Fernando Eloy VozesMemórias de Alecrim [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lecrim não era um amigo íntimo, nem um amigo, longe disso. Terei trocado meia dúzia de frases com ele nesta década e meia que levo de Macau. Mas era impossível viver aqui todo este tempo e não saber quem era o Alecrim. As suas histórias esvoaçaram sempre de ouvido em ouvido, exportadas de boca em boca, com a mesma ligeireza e alegria com que ele as contaria. Das mais libidinosas às mais heróicas, as histórias do Alecrim ecoam imagens de um passado que nos permitem ver para além deste mar de vidro e luz em que navegamos, sentar-nos nos recantos mais esquecidos da cidade, onde todos os passados ainda são possíveis, e tentar compreendê-la, senti-la, ficar mais próximo, desta urbe milenar que a tantos parece tão pouca coisa. Alecrim era embaixador de um tempo (o passado parece sempre romântico porque, no fundo, a nossa dificuldade de relação é com o presente – o passado era bom e o futuro vai ser uma maravilha), uma verdadeira janela para um passado que nos permite ver esta cidade para além da mera percepção, esta terra que tanto acolhe como repela. Alecrim era daquelas personagens maiores do que a vida, motivo de inspiração para qualquer romancista que se preze, como o era, também e por exemplo, o Padre Manuel Teixeira que ainda consegui ver no seu calcorrear diário da ponte Nobre de Carvalho. São personagens com história e com histórias. Personagens que quando calhamos estar no mesmo espaço do que elas sabemos estar na presença de alguém fora do normal. São personagens como estas que encarnam a verdadeira dimensão desta terra que vai muito para além dos seus 28 kms, ou 29, ou 30, ou… Alecrim era um símbolo de uma geração que viu o mundo transformar-se de uma forma inaudita. Da independência de Goa à invenção do iPhone 6, para ser mais prático. Os nossos filhos, seguramente, verão transformações superiores em menor espaço de tempo, mas o mundo de Alecrim não fica a dever ao deles em nada. Para além de ofuscar as luzes, o Alecrim permitia-nos ver, e perceber, porque tantos estrangeiros escolheram Macau como casa ou abrigo de longa duração. “Porque às Costas do Sul da China arribam apenas loucos e aventureiros?”, interrogava-se um historiador chinês num qualquer livro que li algures. Alecrim caberia, provavelmente, na definição daquele historiador, como muitos de nós que para aqui andamos, imagino. Alecrim era ainda um símbolo desses que, demandados para além de São Vicente, não mais voltaram encontrando “casa” num local tão improvável como Macau, sugerindo-nos interrogações muito pessoais sobre esse deixar, sobre esse permanecer. Alecrim dedicou a vida a Macau, provavelmente porque a colecção de memórias que aqui congregou terá sido tão incomensurável que não mais poderiam ser deixadas. As memórias são a última energia que nos restará quando nada mais houver que nos sustenha. Fazer memórias é, por isso, mais do que uma necessidade, uma obrigação para connosco próprios se ambicionamos a uma velhice decente. Alecrim é um excelente lembrete dessa necessidade. Porque se a memória de Alecrim é indissociável das suas memórias, a sua debanda deste mundo é uma oportunidade para reflectirmos na nossa própria fábrica de memórias e perceber se está a funcionar em pleno, se estamos de facto a extrair o máximo desta nossa vivência por estas bandas (que a nossa cultura crê exóticas) tal como Alecrim o fez. Não desejo paz eterna ao Alecrim mas sim vivacidade eterna. Como desejo para mim, e para si caro(a) leitor(a). Música da Semana “Saviour Machine” (David Bowie, 1970) “I need you flying, and I’ll show that dying Is living beyond reason, sacred dimension of time I perceive every sign, I can steal every mind”
Fernando Eloy VozesIdade das Trevas [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uns dias, numa qualquer estação de TV, perguntava-se a jovens americanos num campus universitário a sua opinião sobre as eleições norte-americanas, que uma entrevistada resumiu da melhor forma: “nem um, nem o outro”, dizia. De facto, qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe rapidamente que Donald Trump é um verbo de encher, carregado de frases feitas que querem dizer muito pouco ou nada e que, do outro lado, Clinton também não inspira nada conotada que está com o “establishment” e que só começou a mostrar-se realmente de esquerda quando sentiu um apertão valente de Bernie Sanders. Ainda assim, dediquei parte da manhã de ontem a ver o primeiro debate entre ambos. Contrariamente aos das ultimas eleições onde apetecia ver Obama, neste não apetecia ver nada. Mas vi. Talvez fosse o desejo mórbido de ver (e ouvir) as patacoadas de Trump, talvez para perceber se a Clinton conseguia, ou não, apagar-lhe a vela. Consegui ambos. Numa altura que as tendências eleitorais se situam perigosamente numa zona de empate, Clinton mostrou ter ideias e planos definidos. Trump confirmou o palhaço que é, e teve até a sorte de Clinton ter alinhado por uma postura passivo-agressiva-cordata, o que lhe evitou umas bordoadas valentes especialmente quando ele se auto-intitulou de “inteligente” por ter conseguido escapar-se aos impostos… A curiosidade agora, claro está, é o efeito que este primeiro debate terá na opinião pública norte-americana, pois mesmo desconfiando-se de Clinton é como aquela velha máxima: “mais vale o diabo que se conhece”. Para já vou escusar-me a fazer juízos de valores sobre a sanidade do povo americano mas não posso deixar de desconfiar que, provavelmente, mesmo com o “louraço” a espalhar-se ao comprido por mais do que uma vez, mesmo sem ter apresentado um única ideia sustentada num plano, de repetir slogans fora de tema, mesmo sem conseguir demonstrar não ser racista e sempre escondido por detrás dos seus supostos bons negócios e de frases feitas anti-establishment, provavelmente nada vai mudar, para já, nas sondagens. Alguém lhe deveria perguntar, por exemplo, o que significa o seu mote de campanha “Let’s Make America Great Again”. A que período estará ele a referir-se num país com meia dúzia de anos de história? Será à guerra da independência? À de secessão? À crise dos anos 30? À Lei Seca? À Segunda Guerra Mundial e às bombas de Hiroxima e Nagasaki? Ao “Macartismo”? Ou falará de Nixon? Talvez seja o “Reaganismo” onde o controle sobre o capital se evaporou e as raízes para a última crise foram lançadas… Ou a tudo e a nada ao mesmo tempo? Para além disso, Trump não apresenta um plano claro sobre nenhuma das ideias peregrinas que vai apregoando bem ao jeito dos seus antepassados que vendiam “banha da cobra” pelo Oeste americano afora. Não apenas nos Estados Unidos, mas de uma forma geral pelo mundo inteiro, com o advento das redes sociais e do autêntico tsunami de informação com que somos bombardeados diariamente, a população parece cada vez mais estupidificada, cada vez com menos memória (está toda no Google), cada vez mais apta a emprenhar pelos ouvidos. O que interessa são as parangonas, os slogans, as chamadas bombásticas no facebook que a maioria se apressa a partilhar na maioria das vezes sem ler conteúdos, sem cruzar informação, sem sequer se dar ao trabalho de verificar a data de publicação da notícia que tanto os excitou, e Trump sabe disso. Por isso, não me admiro que após o debate de ontem, Trump continue a ter a mesma legião de idiotas que tinha antes. Percebemos também que ambos têm as suas némesis, como convém a qualquer político que pretenda reunir as hostes internas e dispersar atenções para o(s) “outro(s)”, invariavelmente o(s) culpado(s) dos problemas que não se conseguem resolver em casa. Trump é a China, Clinton a Rússia. Nada de novo. Nações des(Unidas) Num outro plano, é impossível deixar passar em claro as cinco vitórias consecutivas que António Guterres garantiu na sua corrida a secretário-geral das Nações Unidas (ONU). Em boa verdade, é o melhor candidato, o único que diz coisas com sentido e com um percurso assinalável no apoio aos refugiados, apesar de ter andado a pregar no deserto uma e outras vezes porque o mundo não gosta de ouvir as verdades, nem de seguir os caminhos simples que Guterres tantas vezes indicou para resolver a situação dos refugiados. Não tem nada a ver com o facto de Guterres ser português como eu mas sim com o caso indesmentível de ele ser o melhor candidato, e as votações têm vindo a provar isso mesmo. A verdade, todavia, é que apesar de já ir na quinta vitória consecutiva, pode nunca chegar lá se um (!) dos membros permanentes do Conselho de Segurança o vetar. O resultado será, portanto, fruto de um consenso (guerra) entre os Estados Unidos, a China e a Rússia, acreditando que o Reino (ainda) Unido e a França não vão criar ondas. Neste caso, tal como nas nossas pequenas realidades, o que interessa não é a competência mas os compromissos de bastidores. Diz-se, inclusivamente, que Irina Bokova, apesar de nunca ter ganho nenhuma das eleições anteriores e ter recebido 7 votos a desencorajar nesta última, poderá ser quem reúne o tal consenso por ser de Leste e, principalmente, por “ser altura de termos uma mulher” à frente das Nações Unidas, argumento idêntico ao que levou Clinton a reunir as preferências do Partido Democrata americano. Um principio perigoso que não defende as mulheres mas apenas as objectifica ainda mais por via do iníquo sistemas de cotas, deixando mais uma vez de lado, a competência em favor do “politicamente correcto” ou das vontades ínvias do Grupo dos Permanentes sentados nas suas cadeira de controlo do mundo. Faz ainda algum sentido nos dias de hoje a existência deste conselho permanente com direito a veto, nascido do pós-guerra? Que segurança é esta? Mais um rei que não apenas vai nu mas ainda desfila em piruetas sucessivas fazendo momices para nós, os papalvos, que continuamos eternamente à espera que a promessa de um mundo novo, mais justo, com mais diálogo e onde as minorias conseguem ter o seu espaço se concretize. A Idade das Trevas é muito mais longa do que nós, gente moderna, arrogantemente pensa. MÚSICA DA SEMANA “Cygnet Committee” (David Bowie, 1969) “I ravaged at my finance just for Those Those whose claims were steeped in peace, tranquility Those who said a new world, new ways ever free Those whose promises stretched in hope and grace for me”
Fernando Eloy VozesSubtropical (episódio IV) (final do episódio passado: “Talvez aguentasse mais um mês a andar, talvez mais, até aguentaria três se fosse poupadinho e soubesse preservar as energias. “Para trás mija a burra” dizia-lhe a mãe tantas vezes quando ele era criança. Sorriu com a lembrança e teve a certeza que ainda não era altura para desistir. Para além disso, o Outono estava para chegar e previam-se dias bons para caminhar”) [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]acinto caminhava há mais de uma semana. Talvez duas. Não tinha bem a certeza. O tempo ajudava mas para além disso nada mais contribuía para a sua esperança. Pouco faltava para o dia acabar e Jacinto resolveu procurar o abrigo de uma árvore parecida com tantas outras junto às quais tinha pernoitado em noites que já eram incontáveis. Os três que ainda lhe restavam há umas semanas atrás estavam agora reduzidos a apenas um o que não contribuía em nada para lhe animar o espírito. O desfiladeiro, esse, ali continuava como se não tivesse fim, largo e intransponível como sempre. Do outro lado, o lado onde julgava morar o seu destino sonhado e que um dia quase jurava ter visto antes da tempestade desabar, nunca mais tinha surgido no horizonte. Tal facto levava Jacinto a pensar que talvez tivesse sido uma ilusão. Ele quase podia jurar que o destino escondia-se para lá do desfiladeiro, mas provavelmente não tão perto como um dia lhe pareceu. Talvez o desfiladeiro fosse curvo e, ao acompanhá-lo, ele estivesse a afastar-se. As dúvidas sucediam-se, mas ele conforme podia lá as ia afastando para salvaguarda da sua própria sanidade. O mais estranho de tudo era não se lembrar da última vez que tinha encontrado alguém no caminho, como se estivesse para lá do fim do mundo num qualquer limbo da mente onde apenas ele e a sua obsessão viviam. Jacinto sonhava com o mar. Tinha saudades do sal e do ruído, da inconstância e da violência do fantástico reino de Neptuno, dos buracos nas rochas prenhes de vida, dos crustáceos deliciosos e das caminhadas que em criança fazia com o pai, praia fora, a sonhar com viagens para além mar, escutando atentamente as fantásticas histórias de piratas que ele lhe contava em tão vívidos detalhes que faziam a sua alma de criança vogar bem para além do seu corpo finito, bem para além das estrelas, numa sensação de possibilidades infinitas. Jacinto amava o mar e adorava barcos pois achava que água levava sempre a sítios fascinantes. “Desde que houvesse vento a favor”, pensou, pois neste momento sentia-se como um marinheiro, sim, mas ilhado no mar alto após semanas de acalmia e com as reservas de água doce a extinguirem-se perigosamente. Esse pensamento fê-lo estremecer, ou talvez fosse a mão que o abanava do seu torpor onírico avidamente alimentado pela ansiedade, pela fraqueza, pela falta de contacto humano, pelas dúvidas que teimosamente voltavam apesar de ele as afastar à varejada sempre que podia. Jacinto abriu os olhos para ver a cara de um homem fortemente tisnado pelo sol, a olhar para ele. Vestia trajes demasiado sofisticados para aquelas paragens, ou talvez fosse a comparação com os seus andrajos que lhe suscitaram a ideia. O homem olhava para ele de uma forma que Jacinto se recorda de parecer estranha, com uma atitude de quem o conhecia muito bem apesar de ele ser capaz de jurar nunca na vida o ter visto. A sensação aumentou quando o homem o chamou pelo nome. Queria saber que andava ele fazer por ali. Jacinto focou-se mais no estranho. As palavras teimavam em não lhe saltar da garganta talvez por espanto, talvez por não falar haver muitos dias, talvez por ter perdido o treino, talvez por medo. Conforme o fixava, mudo, Jacinto lembrou-se, sem saber muito bem porquê, de um Rei Mago. Talvez fossem as vestes, talvez o porte, ou talvez a fosse a sua própria necessidade de se sentir menino, de se sentir acompanhado, ajudado. Analisando melhor, cedo percebeu que, a ser um Rei Mago, não era daqueles bonzinhos dos contos de Natal. Este apresentava um certo ar feroz, apesar do sorriso que lhe montava a expressão. Eram os olhos, aqueles olhos penetrantes que o fitavam, onde Jacinto pareceu notar uma certa inclemência e que o mantinham em estado de alerta. “Mas como diabo sabe ele o meu nome?” Essa questão que abafava todas as outras. Passado uns momentos que pareceram eternos, Jacinto conseguiu finalmente mexer as cordas vocais interrogando o estranho mas não obtendo mais do que o acentuar daquele misterioso sorriso. Os olhos dele, todavia, pareceram acalmar. “Vê-se que precisas de ajuda”, disse-lhe o estranho e, simultaneamente, abriu o saco que trazia a tiracolo e de lá tirou dois. “É o que tenho comigo e dou-te”. Jacinto não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. Quem diabo seria aquele estranho que lhe estendia a mão daquela forma? Apesar de necessitado recusou a oferta, sabendo bem que quando a esmola é grande algo não bate certo mas o estranho insistiu de uma forma que acabou por se tornar irrecusável, sabendo Jacinto o que aqueles dois extra poderiam significar para a continuação da sua odisseia. Talvez tenha verbalizado o pensamento, talvez não, mas o estrangeiro respondeu-lhe dizendo-lhe que o fazia por saber que ele precisava e não esperava nada em troca, pelo menos não para já. “Há algo em ti que me obriga a fazer isto”, disse-lhe, perguntando-lhe se era ou não verdade que ele corria atrás do sonho. Jacinto, pasmado, não sabia muito bem que dizer, ou fazer, acabou por assentir e o estranho lá o foi confortando garantindo-lhe que de onde aqueles dois vieram mais viriam. Jacinto continuava desconfiado tentando perceber as razões do outro. “Queres saber de onde me vem a riqueza?”, perguntou-lhe o estranho. Jacinto assentiu com um menear de cabeça e o estranho respondeu-lhe sem rodeios: “Engano os incautos. Sou o que normalmente se chama um vigarista. A cupidez dos outros é o meu filão. É aí que me abasteço, é disso que vivo e vivo bem porque o mundo está cheio de gente assim.” Jacinto estava embasbacado com tanta franqueza. Quis saber mais porquês, que tinha ele para merecer tamanha generosidade de um estranho. “Ainda tens, sonhos” disse-lhe o estranho, “algo que há muito perdi e vejo em ti aquele que um dia me vai ajudar a voltar mim. Porque já percebi que não é a cupidez que te move e isso é raro. Eu sei que procuras a passagem para o outro lado deste desfiladeiro. Não sei se ela existe mas se não existir eu vou ajudar-te a construir a ponte. Voltaremos a encontrar-nos no caminho.” Jacinto acordou estremunhado, a noite ia alta e do estranho nem sinal. Interrogava-se se teria sonhado ou se algo teria mesmo acontecido. Acometido por um terror instantâneo, apalpou-se para perceber se estava inteiro mas nada de errado encontrou. Foi quando se lembrou de abrir a sacola, e eles ali estavam. Mais dois do que tinha no princípio daquele estranho dia. MÚSICA DA SEMANA “Space Oddity” (David Bowie, 1969) “This is Ground Control to Major Tom You’ve really made the grade And the papers want to know whose shirts you wear Now it’s time to leave the capsule if you dare This is Major Tom to Ground Control I’m stepping through the door And I’m floating in a most peculiar way And the stars look very different today”
