Direito à diletância

Elegance against ignorance
Difference against indifference
Wit against shit
Middle-class heroes, The Divine Comedy

 

[dropcap]D[/dropcap]esconfio de tempos com demasiadas bandeiras, épocas em que tudo é passível de ser interpretado como uma posição entrincheirada. Apesar de mim esse é o tempo em que vivo agora e mesmo não gostando tenho como mínima obrigação de sobrevivência aprender a lidar com isso. Mas é difícil. Tento, com denodo, aplicar a ironia, o sarcasmo, a auto-depreciação para temperar conversas inflamadas em que não existe debate – apenas combate. Habituado à nuvem da diletância – que insisto em confundir com liberdade – percebo que o humor é muitas vezes mal vindo numa discussão informal em que sempre parece estar em causa o futuro do universo. Cansa, garanto-vos.

Talvez a culpa – se é de culpa de que se está a falar, e duvido – seja minha. Desde cedo alimentado com Oscar Wilde aprendi que só o supérfluo pode ser essencial. Que muitas vezes é no paradoxo que reside a verdade e que mesmo esta última é uma entidade mítica e por vezes demasiado vulnerável. Há quem tenha ambições mais grandiosas e certamente mais perenes do que a minha, que é a de servir um aforismo decente ou uma frase com piada numa mesa ao jantar. Sei do mundo e é provável que o mundo me conheça; apenas não consigo levar ninguém muito a sério, a começar por mim. E, caro leitor, nos dias de hoje esta posição é tudo menos popular.

Pior: é perseguida. Num tempo de neo- literais – os que acreditam cegamente no que vêem e lêem sem questionar seja o que for, não admitindo qualquer tipo de polissemia – o humor ou a desmistificação da seriedade (o que provavelmente é a mesma coisa) é visto quase como um crime, um desinteresse maligno sobre os Grandes Temas Que Nos Regem E Que Normalmente Aparecem No Facebook. Não é que este clima seja novo: a auto-ironia ou a busca de uma forma perfeita para transmitir um conteúdo sempre foi vista como uma atitude distanciada e menor face à suposta militância que seria essencial para resolver os problemas da Humanidade. Ai do filósofo, académico, crítico de arte e etc. que se atreva a escrever longe do jargão a que está preso e que não mostre uma inegável vontade de deixar uma “mensagem” – é um diletante, alguém que não pensa nem leva a sério o que diz. Hoje, moralistas da envergadura de um Chesterton, Bernard Shaw ou Voltaire tendem a estar condenados à reserva dos engraçadinhos de serviço, gente com meras frases ornamentais que ficam bem mas não servem para nada.

Uma sociedade que tem vindo a matar a ironia e a diletância é uma sociedade perigosa. É a que recusa a inteligência e a voz do outro em favor de uma literalidade contínua e sujeita a uma ortodoxia feroz. É o que está a acontecer, sob vários nomes. O célebre “politicamente correcto” pode ser um deles (e um dia voltaremos a falar sobre isso) mas não é o único. Prefere-se agora a politização da arte à arte da política. É o triunfo dos neo-literais. Combata-se, entre outras formas, com o garantir do direito à diletância.

21 Nov 2018

O tempo: modos de usar

[dropcap]S[/dropcap]abemos isto: o tempo é uma invenção humana. É uma medida de mortalidade e esperança, de legado e exemplo. Precisamos dele porque a memória que o alimenta é a nossa maior e melhor característica civilizacional, o que realmente nos distingue dos outros animais. A arte, a cultura, o progresso – nada seria possível sem essa consciência do que foi e como foi.

Tantas vezes o desprezamos, mesmo assim. Tantas vezes o culpamos, clamando como o personagem de Shakespeare que a vida é apenas sua escrava e que por isso o tempo tem de parar. E então inventamos modos de usar que nos dão essa ilusão de um tempo circular e perfeito. Isso é particularmente visível nestes dias, em que o ritmo da nossa existência é frenético, bombardeado por informação e miríades de estímulos do exterior que ninguém consegue controlar a menos que se converta a um qualquer tipo de ascetismo. O tempo tornou-se o nosso maior luxo.

