Carlos Coutinho VozesO imperador e a escritora. Sem olhos em Gaza. No seu leito de morte, o imperador Adriano ainda escreveu ou ditou um poema, talvez o último da sua vida irrepetível: Animula vagula blandula Hospes comesque corporis Qua nunc abibis in loca Palidula, rigida, nudula Nec, ut solles, dabis locos. Ou seja, em português de lei: Pequena alma terna flutuante Companheira e hóspede do corpo Agora se prepara para descer a lugares Pálidos, árduos, nus Onde terás mais dos devaneios costumeiros. (Tradução da historiadora Letícia de Andrade) Andei anos até saber quem era o autor destes versos e nem a Marguerite Yourcenar, aquela extraordinária escritora belga que foi viver para os EUA e pertence ao grupo dos meus imprescindíveis teve a caridade de dizer. Mas em “De Olhos Abertos” disse a Matthieu Galey: “Quando se ama a vida, eu diria sob todas as suas formas, tanto as do passado como as do presente – pela simples razão de que o passado é maioritário, como diz não sei que poeta grego, sendo mais longo e mais vasto do que o presente, sobretudo este estreito presente de cada um de nós –, é normal que se leia muito. Por exemplo, durante anos li a literatura grega, às vezes de uma forma mais intensa, durante longos períodos, ou ao contrário, aqui e ali, viajando com este ou aquele filósofo ou poeta grego na bolsa. No final, reconstruí a cultura de Adriano: sabia mais ou menos o que Adriano lia, a que é que se referia, a maneira como olhava certas coisas através dos filósofos que lera. Não disse a mim própria: ‘Preciso de escrever sobre Adriano e informar-me acerca do que ele pensava.’ Julgo que nunca se chega lá desta maneira. Acho que temos de nos impregnar de um assunto por completo até que ele saia da terra, como uma planta cuidadosamente regada.»” Depois da morte do pai, em 1929, Yourcenar decidiu gastar a herança numa vida de boémia, passada entre Paris, Lausana, Atenas, as ilhas gregas, Constantinopla, o Cáucaso e Bruxelas. Teve relações amorosas com algumas mulheres e apaixonou-se por um homossexual, André Fraigneau, escritor e editor da Grasset. Em 1939, o seu conhecimento da Alemanha nazi e a falta de recursos levaram-na a partir para os EUA, juntando-se a Grace Frick, sua companheira havia dois anos, e com quem viveu até à morte desta, em 1979. A partir de 1950, instalou-se com Grace na ilha de Montes Desertos, designando a sua casa em madeira por “Petite Plaisance”. O que lhe permitiu deixar a sua atividade docente foi o êxito internacional de “Memórias de Adriano” (1951). Em meados dos anos 60 visitou Lisboa, Sintra, Évora e a Madeira. Antes de falecer, a 17 de dezembro de 1987, ainda escreveu para sempre “A Obra ao Negro”. Está enterrada no Cemitério de Brookside, em Somerville, no Maine, EUA. Já de Adriano eu apenas sabia que teve um amante chamado Antino e, quando este se afogou no Nilo, em 130 d.n.e., ficou por se saber se ele caiu nas águas do rio, se cometeu suicídio ou se foi empurrado, mas, depois da sua morte, Adriano imediatamente o declarou um deus e fundou em sua memória a cidade de Antinópolis, no Egito, no local onde o cadáver do seu namorado foi encontrado. Adriano nasceu provavelmente em Itálica, na Hispânia. Foi um imperador viajante, visitando quase todas as províncias e passando muito tempo longe de Roma. Era um amante da cultura grega e procurou fazer de Atenas a capital cultural do Império, ordenando a construção de vários templos sumptuosos na cidade. O seu casamento com Vibia Sabina, sobrinha-neta do Imperador Trajano, foi infeliz e não produziu filhos. Em 138 adotou Antonino Pio e nomeou-o seu sucessor. Faleceu no mesmo ano em Baías. Foi divinizado por Antonino, a despeito da oposição do Senado, que sempre o considerou distante e autoritário. Adriano tem suscitado opniões divrgentes entre os críticos, descrito como enigmático e contraditório, capaz tanto de atos de grande generosidade como de extrema crueldade, dominado por uma curiosidade insaciável, pelo orgulho e pela ambição. O renascimento do interesse contemporâneo pela sua figura deve muito ao romance “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar , publicado em 1951. A sua primeira viagem foi em 121, visitando a Gália, a Germânia e a Britânia, uma província agitada por rebeliões, onde