Fernando Eloy VozesCampeões Europeus da terra queimada [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]alava eu com a família em Portugal quando sou questionado sobre a minha opinião do andar da carruagem lusitana. A primeira resposta que me ocorreu foi um “não sei, nem me interessa” porque cada vez mais é isso que sinto. Por várias razões, mas depois resolvi alongar resposta com o exemplo dos incêndios, com o absolutamente insuportável “espectáculo” quotidiano de mata a arder com que somos bombardeados Verão após Verão, com o desespero de perceber que apesar dos discursos inflamados que se vão fazendo no auge e nos rescaldos a verdade é que nada muda. Antes pelo contrário. Estava aí a minha resposta sobre o que acho de Portugal. Uma cambada de inúteis armados em importantes, que falam muito mas pouco fazem. Um país de labregos que dá mais valor ao cromado de uma taça da bola do que ao verde que os ajuda a respirar. Quando um país não consegue descobrir uma forma sequer de proteger um dos seus bens essenciais como é a floresta que mais há a dizer sobre as suas capacidades? Que mais existe para discorrer sobre o andar da dita carruagem? Muito pouco ou nada. Dez milhões, somos apenas 10 milhões e ninguém se entende, ninguém consegue descobrir uma forma de gerir o país sem andar tudo à cabeçada e dar passos de caranguejo. Para quem olha o país a o partir do rectângulo parece muita gente mas quando se contempla de fora para dentro apercebemo-nos que esses 10 milhões não são mais do que meia dúzia a jogarem à sueca. Tomara o presidente da Câmara de Cantão ter apenas 10 milhões para cuidar… É triste, penoso e absurdo. No caso dos incêndios, segundo os últimos dados disponíveis, apenas este ano, e até ao dia 15 de Agosto, já tinha ardido uma área três vezes superior à média dos últimos 10 anos! Segundo um relatório provisório do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas foram 103.137 os hectares de mata que foram ao ar!! De acordo com os dados disponibilizados pelo Sistema Europeu de Informação de Fogos Florestais (EFFIS na sigla em inglês) “em Portugal, já arderam cerca de 53,4% da área total ardida na União Europeia”!!! Alguém poderá argumentar tratar-se de um país muito quente, sujeito a este tipo de situações. OK, seja. Por isso fui aos dados da Pordata e comparei os países europeus com probabilidades semelhantes, ou seja, Espanha, Itália, Grécia e, porque não, também a França e verifiquei que conseguimos batê-los a todos, sempre! Entre 1990 até 2014, somos praticamente os campeões absolutos, conseguindo bater recordes ano após ano e, frequentemente, a deixar a “concorrência” a grande distância como convém nos campeonatos. Se quiser verificar, siga esta ligação: bit.ly/areaardida e verificará não ser apenas no futebol que somos campeões europeus pois ninguém queima tanta terra como nós. E se não é o clima a explicar, porque também há calor nos outros países mediterrânicos mencionados, é o quê? Incompetência, pura e dura. Segundo relata o Diário de Notícias, e cito, “os técnicos de protecção civil defendem que ‘este problema, estes números e estas consequências, não são da responsabilidade deste Governo, nem deste dispositivo operacional, antes, de anos e anos de medidas estratégicas mal tomadas, e decisões políticas de ordenamento florestal erradas, omissas e insuficientes’, além de só se falar de incêndios nos meses críticos e “exclusivamente sobre a resposta operacional”. É óbvio. Num país de pavões onde tudo se trata sempre à flor da pele, que mais esperar? Portugal é um país onde se grita muito e faz-se pouco, onde, noutro exemplo, se apregoa a importância das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo e se esquece da existência de fusos horários, como me aconteceu hoje ao tentar levantar o orwelliano Cartão de Cidadão no consulado local. “Está aqui sim”, responderam-me, “mas não o pode levantar porque o sistema em Portugal está em baixo. Sabe, é que só entram às 9 da manhã de Lisboa…” E ninguém, lá para aqueles lados, se lembra que talvez fosse necessário a existência de um piquete de prevenção para resolver este tipo de ocorrências? E se a pessoa tiver uma necessidade urgente do documento por uma qualquer razão? Lisboa não quer saber, Lisboa só entra às suas nove. É como os incêndios. Em breve virão as chuvas e com elas o esquecimento. Até para o ano, até não existirem mais árvores para queimar para ver se o problema se resolve por si próprio. Se calhar até é uma opção inteligente. Que penso então do andar da carruagem lusitana? Penso que qualquer dia nem sequer carruagem há quanto mais andar. MÚSICA DA SEMANA “Don’t Let Me Down & Down” (David Bowie, 1993) “I know there’s something in the wind That crazy balance of my mind What kind of fool are you and I? Scared to death and tell me why I’m sick and tired of telling you Don’t let me down and down and down Don’t let me down and down and down Still I keep my love for you”
Fernando Eloy VozesA sede da vitória [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão gosto de escrever sobre futebol porque não acho que seja assunto. Escreve-se demais, fala-se demais e normalmente mal. Espreme-se um jornal desportivo e é como aquelas laranjas secas que nem que lhes passe um cilindro por cima deitam um pinga que seja de sumo. Mas hoje vou falar (também) de futebol e de medalhas, e tentar reflectir sobre a razão de toda a esquizofrenia que roda à volta das vitórias desportivas que, em minha opinião, apenas conseguem subverter tudo aquilo que o desporto tem de bom. Ou seja, a saúde para quem o pratica – e não para os atletas de alta competição com tantos a acabarem em farrapos depois dos esforços sobre-humanos que são obrigados a fazer – e o prazer para quem desfruta das exibições dos atletas. Portugal ganhou o campeonato da Europa mas, em boa verdade, isso serviu para quê? Para umas valentes bebedeiras, para um alucinação colectiva quasi opiácea, para quem quer que seja que fornece as medalhas a São Bento fazer mais uns cobres e para os portugueses, momentaneamente, acharem que são os maiores da cantadeira, para podermos ter o gozo de humilhar os franceses, depois de termos bastas vezes termos sido humilhados por eles. A velha história do “olho por olho” que apenas faz o mundo todo cego. Mas somos mesmo os melhores da cantadeira? Somos, neste caso, melhores do que os franceses, ou que todos os outros que nos passaram pela frente? Não. Senão éramos mesmo e não tínhamos de andar de joelhos a pedir resgates. Não porque jogámos um futebol horrível que nem para entreter serviu. Não porque andamos a transformar o país num paraíso de férias para quem as pode pagar – que não são os portugueses – cegos pelos cobres fáceis que vão prostituindo as cidades para servir os visitantes. Tal como a selecção se prostituiu para poder trazer a taça para casa. Disse e continua a dizer, o nosso seleccionador, que não lhe interessa que o jogo seja feio desde que ganhe. Criticá-lo? Não posso porque é isso que lhe pedem. Como profissional que é cumpre. Como o caro leitor deve calcular, tendo este texto sido escrito ontem não faço ideia do que acontecerá com a Suíça mas tenho quase a certeza que vai ser um jogo feio. Em contrapartida, divulgava hoje o jornal Record, declarações de Jorge Jesus que alegava ter sido inspirado por Cruyff nos seus métodos fácticos porque, diz ele, e cito, “Para Cruyff, o futebol era arte e espectáculo e preferia ganhar por 5-4 do que por 1-0”, um pensamento que alega Jesus, e nós sabemos que é verdade, “ainda existe no Barcelona”. De facto as equipas de Jesus dão espectáculo mesmo que percam e é isso que o desporto de alta competição deve ser. Mas se não ganha vai ser considerado um animal como foi considerado no Benfica quando não o conseguiu apesar da equipa ter jogado do melhor futebol que se viu em Portugal e na Europa nos últimos anos, como o será no Sporting se não ganhar. Aliás, já foi por não ter ganho nada o ano passado. Mas eu, como sportiguista diverti-me a ver os jogos da equipa como não me divertia há anos. Mas isso não interessa para nada se a puta da taça não vier para o armário. Vivemos na paranóia do vencer custe o que custar, mas a grande questão para mim é: isso faz-nos mais felizes? Após a vitória no Europeu, seguiram-se mais umas quantas vitórias de equipas e atletas portugueses, mais uma taleigada de medalhas e povo entrou em histeria. Éramos mesmo os maiores da cantadeira. Mas vieram os Jogos Olímpicos e com eles a depressão. Afinal só deu uma medalha quanto já se faziam contas às dezenas que viriam do Rio e não faltaram as críticas dos que se sentiram defraudados. Porque os atletas são máquinas, claro. Porque durante o ano, para além do futebol, toda a gente se preocupa com eles, claro. Acabaram-se os heróis apesar dos desempenhos brilhantes de grande parte dos atletas que constituíram a nossa comitiva. Mas as medalhas valem o quê afinal? Nada. Na maioria dos casos valem apenas um micro segundo a menos do que o desgraçado que ficou em quarto e que entrará para as páginas do esquecimento. O desporto, tal como é encarado nos dias de hoje, em vez de servir como exemplo, como forma de vida, como inspiração serve apenas para que políticos falhados sigam a carreira do dirigismo para continuarem na mó de cima e perto dos centros de decisão, para fomentar inimizades entre países e para que cada vez mais atletas recorram ao doping pois sem medalhas não há artigos de jornais, nem patrocínios, nem honras. A China, por exemplo, anda em tournée provincial a mostrar os novos medalhados olímpicos para assim fomentar o orgulho nacional e mostrar ao mundo como o Império do Meio é uma potência. Mas esquece-se de duas coisas: a primeira, e a mais grave é a do destino de grande parte dos ex-atletas (mesmo medalhados!) que lutam para terem uma vida digna como Li Xiaopeng antigo campeão olímpico de ginástica e Liu Xiang, antigo campeão dos 110 metros barreiras, que têm de andar a fazer “reality shows” para sobreviver ou Zou Chunlan, medalha de ouro do levantamento de peso em 2006, recentemente descoberta na miséria a lavar gente numa sauna para sobreviver. Um escândalo que obrigou a federação a amanhar uns trocos para lhe abrir uma lavandaria… Mas a China e os outros países coleccionadores de medalhas, como os Estados Unidos, que a cada quatro anos tentam mostrar ao mundo como são maravilhosos, esquecem-se de outro facto fundamental: a sua própria dimensão. Para perceber o que estou a falar aconselho vivamente o leitor a consultar este sítio: www.medalspercapita.com onde se prova que Granada, com uma medalha apenas, é realmente o grande campeão do Rio de Janeiro, tanto na análise per capita como por PIB. E agora vou preparar-me para a utopia de ver um grande jogo de futebol entre Portugal e a Suíça. MÚSICA DA SEMANA Cygnet Committee (David Bowie, 1969) “We used him We let him use his powers We let him fill Our needs Now We are strong And the road is coming to its end Now the damned have no time to make amends No purse of token fortune stands in Our way The silent guns of love will blast the sky We broke the ruptured structure built of age Our weapons were the tongues of crying rage”
Fernando Eloy VozesVivam os Piratas! [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]qui há dias falava com alguém sobre piratas e vi-me quase ostracizado por dizer que os admiro e até talvez, nas condições certas, me atraia muito mais ser pirata do que um marinheiro qualquer de um barco qualquer o que, claro, levou ao choque total do meu interlocutor. Mas é assim mesmo. Sempre gostei de piratas. Desde pequeno que me lembro do prazer em ler aventuras de piratas e de corsários. E sempre preferi os piratas por serem mais honestos do que os corsários, mercenários de potencias que não pretendiam ver o seu pendão envolvido em acções menos próprias, e de preencher a imaginação com aquelas enseadas escondidas aqui e ali nas Caraíbas. Contrariamente ao que a maioria pensa, ou àquilo que nos ensinam, nem todos os piratas eram máquinas sanguinárias que cortavam cabeças a seu bel-prazer violavam donzelas ou rebentavam com barcos e portos porque sim. Esses eram, e são, os bandidos. Os piratas dos tempos antigos tinham códigos de conduta extremamente bem delineados e uma organização muito próxima do que talvez possamos chamar de verdadeira democracia. A ideia dos capitães piratas ditadores é absolutamente enganosa pois o capitão era escolhido pela tripulação e os alvos a atingir, as rotas a percorrer, eram objecto de discussão colectiva. Se o capitão se armasse em ditador, a famosa prancha ou o abandono num qualquer lugar inóspito era o seu destino mais provável. Para além disso, os piratas pilhavam mas distribuíam. Entre eles, naturalmente, mas de forma igualitária, e entre as famílias ou populações que suportavam, um caso muito frequente, por exemplo, na pirataria nesta zona do mundo. Grande parte dos piratas dos mares do Sul da China eram os únicos meios de sustento de muitas povoações miseráveis do litoral, oprimidas que eram por mandarins gananciosos, esses sim, os verdadeiros selvagens. Ainda hoje, o caso dos famosos piratas da Somália é um exemplo disso. Quantas vítimas há a registar? Muito poucas. Em contrapartida, as zonas controladas por eles na Somália têm condições de vida para a população, com escolas, apoios de saúde, como em mais nenhum lugar do país, Ou seja, tudo aquilo que o Estado corrupto não consegue proporcionar. Os piratas são agentes da distribuição de riqueza. Fossemos nós mais conscientes da necessidade que existe em distribuir a riqueza gerada no mundo por todos e os piratas não teriam razão de existir. Como dizia o professor de economia Carlo Maria Cipolla no seu famoso “Tratado