propósito da forma como deveríamos olhar para um poema. Pensei: “Harold, eles vivem”. O que Bloom combateu está agora no seu auge: a arte tem de ser propaganda, tem de ter uma mensagem política ou social relevante sob pena de não ser considerada arte ou, no melhor dos casos arte menor. A possibilidade de ser apenas arte – arte, prazer estético solitário e inútil – parece estar excluída.

Senhor Bloom, este seu soldado vai tentar continuar a luta com as suas fracas possibilidades. É o mínimo que posso fazer para retribuir quem me ensinou a ler, quem inoculou a paixão sustentada da literatura e dos autores.
Senhor Bloom: obrigado.

23 Out 2019

Brevíssimo tratado da alegria

[dropcap]P[/dropcap]ara quem se compraz com o familiar, como este vosso criado, a vida no bairro tem corrido a uma velocidade vertiginosa e inalcançável. Conto: primeiro foi a partida da menina Marina, a sábia que tantas vezes protagonizou estas crónicas. Foi substituída no seu posto por uma jovem rapariga. Mas com o regresso da época lectiva a adolescente foi fazer o que fazem os adolescentes. No seu lugar está agora uma mulher competente e de extrema simpatia, oriunda da China e com o mais extraordinário nome: Nasa (juro). Alguma da clientela habitual deste retiro não consegue impedir o trocadilho inofensivo: “Vou pedir um café à Nasa” ou “Será que a Nasa sabe fazer abatanados” são apenas dois exemplos. Toda a gente sorri e ninguém leva a mal, a começar pela própria.

A simpática Nasa está numa fase de aprendizagem, conhecendo devagar as manias dos clientes, os temas de conversa, os caprichos de alguns pedidos. E ainda tropeça na nossa língua. Um desses tropeções aconteceu comigo e levou-me mais longe do que esperaria. A estas palavras, por exemplo. Disse-me ela, vendo-me trocar graçolas com o dono do estabelecimento: “O senhor Nuno hoje é alegre”. Queria naturalmente dizer “está alegre”. Mas o engano revelou-lhe a linda (e incompreensível para estrangeiros) bifurcação ontológica entre o verbo “ser” e o verbo “estar”. Quando isso se conjuga com a palavra “alegre” e me diz respeito dá-me logo que pensar e escrever.

Bicho estranho, esse da alegria. Não se trata de ser feliz, não se trata de ter sentido de humor. Não é um riso sobre o mundo – é estar contente com ele, nem que seja por indesejados instantes. A língua portuguesa ainda complica a coisa de forma maravilhosa: somos alegres ou estamos alegres ou ambos?

«Não há ninguém capaz de me dar alegria», dizia um esplêndido refrão dos Heróis do Mar. Mas aqui a alegria é antónimo de tristeza e isso não chega nem serve e nem sequer é verdade. O que é ser alegre, estado existencial que confesso não conheço nem em mim nem aos que me rodeiam?

Apenas o estar alegre: um desprezo temporário das agruras da vida, um estar em casa com o que os dias têm para oferecer. Não se trata de felicidade ou de “ser feliz”: todos sabemos que ninguém com alguma vida e sensatez pode ousar dizer que é ou foi feliz. É uma utopia eufórica que normalmente se confunde com um momento. Não quer dizer que não se possa almejar a esse castelo de areia. Mas é difícil levar a coisa a sério. Por exemplo, se eu disser que tive uma infância “feliz” quero dizer que fui protegido, porque tive sorte e pais dedicados, das desgraças que me poderiam ter atingido. Mas o crescimento trouxe várias angústias e momentos de extrema solidão, como aliás penso que acontece a toda a gente que partilhou a mesma condição. Ou seja: apesar de tudo houve momentos de infelicidade, de dúvida, de tristeza.

Mas divago, como de costume. O leitor é paciente e compreende. E mais entenderia se alguém se apresentasse, como me aconteceu variadas vezes, como uma “pessoa alegre”. O que diabo isto quer dizer? Eu respondo: é o sinal para fugir a sete pés. Se alguém acredita que a vida é a sua sala de estar, que está sempre com um sorriso ou disposição luminosa está a mentir. Ou pior, está nas bermas da vida ou da inimputabilidade ou ambas.

Há um episódio verídico que o humorista Ricardo Araújo Pereira costuma dar como exemplo. Trata-se de um homem deprimido e descontente com o mundo que procura a ajuda de um psiquiatra. O clínico ouve-o, regista a sua tristeza e aconselha: “Deveria ir assistir ao espectáculo do famoso palhaço Grimaldi. É de uma alegria extraordinária. Isso ajudá-lo-ia”. A resposta do paciente é famosa: “Mas doutor, eu sou Grimaldi”.

A alegria é um estado transitório como todos, a começar pela própria vida. O que mais se pode aspirar é ser Grimaldi de quando em vez. Perguntem à Nasa.

9 Out 2019

Do consolo

[dropcap]E[/dropcap]u diria que tudo pode vir de um acaso». Assim começa um poema de Nuno Júdice, À Porta do Cinema. E sobre a certeza do acaso já aqui conversámos, amigos. Escrevi-vos na altura que é preciso resistir aos dias mecânicos, criar tempo e lugar para que o acaso nos comande, para que a incerteza exista e nos espante. De forma que, outra vez, tudo aqui veio de um acaso – desta vez chegou para me levar a territórios menos luminosos mas também necessários de enfrentar.

Primeiro, foi a redescoberta de uma crónica que escrevi há quase uma década na ressaca da morte de um amigo. Chamava-se A Vida Tem Morte A Mais. Fiquei espantado com o desamparo que aquelas palavras mostravam e que era o que realmente sentia. Não sabia o que fazer, não encontrava resposta ou solução. Pouco tempo depois de ter regressado ao que tinha escrito vi alguém que amo chorar a memória de alguém que amou e que, apesar de ter desaparecido há já alguns meses ainda a assombra. É uma ausência presente, uma sombra que tanto pode levar a sorrir como a verter lágrimas. E o que assisti foi novamente a esse desamparo, a essa vertiginosa solidão no meio da floresta, mesmo no meio de quem nos é mais próximo. E desta vez, outra vez, fui incapaz de estancar aquela dor, por muito que desejasse, apenas porque é uma dor subterrânea e perene. Podemos aprender a domesticá-la mas ela nunca sairá de nós.

Shakespeare, o homem que nos inventou, dizia que todos podem suportar um desgosto com a excepção daqueles que o sofrem. É verdade. Não há gesto, não há jeito, não há olhar que nos liberte, por mais gratos que possamos estar. Mas foi para estes momentos extremos que foi inventada uma das mais bonitas palavras da língua portuguesa: consolo.

É a mais doce medicina que a humanidade pode praticar. Mesmo que na essência não resolva o que nos aperta o coração, é uma prática necessária, urgente, imprescindível. É algo que toda a gente necessita, um bem maior que existe para ser partilhado em vez de acumulado. Noutro tempo, quando o tempo que existia era outro e mais longo, consolar alguém poderia demorar todo o tempo necessário. Agora não: talvez um abraço, frases tímidas de circunstância e pouco mais. Apesar da nossa necessidade de consolo ser enorme, para parafrasear um título feliz de um livro, deixámos de nos entregar, de entregar ao outro o melhor de nós. Porque o consolo implica também o abandono total de quem consola, a entrega irreversível de uma força e bondade que tem de nascer das profundezas da alma.