iniciou a construção da célebre Muralha de Adriano, destinada a conter as invasões e migrações de bárbaros. Em Roma supervisionou a reconstrução do Panteão e terminou a sua ‘villa’ de repouso, em Tivoli. Caçou leões no deserto da Líbia e morreu em 10 de julho de 138, em Roma, depois de uma longa doença. O seu corpo foi depositado num mausoléu que veio a ser transformado no atual Castelo de Santo Ângelo, em Roma. * MUITO antes do “bom samaritano” que Lucas não nomeou, de Anne Frank, de Aristides de Sousa Mendes, de Ho Chi Min e de Mohammad Arafath, já Aristóteles perguntava: “Haverá flagelo mais terrível do que a injustiça de armas na mão?” De facto, antes e depois do jogo de futebol entre o Ajax de Amesterdão e o Maccabi Tel Aviv, ocorreu variado e abundante vandalismo que a nossa televisão não mostrou de um certo lado, o dos israelitas, e empolou do outro, o dos árabes ou originários de países muçulmanos. Vimos israelitas a entoar canções que enaltecem o comportamento das IDF (Forças de Defesa sionistas) na Palestina ocupada e arrancando as bandeiras palestinianas que iam encontrado na sua marcha por Amsterdão. Muitos de nós viram também “mouros” corajosos a retaliar de forma por vezes igualmente violenta. A Comissão Europeia condenou estes atos e ignorou a selvageria hebraica. Para Von der Leyen, a islamofobia pode ser um modo natural de respirar no mundo em que vivemos. Surpreendentemente, até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no Norte da a Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força”. E mesmo que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completarem a separação das comunidades do Norte das do Centro da cidade de Gaza!”. Completando o horror da situação, um residente local contava no mesmo dia a “The Washington Times”: “Antes comíamos erva, agora nem isso temos. A cidade é agora um cemitério.” E isto quando até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que “o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no norte da Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força” e que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completar a separação das comunidades do norte das do centro da cidade de Gaza!. (…) Parece que foi atingido por um desastre natural.” E Lousie Waterige, responsável da UNRWA, o organismo da ONU que Israel nunca respeitou, disse neste fim-de-semana “não há maneira de dizer onde a destruição começa ou acaba. Não interessa de que direção se entra na cidade de Gaza. Casas, hospitais, escolas, clínicas, mesquitas, apartamentos, restaurantes, está tudo totalmente arrasado”. A cidade e tudo à volta parecem, de facto, “um cemitério em que as vítimas são, sobretudo, mulheres e crianças. Segundo um relatório publicado na sexta-feira pelo supracitado Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, estas “representam quase 70% dos mortos na Faixa Gaza”, uma análise feita com base em 8 119 mortes identificadas durante os primeiros seis meses de guerra. Ainda segundo este mesmo relatório, também citado por “The Washington Post”, cerca de 80% dos mortos estavam em casas ou outro tipo de habitação, dados estes que “dão peso às alegações de que Israel tem atacado indiscriminadamente”.
Carlos Coutinho VozesExtermínio em curso Desde o dia 7 de outubro de 2023, as tropas israelitas matam por dia, em média, 130 pessoas, na Faixa de Gaza e nos territórios ocupados da Palestina, sendo já mais de 40 005 o número de mortos contabilizados, além de 107 mil feridos. Isto segundo os dados divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza, que parecem muito restritivos, já que, na contabilidade publicada pela revista britânica “Lancet”, o número de mortes diretas e indiretas será da ordem dos 186 mil. Convém lembrar que o número de mortes na Faixa de Gaza se aproximava das 20 mil, em Dezembro último, segundo a ativista Sally Habed, cidadã israelita de origem palestiniana que, em declarações em Haifa, Israel, disse não querer “falar de números, de estatísticas”, porque recusava que as mortes, ou seja, que a “nossa humanidade apareça como “tópico para debate”, mas reconheceu que os palestinianos mortos nesta guerra já serão mais de 40 mil. Já a organização Airwars ligada à Goldsmiths (Universidade de