Sobre a Estupidez Humana”, é muito mais perigoso um estúpido do que um ladrão pois enquanto este transfere riqueza, o estúpido cria prejuízos para ele e para os outros, ou seja, ficamos todos mais pobres. E dúvidas existem sobre sermos governados, em grande parte do mundo, por estúpidos? Para além deste poderoso efeito de regulação social, os piratas tinham, e têm, outra grande atracção: chama-se liberdade. Nos tempos dos piratas das Caraíbas, como se pode ler no “Grande Livro dos Piratas” assinado por um misterioso John Malam, que muitos pensam ter mesmo sido pirata para tanto saber e em tanto pormenor, quiçá mesmo um ex-comandante, a prática corrente quando aprisionavam outros barcos era a de dar livre escolha à tripulação derrotada. Ou seja, se pretendiam continuar na vida deles, agarrados a um comerciante avarento ou a uma qualquer marinha ou juntarem-se aos piratas. Diz Malam que era incrível o numero dos que optavam pela ultima solução desejosos que estavam de se libertarem das grilhetas do “establishement”, ávidos pela aventura, da liberdade e, naturalmente, da reforma dourada num qualquer paraíso impossível de outra forma. Madagáscar, diz-se, era um desses locais. Porque apesar de alguns piratas terem sido presos e condenados muitos reformaram-se na altura certa e viveram uma vida tranquila. Os piratas são, portanto, a resposta natural à cupidez, à avareza que faz uns muito ricos e outros muito pobres. Veja-se nos dias de hoje. Quantos de nós, dos que gostam de futebol, vêem os seus jogos preferidos nos canais piratas? Muitos, eu sei. Porquê? Porque os canais dedicados são caros e nem todos os podem aguentar. São caros porquê? Porque os jogadores e empresários ganham fortunas cada vez mais colossais ao ponto de transferências de 40 milhões de euros já fazerem parte do quotidiano e um jogador que custe um dois milhões de euros ser considerado uma bagatela, pois não convém pensar no que se poderia fazer em apoio social com essa “mixaria” de dinheiro. Por isso, as televisões pagam fortunas também, coitadas. Mas se os jogadores ganhassem menos e as transferências não custassem o que custam o futebol acabava? A resposta parece-me óbvia. Outro dos exemplo mais flagrantes é o do cinema. Um filme recente no iTunes custa cento e tal patacas. Não podia custar metade? Os actores, que ainda por cima não têm uma carreira curta como os atletas, precisam mesmo de ganhar os milhões que ganham? Não podiam ganhar um pouquinho menos ou, se calhar, até o mesmo, pois se os filmes fossem mais baratos mais os comprariam. Mas não é assim que funcionam o mundo. A regra é acumular tudo do mesmo lado. Os piratas são fruto da cupidez e, permito-me dizer, um bem social. Veja-se o caso da Uber. Chamam-lhes piratas porque a lei não está de acordo com eles. Mas em vez de aperfeiçoar a lei escorraça-se o serviço sem apresentar uma solução melhor. Viva os piratas! Farto estou de gente engravatada, desses que se dizem bonzinhos e cumpridores das normas sociais pela frente, dos que aparecem nas revistas e nos jornais como gente dita íntegra e para lá que qualquer suspeita e, por trás, são reles bandidos que roubam ideias, que governam mal e subtraem dinheiro aos desgraçados como se tem visto nos escândalos financeiros recentes. Os piratas não escondem o que são. Quando a “Jolly Roger” se ergue já se sabe quem ali está e ao que vem. Os engravatados “impolutos” são muito mais perigosos porque nem sequer pendão hasteiam. Vêm de surra, a sorrirem e de mão estendida. MÚSICA DA SEMANA (David Bowie, 1967) “Rich men’s children running past Their fathers dressed in hose Golden hair and mud of many acres on their shoes Gazing eyes and running wild Past the stocks and over stiles Kiss the window merry child But come and buy my toys”
Fernando Eloy VozesSalário mínimo criativo [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo o Jacinto não dá notícias faz duas semanas, volto à realidade macaína, inspirado pelo último Festival de Investimento em Cinema e pela anunciada mega obra do Antigo Tribunal – novecentos milhões custará, diz Ung Vai Meng. Em relação ao Festival parabéns ao IC pela sua participação e aos governos de Cantão e de Hong Kong. Os cineastas precisam disto. De lá saiu uma conclusão: procura-se ‘filet mignon’ mas ninguém está disposto a alimentar os vitelos. Ou seja, se se perguntasse a um dos investidores presentes ao que vinha a resposta era, invariavelmente, “um filme que faça dinheiro.” Não vou entrar no que isto representa para o cinema, fica para outro dia. Mas vou entrar na importância que é a existência de planos de apoio ao desenvolvimento de projectos para que possamos chegar a estes mercados em melhores condições, com produtos mais elaborados e melhor construídos. Para darem dinheiro, ou apenas para ficarem bem feitos, os filmes precisam de projectos bem montados. Em primeiro lugar um bom guião, que demora meses a desenvolver, depois o elenco certo e a equipa de filmagem indicada. Preparar e desenvolver este tipo de projectos custa tempo e tempo, como se sabe, é dinheiro. Ou seja, para voltar à alegoria bovina, querem-se projectos de primeira mas ninguém dá o passo para criar um programa de apoio ao desenvolvimento de projectos. Aqui fica uma ideia para associar ao festival. No cinema, como noutras artes, o desenvolvimento do projecto é sempre o mais complicado, especialmente quando se está na presença de iniciados como é o caso dos produtores e da grande maioria dos criadores de Macau. Mas eu proponho mais ainda: a criação de um salário mínimo criativo. O palavreado pode ser novo mas a lógica não. Está, inclusivamente em prática em Macau e em muitos outros lados. Chama-se “apoio a atletas de alta competição”. A RAEM tem e muitos outros países têm. Mas alguém dá “apoios a criadores de alta competição”? Não que alguma vez me tenha chegado ao conhecimento. Mas não faz sentido que exista? Faz, todo. Antes de qualquer outro tipo de argumentação, não tenho nada contra o apoio aos atletas de alta competição. Nem aqui, nem em lado nenhum. Antes pelo contrário, mais exista, mais seja empregue. Nós precisamos dos atletas. Porque nos entretêm, mas especialmente por nos revelarem histórias de superação, por nos inspirarem, por poderem constituir excelentes exemplos de vida e trazer vida à vida. Faz todo o sentido dar-lhes apoios de alta competição para que não tenham de ir vergar para um escritório, ou sítio pior, e poderem dedicar-se à sua modalidade. Os artistas passam exactamente pelo mesmo processo. Precisam de se dedicar a tempo inteiro sem estarem sempre a viverem a angústia para pagar a renda da casa, do estúdio ou de ambos, quando ambos não são o mesmo. Para não terem de agarrar empregos que lhes limitam o tempo e roubam a criatividade. Não me vou dedicar a critérios de selecção, por entender existirem bases legais de trabalho suficientes, nomeadamente o regulamento para atletas de alta competição, e suficiente bom senso para se chegar a uma solução viável. Acho, todavia, que o processo deveria mover-se em duas fases: primeiro para residentes permanentes, numa segunda fase para outros residentes até porque o mundo criativo precisa de renovação. Não se pode dizer que uma cidade está virada para as indústrias criativas sem serem criados mecanismo de subsistência, numa primeira fase e de apoio ao desenvolvimento numa segunda fase. Os artistas normalmente deslocam-se para zonas mais deprimidas, fora dos centros urbanos, para poderem dedicar-se á sua arte sem o peso ameaçador das rendas e/ou para zonas que inspirem e onde se encontrem pessoas que laborem na mesma área. Assim surgiu o espaço 798, assim se desenvolveram muitos outros centros criativos. A comunicação, a troca de ideias e de experiências, é fundamentai no sector criativo. Macau é caro e aos poucos vai perdendo a poesia (espaços de tranquilidade) como a escritora Lolita Hu bem assinalou quando aqui esteve no último Festival de Letras. Macau, quer, no entanto, ser uma cidade dedicada às indústrias criativas, daí que um apoio financeiro aos criativos, tal como se entrega aos atletas de alta competição faz todo o sentido. Eles trazem medalhas, orgulho social e exemplos de vida. Os artistas trazem tudo isso também e andam têm a potencialidade de gerar riqueza. Quando se apregoam novecentos milhões para uma biblioteca que não faz falta, percebe-se facilmente que o problema não será orçamento. Duzentos que fossem os artistas a receberem um subsídio de, especulemos, 20 mil patacas por mês, e o valor anual para o orçamento seria de 48 milhões de patacas. Em relação à futura biblioteca central, já antes o disse e volto a dizer: disparate. Para quê mudar o que está bem? Não duvido que se ganhe alguma coisa com a centralização das bibliotecas e mais não o sei o que resolvam lá colocar, mas não valeria mais (e seria menos oneroso) conservar o imóvel e deixá-lo estar como está, um espaço fabuloso para todo o tipo de acções culturais que não se coadunam com o Centro Cultural ou outros espaços? Vale mais um mono cultural ou acção cultural efectiva? Um salário para criativos locais seria a forma de Macau conseguir, de facto, transformar-se numa cidade criativa e gerar a tão necessária massa crítica necessária para que isso aconteça. Música da Semana “Moonage Daydream” (David Bowie, 1972 ) I’m an alligator, I’m a mama-papa coming for you I’m the space invader, I’ll be a rock ‘n’ rollin’ bitch for you Keep your mouth shut, you’re squawking like a pink monkey bird And I’m busting up my brains for the words
Fernando Eloy VozesSubtropical (episódio III) (continuação da edição passada: “Acredita quando mais ninguém for capaz, mesmo quando tudo parecer indicar o pior.” Assim era de facto e a tempestade que normalmente achamos trazer apenas desgraças tinha sido o seu bilhete para a salvação.”) [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ssim foi. A tempestade tinha liberto Jacinto e, com esforço e algum jeito, lá conseguiu trepar os metros que o separavam da salvação. Mas a chuvada estava a perder o “sex appeal” muito rapidamente; ao ponto de já não ter piada nenhuma, ao ponto de o enregelar e fazê-lo desejar, com toda a sua intenção, por um raio de sol que o aquecesse. A chuva caiu forte por mais uns bons minutos mas acabou por amainar. Estilo subtropical. Jacinto verificou a mochila que ainda tinha aos ombros. Deu graças pelo dinheiro extra que tinha pago, e que tanto lhe tinha custado a dar, por uma versão impermeável e revolveu os seus poucos haveres. Não encontrava nada. Já febril e de respiração suspensa, revolveu mais ainda até que se lembrou do compartimento secreto. Ali estavam. Ainda lhe restavam três. Respirou de alívio. Mas agora chegava a fome. Daquelas fomes impiedosas que não nos deixam pensar. Os mantimentos existiam mas não eram muitos. Jacinto sabia que não iriam durar muito mais mas aquela lazeira animalesca tinha de ser apaziguada. Era o mínimo depois de tudo por que tinha passado naqueles últimos momentos. Resolveu-se por uma porção mais avantajada do que a necessária austeridade obrigava mas, pensou Jacinto, “se tiver de ir, ao menos que vá de barriga cheia. Hei-de arranjar mais”, concluiu com um optimismo quase inesperado. Lembrou-se dos vietnamitas do sul, que levavam uma vida leve por saberem terem três colheitas por ano; Jacinto também tinha três mas não se podia comparar às colheitas vietnamitas. Eram três, todavia, o número que alguém um dia lhe disse ser sagrado. Mas Jacinto estava sozinho, era apenas um, e também sabia que poucos aguentavam a penúria naquele território aparentemente acolhedor mas profundamente hostil. Podia ser que alguém o ajudasse, mas também poderia ser que o seu destino fosse definhar até morrer sem alguma vez chegar ao destino sonhado. Jacinto engoliu duas latas de feijoada, um bolo seco e pegou numa das duas mini garrafas de champanhe que tinha decidido trazer, não fosse a ocasião justificá-lo. Olhou para a garrafa com um ar divertido. O chão era agora um autêntico pântano e Jacinto estava encharcado até aos ossos, pés ensopados mas, em vez de se sentir miserável, abriu a garrafa e emborcou o borbulhante goela abaixo, daquela garrafa que um dia teria visto o sol de uma quinta francesa e escutado o trinar primaveril dos pássaros. A chuva continuava. Mais leve. Estilo subtropical. Ao longe, Jacinto viu um relâmpago rasgar o céu cinzento chumbo, mas também reparou que o subsequente trovão demorou algum tempo até ser escutado. “O pior já passou”, pensou, pelo menos no que à tempestade dizia respeito. Aos poucos, o céu começou a clarear e não um mas três raios de sol rompiam agora o tecto cinzento. “Magia”, pensou Jacinto divertido, lembrando-se dos três que lhe restavam e pensando estar, talvez, ali um bom augúrio de alguma espécie. Os três raios deram lugar a uma aberta considerável e Jacinto sabia que pelo menos ia conseguir secar. Confirmou de novo que ainda tinha três de sobra. “Podia ser melhor, mas também podia ser muito pior”, pensou. Pelo menos davam-lhe algum aconchego e tempo para descobrir alguma forma de passar para o outro lado do desfiladeiro. Não muito, mas algum. Talvez mesmo à justa, talvez não desse, sequer, para chegar a meio caminho. Encolheu os ombros. As nuvens negras moviam-se agora na direcção do destino que Jacinto acreditava estar para lá daquela garganta inclemente que o barrava. Mas, agora, nem os contornos adivinhava tanto era o negrume para aquelas bandas. A imagem fê-lo reflectir sobre se a sua teimosia não o estaria a levar para uma tempestade ainda maior no sentido mais lato do termo, mas acabou por afastara a ideia e decidir não pensar mais nisso. A realidade é que ele não fazia a mínima ideia, nem sequer isso interessava agora. Não tinha feito aquele caminho todo para agora começar com filosofias baratas. O melhor era começar a andar. Talvez existisse uma passagem mais estreita. Talvez mesmo outra ponte, de preferência mais consistente do que a anterior. Talvez aguentasse mais um mês a andar, talvez mais, até aguentaria três se fosse poupadinho e soubesse preservar as energias. “Para trás mija a burra” dizia-lhe a mãe tantas vezes quando ele era criança. Sorriu com a lembrança e teve a certeza que ainda não era altura para desistir. Para além disso, o Outono estava para chegar e previam-se dias bons para caminhar. (continua) Música da Semana “Silly Boy Blue” (David Bowie, 1969) You wish and wish, and wish again You’ve tried so hard to fly You’ll never leave your body now You’ve got to wait to die La la la la la la la la la la [x2] La la la la la [x2] Silly boy blue, silly boy blue Child of the Tibet, you’re a gift from the sun Reincarnation of one better man The homeward road is long You’ve left your prayers and song Silly boy blue, silly boy blue Silly boy blue, silly boy blue