Sei que quando o desgosto nos assola muitas vezes o consolo pode residir na mais desejada das solidões. E se sei é porque assim me acontece. Mas é preciso resistir, deixar que o outro nos guie devagar, a pequenos passos para longe dessa floresta que sabemos – oh, se sabemos! – que nunca mais iremos abandonar. Mas pelo menos, com o consolo certo e demorado, iremos aprender a reparar na beleza das árvores.

4 Out 2019

Requiem pelo Outono

[dropcap]E[/dropcap]stes são os dias em que o outrora mais banal e malvisto tema de conversação ganhou subitamente urgência e manchetes de jornais. Estes são os dias em que falar do tempo – e aqui, o tempo climático – é pretexto de reuniões, manifestações e regatas transatlânticas feitas por adolescentes imbuídas de espírito messiânico.

Eu percebo e preocupo-me dentro das minhas limitações. Mas o que mais lamento, ó leitor confidente, é o desaparecimento das estações. Hoje começam a ser uma vaga memória, vestígios de um tempo romântico que nunca mais irá voltar. E é pena, até porque eu sou feito de uma estação.

Subestimámos as estações do ano. Habituámo-nos a enterrar os dias à pressa, schopenhauerianos involuntários que decidem sem querer ir matar o instante que se segue a outro instante  e acreditar que a vida é algo nesse intermédio. Caímos no erro de nos acharmos superiores ao que nos vai sobreviver, por mais aquecimento global que aturemos. Tudo se tornou, por nossa vontade, cinzento. Já ninguém fala de  pessoas primaveris, estivais, outonais, invernais. Misturar a nossa rica personalidade com uma mera estação do ano tornou-se ocioso e desacreditado. O que há resume-se às férias, ao trabalho, ao regresso às aulas, ao clima desagradável. Toda a gente se esquece das intempéries da alma, da força perfeita do Verão, da melancolia outonal, da tristeza de Dezembro, da inocência de Março – e como o gostarmos ou não gostarmos disso nos transforma naquilo que somos.

Eu sou um tipo outonal e não tenho vergonha que a adjectivação possa parecer ridícula ou poética ou ambas.  Talvez por ter nascido no inicio de Outubro renuncio à extrema alegria de Agosto. Apavoram-me esses dias que parecem, como escreveu Larkin, «emblems of perfect happiness». Prefiro, para não perder esta ajuda e arriscar o meu pretensiosismo, esperar por um «Autumn more appropriate».

E rejubilo quando ele se prenuncia, como é o caso do mês de Setembro. Não se trata de uma questão meteorológica, note-se; trata-se de reencontrar o que andava perdido e me fazia falta. Tempo para pensar, um tempo de regeneração e recomeço.

Mesmo que este mês oferecesse, para gáudio de muitos, temperaturas médias diárias de 30ºC, seria sempre o começo de Outono. A esperança em que não acredito reaparece ténue, com tudo o que pode significar: amor, paz, tempo. Setembro e o Outono são recomeços de mim. E sei que há muitos como eu, que o confessam em privado, quase a medo, vivendo na clandestinidade sob o entulho do quotidiano.

De forma que ando perdido, procurando sinais que sempre me foram faróis. Não os encontro e como sempre recorro à literatura. Lembro-me de parte de um poema de Robert Frost, Nothing Gold Can Stay, que nos fala da efemeridade da nossa passagem: “Then leaf subsides to leaf./So Eden sank to grief,/So dawn goes down to day./Nothing gold can stay.” É muito provável que o Outono tenha emigrado para um verso.

25 Set 2019

Travessa do Fala-Só

[dropcap]E[/dropcap]ra inevitável. Um acidente à espera de acontecer, um crime à espera de ser testemunhado. Até agora a coisa tinha-me corrido bem, porque sempre estive consciente dos olhares e antes de perpetrar a infracção os alarmes interiores soavam e suspendia o que iria fazer.

Mas desta vez não. Estava demasiado distraído, defesas em baixo. Estava até, confesso, a precisar de fazer o que fiz. E não consegui evitá-lo. Sim, amigos: fui apanhado a falar alto e comigo mesmo no meio da rua.

Corrija-se, a bem do rigor jornalístico: não foi na rua, foi numa estação de metropolitano. Mas aconteceu. Não me lembro do assunto da conversa que me estava a ocupar; apenas de que falava alto, gesticulava e tinha reacções histriónicas ao que ia dizendo. Só parei quando uma simpática idosa, com o olhar a transbordar de compaixão, se aproximou de mim e perguntou se eu precisava de ajuda e se estava perdido.

Podia ter respondido filosoficamente que sim a ambas as perguntas mas percebi que não era a isso que a generosa anciã se referia. Ali estava um marmanjo, no meio de um cais de estação de metro, a ter uma acesa discussão com um amigo imaginário. Mesmo tendo um ar inofensivo e felizmente longe de parecer um sem-abrigo, acredito que a visão possa assustar quem a presencie. Mas eis a verdade: eu pratico estes diálogos desde pequeno. Talvez por ser filho único habituei-me a longas cavaqueiras comigo como interlocutor. Às vezes redundavam em acesas discussões e deixava de me falar por umas horas, zangado com os meus argumentos.

Continuei a praticar a modalidade em público e ainda o faço. Não tenho vergonha. Apenas não me esqueço da célebre frase do poeta Dylan Thomas, ele próprio um grande fazedor de enormes diatribes contra ele próprio: “Alguém me está a maçar. Acho que sou eu”. Nessa altura calo-me.

Ou então falo mais baixo, não me lembro. É normal para mim passear na rua imaginando-me um Demóstenes ou um Churchill discursando para a House of Commons. Só que neste caso o parlamento sou eu e nem sempre aplaudo o discurso.

Acredito que haja mais gente como eu, sem grandes perturbações psiquiátricas, que faça o que eu faço. Deveríamos formar um sindicato, um clube, uma agremiação, uma banda, qualquer coisa.

Reparem, meus irmãos do solilóquio: agora até temos os “estudos” que provam que falar sozinho é sinal de génio. Pela minha parte ainda não dei por nada mas a esperança mantém-se.

Há pouco tempo vi na rua o que me pareceu ser um destes companheiros. Falava sozinho sem complexos e até sorria, caminhando com uma segurança inaudita e digna da minha admiração.

Apeteceu-me abraçá-lo e aproximei-me: afinal estava a falar ao telemóvel, com um aparelho instalado no ouvido. Não nego que fiquei desiludido. Mas por outro lado e por um instante reconciliei-me com as novas tecnologias de comunicação que permitem que tipos como eu possam passar mais despercebidos na via pública.

Olhem, amigos: eu até contava mais episódios mas infelizmente não posso. Tenho de sair e há uma conversa longa que preciso de ter comigo mesmo.

18 Set 2019

O cronista: modo de usar

[dropcap]P[/dropcap]asseio-me por casa, sem destino. Aproxima-se o final da tarde e eu sei bem o que isso quer dizer. Então olho para as estantes onde estão os meus cúmplices em forma de livro. Escolho um, nem sequer um de que gosto particularmente. Escolho-o apenas porque está ali e eu preciso dele. Os olhos varrem as letras, nada fica das páginas que leio porque a cabeça está noutro lugar. Estou a adiar a hora da escrita, com um desespero mais ou menos controlado. A perspectiva é sempre um pouco assustadora, esta possibilidade do falhanço em conseguir dizer o que quero e poder ser ouvido. O facto de ser um caçador do acidental e das pequenas coisas não facilita. Nem sequer é a famigerada angústia da página em branco. Afinal, é só uma página em branco.