Londres, que se dedica a documentar mortes de civis em guerras por drones dos EUA e do Reino Unido, identificou 3 000 palestinianos nos primeiros 17 dias de outubro de 2023, segundo declarou ao “The Guardian” e ao “The New Iork Times” acrescentou que a maioria dos nomes dos mortos coincide com a lista do Ministério da Saúde de Gaza. Por outro lado, na carta com o título “Couting the dead in Gaza: dificult but essential, assinada por Rasha Khatib, do Advocate Aurora Research Institute, em Milwaukee (EUA) e do Instituto de Saúde Pública e Comunitária da Universidade de Bizeit, Ramallah, MartinMckee, do Departamento de Saúde Pública da London School of Hygiene and Tropical Medicine, de Londres, e Salim Yusuf, do Instituto de Investigação de Saúde Populacional da McMmaster Univertcity, e Hamilton Health Sciences, em Ontário, Canadá, faz-se uma apreciação da tragédia que considera recuados os números expressos no diversos relatos, se se tiver em conta as vítimas dos bombardeamentos e as causadas pela deslocação forçada e pela falta de salubridade que podem causar doenças, bem como pela falta de tratamentos e por outras condições mórbidas. Acontece que Israel troça da “propaganda palestiniana”, mas os seus serviços secretos acham fiáveis os números do Ministério da Saúde de Gaza, segundo um artigo saído na “Vice” que cita o jornalista israelita Yuval Abraam, da revista “+972”. Para que conste. PRISÕES convertidas em campos de tortura são cada vez mais em Israel e nos colonatos sionistas da Palestina ocupada, onde já há mais de 2 milhões de deslocados errantes, 8 mil desaparecidos e, segundo as Nações Unidas, 163 trabalhadores humanitários foram mortos na Faixa de Gaza pelas forças armadas de Israel. Uma organização não governamental (ONG) israelita acusa as autoridades penitenciárias de Telavive de reduzirem a quantidade de alimentos aos presos palestinianos até ao ponto de levarem a fome a um extremo fatal. O Centro de Informação Israelita para os Direitos Humanos no Territórios Ocupados (B’Tslem) revelou que testemunhos de palestinianos libertados confirmam que mais de uma dezena de instalações prisionais foram convertidas numa rede de campos de tortura. Como parte da campanha, “foram reduzidas as rações de alimentos até ao ponto de provocar inanição”, alertou. A B’Tsalem informa também que o ministro da Segurança Nacional, Itamar Bem Gvir, está à frente da operação, indicando que este extremista de vezo nazi aproveitou os acontecimentos de 7 de outubro do ano passado para implementar o seu plano já muito avançado de esmagar “os direitos básicos e a dignidade de todos os prisioneiros palestinianos” A referida ONG publicou um relatório de 90 páginas que contém testemunhos de 55 ex-presos palestinianos logo após a respetiva libertação. Entre os vexames cometidos, o relatório inclui agressões sexuais, humilhações, fome deliberada, más condições sanitárias, tortura do sono (estátua), impedimento da prática de culto religioso e falta de atenção médica. De facto, ao longo dos anos, desde 1948, Israel encarcerou centenas de milhares de palestinianos nas suas masmorras que sempre foram utilizadas como ferramentas de opressão e do controlo da população árabe, aplicando raivosamente, à sua maneira, muito do que aprenderam na sua desgraçada passagem pelos campos de Hitler.
Carlos Coutinho VozesÁfrica nossa LIXEIRAS de materiais electrónicos e metais venenosos têm aumentado exponencialmente pelo mundo fora, sobretudo na África e nos países do Indo-Pacífico. Segundo o relatório publicado na semana passada pela ONU, o ritmo médio anual de crescimento dos resíduos electrónicos foi de 30 por cento entre 2010 e 2022, mostrando que os antigos impérios coloniais, além de continuarem a explorar as suas possessões perdidas para a independência formal, donde importam as suas matérias primas a muito baixo preço, também as utilizam como depósito final para os televisores, computadores, telemóveis e todo o tipo de máquinas de funcionamento electrónico que deixaram de servir. Os africanos que em 2023 geraram, em média, por pessoa, 0,44kg de resíduos electrónicos recebem parte substancial dos 3,25kg que cada indivíduo produz no mundo desenvolvido. Informa o relatório da UNCTAD que “os países em desenvolvimento suportam