A cura dos espinafres

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]alhou esta semana falar com diversas pessoas, de diversas origens, que já tinham estado em Macau anos atrás, recentemente regressados. Uns viventes, outros passantes. A tónica da conversa foi sempre a mesma: “isto já não é o que era”, diziam, no sentido que a velha cidade mediterrânica está a perder-se e com ela, os prazeres do desfrute simples que ela oferecia. Consequentemente, vêem Macau tornar-se num local menos aprazível para se viver, estar, ou visitar.
Por mais campanhas turísticas com filmes faiscantes, por mais eventos no calendário, por mais que se atirem para a lida os chavões “da cultura este-oeste” do “património mundial” e todos os outros, mais ou menos vazios a que já nos habituámos, nada substitui o boca-a-boca, as sensações que daqui se levam para casa e para os blogues. Naturalmente, não estou a presumir ter feito um qualquer estudo de opinião mas, como todos sabemos, esta sensação de ver uma cidade engolida por automóveis, construções de categoria duvidosa e luminárias não é apenas privilégio de alguns nem sequer um segredo, ou uma afirmação passível de ser contrariada.
Mas chega de bater no cego, pois o que vale a pena é reflectir se ainda haverá forma de atalhar caminho.
Tendo em conta que o turismo, pese embora as quebras do jogo e as tentativas de diversificação da economia, continuará a assumir a parte de leão do PIB, considerando a tentativa de diversificação dos mercados emissores em curso, e até o discurso do património e da cultura, parece-me crucial uma meditação profunda sobre as formas de “salvar” a cidade da descaracterização em curso que ameaçam torná-la num lugar vulgar, desagradável, no parente pobre da região pois, para além dos hotéis recheados de entretenimento e dos eventos mais ou menos populares, pouco mais tem para oferecer a quem pretenda uma experiência diferente, o usufruto simples de uma vista, de uma conversa com amigos numa esplanada, de um passeio a pé ou de bicicleta, de algo que lhe permita desligar do local de onde veio e, quiçá, relaxar. Macau antes tinha tudo isso mas agora não. Pode voltar a ter? Talvez, mas precisa-se de visão e coragem política. Existe? Não sei, mas espero que sim.
Há dias neste jornal, a Directora dos Serviços de Turismo, Helena de Senna Fernandes, confessava “dar-lhe jeito” para o seu puzzle de mercado o fecho de ruas e até o ressurgimento de esplanadas que chamava, curiosamente, de “produto”, o que me deixa um pouco inquieto por denotar uma visão demasiado mercantilista da coisa, apesar de saber muito bem que a sua função é vender Macau. Passando por cima disso, interessa é perceber que a dita responsável foi logo avisando para as dificuldades que esses processos podem encerrar percebendo-se claramente que a potencial reacção negativa da população (ou de parte dela) a mudanças radicais pode entravar qualquer tentativa mais ambiciosa.
Todavia, convém não esquecer que uma das principais funções de qualquer Governo é precisamente a capacidade de imaginar, de propor e, acima de tudo, de fazer o que é melhor para os seus governados independentemente destes terem, ou não, a visão de longo prazo do que é melhor para eles. Independentemente de poderes mais ou menos ocultos e retrógrados.
Dando de barato que neste macaíno caso, o problema é mesmo a população em geral, talvez até possamos comparar o que é necessário fazer à postura “come os vegetais porque faz-te bem” que um pai avisado terá obrigatoriamente de assumir berre a criança o que berrar à vista de um espinafre. Mesmo os poderosos imobilistas, se lhes for explicado que mudar também será bom para eles no longo prazo, talvez engulam os espinafres.
Neste caso, o resultado da dieta é melhor ar, mais espaço para as pessoas, a criação de uma oferta turística de facto de excelência, o aumento dos espaços de lazer e, no limite, a promoção da saúde pública (física e mental) que advirá de tudo isso, seguramente muito mais marcante do que qualquer proibição tabagista.
Naturalmente, a Taipa não conta nesta equação, ou pouco, se incluirmos a vila. O foco tem de ser a península de Macau que precisa de se transfigurar e, naturalmente, Coloane que precisa de não se transfigurar mais.
Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento. Os transportes públicos têm de mudar, substituídos por opções eléctricas sem emissões e sem ruído, as pessoas têm de ser motivadas para andar a pé, ruas têm de ser fechadas. Não apenas São Lázaro, como Helena de Senna Fernandes revelou existirem planos para, mas também a Almeida Ribeiro e toda a zona envolvente da Rua da Felicidade e Av. 5 de Outubro, a Rua do Campo, o parque de estacionamento junto ao Clube Militar deve devolver ao Jardim de São Francisco o espaço que lhe roubou, até a Avenida da República precisa de ver o espaço pedonal radicalmente aumentado, cortando estacionamento e fechando uma das vias de trânsito, até ambas, e colocar, imagine-se, uma linha de eléctrico ao seu correr como acontece, por exemplo, no Porto, da Ribeira à Foz.
Macau ainda pode mudar. Se temos conseguido aguentar barulhos, mudanças radicais de estilo de vida, inflação, poluição, porque não conseguiremos aguentar andar mais a pé, ou de bicicleta, se soubermos que estamos a transformar Macau numa cidade única e realmente atraente, aproveitando o “Mediterrâneo” que ainda lhe resta? Aquilo que de facto a distingue de tudo o que existe à volta.
Evidentemente, este texto é apenas um enunciado de um leigo, mas não deixa de ser uma provocação para um debate que urge acontecer, um repto para os nossos governantes. Tragam especialistas do mundo fora, de paisagistas a arquitectos, de sociólogos a engenheiros. Criem um grupo diversificado e multidisciplinar para pensar a Macau do séc. XX. Só isso, já seria um acontecimento. Colocar Macau no mapa também passa por arrojar polindo-lhe o brilho dos cobres que lhe restam antes que seja tarde demais.

Destaque
“Os espinafres são ruas fechadas ao trânsito, o aumento dos espaços pedonais, a criação de ciclovias e o corte drástico nos espaços de estacionamento”

Música da Semana

“Don’t Let Me Down & Down” – David Bowie (1993)

“I know there’s something in the wind
That crazy balance of my mind
What kind of fool are you and I?
Scared to death and tell me why
I’m sick and tired of telling you
Don’t let me down and down and down
Don’t let me down and down and down”

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