Fernando Eloy VozesSubtropical (episódio II) (continuação da semana passada: “Jacinto sabia que as forças estavam no limite. Apenas a vontade o mantinha ali, quiçá a imagem do sonho. porque já não era o corpo físico que o sustinha. “A imaginação dá asas”, pensava, tentando manter-se animado e imaginando-se uma criatura alada. A chuva começou a cair”) [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or mais que se imagine e enquanto as leis da física não sofrerem uma alteração profunda, ou a nossa espécie, as asas não crescem assim, sem mais nem menos. Não a curto prazo, pelo menos. Não quando estamos pendurados numa corda velha, escorregadia, e olhamos para baixo sem conseguir imaginar o fundo. Não quando já deixámos de fantasiar com a ideia de nos deixarmos atrair pelo abismo. Não quando chove como se o mar estivesse em cima e não em baixo. Assim estava Jacinto. Talvez a atracção fatal se tenha desvanecido ao lembrar-se de uma passagem de “Ishmael”, a história de um gorila que explicava ao homem o sentido da vida – Dizia o animal tornado mestre que, quando os homens procuravam descobrir a forma de voar, criaram aquelas passarolas que tudo indicava serem apropriadas ao objectivo. Tinham asas que batiam e assim dos precipícios se atiravam. Por momentos julgavam estarem mesmo a voar mas, na realidade, estavam a cair a uma velocidade vertiginosa em direcção ao chão onde se iriam esmagar – Se bem que a ideia do voo para o vazio tivesse sido tão aconchegante há bem pouco, Jacinto não queria esmagar-se. Antes pelo contrário, a força do sonho tão desejado mantinha-o ali, agarrado, com o resto das forças que ainda conseguia invocar. É bem verdade que a necessidade transforma-nos em sobre-humanos, em algo que se conseguíssemos aplicar diariamente envergonharia até os heróis da Marvel. Teria sido o poder do sonho que o fez agarrar-se à vida, ali bem representada por aquela corda escorregadia? Talvez mais ainda que o medo do esmagamento contra o solo invisível. Jacinto pensou mais depressa. O dia, antes alvo e solarengo, tinha dado lugar a uma quase escuridão que um relâmpago agora rompia. Breve que foi, chegou para que Jacinto visse o sangue a esvair-se das mãos cerradas na corda. Talvez fosse isso também a aumentar-lhe a determinação, a fazê-lo querer sair daquela situação insustentável. “A imaginação não me vai dar asas”, pensou Jacinto, agarrando-se à vontade, o único tesouro que ainda lhe restava. A intensidade da chuva tinha amolecido a parede do precipício, o suficiente para que finalmente surgisse uma possibilidade. Apercebendo-se disso, Jacinto pontapeou a parede com quanta força a posição lhe permitia até que, por fim, conseguiu apoiar primeiro um, e depois os dois pés. Apenas as pontas mas o suficiente para a situação ter passado de desesperada a difícil. “Evolução”, rejubilou Jacinto. Já conseguia respirar. Já conseguia avaliar a situação sob uma perspectiva mais favorável, o suficiente para fazer planos, o suficiente para descobrir uma forma de subir a escarpa, o suficiente para recordar-se das palavras de um sábio com quem um dia se tinha cruzado no caminho: “há sempre uma reserva dentro de nós”, tinha ele dito, “…de energia e de vontade. Se tiveres amor suficiente e compaixão. Se acreditares e fores capaz de olhar para dentro de ti próprio. Mesmo que esteja lá mesmo no fundo. Procura e descobrirás. Acredita quando mais ninguém for capaz, mesmo quando tudo parecer indicar o pior.” Assim era de facto e a tempestade que normalmente achamos trazer apenas desgraças tinha sido o seu bilhete para a salvação. MÚSICA DA SEMANA “”When I Live My Dream” (David Bowie – 1967) When I live my dream When I live my dream, I’ll forgive the things you’ve told me And the empty man you left behind It’s a broken heart that dreams, it’s a broken heart you left me Only love can live in my dream I’ll wish, and the thunder clouds will vanish Wish, and the storm will fade away Wish again, and you will stand before me while the sky will paint an ouverture And trees will play the rhythm of my dream
Fernando Eloy VozesSubtropical (episódio I) [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]pós anos numa longa e dura jornada onde Jacinto, chamemos-lhe assim, teve de ultrapassar várias dificuldades, ei-lo a poucas milhas do destino um dia por ele escolhido. “Tarde demais para decisões dessas”, disseram-lhe vezes sem conta. As forças tinham sido testadas ao limite e a ideia de desistir não lhe foi estranha. Mas insistiu, dissipou dúvidas e medos, os próprios e os que lhe foram emprestando pelo caminho, ignorou os espectros dos pesadelos e não voltou atrás. Um dia, quase convencido de perseguir uma quimera, como um D. Quixote da era moderna, e próximo de dar razão às vozes chamadas da razão, fosse lá isso o diabo que fosse, aí estava! As formas adivinhavam-se através da bruma que aquela manhã trouxe. O destino sonhado parecia finalmente ali. Ou melhor, quase ali. Avistou-o ao chegar a um profundo abismo. “A última prova”, pensou? Uma prova brutal, uma garganta rasgada a perder de vista e um fundo que, se existisse, ocultava-se da sua vista. Mas o destino estava do outro lado, ou assim Jacinto pensava, a menos que fosse um truque da mente depauperada, uma manifestação da sua vontade cega mas ele quase o podia cheirar, tocar, sentir… O abismo. Esse sim era real, assustador e intransponível. Dias e noites andou em ambas as direcções, mas o rasgo na crosta parecia não ter fim nem forma de ultrapassar. Um dia, já parco de esperança descobriu uma ponte, ou algo parecido com isso. Um trabalho de alguém que um dia terá sofrido penitência igual, feito sabe-se lá como. “Existirão mais dificuldades do outro lado”, pensou Jacinto porque o destino sonhado não estava propriamente ali, logo na iminência da outra margem, mas milhas mais para diante. Porém, Jacinto sentiu as energias do seu corpo gasto renovarem-se e um brilho na sua mente quase apagada. Dificuldades passadas e futuras pareciam-lhe irrelevantes, pois esta não era a primeira vez que uma solução lhe surgia do nada quando tudo parecia perdido. Regenerado, atreveu-se a sorrir, revisitando essa emoção quase esquecida. Reuniu forças, avaliou a ponte, os cabos, os madeiros suspeitos que lhe davam um vago ar de caminho e nela entrou. Alguns passos dados e tudo começou a estalar, a abanar perigosamente. Estacou, mãos crispadas no vão corrimão de corda. Ponderava as hipóteses quando a trave onde assentava um pé cedeu quase o levando com ela. De coração aos saltos, crispou-se ainda mais e reflectiu. Ao longe, continuava a vislumbrar a silhueta do seu destino. “Não pode ser miragem”, pensou, “Não pode!”. Avançou mais uns passos. Devagar, como felino em modo de caça, como se pretendesse que a ponte não desse por ele. Olhou para baixo e arrependeu-se. Olhou para cima, como demandando clarividência, apoio, ou apenas para esquecer o abismo. Viu nuvens, escuras, negras. O sol tinha desaparecido há pouco, mas Jacinto não tinha dado por isso. A tempestade iminente era óbvia. Subtropical e brutal. Jacinto focou-se na outra margem. “Tarde demais para voltar”, pensou obstinado. Uma rajada de vento. Mãos crispadas, dentes cerrados. Aquele ranger insuportável. Mais um passo e sentiu-se no ar “como um Tarzan”, ainda lhe ocorreu estupidamente. A ponte tinha quebrado mas ele continuava agarrado à corda e voava ligeiro em rota de colisão contra a escarpa da margem de onde vinha onde embateu violentamente. “Ainda estou vivo”, pensou naquele instante, talvez para esquecer as dores e o terror. A ironia quase o fez rir e a atracção do abismo, porque ela existe, começou a insinuar-se, mansamente, até o envolver como uma bênção, um derradeiro conforto. “Seria como voar”, pensou, julgando não ser uma morte assim tão funesta. O primeiro trovão ribomba. Talvez tivesse sido o estrépito a acordá-lo do torpor suicida com que aquecia a alma e Jacinto voltou a agarrar-se à vida, ou à corda, com mais força do que nunca. A mente, em alta rotação, procurava soluções furiosamente. Mas ele sabia que as forças estavam no limite. Apenas a vontade o mantinha ali, quiçá a imagem do sonho. porque já não era o corpo físico que o sustinha. “A imaginação dá asas”, pensava, tentando manter-se animado e imaginando-se uma criatura alada. A chuva começou a cair. (continua) MÚSICA DA SEMANA “There Is A Happy Land” (David Bowie, 1967) There is a happy land where only children live They don’t have the time to learn the ways Of you sir, Mr. Grownup There’s a special place in the rhubarb fields underneath the leaves It’s a secret place and adults aren’t allowed there Mr. Grownup,
Fernando Eloy VozesExcepção sem regras [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]oucas são as coisas sobre as quais tenho certezas. Os dedos de uma mão chegam, e sobram, para as contar mas, de entre essas poucas, a consciência de que tudo muda em permanência é uma delas. Estando em Macau, então, essa noção da mudança é ainda mais notória. Muito tem mudado e uma das transformações mais evidentes é o facto de os portugueses já não serem bem vindos a Macau por muito que o Governo tente dizer o contrário. Mas está no seu direito e, contra isso, nada! Macau continua a ser terra china mas já não sob administração portuguesa – como dizia o estatuto orgânico do território – pois assim era e não colónia como alguns erroneamente pensam ou querem fazer pensar. Ainda esta semana, dizia à Rádio Macau a presidente da Casa de Portugal, Amélia António, que “há menos portugueses a pedirem residência em Macau porque quem procura trabalhadores desiste de esperar meses pela aprovação dos processos” explicando ainda que “a Casa de Portugal, tem tido dificuldade em contratar formadores portugueses” e que muitos portugueses “não estão para vir para o outro lado do mundo para uma situação muito periclitante”. A isto chama-se “lida àpapelada”, uma forma sub-reptícia de lidar com as questões, uma fuga para o lado, uma cernelha burocrática para ver se os bichos se cansam e, pelos vistos, bem sucedida. Mas não é apenas assim que os poderes locais afastam os portugueses de Macau. “Àpapelada” afastam os que tentam vir, os que já cá estão são afastados com a mudança brusca do modo de vida. Leia-se proibições em barda, interpretações estritas das leis, intolerância administrativa, eliminação de tudo o que é lazer – como a ideia peregrina de tratar as piscinas de recreio como instalações desportivas – poluição descontrolada, destruição do património mediterrânico, enfim, um ataque frontal ao Macau descontraído, ao famoso “laid-back”, característica tão marcante da cidade até pouco depois de 99. A tonalidade que tantos atraiu pela sua forma única de viver, por ser um enclave mediterrânico na Ásia, motivo de romances, telas, imaginários e vidas está praticamente extinta. A realidade é que enquanto os portugueses conseguiram, ao longo de séculos, permitir a vida chinesa e a manutenção intacta das suas tradições e formas de estar, a administração chinesa, em meia dúzia de anos, conseguiu arruinar a nossa. Mas, como disse, são opções e quem não está bem muda-se, precisamente o que vai acontecendo. Todavia, grande parte da culpa é nossa. Pelas melhores razões, mas é nossa. Como português orgulho-me da decisão que levou à entrega da cidadania nacional aos residentes de Macau que assim a pretenderam aquando da passagem para a China. Ficou-nos bem, mais ninguém o fez. Mas, como português, tenho de reconhecer agora que, como as coisas mudam, esse estatuto de nacionalidade-de- mão-beijada, para quem não fala e lê português ou tem qualquer contacto evidente com a nossa cultura, já não faz sentido e tem de ser revisto. Continuar a produzir cidadãos sem qualquer ligação à nossa cultura, conforme a lei portuguesa obriga, é uma aberração e um tiro no pé. O estatuto de excepção deve de ser revisto e com urgência. Para o bem de todos e, no limite, para o bem de Macau e da própria China. Explicando. A imprensa portuguesa de Macau está em crise. O mercado publicitário é diminuto e isso deve-se à falta de leitores e à pouca capacidade de penetração que tem na população de Macau. Mas a imprensa portuguesa de Macau faz falta ao território porque, como o seu estatuto lhe impõe, actua servindo de tabelião das liberdades e garantias, verificando factos, denunciando injustiças, dando voz a quem dela precisa e segue rigorosos códigos deontológicos e de conduta como cabe a uma imprensa livre, saudável e responsável. Do outro lado, todos sabemos que a imprensa chinesa de Macau não só não faz nada disso como se rege por padrões de conduta muito mais difusos. Sem esquecer o sistema legal, que não se compadece com alunos que apenas decoram artigos mas precisa que os mesmos percebam a cultura que origina a jurisprudência. Pelas mesmas razões, a venda de livros em português também não é famosa na cidade e assim perde Macau a possibilidade ter uma população com sentido crítico, de mente aberta e universalista que, de facto, faz a ponte com os países de língua portuguesa e um sistema jurídico humanista; Portugal perde a possibilidade de ter em Macau um ponto cultural avançado de contacto com a China e o resto do Oriente e a China perde a ideia da plataforma de contacto com o mundo lusófono pois, num futuro próximo, esta transformar-se-á numa quimera, num pastiche. Segundo a lei da nacionalidade portuguesa (n.º 37/81) no seu artigo 1º (nacionalidade originária), “os indivíduos nascidos no estrangeiro com, pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa do 2.º grau na linha recta (…) se declararem que querem ser portugueses e possuírem laços de efectiva ligação à comunidade nacional (…) podem inscrever o nascimento no registo civil português”. “Laços de efectiva ligação à comunidade nacional”? Sem se falar ou entender o idioma, como é feita a ligação? Via Cristiano Ronaldo?… No ponto três do mesmo artigo lê-se ainda que “a verificação da existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional (…) implica o reconhecimento, pelo Governo, da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português”. Admito que alguns tenham contactos com o território nacional mas não o conhecimento suficiente da língua. Isso tem de acabar, não apenas pelas razões expostas mas também para não alimentar a ideia de portugueses de primeira e de segunda que todos sabemos existir, e com alguma razão. A revisão urgente deste estatuto de excepção, parece-me, por isso, crucial pois em nada beneficia Portugal, nem Macau, nem a China, nem os portugueses e outros lusófonos que aqui vivem, nem as empresas e associações que aqui montam. Por isso, sugiro que num futuro próximo e em prazos justos a definir, a renovação dos documentos de identificação portugueses pressuponha o “conhecimento suficiente da língua”, dando cumprimento à lei portuguesa. Naturalmente, terão de ser salvaguardadas excepções como, por exemplo, para pessoas acima de uma certa idade, ou com incapacidade manifesta de aprendizagem. Obrigará a um esforço do IPOR e de várias outras entidades mas não há impossíveis e tem de ser feito, para o bem de Portugal, de Macau e da própria China se, de facto, pretende que Macau sirva como ligação ao mundo lusófono. Não podemos é continuar a distribuir passaportes como quem atira confetti numa festa de carnaval, pois aos países, tal como às pessoas, aplica-se a velha máxima de que “quem muito se baixa, muito o cu se lhe vê”. MÚSICA DA SEMANA “After All” (David Bowie, 1970) “We’re painting our faces and dressing in thoughts from the skies, From paradise But they think that we’re holding a secretive ball. Won’t someone invite them They’re just taller children, that’s all, after all”