A celebração de efemérides – da passagem redonda dos dias – é a resposta laica e quotidiana às antigas festas religiosas que existem desde o nascer da Humanidade. Começa pelo nosso próprio aniversário, passando por datas históricas universais ou dirigidas a um grupo particular de pessoas. São feitas de pretextos grandiosos e importantes – como aconteceu há dias com a celebração dos cem anos do Armistício – e de outros mais triviais, como o aniversário da edição de um livro ou disco que amamos e que os anos pouparam. E por vezes – tantas vezes – isso é o que verdadeiramente nos comove.

É pouco? Não. Uma história próxima, recente e verdadeira para o justificar: imaginem um inveterado hedonista, uma daquelas pessoas que acredita sinceramente que a vida foi inventada para ele e flutua graciosamente pelas agruras com um sorriso nos lábios. Conheço alguém assim. Chamemos-lhe António e estaremos a fazer bem. António nunca tinha conhecido grandes dores, nem sequer aquelas que advêm das inevitáveis perdas que viver sempre traz. Até há pouco: encontrei-o sorumbático, à beira da apatia. A aura de felicidade que sempre exibia sem pudor tinha-se apagado misteriosamente. Como bom amigo perguntei o que tinha acontecido, como poderia ajudar. «A X. saiu de casa. Ontem». Para que o leitor possa continuar a seguir esta pequena narrativa convirá dizer que “X” era o amor deste meu amigo. E sobretudo que a perda desse amor nunca lhe tinha passado pela cabeça. António sofria como todos sofremos: sozinho.

Como desconfio bastante da minha sabedoria nestes affaires du coeur, sugeri-lhe quase a medo: «Vai ouvir o Only The Lonely do Sinatra. Comigo resultou. Ainda resulta. Não resolve mas ajuda». António olhou-me perplexo mas prometeu que iria fazê-lo.

Aqui chegados preciso confessar o meu estatuto de inveterado sinatrófilo. O homem conhece-me melhor do que qualquer indivíduo, graças ao que cantou e como cantou. Mas isso seria assunto para outra crónica (ou um livro, ou vários). O disco que António foi ouvir pela primeira vez é uma das obras-primas da música popular. Trata apenas de solidão, melancolia e tristeza. De perda de quem mais amamos, de amores chorados ao fundo do balcão e confessados ao barman que quer fechar o bar. Sinatra conheceu bem essas matizes de azul de que é feita a solidão amorosa. E aqui canta-a magnificamente, numa voz de fumo que nos embala e ajuda a compreender. Sempre com uma extraordinária dignidade e em algumas canções com um humor triste e auto-depreciativo. Nos momentos mais escuros emerge triunfante do próprio desespero. E isto é possível porque Sinatra viveu tudo, ganhou e perdeu tudo e a sua arte é feita dessa matéria-prima indizível mas que qualquer um reconhece.

Dias depois voltei a falar com António. Disse-me que tinha ouvido o disco e que ficou espantado com a sua verdade e actualidade. Que ainda chorava a perda de X. mas que já não estava sozinho. Agradeceu-me e informou-me da efeméride: Only The Lonely faz sessenta anos em 2018. O tempo pode ser tão bom quando se deixa usar.

14 Nov 2018

As pessoas são estranhas

[dropcap]É[/dropcap] possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos.

O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem.

Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns.

Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia.

Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor ? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens ? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária ?

Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.

7 Nov 2018

O espanto como acto de resistência

[dropcap]É[/dropcap] tão fácil a vida deixar-nos sem palavras. Sem nada, até. Este exercício algo desesperado de que o leitor é agora testemunha mais ou menos voluntária não passa, outra vez, de uma luta contra o inevitável. Sabemos que vamos perder cedo ou tarde, a questão não é essa; e a resposta é ir escrevendo como quem vive, na ilusão do náufrago optimista – alguém ou alguma coisa nos irá salvar.