a maior parte dos custos ambientais da digitalização, ao mesmo tempo que colhem menos benefícios. Exportam matérias-primas de baixo valor acrescentado e importam dispositivos de elevado valor acrescentado, a par de um aumento dos resíduos digitais. (…) Constituídos por poluentes orgânicos e metais pesados como o mercúrio e o chumbo, os resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos são classificados como perigosos pela Convenção de Basileia.” Em janeiro de 2023, a polícia espanhola desmantelou uma rede que exportou ilegalmente mais de cinco mil toneladas de resíduos electrónicos da Europa para a África Ocidental, através das Canárias. A Comissão Europeia calcula que, dos dois mil milhões de toneladas de resíduos produzidos pelos países da União Europeia (95 milhões considerados perigosos), entre 15% e 30% são exportados ilegalmente por organizações criminosas para países da África, América Latina e Sudeste Asiático. Da exportação legal, que é muito mais volumosa, nada diz. Compreende-se… * Quando a escravatura foi abolida, houve países que se endividaram para pagar indemnizações, mas apenas aos proprietários de escravos. O que veio a seguir foi o trabalho forçado, que teve práticas diferenciadas em todo o ex-império português e culminou com o massacre da Baixa do Cassange, no sul de Angola, no dia 4 de janeiro de 1961. Aí, cansados das condições de trabalho impostas pela companhia Cotonang, com apoio do governo da colónia portuguesa, milhares de trabalhadores angolanos dos campos de algodão lançaram-se num levantamento popular. A revolta foi brutalmente reprimida, tendo sido assassinados milhares de trabalhadores. Ainda hoje não se sabe quantos. A Cotonang e as autoridades coloniais perpetraram então o que ficou para a História como o Massacre da Baixa de Cassange. Tratava-se de uma companhia luso-belga que obteve uma concessão para plantio de algodão nessa região e forçava os camponeses a cultivarem as fibras, sem receberem salário ou a vendê-las por um preço irrisório- Os agricultores não tinham salário ou eram forçados a vender a sua produção por um valor muito abaixo do preço no mercado mundial. A obrigação de plantar algodão impedia as famílias de cultivarem seus próprios alimentos. O poeta Arlindo Barbeitos, que lutou pela independência no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), descreve assim esta situação: “As pessoas eram obrigadas a plantar algodão e era absolutamente indiferente que houvesse colheita de milho, massambala (sorgo), batata-doce, mandioca, feijão, aquilo que as pessoas comiam. Não importava, a colheita do algodão tinha que ser garantida. E o algodão só podia ser vendido a uma determinada empresa que tinha o monopólio, as balanças eram falseadas e o preço era baixíssimo. Se não produzissem o algodão devido, eram espancados. Isso são coisas que eu vi.” Na revolta, os agricultores destruíram plantações, pontes e casas. A colônia reagiu enviando aviões da Força Aérea Portuguesa, que lançaram bombas sobre as pessoas. O número de mortes varia de mil até dez mil agricultores. * Fiquei com a pedra no sapato, ao ver o que substituiu a tão antiga, renovada e readaptada realidade da escravatura e, hoje, com o pé a doer cada vez mais, não descansei enquanto não fui mergulhar sem preconceitos óbvios nem certezas ingenuamente adquiridas nesse mar podre onde Gilgameche, Homero, Vigílio, Santo Agostinho, Averróis, Petrarca, Loyola, Camões, António Vieira, Fernando Pessoa e Hermano Saraiva, ministro de um ditador beirão e contador de histórias na TV, fizeram proliferar e repartir as águas por baleias, bacalhaus, sardinhas e medusas e alforrecas, com golfinhos de circo a entreter as academias e os patriotas da historiografia. Quase me engasguei ao tentar saborear uma palavra que em absoluto desconhecia, chibalo, e até comecei por admitir que podia ser uma gralha arreliadora, já que tem uma fonética muito próxima um étimo moderno caçado aos espanhóis e muito em uso entre os jovens, chavalo. Provavelmente, 99,999 por cento dos humanos existentes nos dois hemisférios terrestres sabem tanto como eu sabia dos chibalos, aqueles infelizes que foram postos a substituir os escravos e os escravizados nas minas e nas plantações dos impérios coloniais. Trata-se, afinal, segundo