Fernando Eloy VozesA Terra do Eu [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m dia, uma grande tempestade acompanhada de um tremor de terra abriu um buraco na terra perto onde um pastor, de seu nome Gyges, apascentava o rebanho. Curioso, entrou buraco adentro para descobrir um sem número de maravilhas. E o corpo de alguém, de aparência importante, que nada mais tinha do que um anel. Esse anel, veio Gyges a descobrir, conferia o poder da invisibilidade, uma faculdade que acabaria por utilizar para entrar no palácio, seduzir a rainha, matar o rei e usurpar o trono. A história é contada por Platão na “República”, para referir uma tentativa de Glauco em convencer Sócrates a proporcionar uma melhor definição de justiça convencido que estava de que as pessoas só agem com justiça, quando estão preocupadas com a reputação. Ou seja, temem que os seus actos injustos, façam com que os outros lhes retribuam a injustiça. Para Glauco, tanto o justo como o injusto cederiam ao anel da invisibilidade pois esta livra-os da culpa. Mal comparado, talvez como um par de óculos escuros nos permite atitudes que a sua ausência inibe, pois escondidos os olhos, a mentira sai mais fácil. O mito de Gyges traz-nos à lida o egoísmo psicológico, todos os homens são egoístas em tudo o que fazem, e o único motivo pelo qual alguém age é apenas o interesse próprio. Em suma, o egoísmo psicológico, uma tese que argumenta que cada um tem apenas um objectivo: o seu próprio bem estar. Há mais de uma dezena de anos, ao passar por uma situação menos confortável em Macau, alguém com muitos anos de terra dizia-me para relaxar porque esta sempre foi uma terra boa, solidária, onde todos são ajudados a cair de pé. Tinha razão. Assim, era. Passado. Para mim, essa história acabou, ou está prestes a cair no esquecimento dos tempos. Essa particularidade que deixava Macau incólume dos egocentrismos que assolam o resto do mundo tem vindo a esvair-se como a areia de uma ampulheta que perdeu o condão de se virar. Noto eu, mas também tenho notado em várias entrevistas a pessoas comuns da terra que vão surgindo na imprensa. Quando instados a compararem os dias de hoje com um passado não muito longínquo, a falta de solidariedade que era tão normal como o ar que se respirava nota-se recorrentemente como um dos principais factores diferenciadores dos tempos. Terra de egos, onde os que podem criam impérios mais ou menos minúsculos, quiçá para se sentirem grandes na pequenez que os rodeia, Macau tem conseguido transformar-se nessa cidade moderna, e não direi humana porque cada vez menos acredito nas qualidades beatíficas dessa espécie a que eu próprio pertenço. Somos assolados pelo barulho de brocas, em casa e no trabalho, porque o dono da obra prefere partir o chão ou as paredes a arranjar uma solução de decoração alternativa. Engarrafamo-nos em longos minutos para percorrer distâncias ridículas porque alguém parou em segunda fila, a obra foi mal planeada ou ninguém lhe aprouve parar na grelha amarela. Atabafamos em gases de carros porque toda gente quer andar de cu tremido numa terra que o saudoso padre Teixeira corria diariamente de lés a lés. Tememos ficar a gemer sozinhos no meio da rua porque ninguém quer ter problemas, sofremos com patrões iníquos que tomam decisões a seu bel-prazer porque sabem que os Serviços Laborais não vão levantar uma palha, levamos com maus serviços de empresas porque o Conselho dos Consumidores não serve para coisa nenhuma, vemos o ambiente degradar-se à nossa volta porque ninguém fiscaliza os prevaricadores (a menos que estejamos a falar de fumadores), assistimos a episódios de racismo diário porque na terra da harmonia isso nem sequer faz sentido, vemos ideias usurpadas porque ninguém protege os autores… É como se um deus gozão tivesse despejado um saco de anéis de Gyges num desses dias de temporal para ficar a gozar o prato, ou, se calhar, foi mesmo Glauco que continua, lá no além, a teimar com Sócrates que a teoria dele é válida para toda a eternidade e nem Macau, essa terra pacata onde as pessoas ainda tinham uma réstia de decência, conseguiu resistir na sua ânsia de ser moderna. Às vezes interrogo-me se percebemos mesmo que a morte é o único destino certo. Música da semana “There Is A Happy Land” (David Bowie, 1967) There is a happy land where only children live They don’t have the time to learn the ways Of you sir, Mr. Grownup There’s a special place in the rhubarb fields underneath the leaves It’s a secret place and adults aren’t allowed there Mr. Grownup, Go away sir Charlie Brown got’s half a crown, he’s gonna buy a kite
Fernando Eloy VozesHumor Britânico [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] saída do Reino (ainda) Unido da Comunidade Europeia é, provavelmente, dos melhores episódios de humor britânico dos últimos tempos. Tudo tem piada. As tiradas do Homem B, também conhecido por Boris Johnson, e a sua retirada de cena após ter ajudado a pegar fogo ao mato é de partir a rir. Também não deixam de ter piada as declarações do seu companheiro de folguedos, Nigel Farage, que depois de ter andado em campanha com um autocarro vermelho onde se lia em letras garrafais que os 350 milhões de libras que o Reino Unido enviava por semana para a Europa iriam para prover o Serviço Nacional de Saúde, no dia imediatamente a seguir à votação confessou ter sido um exagero de campanha com o qual não concordava, nem sequer podia garantir tal coisa. Agora demitiu-se porque já ter conseguido o que queria, mas não sem dizer que continuaria sentado no Parlamento Europeu. Humor do melhor. Não menos divertida foi a reacção de muitos britânicos após o resultado do referendo. Como se tivessem passado a noite no pub a enfrascarem-se e no outro dia acordassem ao lado do diabo da Tasmânia. Mas a onda de humor ultrapassou as fronteiras do reino ilhéu e chegou aos sisudos alemães. Ou seja, não vejo outra forma de explicar duas coisas: primeiro a corrida da Merkel ao convocar o núcleo dos fundadores como se isso tivesse algum valor institucional e, depois, quando ela vem garantir, que nem rainha de Inglaterra, que o referendo britânico era irreversível. Ou achamos piada ou então apercebemo-nos de forma vívida porque é que os ingleses, e muitos outros, estão fartos desta Europa. Mas a piada maior ainda é o facto de praticamente toda a campanha do “sai” ter sido baseada num chorrilho de mentiras. Senão vejamos, ponto por ponto, os grandes argumentos dos secessionistas: 1. Queda nos níveis de imigração Ninguém na campanha deu quaisquer valores alvo a atingir. Nunca. Para além disso, a grande maioria dos imigrantes não vêm da UE mas sim de ex-colónias britânicas. Até o deputado conservador Dan Hannan disse que as pessoas que esperam ver a imigração descer vão ficar “desapontadas”. 2. Os milhões extra para o Serviço Nacional de Saúde. Já se sabe que era mentira. Farage dixit. 3. Permanecer no mercado único. A sério? A noiva fica no altar e depois vai tomar chá e bolinhos com o amante que a deixou? Alguém acredita nisso? Basta ver as reacções dos lideres europeus. Quem vai querer criar um mau exemplo para que outros sigam? 4. Soberania de volta. Primeiro nunca a perderam e o que vão ter é um novo primeiro-ministro não eleito. 5. Líder mundial em pesquisa e desenvolvimento Os investimentos do Reino Unido em ciência e universidades caíram desde a recessão. Para além disso, o Reino Unido recebeu 7 mil milhões de libras em financiamento da UE, só para ciência, entre 2007 e 2013. Isto para não referir que a grande maioria dos principais cientistas britânicos, onde se inclui Stephen Hawking e os membros todos da Royal Society de Cambridge, entre muitos outros, terem assinado uma carta a dizer que o Brexit seria um desastre para ciência britânica. 6. Poupar 2 mil milhões de libras em energia Prometeram acabar com o IVA nas contas de energia doméstica. É possível mas não vai poupar dinheiro nenhum porque a maior parte da energia consumida nas ilhas é importada e, com a queda da libra, isso significa… inflação, ou seja, electricidade mais cara. 7. Uma Grã-Bretanha maior Logo a seguir ao resultado do referendo a economia do Reino Unido caiu de quinta maior do mundo para sexta com mais de 200 mil milhões de libras varridas do mercado accionista. Ou seja, um valor igual ao das contribuições do Reino Unido UE durante 24 anos! Humor do melhor. “Nonsense” na sua melhor forma. Somado a tudo isto está a ameaça da Escócia de se libertar de vez dos ingleses e até as Irlandas, num caso sui-géneris, falam unir-se e deixar os ingleses e os galeses a falarem sozinhos. A questão deixa de ter piada quando se percebe o impacto que estas decisões levianas têm na vida de milhões, entre residentes e não residentes, para além dos impactos que se têm vindo a sentir um pouco por todo o mundo. Pessoalmente, acho que não vai acontecer Brexit nenhum porque o referendo é meramente indicador e o famoso artigo 50, uma obra prima da legislação, vago e que não deixa ninguém perceber como se gere, de facto, a saída de um estado membro, só pode ser accionado após aprovação no parlamento. Terão os deputados conservadores coragem para accionarem o botão de implosão do Reino Unido? Tenho sérias dúvidas. Mais não seja, os quatro milhões que já assinaram uma petição a pedir novo referendo (mais gente do que a diferença de um milhão que ditou o resultado) devê-los-ão fazer pensar duas vezes. Um ponto positivo no meio disto tudo, apesar de potencial: pode ser que este abanão sirva para que a UE se reforme e medidas para aumentarem os níveis de transparência e democraticidade da união sejam tomadas. Talvez seja pedir muito, talvez não. Juncker anda doido a querer acabar com a comissão e parece que começa a surgir uma tendência para unir mais ainda a Europa. O euro continua a ser um engulho também e muito ainda se irá passar nos próximos tempos. Mas com Brexit ou sem ele nada ficará igual, à excepção daquele gosto amargo que nos fica quando percebemos que andamos a ser governados por uma cambada de inconscientes meninos da escola. Música da Semana “Who Can I Be Now? – David Bowie (1975) Please help me Who can I be now? You found me Who can I be? Fell apart, you found me Now can I be now? You found me Now can I be real? Can I be? Who can I be now? You found me Who can I be? Fell upon, you found me Now can I be now? You found me Now can I, can I be real? Can I be real? Can I be real? Can I be? (Who) can I be? Yeah, yeah (Now) Yeah, can I be (now)? You found me (Now) can I be free? Can I…
Fernando Eloy VozesOs muros das lamentações [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s imagens valem mil palavras, certo? Então aqui ficam três. Acompanhadas de duas sugestões. I. Com a falta de espaços bravios que tanta falta fazem ao desenvolvimento saudável das crianças porque se encerram os poucos que ainda por aí andam com estas cercas de má catadura? Temporários que sejam porque não deixar que sejam apreciados? As brincadeiras que eu ali não faria se tivesse 10 anos… II. Mas já que gostam de os tapar, porque o verde é feio, ou porque as ervas picam, sei lá… porque é que o Governo não contrata (sim, contratar) os artistas locais para os decorarem? Será melhor andarmos entaipados por estas cercas de “amarelo-já-morri”? Música da Semana “Where Have All The Good Times Gone” (David Bowie, 1973) (…) “Won’t you tell me Where have all the good times gone Where have all the good times gone Where have all the good times gone Once we had an easy ride and always felt the same Time was on our side and I had everything to gain Let it be like yesterday Please let me have happy days” (…)
Fernando Eloy VozesWabi Sabi, a falta que nos faz [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]evemos todos algo a pelo menos um professor. Neste caso, devo-o ao professor Jorge Cavalheiro em cujas aulas de cultura do Japão tive o privilégio de participar. Trazia-nos ele um conceito completamente novo para mim e que se viria a tornar dos elementos mais importantes da minha vida; wabi-sabi. Por um lado, ao explicar-me sentimentos, por outro, ao sistematizar a ideia do prazer pela imperfeição que eu sentia quase sem perceber a razão porquê. Vivemos numa sociedade obcecada pela perfeição. O consumidor exige, o fabricante faz, a formação ocidental do prazer pela simetria condiciona-nos, torna-nos mestres do Photoshop, escravos da quimérica perfeição, alucinados pelo que é novo, brilhante e opulento. O wabi-sabi traz-nos de volta ao que cale realmente valem a pena. À apreciação das imperfeições, à noção de impermanência e no quão bonito tudo isso é. Não é fácil traduzir wabi-sabi, nem a tal me arrogaria, por isso limito-me à definição que me pareceu mais conveniente de todas as que fui ouvindo – o perfeito-imperfeito. Contava-nos o prof. Cavalheiro, uma das muitas histórias de Seno Rikyu, um monge zen do séc. XVI, e um dos grandes responsáveis pela popularização do conceito. ‘Um dia, Seno mandou um discípulo limpar o jardim. Um dia passou ele na tarefa, assegurando-se de tudo deixar impecável. Trabalho terminado, e ao ser questionado pelo rapaz se bem executado, Rikyu respondeu abanando o ramo de uma árvore e provocando a queda de algumas folhas. Agora estava terminado’. Nada podia ser demasiado perfeito, acreditava Rikyu, pois a perfeição não deixa a mente criativa trabalhar. Além disso, o monge alertava para o respeito pela passagem do tempo, pelo rústico, pelos objectos modestos, às vezes consertados. Para a importância de tudo isso para o nosso próprio equilíbrio. Considerando mais bonitas as coisas quando nelas podemos apreciar as marcas do tempo e a sua própria individualidade. Neste raciocínio, uma taça rústica tem muito mais valor do que outra, incólume, nova e perfeitinha. Como diz o arquitecto Tadao Ando, “wabi-sabi é a arte de descobrir beleza na imperfeição e profundidade na natureza, aceitando o ciclo natural de crescimento, declínio e morte.” Numa perspectiva mais actual, para Ando, wabi-sabi é “autenticidade, mercados de rua e não hipermercados; madeira envelhecida e não laminados; papel de arroz e não vidro”. Uma forma de apreciar a vida como ela é, o prazer simples de admirar o musgo num muro, as folhas que cobrem a rua depois de um vendaval ou por ser hora disso; as flores vermelhas das “árvores dos exames” que todos os anos nos estendem tapetes escarlates pela cidade. As teorias de Rikyu ficaram bem vincadas no desenho da cerimónia do chá, ainda hoje feita de acordo com o seu método, onde as loiças são rústicas, a simetria não faz parte da decoração da cabana (não pavilhão) do chá, que deve situar-se num lugar discreto do jardim, mas onde seja possível observar a passagem das estações pela janela. Um lugar de paz, onde os samurais eram proibidos de entrarem armados, desenhadas que foram umas bainhas no exterior para que as espadas aí fossem deixadas. Rikyu criou a cerimónia do chá como resposta à moda extravagante da época na corte japonesa, onde o chá era ingerido em sumptuosas loiças chinesas durante cerimónias faustosas ocorridas nas varandas em noites de lua cheia. “O chá é para todos”, disse Rikyu e transformou o processo num momento simples, de reflexão, de paz e sem ostentações, acessível a qualquer um. À Lua Cheia contrapôs a meia lua, ou a lua em dia com algumas nuvens. As loiças chiques substituiu-as por outras mais simples, adquiridas em artesãos pelas aldeias em que passava, ou outras mais velhas mas bem remendadas. Às vezes, quando apanho um japonês falo-lhe de wabi-sabi. A maioria sorri confessando que o Japão anda esquecido disso. É normalmente um sorriso que aparenta saudade de tempos melhor vividos. Esqueceram-se eles, esquecemo-nos nós porque, em boa verdade, não é preciso conhecer a formulação deste conceito para percebermos a importância de nos relacionarmos com a impermanência, para reconhecermos os sentimentos que nos invadem quando desligamos o complicador e nos deixamos enlevar pela simplicidade, por objectos com carácter, por formas mais genuínas de vida. Lembrei-me disto um dia destes num desses autocarros wabi-sabi da Transmac. Os minis onde ainda se tem o prazer de escancarar uma janela, mas onde, nalguns, as clássicas campainhas, discretas e vintage, foram substituídas por uma lâmpada sem graça e um estridente órgão electrónico que nos faz pensar duas vezes se devemos mesmo tocar para sair. Macau precisa muito de wabi-sabi. O mundo precisa muito de wabi-sabi, para que possamos respirar e sonhar um pouco melhor.