Mas não me apetece escrever sobre o que vejo. Prefiro o conforto do bairro, onde a tristeza planetária chega sempre almofadada por algum rosto familiar. Só assim consigo suportar o que medra em todo o lado, algo que nunca esperei assistir mas reconheço como um sintoma e não como a doença. Discursos de ódio, de autoritarismo, da força como derradeiro argumento começam a invadir os dias com uma naturalidade inquietante. Mesmo agora, quando escrevo, existe essa real possibilidade do outro lado do Atlântico, no Brasil. Custa-me alvitrar, ver para além do que somos bombardeados. Para um pessimista antropológico como eu é uma terrível altura para ter razão. Para um moderado, que também sou, é uma péssima altura para não ser ouvido. Gente como nós está à beira da extinção ou na clandestinidade. Sem querer transformámo-nos no novo punk; dizer “vamos pensar antes de agir, discutir antes de fazer” é considerado subversivo pelas ideologias da acção que regressam um pouco por todo o lado.

Sei que o Brasil, de uma forma ou de outra, irá sobreviver. Sei que os brasileiros agradecem os conselhos transatlânticos que lhes chegam, bem-intencionados mas inúteis – e que no fim serão sempre eles a escolher o seu destino. O que me preocupa é o preço dessa escolha e dessa sobrevivência porque, isso sim, não tem fronteiras nem moeda própria. E o que fazer desta sabedoria?

No meu caso, escrever. Por enquanto ainda nos arreda da barbárie. E refugiarmo-nos no que de bom foi escrito, como o faço agora numa crónica de Antônio Maria, O néscio de vez em quando, publicada em 1959. Se o leitor é visita desta casa desde o início saberá que este autor brasileiro é um dos maiores cronistas de sempre. Como se não bastasse, ainda teve tempo para compor e escrever grandes canções, de que a célebre Manhã de Carnaval é só um exemplo. Mas divago, deixem que vos diga da crónica; nela, Maria fala dele e da necessidade de escrever; de como, numas férias da sua escrita, estendido numa rede na praia e ouvindo a conversa doce e inteligente da sua mulher ele interrompe-a constantemente com uma fascinação infantil cada vez que um peixe salta do mar:

« – Você viu o peixe ?
E completo, fazendo o tamanho com as mãos:
– Era dest’amanho»
É esta perplexidade perpétua sobre as coisas que as tornam novas. É isto que quem defende a barbárie não permite nem gosta. Até porque é este espanto mental e de criança que sempre nos irá resgatar. Sempre.

31 Out 2018

A arte perdida de andar na rua

[dropcap]P[/dropcap]ara quem vive e escreve de dentro dos dias são sempre as pequenas coisas que contam. São muitas vezes sinais quase prosaicos, tão embrenhados na normalidade do quotidiano que só merecem atenção para o coleccionador de acasos relevantes. Como esta história de que fui testemunha: um dia como os outros, uma estação de metro lisboeta apinhada. Uma vez saída das carruagens a multidão dispersou para os seus destinos e vidas, alheia a tudo o que não lhe dissesse respeito.

À minha frente, um cavalheiro idoso avançava apoiado numa bengala, com o esforço dos anos em cada passo. A cabeça estava inclinada para a frente, o que atribuí à sua idade. Errei: na mão tinha um telemóvel, que parecia naquele momento todo o centro do seu mundo. Subitamente, sou ultrapassado a grande velocidade por uma mulher de meia-idade. A mesma posição cabisbaixa e pela mesma razão. Nem por um segundo terá pensado em erguer o rosto, saber onde estava, para onde ia. O resultado foi inevitável: com alguma violência abalroou o cavalheiro que seguia à sua frente. O homem caiu, mais surpreso do que ferido; a mulher olhou-o de forma quase indignada, à beira de pedir satisfações. Alguns transeuntes ajudaram o homem a levantar-se, a mulher balbuciou algo remotamente parecido com uma desculpa e continuou, cabisbaixa, a sua marcha irreversível.