a Wikipédia, de “um conceito de servidão por dívida ou trabalho forçado no Ultramar Português (as províncias ultramarinas portuguesas na Ásia África), mais notadamente em Angola e em Portugal (ao contrário dos outros impérios europeus do século 20, as possessões portuguesas deixaram de ser consideradas legalmente colónias pela revisão constitucional de 1951, passando a ser designadas como províncias ultramarinas, parcelas de pleno direito do Estado Português, como forma de atenuar a pressão internacional para a descolonização). Em 1869, os portugueses aboliram oficialmente a escravatura, substituindo o escravo pelo chibalo foi usado para construir a infraestrutura das províncias africanas, pois apenas colonos portugueses e assimilados recebiam educação e estavam isentos deste trabalho forçado.” Apesar de um pouco arrevesada, esta tradução wikipédica para o português, dá jeito utilizá-la, assim como a citação que faz do professor Motsomi Marobela: “No coração do colapso da agricultura na África Austral estava um desagradável sistema tributário colonial – o imposto sobre cabanas. Foi a introdução desse imposto que criou o que Marx chamou ’exército de reserva de trabalho’ e, que foi barbaramente explorado pelo capital de mineração. Foi esse trabalho forçado que trabalhou plantações e minas coloniais. Assim, de acordo com Seddon (2002), ‘o termo chibalo ou xibalo foi usado comumente na África Central e do Sul a partir do final do século XIX para descrever uma variedade de formas opressivas de trabalho introduzidas pelos europeus.’ Em Botsuana, por exemplo, diz-se que os homens que partiram para as minas sul-africanas foram para o makgoeng (para os brancos) por um período de seis meses como trabalhadores migrantes. Parte de seus pequenos ganhos foi para pagar o imposto. Mas as consequências de tal migração de mão de obra coagida foram profundamente prejudiciais para as economias nativas, que eram principalmente agrárias.” Com Salazar, o chibalo foi usado em Moçambique para cultivar algodão, sendo “a Companhia do Niassa um exemplo do tipo de empresas que poderiam florescer desde que tivessem acesso a uma força de trabalho não remunerada. O investimento estrangeiro nas províncias ultramarinas portuguesas foi banido para que Portugal se beneficiasse diretamente. Todos os homens de idade adequada tiveram que trabalhar nos campos de algodão, que, por isso, se tornaram inúteis para a produção de alimentos, levando à fome e desnutrição.” O chibalo substituiu a escravidão que apenas tinha sido abolida “em 1901, uma mera década e meia antes do final dos cinco séculos que abrangem o Império Português. No entanto, enfrentou forte oposição desde o final do século XIX de colonialistas e empresários portugueses, nomeadamente Theodorico de Sacadura Botte”, nas então províncias de Marracuene e Magude.
Carlos Coutinho VozesAssange e Costa MEU caro Julian Assange, não terás nunca o meu perdão e é com o coração partido que te digo isto. Tal como os biltres que te prenderam e te mantiveram tantos anos no limbo da vida, cumprindo as normas que os regem, também tu, neste acordo, te declaraste culpado, em vez de satisfeito, por teres exercido o teu múnus com coragem, dignidade e consciência dos riscos a correr. Deixa-me dizer-te que a Humanidade não deve precisar de mártires para subsistir e evoluir, mas não pode prescindir de os ter e de os honrar, sempre que as condições concretas os imponham, como é o teu caso. Os biltres que agora chegaram a acordo contigo parecem arrependidos de serem o que são. São biltres que se arrependem de ter feito o que o seu ofício determina que façam, covardes biltres exercendo o arrependimento como salvaguarda da dignidade que lhes falta. E tu, ao chegares a acordo como eles, absolve-los, isto é, condescendes deploravelmente em abdicar da razão que tens – o teu dever de ofício foi cumprido, ao investigares o que suspeitavas existir, e, perante as certezas confirmadas, publicaste as tuas descobertas. Também sou jornalista, também estive preso até ao dia 26 de Abril de 1974 e também não me perdoo a mim o não ter compreendido e, logo, perdoado o que idênticos biltres me fizeram, precisando agora da tua atitude para perceber que estive do lado oposto ao dos meus