Fernando Eloy VozesBanido! [dropcap style=´circle´]M[/dropcap]acau tem várias particularidades na sua forma de estar, ser e até de parecer. Já todos sabemos isso. Todavia, algumas delas, quando se nos esbarram nas ventas, não deixam de nos mostrar quão álacres são e, nesse seu garrido, o sinal que representam do que vai mal na terra. Um desses pormenores é, claramente, a incapacidade quase geral de acolher críticas. Em Macau, a regra para criticar é não o fazer, ou não o fazer em público, ou não o fazer de todo. As personalidades são frágeis, as capacidades, vulgarmente, ainda mais quebradiças e, portanto, alertar sobre a nudez do monarca é crime de lesa majestade. Foi o que me aconteceu. Desde há mais de uma dezena de anos que, regularmente, à excepção de um hiato ou outro, colaboro com a TDM nos relatos de futebol, especialmente em ocasiões como Euro ou o Mundial, ou mesmo noutras modalidades. Recentemente, até me foi proposto informalmente tornar essas colaborações um pouco mais assíduas. Todavia, este ano não vou fazer qualquer relato do Euro e, pelo andar da carroça, e se a tracção não mudar, nunca mais irei fazer nada na TDM. Questões pessoais não são chamadas para as páginas de um jornal. Nem numa coluna de opinião, dirá alguém e eu concordo. Mas isto não é pessoal. Para mim, é de interesse público. O banimento, posso dizê-lo, pois que o poderia ter negado não o fez apesar de a isso instado, ficou a dever-se a um texto publicado nesta mesma página no passado dia 17 de Fevereiro deste ano, intitulado “Para que serve a TDM?”. Caiu mal Todavia, não deveria conter matéria suficiente para processo, caso contrário já teria sido notificado pelo tribunal. No texto, recordo, inquiria-me, de uma forma geral, sobre os propósitos da TDM, demonstrando a minha incompreensão pela total ausência da estação de Macau em apoiar de forma decisiva a produção local e por não ser sequer capaz de cumprir o desígnio de Macau de plataforma de contacto com os países de língua portuguesa exportando conteúdos para estes nem sequer de abrir portas à colaboração com estações do continente dada a exiguidade do mercado local para investidores. A crítica era mais dirigida à tutela do que propriamente à direcção executiva da estação. Não foram feitas críticas pessoais mas sim institucionais. Todavia, foi o suficiente para ser considerado persona non grata na estação pública do território. É absolutamente irrelevante para qualquer pessoa, comigo incluído, se colaboro ou não com a TDM, se faço ou não comentários, se produzo, ou não conteúdos para aquela estação. Mas não é irrelevante nem para mim, nem, julgo, para ninguém que se preocupe com uma sociedade livre, que se penitenciem pessoas por exercerem o seu direito à liberdade de expressão. Hoje sou eu, amanhã será outro. A questão torna-se ainda mais caricata quando o responsável pela sanção assume cargos na Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau que, diz nos seus estatutos, tem por fim, entre outros, “defender e promover o livre exercício da profissão, a liberdade de imprensa e o acesso às fontes”. Se calhar é excesso de zelo, se calhar ninguém lhe encomendou o serviço. Seja o que for, é tenebroso e não deixa de preocupar numa época em que cada vez mais se vêem atropelos à liberdade de expressão, aqui e noutras paragens, quando a sanção vem sub-reptícia e sem explicação formal, como quando se empurra o lixo para debaixo do tapete à espera que ninguém o levante. Música da Semana “Big Brother” (David Bowie – 1974) I know you think you’re awful square But you made everyone, and you’ve been anywhere Lord, I’d take an overdose, if I knew what’s going down (…) Someone to lead us, someone to follow Someone to fool us – some brave Apollo! Someone to save us, someone like you We want you Big Brother
Fernando Eloy VozesNós, as máquinas [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á abordei várias vezes o advento da inteligência artificial (IA) nesta página, mas as notícias sucedem-se e, com elas, o intricado que é perceber o nosso futuro como espécie, se é que o temos. O meu último palpite é que vamos acabar transformados em máquinas. Humanóides, se quiser, mas não humanos. Esses podem ter os dias contados. Mas, antes disso, deixem-me partilhar as últimas que chegaram ao meu conhecimento. A primeira surgiu na Quartz onde se anuncia o primeiro guião de cinema escrito por um sistema IA (bit.ly/AIdoesSwrite). Oscar Sharp, o realizador, e Ross Goodwin, o geek, resolveram experimentar o que aconteceria. Assim, para acederem a um concurso para fazer filmes em 48 horas, deram a um sistema neural (neural network) uma série de ideias para um guião. Não saiu um trabalho de génio, mas tudo, desde instruções de movimentações no set a diálogos e até mesmo a letra de uma canção, foi escrito pelo sistema. Uma história futurista que, escreve o IA, “será uma época de desemprego massivo” onde “os jovens são obrigados a vender o próprio sangue”. Ou seja, até as máquinas já sabem o que vai acontecer. A este propósito, lembro que a proposta de lei Suíça, que mencionei um destes dias para a atribuição de um ordenado a todos, acabou chumbada na passada semana por receios que as pessoas se entreguem ao ócio. Todavia, os 20% que votaram a favor dão esperanças aos proponentes que a conversa não tenha ainda terminado. Agora, o ócio assusta mas em breve será o ócio a ditar a medida, ou a profecia da máquina de venda de sangue pode mesmo ser consubstanciada. Chegou-me também a notícia publicada na Vox da reconstrução do filme Blade Runner a partir de data não codificada, ou seja bits e bytes do filme de Ridley Scott (bit.ly/AIdoesBrunner). O projecto foi gerido por Terence Broad, um londrino que se dedica à pesquisa sobre computação criativa. O objectivo de Broad foi o de aplicar “deep learning” — a característica fundamental destes sistemas de IA — ao vídeo; queria ele descobrir que tipo de criação um sistema rudimentar de IA conseguiria gerar se fosse ensinado a perceber data de vídeo e, na sequência, a ver um filme. O resultado foi de tal ordem que a Warner Brothers, detentora dos direitos do filme, pediu que o vídeo fosse apagado da plataforma Vimeo onde estava (está) em exibição. Mais tarde viriam a reconhecer o erro pois aquele não era o filme deles mas sim uma reconstrução. Ou seja, é cada vez mais claro que até mesmo as áreas criativas, que nós pensávamos ser o último reduto do homem, vão estar ameaçadas pelas máquinas. Qual será o nosso caminho, então? Neste momento, porque a realidade é dinâmica, acho que o nosso futuro vai ser transformamo-nos em máquinas. Senão vejamos, com o avanço dos sistemas neurais (IA) de um lado e o próprio avanço tecnológico que temos vindo a desenvolver do outro, não será difícil de imaginar que, num futuro não muito distante, vamos começar a substituir peças. Orgânicas e/ou feitas de outra coisa qualquer. Provavelmente, as feitas de outra coisa qualquer, resistentes a vírus, bactérias e afins, serão as mais populares. Faz sentido optar por um coração orgânico em detrimento de um, digamos, da Rolex? Ter um braço da Nike, umas ancas da Peugeot ou uns olhos da Leica não me parece tão ficção científica quanto isso. Teoricamente, a substituição de peças vai-nos permitir viver mais tempo. Apesar disso, já hoje existem teorias várias que, mesmo nas condições actuais, o ser humano poderia durar muito mais. Alimentação, ar puro, etc. todos concorrem, mas com homens e máquinas trabalhando em simultâneo, não me parece que essa realidade seja nem utópica nem distante, tal como as expectáveis transformações radicais ao nível das soluções energéticas e das formas de locomoção. Aumentando a esperança de vida, com uma tecnologia avançada disponível e tempo de sobra nas mãos que nos resta? Viajar pelo espaço. Sair daqui para fora. Acho que será esse o futuro. Fica ainda uma questão para resolver, contudo, a essência. Quando começarmos a subsistir peças vamos continuar a ser nós? Se sim, o que faz de nós, nós? A alma, dirão os crentes. O fantasma dizia Masamune Shirow em “Ghost in the Shell” ou, dirão os mais pragmáticos, a informação armazenada no cérebro. Em relação a esta última possibilidade, talvez não seja preciso esperar muito para verificar a sua veracidade. Isto é, se o neurocirurgião italiano Sergio Canavero for bem sucedido no transplante de cabeça que promete já para o ano que vem (bit.ly/Canavero), podemos vir a ter uma ideia sobre o assunto. Segundo ele, o problema era juntar a espinal medula, mas garante estar ultrapassado. Descobriu o segredo, diz, e até lhe deu um nome, Gemini (spinal cord fusion). Entre peças sintéticas, ou transplantes espectaculares, e sistemas IA cada vez mais evoluídos parece-me cada vez mais claro que a vida na Terra está prestes a mudar de uma forma absolutamente espectacular. Provavelmente, os humanos, esses seres frágeis e problemáticos, serão uma recordação tão longínqua como hoje a dos dinossauros. Música da Semana “Sweet Head” (David Bowie, 1972) “See my eyes of blocked emotion, see my tremble, see my fall Traumatics thick and fast, your faith in me can last Besides I’m known to lay you, one and all”
Fernando Eloy VozesOs bichos [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or mais que espante não me espanto que o Secretário Raimundo do Rosário tenha dito não ter condições para fiscalizar obras, que estas têm vindo a piorar ou que tenha metido Fong Chi Keong e Au Kam San na ordem apelando à necessidade de cumprir a lei a um e pedindo propostas ao outro. Espanto é a raridade desta clareza vinda de um membro do governo. Espanto é não entender como Macau continua a balancear-se entre a psicose da conquista do mundo e as gangrenas internas. A fase de improviso insustentável, da falta de visão global têm de acabar, para o bem de todos. Até dos néscios. Por outro lado, ao não ter pejo em mostrar como o rei vai nu, Raimundo do Rosário dá um golpe fresco de sanidade a todos aos que há muito estavam certos disso, convictos de não terem caído no buraco da Alice. Rosário queixou-se da falta de mão-de-obra especializada na fiscalização das obras públicas e confessou não se admirar se acontecessem acidentes. Muitos de nós também não. A seguir atirou no forte no estado de laxismo em que estão as vistorias de edifícios, apesar de obrigatórias por lei. Espanta? Só o facto de o dizer, claro. Mas não se ficou por aqui e ainda lembrou Fong Chi Keong da necessidade de cumprir a lei, quando o assunto era Lei das Terras, e deixou Au Kam San à procura de palavras quando lhe pediu uma proposta concreta. Falavam de táxis, penso. Ou seja, Raimundo do Rosário vestiu a roupa de trazer por casa e atirou-se às teias de aranha do sótão. Ou seja, gerir uma proto candidata a destino mundial com mentalidade de terra pequena é um espartilho incomportável. Apontar o que está mal e, pelo menos tentar corrigir é apenas sinal de progresso. Macau tem de incorporar isso, mais cedo melhor do que mais tarde. Esta mesma semana, também soubemos que os Serviços da Protecção Ambiental (DSPA), por acaso também sob a alçada de Raimundo do Rosário, assumem candidamente não encomendarem estudos de impacto ambiental há anos fiando-se nos comprados pelos interessados nas obras. Esta, ao subverter todos os princípios do que deve ser um estudo de impacto ambiental, é tão absurda que quase não dá para acreditar, especialmente ao ser proclamado como sendo a coisa mais normal. Corrupção? Alguma, talvez, mas parece-me mais falta de compreensão, de capacidade de entender coisas. Mas tem vantagens a declaração da DSPA, tal como a de contribuir para a descrição literária de uma qualquer República das Bananas e por provar, para além de qualquer dúvida razoável, que a realidade é sempre mais espantosa do que a ficção. Mesmo a realidade de Macau. Ou especialmente a realidade de Macau. Tudo isto também não deixa dúvidas (existissem elas) que a maioria dos cancros desta sociedade macaína estão ligados ao “real estado”, esse regime alternativo, essa região administrativa demasiado especial, e ao estado mental dos que berram sem propostas, dos que ainda instam em resolver tudo nos corredores… ‘à Macau’. A melhor imagem que alguma vez descobri para ilustrar o que aconteceu à terra com a liberalização do jogo e a entrada de outros “jogadores” na dança, é a de quando viramos um penedo num zona escondida da floresta. Daqueles no mesmo sítio há anos. Se já virou um sabe que a primeira imagem é a de uma série de criaturas estranhas que disparam numa correria à procura de novo abrigo. A única dificuldade que tenho com esta alegoria é a velocidade com que os bichos fogem. É muito superior. Música da Semana “Unwashed And Somewhat Slightly Dazed” David Bowie (1969) !I’m the Cream Of the Great Utopia Dream And you’re the gleam In the depths of your banker’s spleen I’m a phallus in pigtails And there’s blood on my nose And my tissue is rotting Where the rats chew my bones And my eye sockets empty See nothing but pain I keep having this brainstorm About twelve times a day So now, you could spend the morning walking with me, quite amazed As I’m Unwashed and Somewhat Slightly Dazed”
Fernando Eloy VozesTurismo, esse xarope [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguém, que antes residia em Hong Kong, dizia-me gostar de vir a Macau desanuviar mas agora, que vive em Singapura, nem tal lhe passa pela cabeça. Também eu me rendo ao paradoxo de agora ir para Hong Kong à procura de sossego quando há não muitos anos sentia precisamente o contrário. A culpa é do turismo em excesso. Mas podemos fugir dele? Podemos nós evitar ser turistas? A resposta parece-me clara: não. Mas talvez. A propósito do sofrimento local, que seguramente virará um caso de estudo clássico sobre tudo o que não fazer quando a opção é turismo, mas também pelo discurso recente do vice-primeiro ministro chinês, Wang Yang. Defendeu ele esta semana numa reunião com a Organização Mundial de Turismo (OMT), a necessidade de promover mais o turismo pelo mundo fora na expectativa de tirar mais gente da pobreza. Aparentemente, ele tem razão porque o turismo faz isso mesmo e não duvido das suas boas intenções. Mas de boas intenções… Por outro lado, a tendência para trabalharmos menos é clara. Num futuro não muito longínquo, o previsível desemprego maciço motivado pelo advento da inteligência artificial (IA) vai implicar muito tempo livre. Para os mais cépticos, a firma norte-americana de advogados Baker & Hostetler anunciou recentemente a aquisição de um sistema AI que vai substituir 50 advogados de uma assentada… mas há mais exemplos. Por outro lado, em vários países europeus discute-se seriamente a instituição de um rendimento universal garantido para resolver os imbróglios dos sistemas de segurança social. Casos disso, a Suíça, a Finlândia, a Holanda e a França, no Reino Unido há propostas e na Alemanha o assunto tem vindo a ser cada vez mais debatido. Na óptica dos defensores da ideia, isso permitirá um verdadeiro apoio social aos carenciados proporcionando-lhes meios para questões básicas de sobrevivência como alimentação, vestuário e alimentação e, inclusivamente, a possibilidade de poupança, de eventual geração de novos negócios e, claro, de lazer. Na Suíça, a proposta é de 2,270 euros por mês. Ok, é a Suíça. Esta é a motivação actual mas a IA só vai confirmar a tendência. O problema do turismo, ou melhor da adaptação de locais para turismo, como o vice-primeiro ministro chinês pretende fazer nas zonas mais deprimidas do país, é arruinar de uma assentada com modos de vida, culturas e mesmo com a sustentabilidade ecológica dos locais, raramente preparados para as invasões dos exigentes turistas. O caso da aldeia de Lai Chi Vun, em Coloane. Nos quesitos dos moradores destaca-se a manutenção da sua forma de vida. Transformar o local num pólo de atracção turística vai satisfazer a sua ambição? Obviamente, não. Para servir a clientela ávida de “selfies”, o modo de vida da aldeia vai alterar-se drasticamente. Poderão ver os estaleiros recuperados, e até as casas, mas não o modo de vida. Na sua alocução, Wang Yang também urgia os países a facilitarem os processos de obtenção de vistos. Não lhe consigo tirar a razão. Precisamos de destruir os obstáculos aos trânsito, e isso vai ser cada vez mais premente. Mas o turismo não vai salvar as aldeias com que ele, e bem, se preocupa. Vai dar-lhes de comer no imediato mas não lhes vai dar futuro. Não será preferível um rendimento universal garantido, reais possibilidades de escolha, ao presente envenenado do turismo? O turismo é inevitável, mas a aposta na criação de infra-estruturas para as massas, não só elimina os espaços de fuga como gera impactos nocivos. Resolver uma doença social com uma pílula carregada de contra-indicações não é bom senso. Além disso, urge educar os turistas a viajar, esses seres exigentes e prepotentes, essas manadas inconscientes e avassaladoras. Progressivamente, a diferença entre turista e viajante é cada vez mais notória. O visitante tenta não alterar o que visita, não berra por uma cerveja gelada e contenta-se com uma pedra de gelo, nem exige quartos com ar condicionado em bangalôs junto ao mar. O viajante procura a diferença, a partilha, o desfrute das incongruências até, e sujeita-se ao que lhe dão, ao que existe. O turista vai para fora como se estivesse cá dentro. Quer o destino igual à origem, incapaz de se adaptar, exige as mordomias todas. Altera, subverte, prostitui. O turismo aniquila a naturalidade das comunidades, não no sentido da manutenção de primitivismos, mas no do fluir da cultura local. Ir a Benidorm ou a Pattaya, a Albufeira ou a Acapulco é cada vez mais a mesma coisa. Quem conhece Lisboa sabe do que estou a falar, como sabem os que conheceram Macau de há 15 ou 20 anos. Não se pode acabar com o turismo, mas é crucial entender que não constitui uma solução em si próprio. O turismo é como a nitroglicerina. Mal manipulado e a coisa explode. Os exemplos estão aí, às catadupas. Prefiro rendimentos universais garantidos, prefiro ouvir falar em formas criativas de promoção de uma distribuição de riqueza mais eficaz, prefiro todas as soluções que dêem opções às pessoas e não receitas requentadas que, no longo prazo, em nada contribuem para melhoria geral da forma de vida no planeta. Nem para o próprio planeta. Precisamos de desanuviar, não de ofuscar. O turismo é como o xarope, deve ser tomado com conta, peso e medida. E se a tosse é crónica, como as zonas deprimidas o são, o turismo, tal como o xarope, não cura. Apenas cria dependência. Música da Semana David Bowie (“Life on Mars?” – 1971) “Sailors fighting in the dance hall Oh man! Look at those cavemen go It’s the freakiest show Take a look at the Lawman Beating up the wrong guy Oh man! Wonder if he’ll ever know He’s in the best selling show Is there life on Mars?