O que me interessa e choca neste episódio não é a sua originalidade: é a sua banalidade. Todos os dias presenciamos esta gente cabisbaixa que invadiu o nosso mundo, as nossas ruas. Muitas vezes pertencemos-lhes por sermos iguais. Os passeios estão repletos de gente como nós, olhando para algo que não sabe o que é mas que aparentemente tem sempre uma urgência absoluta. Perdemos a capacidade de olhar, de ver o outro através do rosto e não de um ecrã. E perder o olhar para o outro é, quer-me parecer, abdicar um pouco de ser humano.

Exagero? Talvez. Mas experimentem parar, olhar, contemplar, flanar. Vejam o que vos rodeia. Vejam se gostam do que vêem. Não me interpretem mal: não é minha intenção lançar aqui um libelo contra as modernas tecnologias, que muito fazem para nos simplificar a vida. Mas não podemos desistir do olhar, da curiosidade pelo que está à nossa volta. Andar na rua – olhar, perceber, enfrentar, sorrir – começa a ser uma arte perdida, algo a que só estetas nostálgicos e exilados destes tempos parecem dar importância. Num romance de Evelyn Waugh, Put Out More Flags, há um personagem – um dandy decadente chamado Ambrose Silk – que lamenta o mundo em que vive, suspirando pela arte desaparecida da conversação e o “mundo sepultado de Diaghilev”. Daqui a pouco tempo suspeito que alguém irá lamentar a arte perdida de andar na rua. Na verdade já o estou a fazer.

Conseguimos, em séculos de evolução, chegar ao homo erectus. A ideia seria pelo menos conseguir manter esta condição. Porque ao olharmos apenas para um falso espelho arriscamo-nos a deixar a vida passar ao lado. Ou abalroar-nos de surpresa e sem desculpas.

24 Out 2018

Lá fora, o mundo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta cadeira em que agora escrevo vejo o meu mundo. Sob uma luz macia, quase sépia, estão mesas e estantes carregadas de livros antigos, jornais, gravuras, iluminuras e outras preciosidades. Vejo daqui, do fundo de uma longa sala com paredes de pedra bruta que ali existem há cerca de três séculos.

Tomo o lugar de gente ilustre que me antecedeu: Alexandre O’Neill, Ruy Cinatti, David Mourão-Ferreira. Escritores, poetas, jornalistas, amantes dos livros que aqui se sentavam a conversar com o fundador da livraria, Tarcísio Trindade, em tertúlias informais. O número 44 da Rua do Alecrim – a Livraria Campos Trindade – serve-me agora também de santuário, ajudado pela amizade que me liga ao actual proprietário, Bernardo, o filho do fundador. Aqui sacudo os dias, descanso da inclemência do quotidiano e invento o meu tempo e lugar.

Porque lá fora está a Babilónia. A Nova Lisboa, serva da mudança e do “progresso” (tão maravilhoso se ao menos o pudéssemos parar, dizia Musil), apressa-se na rua, num cafarnaum de línguas e de sons. É difícil, para quem como eu preza mais a herança do que a mudança, acompanhar a vertigem cosmopolita do que hoje é Lisboa, uma cidade que parece um gigantesco apeadeiro e que está a levar a sua vocação portuária às mais inanes consequências. Compreendam: não reclamo um lugar mitológico algures no passado, onde tudo seria perfeito. Desdenho o “antes é que era bom” e proclamo o “agora é que estou vivo”. Sei que a mudança é inevitável. Mas há uma terrível sensação de perda que atravessa quem conhece e vive esta cidade. Perda do que é familiar (não confundir com “tradicional”, que pode ter várias interpretações), substituído pelo anódino. A própria livraria em que me encontro é a única que sobrevive nesta rua – onde já houve várias –  graças ao saber, dedicação e paciente negociação do seu proprietário.

Quem ama Lisboa já deveria estar habituado: ela sempre foi senhora e puta, oferecendo a quem a deseja o seu pior e o seu melhor com a mesma generosidade ou falta de vergonha. Foi várias vezes violada e sempre se recompôs. Mas receio que tudo esteja a passar-se depressa demais e a minha cidade ostente agora a dignidade trágica de uma grande dame dos palcos, mal maquilhada e titubeante na sua derradeira representação.