Não, amigos: é aquela famosa frase que ressoa na minha cabeça como uma sentença: «Detesto escrever, adoro ter escrito», disse a Dorothy Parker. Diagnóstico certeiro da minha condição.

Refugio-me nos rituais pré-escrita: um gin tónico ou um copo de vinho ao lado do computador. Sei que não irão oferecer-me milagres mas ajudam a cabeça a voar com um sorriso. E voa. Voa, amigos. De repente, e sem saber como nem porquê vêm-me à memória outros rituais, mais antigos, da minha infância. Vejo-me com o meu Pai, com nove ou dez anos. É um sábado de manhã soalheiro e subimos devagar a Pedro Álvares Cabral. Entramos num alfaiate, onde o meu Pai fazia os fatos. Seguem-se provas sem fim, medições que o eu-criança não compreendia e com que se entediava. Uma hora depois, terminava. O alfaiate – o senhor Faria – despede-se de mim e eu tento retribuir com o sorriso possível. Depois voltamos a descer a rua e entramos noutra loja de roupa, desta vez infantil: o Brummel (nome que mais tarde iria significar muito para mim). Mais provas e provações, desta vez comigo como protagonista. O meu Pai acompanha docemente este exercício, com paciência, e compreendendo a minha vontade de que tudo acabasse depressa. Subitamente, termina. Mas para mim começa: como recompensa, iria passar uma hora no Jardim Cinema, histórica sala de jogos lisboeta com mesas de ping-pong e uns matraquilhos de hóquei em patins, que eu adorava. Para trás ficavam as contrariedades e só passavam a existir aqueles instantes mágicos, em que o meu Pai me desafiava nos vários jogos. Voltava para casa sempre cansado mas sempre a sorrir.

Continua a voar, a cabeça. E junta, de forma caótica, memórias e observações que não consigo transpor para o papel, arranjar-lhes uma lógica qualquer: um encontro fortuito em Paris em 2009, uma crónica do Fernando Sabino, uma conversa apaixonada e nocturna sobre o estado da música, o cabelo imaculadamente branco de uma senhora que veio perguntar quais os poemas que tinham sido lidos numa sessão de leituras em que participei. A vida está cheia destes pedaços às vezes dissonantes que não cabem na ordem artificial das palavras, quanto mais num texto.

Mas por fim, descubro que hoje é isso mesmo que tenho para dar, esta Babel de memórias e emoções. Sempre achei importante conhecer as nossas limitações e hoje esta é a minha. E olhem, amigos: termino esta crónica com os olhos a brilhar, como se estivesse a jogar matraquilhos de hóquei em patins.

11 Set 2019

Do envelhecer

[dropcap]O[/dropcap]s dias do regresso sucedem-se devagar e previsíveis, como sempre deveria ser quando há alguma paz nas nossas vidas. Gosto de ver os lugares e as pessoas quase recompostas numa subtil mudança para o que nunca irá mudar. Aqui e ali as mesmas piadas, o mesmo sorriso, as mesmas diatribes. Depois da falsa suspensão da vida a que chamamos férias, o recomeço dá oportunidade de apresentarmos a mesmíssima pele mas mais lustrosa, preparada e engalanada para as batalhas que nos esperam. Este é o meu tempo preferido, a promessa de um Outono depois dos excessos mais solares e quase forçados. Um Outono que me é mais apropriado, parafraseando o meu poeta.

No meio deste remanso procuro em vão a sábia do bairro, a inevitável menina Marina. Dizem-me que não está, que não regressa, que encontrou lugar melhor. Desde logo sinto-lhe a falta e digo-o a quem me quis ouvir. Respondem-me: “Mas está aquela rapariga no seu lugar, muito mais nova. Precisamos de juventude, de caras novas.” Olhei para a moça em questão, bonita, simpática e competente, com o sorriso de despreocupada arrogância que normalmente é conferido pela mistura explosiva de beleza e juventude. Está tudo certo, mas ainda assim…

Talvez seja por sempre ter achado que a juventude é sobrevalorizada. Talvez seja – não, é-o de certeza – por sempre ter desejado ser mais velho. E aqui ser mais velho não equivale apenas a contar com mais anos, numa percepção meramente cronológica. Trata-se sim de ter mais vida.

Desde sempre a vida que tinha não me chegava porque não me permitia saber de muitas coisas. Daí ter sempre, de uma forma ou de outra, procurado a companhia de pessoas mais velhas. Ainda hoje tenho grandes amigos bastante mais velhos do que eu.

Numa cultura como a ocidental (ou, para não ir mais longe, num país como este a que pertenço) esta atitude é quase uma forma de resistência. Nunca compreendi este doce desprezo pelos mais velhos, que ou são ignorados ou infantilizados de forma estúpida e abusiva quando na verdade deveriam ser ouvidos e respeitados. Olhem, amigos: eu não estou a fazer uma estetização da velhice, que pode ser difícil e dolorosa; a perda de faculdades, físicas ou mentais, e o reconhecimento disso mesmo não tornam a vida mais doce. Mas no meio desse percurso há a memória e o sossego que quem já viu muito; mais importante ainda, há a possibilidade do legado, de transmitir o que se amou a outros que ainda o poderão fazer. Que essa possibilidade seja tão maltratada por nós é algo que considero inaceitável.

Vivemos numa altura em que a longevidade é clinicamente aumentada. Mas de que serve viver mais se ninguém quer saber da vida que se teve?

Não, pela minha parte estou como a mais fabulosa canção do musical Gigi, I’m Glad I’m Not Young Anymore, em que entre outros versos memoráveis há este: “forevermore is shorter than before”. Que a juventude é necessária e bem-vinda – certamente. Mas que envelheçam, envelheçam se puderem. Como dizia um dos grandes cronistas americanos, Garrison Kellor, “Envelhecemos e percebemos que não existem respostas, só histórias”.

4 Set 2019

Da derrota

[dropcap]F[/dropcap]oi numa daquelas noites em que a conversa deriva, sem tempo nem mapa. O leitor saberá como é: um copo aqui, bons amigos ali e aquela cumplicidade serena que se desprende das melhores amizades. São em momentos como esses que ganhamos coragem até para fazer perguntas menos convenientes mas interessadas, que não faríamos sem o doce embalo destas horas.

Uma dessas noites, então. Amigo próximo e com senioridade nesta coisa de afectos diz-me à queima-roupa: “Li o que escreveste sobre o David Berman, que não conhecia e fui ouvir. Gostei mas aquela música é mesmo a tua cara. Só gostas de músicas tristes, de perdedores”. Respondi-lhe vagamente que não era bem assim, que também gosto de outras coisas mais alegres e vitoriosas. Mas no regresso a casa vim a pensar no que me disse e que de certa forma tinha razão.

Não concebo a vida sem a derrota. Não quer dizer que esteja obcecado por ela ou não consiga sentir prazer nas minhas insignificantes conquistas ou nas grandes vitórias alheias. Apenas que a minha natureza me aproxima mais dos Píndaros dos perdedores, dos que proclamam a derrota sem auto-piedade: com lucidez, melancolia e se possível um pouco de humor, como de resto é o caso de Berman.