Fernando Eloy VozesDois tiros no porta-aviões e um no contratorpedeiro [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]dmito a minha ingenuidade. Admito até a tendência para tomar as coisas pelo seu valor nominal, mas é assim. Vamos imaginar um cenário, provavelmente irreal, mas possível. Chui Sai On, que um dia deixará a chefia do executivo, terá de viver de alguma a coisa nessa altura. Da fortuna de família, dos negócios que aquela tem, claro que sim. Tudo normal. Mas imagine-se que acontece uma desgraça e tem mesmo de arranjar emprego como o comum dos mortais. Nessa circunstância, ser vice-presidente remunerado do Conselho Geral de uma universidade não parece uma solução de descartar. Portanto, o argumento de que não tem qualquer tipo de interesse pessoal na universidade não faz qualquer sentido. Não em termos formais. E quando o assunto são decisões políticas e dinheiros públicos todas as questões são formais. Em termos práticos, como presidente do Conselho de Curadores da Fundação Macau, o Chefe do Executivo autorizou a ida de dinheiro público para uma instituição que até lhe pode vir a dar emprego no futuro. Uma situação puramente académica, mas possível. À mulher de César… Contudo, o problema maior nem sequer é este. O apoio à Universidade Jinan pode também ser entendido como mais dois tiros no porta-aviões do segundo sistema e um tiro no contratorpedeiro que deveria ser a educação superior local. Como diz o povo, e bem, é pela boca que morre o peixe, e o ouvido do Governo para justificar a benesse à Jinan diz que aquela universidade é crucial para formação de funcionários do território. Primeiro tiro no porta-aviões. Diz ainda o Governo ir parte do dinheiro, ou todo, irrelevante, para construir um edifício da Faculdade de Comunicação Social daquela instituição do continente. Segundo tiro no porta-aviões. Ou seja, poderá o segundo sistema ser interpretado condignamente com pessoas formadas no primeiro? Fará sentido defender o segundo sistema, quando um dos seus apanágios é uma imprensa livre, investindo-se numa faculdade de comunicação social num país onde esta não o é? Uma no cravo e outra na ferradura? Estaria esta estratégia presente nos ideais de Deng Xiao Ping quando imaginou o princípio “Um País, dois Sistemas” ou, tudo somado, e revelamos o espectro do contra-senso? O tiro no contratorpedeiro é dado quando o Secretário Alexis Tam justifica o investimento dos 100 milhões com o facto de Macau ter cerca de 20 mil quadros formados naquela universidade. Ou seja, podemos daqui inferir a incapacidade da universidade local em formar quadros para a RAEM? Se assim for, porque assim é? A sensação que me fica é que por qualquer lado que tentemos pegar neste assunto, não encontramos ponta por onde se lhe pegue. É por estas e por outras que Taiwan cada vez acredita menos no princípio do velho Deng. “Watch That Man” David Bowie (1973) “Watch that man! Oh honey, watch that man He talks like a jerk but he could eat you with a fork and spoon Watch that man! Oh honey, watch that man He walks like a jerk But he’s only taking care of the room Must be in tune”
Fernando Eloy VozesPato sem tomate(s) [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]pato é amarelo. O pato é grande. O pato não passa despercebido. O pato está ali na água. O pato não está ali na mesa, nem é Pato à Milanesa. Não há como fugir ao pato, se bem que o pato não corra atrás de nós. O pato é um pato e todos nós sabemos o que é ser pato. Coitados dos patos que não têm culpa de nós acharmos que ser pato é ser parvo, tal como os ursos não têm a culpa que os ursos entre nós pouco tenham a ver com eles, tal como as cabras e os cabrões, os porcos, as lesmas, as preguiças ou os camelos, os burros e os fuinhas não têm culpa da nossa remota incompatibilidade com o reino animal, da nossa tendência de apelidar de bicho tudo aquilo que não gostamos de ser, mesmo que os bichos não sejam aquilo que pensamos serem. A questão deste pato não é o seu potencial artístico nem as suas qualidades estéticas. O mal deste pato não é se é se não se equivale a Degas, como disse Carlos Marreiros. O mal deste pato nem sequer é a sua evidente falta de penas mas sim a pena que faz a evidência de vivermos numa cidade de patos, ou melhor, numa cidade em que gostam de nos fazer de patos, partindo do princípio que os patos são parvos. Neste sentido, este pato é um grande pato e não é nada parvo. Se a arte, entre outros méritos, tem a faculdade de obrigar a pensar, a quantidade de tinta que este amarelo pato tem feito correr e a enormidade de electrões espalhados pelas redes sociais em forma de crítica, sarcasmo, apoio, veneração ou mesmo “selfies”, este pato é um pato de sucesso. Se a arte, entre outros méritos, tem a faculdade de desnudar questões, de apontar o dedo para a ignomínia, para a insensatez ou até para a cupidez e, seguramente, para a estupidez, este pato é um pato de sucesso. Ninguém como este singelo cochicho teve ainda o condão de trazer de forma tão vigorosa para a macia opinião pública local a evidência de que os que cá estão não gostam dos que cá estão. Ou seja, parafraseando José Drummond na sua entrevista esta semana ao HM, “Macau é um embaraço para os artistas” justificando assim a impraticabilidade de aqui se viver como artista em função dos preços de habitação e até da comida, mas o que podia ser feito com os milhões gastos no borrachinha, este pato é um pato fundamental. A questão dos milhões leva-nos do mundo animal para o mundo vegetal e até aos proverbiais tomates, ou à falta deles, pois é precisamente isso que este enorme pato revela apesar do seu ar bonacheirão e inocente. Talvez depois deste pato, os patos que agora o pagaram venham a descobrir os tomates necessários para alimentar o molho dos artistas locais, ganhando coragem para encomendarem coisas extravagantes. Provavelmente não, mas o pato abriu a discussão. “O mal…” diz o pato sem falar “… é os locais estarem manietados pela incapacidade de olharem de frente aqueles que não apoiam preferindo por isso distribuir migalhas a todos em vez de um pão decente a quem tem os tomates, e a capacidade, para fazer uma salada decente”. Nesta quase alucinação colectiva em que se tornou a febre das indústrias criativas locais, não há tomates para se perceber que uma cidade de meia dúzia não pode gerar milhares de artistas. O que este patarrão torna por demais evidente é não faltar dinheiro no burgo apesar da pretensa crise anunciada, tal como esparrama nas fuças de qualquer um como os milhões nele empregues nunca seriam entregues a um artista local que tal ousasse. Como não são entregues a um realizador local com tomates para fazer um filme decente, a um qualquer artista local com a ousadia de pensar grande, a quem quer que seja a pretender fazer obra que leve Macau para o mundo. A preferência é, ao invés, apostar na produção consistente de merda, e aos quilos, destinada a encher arquivos e estatísticas no delírio de mostrar como os criativos locais são geniais e aos molhos. Em Macau, a ordem é para pensar pequeno, para não dar nas vistas, porque se for para dar espectáculo é melhor importar. Como diz o adágio local, “em tábua com pregos, o saliente deve ser martelado”. A aposta tem de ser segura porque os tomates são caros e ninguém os tem para arriscar, nem a clarividência (o mais grave) para o perceber. Por isso, talvez utilizando um adágio importado a mensagem passe melhor, fique-se a saber que “quem não arrisca, não petisca”. Música da Semana “Come and Buy My Toys” David Bowie (1967) “You shall own a cambric shirt You shall work your father’s land But now you shall play in the market square Till you’ll be a man Smiling girls and rosy boys Come and buy my little toys Monkeys made of gingerbread And sugar horses painted red”
Fernando Eloy VozesVinte e quatro ou vinte seis? [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]“Dia da Saudade”, 24, como lhe chamam os reaccionários, o (primeiro) “Dia da Liberdade”, 26, como lhe chamam os revolucionários e, pelo meio, outro dia, o 25, que tudo mudou. Esta semana, neste mesmo jornal, interrogavam-se as pessoas se se devia, ou não, festejar mais o 25 de Abril em Macau. Naturalmente, em Macau, Portugal ou Cochinchina, o fim de uma ditadura que cerceava a liberdade de expressão e encarcerava os que ousavam discutir os princípios políticos do Estado deve ser celebrado. Todavia, mais do que celebrado, mais do que slogans ocos do género “25 de Abril para Sempre” parece-me essencial que percebamos claramente que legado foi esse do 25 de Abril, se as expectativas geradas (muitas) foram cumpridas e se, no limite, o 25 de Abril tinha mesmo de acontecer. Para mim existem duas vantagens essenciais que saíram de Abril de 1974: o laicismo e a liberdade de expressão. O resto nunca iremos saber se foram consequências dos tempos, ou da revolução. Portugal em vez de passar a vida a falar de cravos e de heróis de natureza duvidosa como Costa Gomes, Spínola, Vasco Gonçalves e até Mário Soares entre vários outros, deveria era interrogar-se dos pressupostos que levaram à revolução e se a transição de regime, que começava a tardar, não poderia ter acontecido de outra forma. Nós temos um hábito secular de nos perdoarmos e mostrar, especialmente a nós próprios, como somos um povo fora de série que faz coisas especiais. Algumas fizemos, sim, como partir mar adentro à procura de outros mundos, apesar das críticas dos cépticos (tão bem imortalizadas por Camões no seu Velho do Restelo), ou termos sido os primeiros europeus, juntamente com a Bielorrúsia, a abolirmos a pena de morte nos finais do séc. XIX. Mas também organizámos o primeiro mercado de escravos africanos em 1444, em Lagos, e mantivemos o negócio por séculos. Dourar a pílula é uma especialidade que dominamos. O 25 de Abril não é diferente. Se custa perceber como não foram julgados os criminosos da PIDE que encarceraram e torturaram milhares de pessoas, nem foram assacadas quaisquer responsabilidades políticas a ninguém pelos mesmos factos, também custa perceber como ainda não se debate realmente (42 anos depois!) as verdadeiras motivações de Abril ou as negociatas efectuadas em sequência. Se custa perceber como nunca foi escalpelizado o lastimável processo de descolonização, também custa perceber como o tal Portugal novo, pós-Abril, deixou transformar a sede da PIDE num condomínio de luxo vedando assim as novas gerações à visualização in loco do horror daqueles cárceres. Um apagamento histórico absolutamente inaceitável num país que se diz moderno e democrático. Para além do laicismo e da liberdade de expressão, o 25 de Abril trouxe outras melhorias de relevo como as férias e respectivos subsídios para os trabalhadores, a aparente igualdade entre sexos e, seguramente, um novo papel para a mulher na sociedade, acesso generalizado à educação mas também originalidades como a desditosa Reforma Agrária que apenas serviu para destruir a produção agrícola nacional, para não falar das não menos célebres nacionalizações. Quarenta e dois anos depois, as pessoas têm férias, sim, mas somos dos que menos temos na Europa. Também pertencemos ao grupo dos países cujos cidadãos têm menos capacidade para as gozar independentemente de dias e subsídios e, segundo dados do Eurostat, dos que menos viajam para fora do país juntamente com a Espanha e a Roménia. Apenas 10% dos que viajam vão para fora. As mulheres viram o seu papel reformado mas será que hoje já têm condições de absoluta igualdade perante o emprego? (pergunta retórica) Temos educação acessível mas, mesmo assim, o abandono escolar em Portugal é ainda um dos mais altos da União Europeia. Em 1974 também se prometia “casa para todos” e todos sabemos como a coisa está. Quanto mais se olha, mais parece que o 25 de Abril foi apenas uma tentativa de golpe de Estado falhado por militares fartos da guerra. Mas mesmo essa questão, a das colónias, já vinha a ser debatida nos meandros do Governo desde meados dos anos 50, falando-se de Federalismo e até de Independência. Em 1961, a constituição de um Estado Federal, abrangendo Portugal e as suas colónias, tinha sido publicamente defendida por Henrique Galvão e Humberto Delgado, então exilados no Brasil. Mais tarde, veio a ser o próprio Marcello Caetano, último primeiro ministro do Estado Novo, a defendê-la. Dizia ele em meados dos anos 60 que “para as colónias da África Tropical a era do império ainda não passou. A hipótese federativa, como termo político da evolução colonial, não parece de excluir. É certo que os portugueses não mostraram nunca uma grande tendência para os regimes federativos; mas isso não significa que com o tempo não venham a compreender a sua prática”. O projecto que apresentou era o de uma Constituição Federal, criando uns “Estados Portugueses Unidos”. Tal modificação constitucional passaria pela transformação do Estado unitário em Estado federal, formado por três Estados Federados (Portugal, Angola e Moçambique), enquanto Cabo Verde receberia o estatuto de Ilha Adjacente e as demais Províncias ultramarinas ficariam com o mero estatuto de Província. Provavelmente, mais tarde ou mais cedo, o sistema evoluiria para independência num sistema “a la Commonwealth” mas, pelo menos talvez tivesse poupado anos de guerra em Angola e Moçambique, talvez a transição tivesse sido mais suave e mais inteligente. Não pretendo fazer a apologia de Marcello que, por muito visionário que fosse, não foi capaz de perceber o que estava à sua volta, não foi capaz de reformar a seguir ao Salazar, não foi sequer capaz de entender que ir para o Quartel do Carmo era um erro estratégico, ou que entregar o poder a Spínola era a última coisa que deveria fazer, no seu próprio interesse e do país que não pretendia ver cair no caos. Apenas questiono se não teria existido melhor solução para a transição de regime. Na realidade, hoje no primado da democracia e da liberdade, continuamos dependentes de um sistema de clientelismo muito ao género da I República como Vasco Pulido Valente salienta: “desde a consolidação da monarquia liberal que o jornalismo e a literatura bramiram contra a compra do eleitorado por “favores” do governo, empregos, dinheiro e privilégios. Desde Herculano e Júlio Dinis, que sempre se esquece, até Ramalho, Eça, Fialho e, claro, os “neogarrettianos”, não houve cão nem gato que não condenasse os partidos por se alimentarem de “dependentes do Estado”. Os milhares de páginas que se escreveram contra esta ficção ou, se quiserem, contra esta fraude constituem a mais longa e coerente tradição política portuguesa. A República com a sua violência e o seu compadrio confirmou com vigor tudo aquilo em que o país piamente acreditava. E Salazar, ao contrário da lenda, assentou a sua ditadura num apetite geral de um “pulso forte” que servisse a “nação” e desfizesse as clientelas”. Ou seja, virámos o disco para vir a tocar o mesmo? Mudámos, mudámos muito e muitas coisas para melhor. Mas o mundo também mudou e na maioria dos países europeus para muito melhor que nós ou não continuássemos, apesar de todas as reformas, apertos de cinto e quejandos, com um défice sistemático equivalente a 3% do PIB. Celebrar Abril, ou seja, a queda de uma ditadura é essencial mas para nada servirá se não formos capazes de o entender em toda a sua dimensão, de nos entendermos em toda a nossa capacidade para perceber se, de facto, ganhámos ou não um país novo. Música da semana “The man who sold the world” David Bowie (1970) “Man is an obstacle, sad as the clown, Oh by jingo So hold on to nothing, and he won’t let you down, Oh by jingo Some people are marching together and some on their own Quite alone Others are running, the smaller ones crawl But some sit in silence, they’re just older children That’s all, after all”