biltres, a fazer o que me parecia necessário, cumprindo o meu dever cívico e profissional, assim como eles julgavam necessário o seu ofício e aceitavam as respectivas regras, cumprindo-as contra mim, sem alguma vez me haverem perdoado, até quando, julgo eu, pude vingar-me e não o fiz. Não abdico de pensar que, ao oferecerem-te o acordo para a libertação, te devias ter declarado de consciência tranquila e disposto a pagar o que fosse preciso para não te igualares aos biltres em atitude de concessão. É claro que compreendo o teu cansaço na desgraça e o sofrimento dos teus que queres aliviar, mas nunca te aplaudirei por assumires culpas que não tinhas, embora também eu sofra só de saber isto e perceber que o mundo esteja como está, só porque foi, ao longo dos séculos, o terreno de combate entre biltres necessários e necessários heróis. * CONTEMPLA o rosto afável da serpente, enquanto escutas o verso mais longo de Walt Witman e zune aos teus ouvidos o vento podre das planuras estéreis. Repara no brilho húmido da sua língua bífida como a luz dos faróis noturnos, trémula e apontada aos teus lábios entreabertos de espanto. Também ondulam, à volta dos seus olhos, amáveis sombras agradecidas aos odores que emanam dos teus sonhos. As pupilas diamantinas da imensa cobra que te mede com minuciosa avaliação, para saber como acolher-te na frialdade do seu sangue ofídico, são gotas de sol incansável, eterno, comovido. É sempre assim o amanhecer da ira. Porque as guerras não param e são incontáveis as pessoas ao alcance da morte. * LAVEI os olhos com vinho branco, na noite passada, porque me lembrei de uma certa manhã em Genebra, quando tive de apanhar o comboio, a caminho de Paris, e porque, de facto, sem ter de me levantar do cadeirão, diante do mísero final da partida Portugal-Geórgia, era esse o líquido inglório de que restavam algumas gotas no fundo do copo que estava mesmo ao alcance do meu braço. Nesses recordados tempos remotos de Genebra, quando ainda eram poucos os portugueses que iam para a Suíça trabalhar, a taxista, estranhando a minha pronúncia e mirando o meu bigode de circunstância, perguntou-me se eu era georgiano e a verdade é que eu não me ofendi, como certamente aconteceria se essa pergunta me fosse colocada agora ou há umas horas atrás. Note-se que esta manhã, no meu café do costume, o ambiente era lutuoso. Só vi semblantes carrancudos e havia ácido intrínseco em todas as conversas. Nos copos apenas cerveja, até ao momento em que um fulano meu desconhecido foi ao balcão e pediu um copo de tinto. Este súbito desalinhado, após avaliar o panorama à sua volta, ficou de pé, a beber a sua exceção. Sozinho, porque não havia mesas vagas. Se fosse vinho branco, o mais certo era eu convidá-lo para a minha mesa, mas preferi não correr o risco de atiçar todos os olhos contra mim. Como alguém diria, tinto sim, mas só na hora certa. * ANTÓNIO Costa foi escolhido pelos altos poderes formais de Bruxelas para suceder, na presidência do Conselho Europeu, ao sacristão neoliberal francófono Charles Michel que antes fora o primeiro-ministro da Bélgica. A escolha de qualquer destes dois atletas estava coroada de vitória ainda antes do tiro da partida, porque ambos dispunham do principal trunfo para as jogadas em perspetiva – o de pertencerem, pela sua irrelevância e pelo consequente desprezo dos vários valetes do baralho, ao grupo dos impotentes excelentíssimos, os utilitários de circunstância que nem sequer tentariam levar interesses próprios para as decisões do Conselho. Com as últimas girândolas do S. João ainda a estralejar no céu lusitano, é de prever que o foguetório do orgulho nacional e do homérico triunfo da nossa pequenez possam ficar por mais uma semana ou duas a dar o tom aos arraiais noturnos e diurnos dos areópagos políticos do centrão e à agenda inebriante dos meios de comunicação social. Gloria in excelsis, Costa, et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te. Benedicimus te. Adoramus te. Glorificamus te. Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam, Costa.