O que seria dos dias sem as quedas que damos? O que seria da arte, do que nos toca? Uma das obras-primas da literatura mundial descreve a mais extraordinária e gloriosa das derrotas: o Dom Quixote, de Cervantes. Sinatra tinha um especial carinho pelos que perdiam, especialmente porque foi um deles: quatro tentativas de suicídio, uma carreira arrasada em 1949 e um relacionamento intenso mas tumultuoso com Ava Gardner permitiram que, entre outras coisas, gravasse No One Cares, uma ode superlativa aos que ficam sozinhos. “Este disco deveria vir com uma pistola”, disse ele, que chamou a este e a dois outros monumentos – Only The Lonely e Where Are You? – “álbuns para o suicídio”.

Sim, gosto dos que perdem. Até porque nesta corrida já partimos derrotados. Mas até lá cada obstáculo, cada sombra, cada dor podem servir de amparo desde que não os evitemos.

Lembro-me, quase de cor e à velocidade com que escrevo, de uma frase de Churchill: “ O sucesso consiste em ir de falhanço em falhanço sem perda de entusiasmo”. É isto. O triunfo fala por si, possui trombetas estridentes e pomposas. Dêem-me a discrição do tipo que não consegue, do atleta que cai em frente à meta. Essa é a minha gente, os que acabam e recomeçam tudo outra vez. Há um pequeno poema de Yeats, What Was Lost, que tem um belíssimo verso inicial que se me cola à pele: « I sing what was lost and dread what was won». E no fundo o que acabei de escrever é a resposta articulada e justa ao que o meu amigo me disse durante um desses belíssimos momentos que parecem ser eternos. O leitor saberá como é.

28 Ago 2019

Do fazer nada

[dropcap]A[/dropcap]ssim: uma brisa leve, um calor inoportuno, indesejado e imprevisível. Uma rua serena, aliviada pelo abandono de Agosto. Ninguém na rua. Permitam que repita com um leve sorriso nos lábios, único ser humano que tudo pode confirmar, escudado numa esplanada do bairro ainda irredutível: ninguém na rua.

Então a entrega possível. Olhem, amigos: sem dever nem prazo, pegar num livro que de tanto lido e de tanto amado não pode ser desprezado. Todos temos um. Vários, direi. A boa notícia: nunca será o mesmo. Crescem connosco e nós, se formos espertos e sortudos, crescemos com eles. Não tenho dúvidas sobre esta matéria: é urgente um Plano Nacional de Releitura.

Haverá certamente outras prioridades. Mas não agora, não agora que me reencontro com o major Scobie de O Nó do Problema (The Heart Of The Matter) de Graham Greene. Quantas vezes terei lido o livro? Muitas. Conheço-o como a mim próprio, este característico anti-herói greeneano que confunde amor com compaixão. Um homem com uma ambição semelhante a Bartleby, pecador agostiniano na sua doce recusa à vida. O seu objectivo maior é estar sozinho; e só as paixões e Deus estão no seu caminho. O mesmo que o condena.

Mas não quero fazer aqui recensão literária. Este meu Greene, sublinhado e amarfanhado com o uso mas ainda com a possibilidade e a vida para poder fazer mais notas, é apenas um prazer recorrente, como acredito que os melhores prazeres devam ser. E, até deparar com a realidade absurda, a coisa estava a correr bem, um leitor apaixonado com tempo e sentindo a cidade que ainda respira de alívio devido à deserção da população de Agosto. Não, amigos: conhecendo a minha sorte sabia que mais cedo ou mais tarde iria levar com qualquer coisa que me maçasse.

Assim foi: os meus olhos depararam, numa pausa de leitura, com mais um sinal extraordinário destes dias. E assim, eu que estava sem horas nem intenção sentado numa cadeira fui violentamente contrariado naquilo que achava que estava a fazer: nada. Pior: soube que para fazer nada era preciso seguir uma “disciplina” ou “filosofia”. Até várias: a coisa começou na Dinamarca, com algo a que chamaram hygge e que se definia por “ficar em casa sossegado” (a sério). Não contentes com isto, os maldosos escandinavos inventaram uma declinação do conceito e – hop! – apresento-vos ao lagom, uma “filosofia” sueca cuja o princípio maior é o de “ver a vida com moderação”. O leitor dirá: para quem se dedica a querer não fazer nada, tudo isto parece dar muito trabalho. O leitor diz bem, e não está preparado para o que vem: o nyksen, uma “visão” holandesa que, de forma surpreendente, recomenda o que fazer para não fazer nada: vaguear, ouvir música, estar sentado – desde que seja sem propósito.

Até hoje não fazia ideia de que era um exímio praticante de nyksen combinado com todas as outras variantes. Provavelmente terei neste momento direito a um honoris causa. E nem me apetece dizer que o otium romano – a condição filosófica mais sublime – já anda por aí há algum tempo. Não, nem que seja só por hoje a minha irritação com estes dias, em que mesmo o que não tem destino precisa de GPS vai ter que ser interrompida por vontade própria. Até porque tenho muito nada para fazer.

21 Ago 2019

A infelicidade como uma das belas artes

[dropcap]T[/dropcap]inha-me prometido, a bem dos leitores e da minha própria saúde, fazer uma pausa nas crónicas menos luminosas e existenciais. Mas o universo encarrega-se de não nos deixar fugir ao que somos. Assim foi, e neste caso da pior maneira: perdemos David Berman, poeta e um dos maiores escritores de canções das últimas três décadas. Para mim e para muitos terá sido como perder um amigo próximo. Ainda mais porque todos andávamos maravilhados com o seu regresso, após uma década de ausência. O álbum Purple Mountains (do colectivo com o mesmo nome, veículo musical para as palavras de Berman) é uma obra-prima. Negra e luzidia, é certo; mas um regresso extraordinário, as marcas do antigo fundador dos Silver Jews a brilharem no fundo do mar. Só que a questão era essa: era para o fundo que Berman sempre quis que olhássemos.

Estupidamente ou não, entre os vários lamentos e extraordinários tributos que fizeram ao homem, não me saía da cabeça a história de Steven Bradbury. Para quem não conhece, eu conto: Bradbury foi um patinador no gelo, na modalidade de velocidade em pista curta, que venceu da forma mais improvável a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002. Depois de várias eliminatórias em que conseguiu ir sendo apurado de forma medíocre ou por desqualificação de concorrentes, Bradbury chegou à final – e vence-a porque os outros patinadores se envolveram numa queda colectiva, restando-lhe deslizar de forma serena até à meta.

Durante alguns dias lutei comigo próprio para tentar descobrir a razão desta imagem recorrente mas aparentemente tão distante do que estava a sentir. Percebi quando comecei a revisitar, de forma mais calma, a obra de Berman. Desde o princípio que as suas canções são sobre os patinadores que caíram naquela elipse gelada e sobre quem vence daquela maneira. Berman escrevia sobre a vida do ponto de vista do perdedor e sempre com a consciência de que mesmo quando se vence, é o acaso que é a lei. Sim, sim: Random Rules, uma das mais famosas canções dos Silver Jews.