Fernando Eloy VozesViver que nem um Pachá? [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uns bons anos atrás alguém, de quem não me lembro o nome mas que seria um dos braços direitos de Lawrence Ho, dizia-me que “daqui a uns anos o entretenimento vai ser o grande negócio”. O City of Dreams ainda não estava construído mas já naquela altura, por via dos estudos que tinham feito em Las Vegas, percebiam que, mais tarde ou mais cedo, o entretenimento iria ser fundamental na equação dos complexos casineiros. Nestes quase 15 anos que levo de Macau, pertenço ao grupo daqueles que mais tem lamentado a falta de uma vida nocturna em condições, urbana, moderna, com opções variadas e música decente. Quando cheguei ainda existia o saudoso Signal, obra do incontornável Suki Lor, responsável pelo lançamento de vários Disc Jockeys locais e por aquele espaço fora de série. Mas a debandada lusa pós 99 acabou com os clientes nocturnos e o Signal estiou. Depois disso, tem sido o deserto, excepção feita às festas mais ou menos privadas que iam acontecendo aqui ou ali. Lembro-me quando apareceram os bares do Lago Nam Van, também. Ia ser a “Lan Kwai Fong de Macau”, garantiam os promotores na altura. Viu-se. Agora ainda não se percebeu muito bem o que será, com a epidemia de “criatividade comportada” que assolou a cidade, não colocaria as minhas fichas todas no assunto. Mais tarde ainda apareceu o Sky 21, um local com todas as condições para ser um dos bares mais destacados na Ásia, mas que depois de um início extremamente prometedor acabaria por se transformar na actual “Taberna da Bela Vista”, onde jogos de futebol durante os grandes campeonatos internacionais e música de péssimo gosto em regime constante fazem parte da oferta. Os tempos foram andando e até o próprio grupo de Lawrence Ho começou por prometer (em vão) com o lançamento do Bar do Altira para depois nos trazer uma coisa chamada Cubic que, bem… enfim… Mas lá está, são hotéis, têm hóspedes e mercados, fazem o que precisam para eles. Mas uma cidade internacional, como tantas vezes Macau diz pretender ser na voz dos seus principais líderes, não pode ficar refém de hotéis e precisa de uma vida nocturna animada, evoluída e diversificada onde a regra não sejam selecções musicais de terceira categoria ou bandas de que ninguém se lembra o nome e que normalmente animam muito mais quando poisam os instrumentos e desligam os microfones. “Ah mas isso são tiques de estrangeiro”, dirá alguém. Quando alguém diz isso proponho-lhe que visite Pequim, Xangai, até Zhuhai ou Shenzhen e evito, propositadamente, referir Hong Kong. Com a pressão do quotidiano em alta na cidade que um dia foi “laid back”, cada vez mais as pessoas precisam de desopilar sem ter necessariamente de acabar em locais de mau álcool e mau gosto ou a pagar preços árabes por um copo de qualquer coisa. Além disso, quando se pretende desenvolver as indústrias criativas tem de se entender que uma cidade com criativos precisa de zonas de lazer públicas com opções a preços normais. Grande parte da criatividade surge na interacção, na discussão, nos copos, à noite. Recentemente, grupo de Lawrence Ho também nos trouxe o Pachá que, quer se queira quer não, é um clube de primeira e finalmente alguma coisa mudou. É claro que o prestígio depois nota-se nas bebidas (pela hora da morte e não particularmente bem servidas) mas finalmente temos um clube de nível mundial em Macau. O problema é sair caro pois os residentes não estão aqui de férias, a menos que comecem a dar-nos desconto, tipo jet foil. Não era má ideia, hein pessoal do Pachá?… Por lá, nestas últimas semanas, tivemos de uma assentada Paul Oakenfold e Afro Jack, entre outros que por ali passaram antes, mas também devo realçar o apoio que o Pachá tem dado aos DJs locais com presenças assíduas “à mesa”, essencial para manter viva a chama da terra. Fui ver os dois. Oakenfold foi uma sombra de si próprio. Começou bem mas depois levou-nos para aqueles corredores estreitos e tortuosos da EDM (Electronic Dance Music, uma designação para mim abusiva pois, para os menos avisados, pode parecer que se refere a toda a música de dança electrónica, mas não é, acreditem, é apenas um subgénero de má catadura) e acabou com meia dúzia de festeiros na pista, mas foi importante perceber que o cota está vendido e acabado nestas lides e mais vale dedicar-se à produção que tão bem fez ao longo dos anos para ver se deixa de precisar da EDM para pagar a renda. Afro Jack foi outra coisa completamente diferente. Com uma actuação muito bem produzida a tirar máximo proveito das características da sala, leia-se ecrã da cabine e o fabuloso sopro de ar fresco que jorrava inclemente sobe a pista acompanhado de fumo inodoro (excelente) sempre que a música chegava a um clímax. Sala cheia, jardim cheio, energia no máximo. Já estivemos mais longe de ombrear com outras cidades de relevo mas ainda não chega. É sempre bom ter-se uns Rolls Royce à disposição como o Pachá, mas a massa crítica não será criada se não existir uma zona de entretenimento, pública, gerida por pessoas com vistas largas, urbanas e não por tasqueiros de bairro sem a mínima sensibilidade. Porque o que está a faltar nesta equação é a cidade. Não nos podemos reduzir ao que os hotéis fazem ou deixam de fazer. A cidade tem de estar presente com as suas próprias opções de entretenimento popular. Provavelmente já não será a zona do Lago Nam Van, talvez nem as Casas da Taipa porque quando os governos se imiscuem demasiado nestes processos dá invariavelmente barraca ou saem locais inócuos que funcionam apenas para a fotografia e aparatos oficiais. No entanto, para já mantenho-me positivo e expectante. Todavia, se os meus piores temores se confirmarem, é preciso pensar onde vamos ter a nossa zona de bares, música e esplanadas, pois a vida criativa e salutar não é possível sem uma vida nocturna diversificada e de qualidade. Um lugar de referência, livre de espartilhos, que atraia os locais e os de fora, que junte comunidades e nos permita refrescar não só as goelas mas principalmente as ideias. Música da Semana “Modern Love” David Bowie (1984) “(…) I know when to go out And when to stay in Get things done [spoken] I catch a paperboy But things don’t really change I’m standing in the wind But I never wave bye-bye But I try I try There’s no sign of life It’s just the power to charm I’m lying in the rain But I never wave bye-bye But I try I try (…)”
Fernando Eloy VozesA cura dos espinafres [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]alhou esta semana falar com diversas pessoas, de diversas origens, que já tinham estado em Macau anos atrás, recentemente regressados. Uns viventes, outros passantes. A tónica da conversa foi sempre a mesma: “isto já não é o que era”, diziam, no sentido que a velha cidade mediterrânica está a perder-se e com ela, os prazeres do desfrute simples que ela oferecia. Consequentemente, vêem Macau tornar-se num local menos aprazível para se viver, estar, ou visitar. Por mais campanhas turísticas com filmes faiscantes, por mais eventos no calendário, por mais que se atirem para a lida os chavões “da cultura este-oeste” do “património mundial” e todos os outros, mais ou menos vazios a que já nos habituámos, nada substitui o boca-a-boca, as sensações que daqui se levam para casa e para os blogues. Naturalmente, não estou a presumir ter feito um qualquer estudo de opinião mas, como todos sabemos, esta sensação de ver uma cidade engolida por automóveis, construções de categoria duvidosa e luminárias não é apenas privilégio de alguns nem sequer um segredo, ou uma afirmação passível de ser contrariada. Mas chega de bater no cego, pois o que vale a pena é reflectir se ainda haverá forma de atalhar caminho. Tendo em conta que o turismo, pese embora as quebras do jogo e as tentativas de diversificação da economia, continuará a assumir a parte de leão do PIB, considerando a tentativa de diversificação dos mercados emissores em curso, e até o discurso do património e da cultura, parece-me crucial uma meditação profunda sobre as formas de “salvar” a cidade da descaracterização em curso que ameaçam torná-la num lugar vulgar, desagradável, no parente pobre da região pois, para além dos hotéis recheados de entretenimento e dos eventos mais ou menos populares, pouco mais tem para oferecer a quem pretenda uma experiência diferente, o usufruto simples de uma vista, de uma conversa com amigos numa esplanada, de um passeio a pé ou de bicicleta, de algo que lhe permita desligar do local de onde veio e, quiçá, relaxar. Macau antes tinha tudo isso mas agora não. Pode voltar a ter? Talvez, mas precisa-se de visão e coragem política. Existe? Não sei, mas espero que sim. Há dias neste jornal, a Directora dos Serviços de Turismo, Helena de Senna Fernandes, confessava “dar-lhe jeito” para o seu puzzle de mercado o fecho de ruas e até o ressurgimento de esplanadas que chamava, curiosamente, de “produto”, o que me deixa um pouco inquieto por denotar uma visão demasiado mercantilista da coisa, apesar de saber muito bem que a sua função é vender Macau. Passando por cima disso, interessa é perceber que a dita responsável foi logo avisando para as dificuldades que esses processos podem encerrar percebendo-se claramente que a potencial reacção negativa da população (ou de parte dela) a mudanças radicais pode entravar qualquer tentativa mais ambiciosa. Todavia, convém não esquecer que uma das principais funções de qualquer Governo é precisamente a capacidade de imaginar, de propor e, acima de tudo, de fazer o que é melhor para os seus governados independentemente destes terem, ou não, a visão de longo prazo do que é melhor para eles. Independentemente de poderes mais ou menos ocultos e retrógrados. Dando de barato que neste macaíno caso, o problema é mesmo a população em geral, talvez até possamos comparar o que é necessário fazer à postura “come os vegetais porque faz-te bem” que um pai avisado terá obrigatoriamente de assumir berre a criança o que berrar à vista de um espinafre. Mesmo os poderosos imobilistas, se lhes for explicado que mudar também será bom para eles no longo prazo, talvez engulam os espinafres. Neste caso, o resultado da dieta é melhor ar, mais espaço para as pessoas, a criação de uma oferta turística de facto de excelência, o aumento dos espaços de lazer e, no limite, a promoção da saúde pública (física e mental) que advirá de tudo isso, seguramente muito mais marcante do que qualquer proibição tabagista. Naturalmente, a Taipa não conta nesta equação, ou pouco, se incluirmos a vila. O foco tem de ser a península de Macau que precisa de se transfigurar e, naturalmente, Coloane que precisa de não se transfigurar mais. Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento. Os transportes públicos têm de mudar, substituídos por opções eléctricas sem emissões e sem ruído, as pessoas têm de ser motivadas para andar a pé, ruas têm de ser fechadas. Não apenas São Lázaro, como Helena de Senna Fernandes revelou existirem planos para, mas também a Almeida Ribeiro e toda a zona envolvente da Rua da Felicidade e Av. 5 de Outubro, a Rua do Campo, o parque de estacionamento junto ao Clube Militar deve devolver ao Jardim de São Francisco o espaço que lhe roubou, até a Avenida da República precisa de ver o espaço pedonal radicalmente aumentado, cortando estacionamento e fechando uma das vias de trânsito, até ambas, e colocar, imagine-se, uma linha de eléctrico ao seu correr como acontece, por exemplo, no Porto, da Ribeira à Foz. Macau ainda pode mudar. Se temos conseguido aguentar barulhos, mudanças radicais de estilo de vida, inflação, poluição, porque não conseguiremos aguentar andar mais a pé, ou de bicicleta, se soubermos que estamos a transformar Macau numa cidade única e realmente atraente, aproveitando o “Mediterrâneo” que ainda lhe resta? Aquilo que de facto a distingue de tudo o que existe à volta. Evidentemente, este texto é apenas um enunciado de um leigo, mas não deixa de ser uma provocação para um debate que urge acontecer, um repto para os nossos governantes. Tragam especialistas do mundo fora, de paisagistas a arquitectos, de sociólogos a engenheiros. Criem um grupo diversificado e multidisciplinar para pensar a Macau do séc. XX. Só isso, já seria um acontecimento. Colocar Macau no mapa também passa por arrojar polindo-lhe o brilho dos cobres que lhe restam antes que seja tarde demais. Destaque “Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento” Música da Semana “Don’t Let Me Down & Down” – David Bowie (1993) “I know there’s something in the wind That crazy balance of my mind What kind of fool are you and I? Scared to death and tell me why I’m sick and tired of telling you Don’t let me down and down and down Don’t let me down and down and down”