Lá fora o mundo, outro mundo. Aqui, no abrigo que oferece o silêncio e esta luz sépia que entra pela montra não consigo escapar à lenta invasão de uma fortíssima melancolia. E é resignado que me ergo desta cadeira que agora também é minha e avanço devagar para a rua, para um lugar em que mal me reconheço.

10 Out 2018

Viver nos dias

Dos dias

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente o que fazer com as palavras, nós que teimosamente nos agarramos a elas para sobreviver? O que fazer com esses “animais doentes”, como dizia O’Neill? As palavras multiplicam-se, banalizam-se, atravessam fronteiras e indivíduos, movem multidões, espalham-se como papéis perdidos nas indignações diárias que formam agora a nossa vida e que estão ao alcance de um golpe de sofá. De que vale escrever-vos isto, de que valerá ao leitor perder tempo com quem as escreve?

São dúvidas pequenas e problemas irrisórios face ao que nos obriga a existência. Mas são reais, pelo menos para mim. E quando estou quase a perder a esperança e a entrar no poço morno da resignação, eis que surge a salvação, por mais provisória que seja: através do meu amigo Nuno Costa Santos descubro um tesouro vivo de quem sempre acreditou no poder da escrita com ligação directa ao coração: o magnífico Portal da Crônica Brasileira reúne alguns dos mais competentes praticantes desta modalidade  – este compromisso entre o coração e a razão, entre o jornalismo e a literatura. Uma equipa de luxo, que junta, entre outros, Rubem Braga, Clarice Lispector ou Otto Lara Resende. São grandes olhares sobre as pequenas coisas, porque é aí que nos entendemos e somos iguais. Permitam-me, como elogio e defesa, este excerto de uma crónica de Antônio Maria, jornalista e letrista extraordinário, e que escreve aqui em 1959, sob o título Era um homem muito bom : « O bêbado sorri e cobre o rosto com as mãos. A mulher o abraça, num carinho, e beija-lhe o peito. Vem uma velhinha e pergunta alguma coisa. A mulher lhe explica que aquele bêbado ela encontrou num bar, mas é um homem muito bom, diferente dos outros, e ela o vai levando para sua casa, onde lhe pedirá que fique, para sempre».

Há tanto nesta possibilidade de ternura e compaixão que oferecem as palavras, espécie de pequenos Prometeus a desafiarem o que nos foi atribuído. O meu poeta, Philip Larkin, perguntou em verso: « Onde podemos viver senão nos dias?»  Em lado nenhum. E é daí, de dentro dos dias, que escrevo e quero escrever. Talvez seja pouco mas temo que seja tudo.

Gonçalo

Desconfio de todos os que afirmam não terem heróis. Parece-me contrário à natureza humana, que vê em feitos e exemplos alheios uma possibilidade singela de escapar à mortalidade que a atormenta. Pela minha parte não tenho vergonha de dizer que tenho heróis, e que são vários. Um deles será justamente homenageado no próximo dia 6 de Outubro, no FOLIO – Festival Internacional de Literatura a decorrer em Óbidos, aqui em Portugal. Chama-se Gonçalo Ribeiro Telles e é para mim e muitos um exemplo de coragem, generosidade, coerência e modéstia. Cometeu o pecado de ter razão antes do tempo e ao longo da sua vida – que já perfaz 96 anos – foi pacientemente assistindo aos outros concordarem com o que sempre defendeu. Conheci-o no final da minha adolescência e imediatamente fui fascinado pelo humor, sensatez e sentido de serviço que naturalmente dele se desprendia. Fiquei seu discípulo e correlegionário. No próximo dia 6 lá estarei a dar o meu testemunho, certo que nunca poderei dizer como lhe estou grato – como todos lhe devemos estar gratos. Gosto de ter heróis assim.

3 Out 2018