Na minha opinião, Berman conta-se entre os grandes cronistas da infelicidade, uma arte nobre e difícil. Não o ser infeliz, nem a tristeza – isso são temas que atravessam desde há muito a música popular, de Hart a Porter, a Cohen ou Curtis. O que Berman descrevia era a própria infelicidade, algo diferente e mais profundo; e como outros grandes chegava a rir-se dela. Um pouco como o risus purus de Beckett ou o optimismo desesperado que Francis Bacon dizia colocar nas suas telas. Uma constatação da miséria mas também um humor de condenado na masmorra. Os versos de Berman são altamente citáveis e precisaria de duas crónicas para poder esgotar os melhores. Isso dá-lhe uma capacidade aforística que não é só mera catarse: é trabalho, vontade de criar a linha perfeita. Numa vida atormentada por dependências, abandonos amorosos, má relação com o pai e uma terrível depressão, era capaz de escrever coisas como “In 1984 I was hospitalized for approaching perfection”, o verso de abertura do já citado Random Rules.

Neste disco a luz negra foi mais longe enquanto que, por contraste, a estrutura musical e produção são mais acessíveis e complexas. As canções são demasiado perto do osso, sabemo-lo sempre. E mesmo assim cantamos com gosto o refrão contagioso que diz “All my happiness is gone”.

A morte de Berman tornou este Purple Mountains o mais belo dos testamentos musicais, só comparável ao último disco de Leonard Cohen. Mas haverá sempre a nuvem terrível do absurdo da vida e o desespero de um homem que depois de regressar resolve deixar este mundo. “The dead know what they’re doing when they leave this world behind”, assegura-nos no belíssimo Nights That Won’t Happen. Pois sim, mas quem me dera que isso servisse de consolo, David. Quem me dera.

14 Ago 2019

Regressar

[dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos. Não sei se acontece convosco mas eu aproveito o balanço e deixo a confissão: o que mais gosto das férias é do regresso. A sério. Aliás, para ser ainda mais sincero, já que aqui ninguém nos ouve: o que eu gosto mais de todas as partidas, de todas as viagens, afectivas ou geográficas, colectivas ou individuais é sempre o mesmo: o regresso.

Como agora. Já me fazia falta voltar a estas palavras que interrompi por vontade própria e necessidade. Mas a sua ausência não foi nem nunca será tão gratificante como o regressar à escrita.

Assim com tudo, desde miúdo. As férias escolares, quando era criança, prolongavam-se por uma eternidade em que cabiam muitas aventuras e descobertas. Mas chegava sempre aquela altura terrível para os meus pais em que me lamentava pelos cantos, suspirando com uma frase cara aos supermercados: o regresso às aulas. Na Irlanda – um país que amo e o que mais visitei – cheguei a escrever para casa: “Não volto”. Oh, ilusão juvenil! Claro que voltei – e o ter voltado foi o melhor de ter partido, até porque me deu a infinita possibilidade de regressar.

Gosto de regressar, sim. Gosto de me confortar numa ordem doce das coisas: um céu conhecido, um gesto previsível, uma rua já palmilhada. Não me escuso ao desconhecido – bom, não é verdade, cada vez tenho menos paciência, mas adiante – mas não sei viver sem o familiar.

O meu filósofo político de referência, Michael Oakeshott, diagnosticou há muito esta disposição natural num célebre ensaio, On Being Conservative. Mas na verdade a razão funda desta disposição é – como qualquer conhecedor do conservadorismo britânico saberá – o medo da perda. E para isto não é necessário aderir a uma mundividência específica: começa e acaba em ser humano.

O que mais me comove, então, é o voltar não a algo que se abandonou mas a algo que nunca se deixou. E reconhecê-lo, e comprazer-se nisso mesmo. O regresso é um combate ao tempo. É uma espécie de reclamação de imortalidade que só terá lugar se depois de partirmos deixarmos qualquer coisa a que alguém possa regressar. O poeta Shelley, por exemplo, sabia-o : « A mudança é certa», escreveu. «A paz é seguida por distúrbios; a partida de homens maus é seguida pelo seu regresso. Tais recorrências não deveriam constituir ocasiões para tristeza mas sim realidades para produzir conhecimento, para que pelo meio possamos ser felizes. »

O regresso é a razão da partida e de todas as pausas. As férias, com a utopia do descanso e de “pormos em dia” tudo o que não tivemos coragem de fazer antes, são uma falácia. Não há férias da vida.

7 Ago 2019

Fintar a vida

You’ve been cheating on, cheating on me
I’ve been cheating on, cheating on you
You’ve been cheating on me
But I’ve been cheating through this life
And all its suffering
Vampire Weekend, This life

 

[dropcap]A[/dropcap] inevitável menina Marina passou agora a acumular funções: para além de sábia do bairro é também a mais informada e contundente crítica destas crónicas. Leu-as todas, sem excepção; e assim, com a legitimidade do leitor fiel, afirmou de viva voz o que tinham em comum: «São todas tristes, senhor Nuno. Ou falam de mortos, ou está zangado, ou está sempre a dizer que vamos todos morrer».

Argumento inatacável, este, porque é verdade. Ia responder quando ela pediu: «Escreva sobre coisas bonitas. É Verão, está quase a ir de férias… Deixe lá esse mau feitio». Achei intrigante que alguém que examina pormenorizadamente os tablóides em busca de sexo, sangue e corrupção (e que os encontra sempre) me peça para escrever sobre “coisas bonitas”. Mas prometi-lhe que iria fazer o meu melhor, mesmo sendo contra a minha natureza e, atrevo-me, à natureza humana.

Mas depois aconteceu isto: durante o meu habitual percurso de metro sentou-se à minha frente uma mulher da minha idade. Distraído, nem sequer olhei para o seu rosto. Mas eis que ela me reconhece e repete o meu nome com alegria, perante a minha surpresa. Seguiu-se uma troca de perguntas e cortesias em que eu tentei disfarçar o melhor que podia um facto simples: não me lembrava da senhora em questão. Durante dez intermináveis minutos limitei-me a responder amenidades sobre o que fazia e a procurar nas suas respostas indícios da sua identidade. Em suma, estava a ser uma espécie de Poirot de mim mesmo: sabendo quem ela era, iria descobrir quem eu era quando a conheci. Quando com algum alívio cheguei ao meu destino não tinha decifrado o mistério. Ainda não o consegui.

Este fenómeno acontece-me cada vez com mais frequência. Antes, na minha juventude, auto-proclamei-me nomenclator de um amigo que tinha exactamente o mesmo problema. O nomenclator, já que não perguntaram, era um escravo utilizado pelos patrícios do império romano e que tinha como função lembrar ao amo quem era fulano ou fulana e o que faziam. Isto era especialmente útil em funções políticas ou em situações sociais. Entrávamos num bar, chegava alguém que falava connosco e eu segredava-lhe: «É X e faz y. Bebemos copos com ele ontem.» Na altura ria muito deste meu amigo, que de resto não melhorou da sua condição. Mas agora quem gostaria de ter um nomenclator era eu. Na sua ausência perco-me em malabarismos verbais, falsas expressões de reconhecimento e sorrisos patéticos entremeados com afirmações vagas. Suponho que não seja um espectáculo bonito de se ver. Mas o que seria se dissesse sempre a verdade: «Desculpe, minha senhora, mas não estou a ver…» Imaginemos que quem nos saúda é um amigo com quem vivemos tempos preciosos ou com quem estivemos apenas há alguns dias? Não, aqui a convenção e a hipocrisia inofensiva são valores civilizacionais que é preciso manter.

Trata-se no fundo de fintar a verdade, de fintar a vida. Sabemos como isto vai acabar, mas elaboramos dribles e reviengas várias porque tem de ser. Porque, no limite, isso é viver e deixar viver. Não sei se isto é uma coisa bonita, menina Marina, mas olhe: é mesmo o que há.

17 Jul 2019

E agora, João?

[dropcap]J[/dropcap]á há algum tempo que tinha isto para dizer. Digo-o agora, por razões que mais adiante explicarei. Pode ter relevância para uns, nenhuma para outros; está certo. Mas é a verdade e neste momento a verdade incomoda-me.

Explico: quando escrevo uma crónica, mais do que querer dar o meu pequeno olhar sobre as coisas, escrevo na esperança arrogante de honrar um legado. Nunca o esqueço, pelo menos.

Falo de uma escola de cronistas de que me sinto próximo – mas que nem por sombras chegarei a uma mísera palavra com a mesma qualidade. Falo de gente como Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Otto Lara Resende, Rubem Braga. Homens que escreviam diariamente – diariamente, por Deus! – e tinham sempre algo para dizer, e sabiam-no dizer com o coração, pegando-nos pela mão e usando a elasticidade da língua portuguesa com uma ternura precisa. Como uma bebida desejada que actua directamente e em simultâneo na cabeça e no coração. Quando escrevo, então, é natural que haja sempre uma pegada, uma sombra de epígono. E quando isso acontece (e acontece sempre) e é detectado, eu fico contente porque é um elogio.

Escrevo um dia depois da morte de João Gilberto. Estes homens que acima citei conheceram-no, assistiram ao que aconteceu, alguns foram até cantados por ele (como foi o caso de Antônio Maria), escreveram sobre ele. Por isso, hoje a sombra é maior, porque estes nomes que invoco não chegam nem servem quando quero dizer adeus a um bocadinho de mim.

Nesta altura maiores, melhores e sempre merecidas elegias já terão sido escritas e ditas a este génio misantropo e maníaco da perfeição. A minha não irá acrescentar nada. Mas, sendo uma necessidade egoísta, não deixa de ser uma necessidade. Depois de Sinatra, Gilberto é para mim – e suspeito que para muitos – o maior interprete da música popular. Amarro-me a esta analogia forçada e injusta para ambos, sabendo que o estilo e o repertório eram diferentes, apenas porque não consigo melhor para dizer o quanto cabem na minha vida. Mas refugio-me na seminal biografia da Bossa Nova de Ruy Castro, Chega de Saudade, e sei que Sinatra tem uma ligação remota com o movimento – e logo, com João Gilberto.

Mas há mais, há tanto que aquele baiano rezingão deixa. A forma doce como canta, as inflexões subtis em determinados versos: oiçam Saudades da Bahia e reparem como é cantado o verso “ai se ter saudade é ter algum defeito/eu pelo menos mereço o direito”, sílaba prolongada e subida na hora certa, o “eu” dito na mesma nota do que “defeito”, uma construção que pulveriza qualquer coração de granito. A falsa simplicidade da guitarra, acordes dificílimos e em suave atraso com a melodia de voz, o que por vezes causa aparente dissonância – daí os puristas (porque são sempre eles, seja qual for o assunto) dizerem que desafinava. Felizmente a resposta veio cantada e é o que sabemos.

E depois, tanto, tanto. João Gilberto, como Tom Jobim, é um dos símbolos daquela revolução conservadora, que mudou sem deixar para trás o que tinha de ficar. Uma vertigem musical feita por miúdos de classe média, bonitos e que dividiam o seu tempo entre o amor pela música, a praia e o fascínio pelo sexo feminino. Uma das minhas canções preferidas, Se É Tarde Me Perdoa, é um perfeito exemplo. Com letra de Ronaldo Bôscoli – ele próprio um moço bem-apessoado e com grande popularidade entre as garotas – fala do regresso e do perdão, de alguém que vadiou durante a noite, viu mil amores e mesmo assim regressa, como um Ulisses boémio. O último verso é um achado de economia e comoção: “Vinha só cansado”. João canta isto como ninguém e sempre me emocionou. Só que esta canção e o seu tema vem já de uma tradição da música brasileira: se ouvirem o lindíssimo Camisa Amarela, samba de Ary Barroso feito muito antes da Bossa Nova, verão muitas semelhanças. E os últimos versos, ditos pela mulher que perdoa: “Passada a brincadeira/ele é só para mim”.

É, João é isso: passado, presente e futuro da nossa alma, espelho e consolo. O único cantor que fui ver duas vezes seguidas – mesmo que na primeira ele tenha saído a meio do concerto, irritado com a mudança do posicionamento da orquestra. João é a possibilidade da esperança, da redenção através da arte. É dos que deixam vida nas vidas, dos que inspiram. Vai ficar, João, vai ficar sim. Mas agora, João, e nós – como é que nós vamos fazer?

10 Jul 2019

Teologia do acaso

[dropcap]U[/dropcap]m dos livros mais conhecidos de Paul Auster chama-se A Música do Acaso. Foi publicado em 1990 e de imediato a voz do escritor confundiu-se com este romance que tem uma leve herança da filosofia do Absurdo. Resumidamente, é a história de um bombeiro, Jim Nashe, que por circunstâncias várias se vê livre para prosseguir a sua vida da forma como entender. O livro é marcado por acontecimentos sem causalidade, onde o jogo, sorte, azar ou coincidências são o que determinam o percurso dos personagens.

Lembro-me de na altura ter ficado fascinado com o romance e de imediato me ter transformado num convicto adepto da Austeridade (perdoa o pobre trocadilho deste vosso escravo, ó leitor!). Anos depois voltei a lê-lo e as formulações já me pareceram cansadas e previsíveis – um pouco em contradição com o espírito da obra. Então porquê trazê-lo, agora e aqui?

Porque senti a sua falta, de outra forma que não literária. Olho à minha volta nestes dias e percebo que o acaso é algo que também é uma espécie em extinção. Deveria haver uma reserva natural para coincidências ou serendipismos neste mundo cada vez mais determinista. A ilusão de proximidade dada pelos algoritmos faz com que possamos saber ou prever com algum rigor passos mais ou menos decisivos das nossas vidas. E pior: que esses passos sejam almofadados por outros que sabemos terem visão semelhantes às nossas, tornando-nos assim ignorantes voluntários de opiniões e mundos distantes da nossa rua.

Nem o amor está a salvo. Através de um telemóvel escolhemos com conforto e distância quem achamos que irá preencher as nossas mais apaixonadas ânsias. O risco, a emoção do confronto com o desconhecido está a ser obliterada em nome de uma qualquer forma mais prática e anónima. O acaso, tão fundamental e precioso na emoção humana, tende a desaparecer.

Só percebemos o que se nos está a escapar quando somos invadidos pelo que se nos escapa. Há alguns dias, por acaso e sem marcação prévia, fui parar a um bar de jazz onde estava a decorrer uma jam session. De repente, vindo não se sabe de onde, apareceu aquele que considero um dos melhores saxofonistas nacionais – Ricardo Toscano. A noite agigantou-se com o inesperado, aliás em ligação perfeita com o jazz que por definição é uma arte do improviso. E é destes acasos que a alma pode e deve alimentar-se.

Voltaire dizia que aquilo que chamamos acaso não é senão a causa ignorada de um efeito conhecido. Acredito. A vida tem mesmo uma ordem secreta e misteriosa que urge preservar cada vez mais, mesmo contra a corrente. Proclamo aqui a necessidade de uma teologia do acaso, algo que nos redima com urgência e doçura.

3 Jul 2019

Segredos

[dropcap]D[/dropcap]e vez em quando pensamos que estamos preparados para tudo. São momentos raros e, com sorte, não duram mais do que um nanossegundo. Mas não foi um desses momentos que me aconteceu quando há dias a enigmática menina Marina – a sábia do bairro – avançou inexpugnável e sem medo disparou: «Já sei que escreve uns artigos semanais num jornal de Macau». Tal foi a surpresa que nem sequer me interessou saber como o teria descoberto, eu que não sou dado a proclamar seja o que for em público ou em privado. Mas prosseguiu: «E todas as semanas um tema diferente… Isso é difícil. Qual é o seu segredo?». Por exemplo alguém fazer uma pergunta como essa e sem o saber estar a fornecer aquilo sobre o que poderei vir a escrever.

Naturalmente não foi isto que respondi e refugiei-me numas amenidades de circunstância. Mas outra vez a menina Marina tinha acabado de ser providencial.

A verdade é que o segredo é necessário a uma vida saudável. Não este que a pergunta referia, que terá mais a ver com um making of que pouca ou nenhuma importância tem para quem o detém e menos ainda para quem o quiser saber. Mais relevantes serão aqueles que pela sua ocultação podem afectar terceiros, individuais ou colectivos. A necessidade de escrutinar os nossos governantes ou quem possui poderes de decisão é uma das bases da democracia e de um estado de direito. Mesmo assim, em situações extremas, como conflitos bélicos, o segredo tem sempre um papel central.

Mas aqui neste canto do jornal o leitor sabe com o que conta, que são os dias, os passos dentro do nosso pequeno mundo. E até aí o segredo é essencial: pensemos o que seria da humanidade se toda a gente revelasse o que sabe do outro ou de si próprio sem filtros nem conveniências.

Não, o que aqui falamos é outra coisa. Não é o segredo malicioso, que prejudica. Mas aquele que é nosso, território desconhecido para o resto do universo. Um canto da nossa sala de estar mais íntima, um sentimento, um dia, uma hora. Se o revelamos, deixamos de ter uma relação real com os outros. Todos os temos, todos haveremos de morrer com alguns. O segredo, de certa forma, é essencial para a verdade e um bem a conservar e a não desperdiçar. António Vieira, que sabe mais e escreveu melhor, não hesitou em proclamá-lo num dos Sermões: «Nenhum segredo é segredo perfeito, senão o que passa a ser ignorância; porque o segredo que se sabe, pode-se dizer, o que se ignora, não se pode manifestar. »

Ter segredos só nossos é preservar a alma. E muitas vezes, mesmo nas mais apaixonadas e perenes relações, serve para preservar a união e a harmonia. Lembro-me dos versos de Four Flights Up, de Lloyd Cole: «Must you tell me all your secrets when it’s hard enough to love you knowing nothing?». Isso: de que serve uma obsessão pela “verdade” e pela “transparência” quando parte de amar e ser amado é justamente esconder o que nos incomoda em quem amamos no dia a dia?

O segredo nosso e que ninguém há-de saber é o que importa. Permite a convivência e o amor. E no limite, irá sempre garantir o mais importante de tudo: a nossa liberdade.

26 Jun 2019

Desonra e vergonha

[dropcap]D[/dropcap]urante estes dias lembrei-me bastante de Emil Cioran e dos seus escritos. Não se espante o leitor: Cioran é um autor que admiro. Mas a frequência com que os seus aforismos me vinham à cabeça era surpreendente, não tanto pelo seu conteúdo mas mais pelo facto do autor estar em monopólio na minha cabeça – coisa que nunca antes acontecera. E Cioran, logo ele. Um profundo pessimista, alguém que iluminava a vida com os ténues archotes das masmorras. Beckett conhecia bem os territórios escuros em que o romeno vivia; só que deles se aproveitava para fazer troça da nossa pobre condição, num riso de condenado. Ainda assim escreveu-lhe um bilhete a agradecer um livro: «Nas suas ruínas encontro consolo», escreveu o irlandês. Então porquê esta minha obsessão por esse poço fundo e sem regresso mas cheio de uma terrível beleza? E sobretudo este aforismo em particular, que me perseguiu vários dias: “Todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?”.

Até que um dia percebi a origem desta fonte de escuridão repentina. Deixem-me que a apresente desta maneira: várias fotografias. Uma: um rapaz jovem efectua malabarismos com bolas cor de rosa entre aquilo que parecem ser paralelepípedos enormes. A legenda: “What an incredible place!”, seguido de dois emojis entusiásticos. Outra foto: no mesmo local mas desta vez em cima de um desses rectângulos, uma rapariga jovem e bonita reproduz uma difícil posição de yoga enquanto sorri. A legenda: “Yoga is connection with everything around us”. E há mais, muito mais: raparigas que sorriem para a câmara, selfies de gente divertida a fazer o pino ou simplesmente em poses sexys. Todos andarão entre os 20 e os 30 anos. Todas estas fotografias e respectivas atitudes foram tiradas no Memorial do Holocausto, em Berlim, que homenageia e lembra os milhões de judeus assassinados na Europa pelos Nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

Perante isto fico estupefacto. Não tenho respostas, provavelmente porque me lembro das palavras de Hannah Arendt que acreditava que perante o Holocausto a única resposta civilizada é o silêncio. Mas há uma náusea profunda que me leva a desprezar estes seres humanos como eu.

Não sei se o que fazem é resultado de uma profunda estupidez, ignorância ou desumanidade. Provavelmente a combinação desses três factores. Sei apenas que é fruto destes dias, onde ser um anónimo que é tornado célebre através de um botão de um ecrã premido por outros anónimos parece ser um objectivo maior de vida.

E o mesmo se passa em Chernobyl: devido ao sucesso da (excelente) série de televisão os “influencers” – assim se chama esta tribo – migram em manada para tirarem fotos alegres e sensuais que contrastam com a profunda tragédia que os cenários evocam.

Por favor, não quero equívocos, percebam-me. Se alguém decidir dançar sobre a minha campa não irei estar muito preocupado e muito menos espero vir a interromper a celebração. Agora isto não. É inaceitável. Se há algo que ainda pode definir a nossa civilização e, de certa forma, o melhor da condição humana, é a capacidade de lembrar e honrar. Esta gente não faz nem um nem outro.

Se estes valores parecem anacrónicos é porque começam a sê-lo. Quem se promove de forma leviana sobre a memória de quem viu a sua vida destruída de forma brutal e trágica é um imbecil, e um imbecil infeliz que apenas ainda não o sabe. E o pior de tudo: somos nós que os estamos a criar.

Tenho vergonha e revolta. Não sendo nostálgico e gostando de viver nestes dias, estou perdido. Não sei o que fazer. Ao meu lado os Beach Boys cantam I Just Wasn’t Made For These Times. Não sei se é isso que sinto porque nunca saberei o tempo em que poderia viver melhor. Mas aquele refrão responde-me, como um eco: “Sometimes I feel so sad. Sometimes I feel so sad”.

19 Jun 2019

Morte e beleza

[dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1811 um jovem francês, à beira de completar o seu vigésimo oitavo aniversário, realizava um sonho: visitar Florença e ver as grandes obras de arte e monumentos que a cidade alberga. O seu nome era Henri Beyle, um autor de biografias musicais de segunda ordem e que mal chegavam para lhe garantir a sobrevivência. Mas naquela cidade Beyle não queria saber da sua pobreza. Em frente à Basílica de Santa Croce hesita, num misto de pausa solene e tontura. Ali estavam (e estão) os túmulos de Miguel Ângelo, Maquiavel e Galileu.

Ali estiveram homens como Petrarca, Dante ou Boccacio, outros ilustres toscanos. Beyle sente a grandeza do que vê, e sente-a de uma forma física, quase opressiva. Consegue que uma freira lhe abra a capela de Niccolini e pára, no final do transepto esquerdo. Várias figuras e frescos de uma extrema beleza decoram o espaço relativamente pequeno da capela. Beyle senta-se com a cabeça recostada de modo a admirar o tecto. Está esmagado pelo belo. E então, à saída de Santa Croce, sucumbe: «(…) fui atacado por uma intensa palpitação do coração…A nascente da vida tinha secado em mim e caminhava em constante pavor de cair». Chega quase a desmaiar.

Seis anos depois deste incidente Beyle deu-nos o relato do que aconteceu no livro Roma, Nápoles e Florença , já assinado com o pseudónimo que o iria imortalizar na literatura: Stendhal. Mas o seu nom de plume também seria associado a uma condição psicossomática devido ao episódio que descreveu. Em 1979 uma psiquiatra italiana, Graziella Magherini, depois de observar um padrão de sintomas em mais de cem turistas que visitaram os monumentos de Florença, cunhou o termo por que se conhece esta condição: a síndrome de Stendhal. Embora a comunidade médica ainda esteja a debater se estes sintomas são merecedores de validação científica, a verdade é que os guias turísticos da cidade de Florença já alertam os visitantes para essa possibilidade; e, por outro lado, os funcionários dos monumentos estão já preparados para lidarem com turistas que desmaiam ao contemplar o David de Miguel Ângelo ou as centenas de obras de arte que a Galeria Uffizi possui.

Não posso, com inteira sinceridade, dizer que alguma vez tenha sofrido da síndrome de Stendhal. Mas lembro-me de alguns episódios em que a contemplação da extrema beleza me afectou fisicamente: a saída da estação de comboios de Veneza, entre canais, depois de uma longa viagem desde Paris; estar perante A Ronda da Noite de Rembrandt no Rijksmuseum de Amesterdão, em que mal contive as lágrimas; ou passear sem destino por Roma e deparar com uma escultura monumental de Bernini.

Mesmo em Lisboa ainda por vezes me consigo comover num qualquer recanto, ou ao olhar o Tejo ao final do dia. É um misto de emoção e gratidão por poder viver nesta cidade que amo com todas as minhas forças. Mas infelizmente receio que o perigo de estar sujeito à síndrome de Stendhal esteja em Lisboa cada vez mais erradicado. No rio, durante o dia, barcos com ecrãs gigantes passeiam anunciando aos gritos um qualquer evento. No centro histórico da cidade é impossível ter outra emoção que não seja a claustrofobia e o desejo urgente de solidão. E a descaracterização continua: ainda há menos de uma semana descobri que uma das artérias mais antigas e bonitas de Lisboa – a rua dos Bacalhoeiros – ostenta agora hostels para todos os gostos e uma espécie de loja circense onde se vendem latas de feijão.

Eu sei que o tema não é novo, leitores. Mas estou cansado e triste, tenho de desabafar. Quero que quem venha visitar a minha cidade possa sucumbir à extrema beleza que ela possui. Quero – exijo! – o regresso urgente da possibilidade da síndrome de Stendhal em Lisboa. É uma questão de saúde pública.

12 Jun 2019

Clube dos apreciadores de nuvens

[dropcap]A[/dropcap]ssim, amigos: mais um dia em que escrevo, buscando pequenas redenções ou dragões do meu tamanho que possa combater. Mas não está fácil. A temperatura do ar ronda os 34ºC, o que para este escriba é o primeiro passo para o transformar num serial killer de renome; e como se isso não bastasse – e nunca basta -, um olhar rápido pelos jornais confirma que o céu límpido que vejo daqui alberga coisas bem mais negras: “Enfermeiro condenado a quatro anos de prisão por abusar de menor”, “Homem mata filho em Pombal com arma branca”, textos sobre corrupção sortida, calamidades a la carte, casos de abuso de poder e, claro, a continuação sem fim de todos os conflitos bélicos que sempre foram e serão irresolúveis.

Dirá o leitor: “Está certo. Mas há maneiras de escapar à humanidade, a começar por aceitar tudo o que é humanidade”. O leitor tem razão e foi isso que fiz. Daí que me tenha lembrado de uma notícia de que fui informado há algum tempo e que na altura achei improvável. Fui à procura e eis a boa nova: existe. É verdade. É fulcral. É útil. É um descanso, poesia, suspiro de alívio. Trata-se de um clube dedicado exclusivamente à contemplação de nuvens. É, não é? É.

Tratar as coisas pelos nomes: a Cloud Appreciation Society (cloudappreciationsociety.org) tem origem na Inglaterra mas tem membros de todo o mundo. O seu objectivo é auto-explicativo: ver nuvens, distingui-las, falar e escrever sobre elas. Assim de repente não consigo lembrar-me de nada que junte tão perfeitamente o espírito dos Românticos do século XIX com a tecnologia dos nossos dias. É como se Keats estivesse online.

Vale a pena passear pelo seu manifesto. Logo na alínea inicial está a declaração de intenções: “Acreditamos que as nuvens são injustamente mal tratadas e que a vida seria muitíssimo mais pobre sem elas”. Mas há mais: «Procuramos lembrar às pessoas que as nuvens são expressões do estado de espírito da atmosfera e podem ser lidas da mesma forma que o rosto de alguém”. E num toque mais realista: “ Acreditamos que as nuvens são para sonhadores e a sua contemplação faz bem à alma. Na verdade, todos os que interpretarem as formas que observam pouparão muito dinheiro em contas de psicanalista” [a tradução é minha].

Acho isto lindo, francamente. É verdade que, na melhor tradição grouchomarxista, nunca poderia juntar-me em boa consciência a este clube, sobretudo se me aceitassem. Estou demasiado contaminado pelo cepticismo para isso. A minha ideia de andar nas nuvens tem mais a ver com o cair delas, como Machado de Assis: “Antes cair das nuvens do que de um terceiro andar”. Só que esta actividade inútil e contemplativa encanta-me. É a vitória do otium, a actividade mais nobre que na minha opinião um ser humano pode almejar. E quem a procura nestes dias tem para mim estatuto de herói.

Por isso, amigos, não hesitem. Se acharem por bem inscrevam-se neste clube. Eu, de certa forma, sempre lá estive: as nuvens, pela sua beleza e efemeridade, podem ser comparadas com a vida, uma vida que corra bem, o mais belo dos memento mori. E é dessa forma que não me importo de andar com a cabeça nas nuvens.

5 Jun 2019