Carlos Coutinho VozesO quase feriado e o regresso de Franco A Assembleia da República vai passar a assinalar anualmente o dia 25 de novembro de 1975, à semelhança do que acontece com o 25 de Abril. Para tanto bastaram os votos do PSD, do Chega e da Iniciativa Liberal. Desta vez, o PS ainda votou contra, acompanhado pelo Bloco, PCP e Livre, assim se impedindo a criação de um novo feriado nacional proposta pelo Chega. Já o mesmo não aconteceu na deliberação seguidamente acontecida, quando os deputados alegadamente socialistas votaram em sintonia com toda a direita e extrema-direita a inclusão pelo Parlamento, por proposta da IL, a inclusão dos 50 anos do 25 de novembro no programa do cinquentenário do 25 de Abril. No caso do feriado nacional, só o Chega e o CDS-PP votaram favoravelmente. A IL absteve-se, porque também há patrões intermitentemente liberais e cordiais, mas nem todos selvagens, segundo o incontrolável Darwin. E, como é da sabedoria das vítimas ainda vivas, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Até Almada Negreiros, depois de ter sido o ilustrador do mantra salazarista do mantra “Deus, Pátria, Família e Autoridade”, já tinha avisado: “O povo completo será aquele que terá reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses: só vos faltam as qualidades.” O que levou Jorge Sousa Braga a confessar, entre dois acessos de tosse: “Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do império, mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado.” Aliás, Fernando Pessoa já tinha lamentado: “Pertenço a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho. A morte é certa.“ * ENCANTOS e desencantos há com fartura no Alto Douro – e julgo que no resto do País, também –, mas uma alcatifa imensa com a sua extremidade mais distante a virar à esquerda, só na Régua. Assisto nesta varanda sobre a Avenida João Franco – que alguns, talvez por vergonha, só designam por “a Marginal” – e começo a acreditar que qualquer encanto pode ter um desencanto por baixo. Não dá para perceber que, do outro lado do Douro, há uma cidade medieval chamada Lamego, com muitas lendas mouriscas e afonsinas, um presunto excelente e um espumante de altíssima qualidade, e que aí começa o que há-de ser a ex-lupina e atual raposeira Serra de Montemuro. Isto, se formos para sul, porque, se embicarmos para a direita, a caminho das cerejas maravilhosas de Rezende, atravessando a Serra das Meadas, que é onde o meu pai me dizia começarem as trovoadas, até podemos chegar a uma ponte para Baião, já na margem direita do rio, e dar um saltinho a Tormes, que é o pseudónimo de uma quinta em Santa Cruz do Douro, onde o Eça pôs o seu alter-ego Zé Jacinto a perorar sobre “A Cidade e as Serras”. Se repararmos bem, vamos notar que há um sorriso indecifrável, talvez escarninho, talvez sulfatado ou enxofrado, no verdete da estátua do grande escritor dos “Montes Pintados”, João de Araújo Correia. E vamos ver, até, que esse esgar sai enviesado de umas sobrancelhas e de um queixo altaneiro que pertence a uma coisa rígida, sem chapéu nem boina, alguém mais alto que um homem alto, um primata vestido, alçado entre dezenas de automóveis. Um fulano imperturbável que, talvez quiçá por também ser médico, não se sentiu contaminado pelo sentimentalismo de outro grande escritor duriense, o dr. Adolfo Correia da Rocha, que montou consultório em Coimbra e nunca perdoou a ousadia de um pequeno ariano com aquele bigode preto que surgia como farfalhudo prolongamento da penca ou bitácula, um raivoso e diminuto javali austríaco sem arganel mas com remota ascendência semítica, um aguarelista frustrado que se declarou alemão bávaro, era igualmente Adolfo e já começava a ser conhecido como carniceiro, por toda a Europa, incluindo os gabinetes do beirão dr. Salazar, do flaviense marechal Carmona, dos torcionários da PIDE, dos mastins da Legião Portuguesa e da Brigada Naval, de banqueiros como Burnay, Champalimaud, Pinto de Magalhães e Espírito Santo, bem como de industriais plenipotenciários do jaez de um Alfredo da Silva, de um Américo Amorim ou de um Tomé Feteira. E porquê ir escabichar tudo isto? Porque Portugal levou com o franquismo antes de cair na vizinha Espanha aquela sanguinária aberração que permitiu ao general Sanjurgo a exemplar declaração: “Quando me falam de cultura, puxo logo da pistola.” Não foi tão longe o nosso Franco e, quiçá por isso, passa despercebida a nomenclatura indigna da principal avenida da Régua, a Avenida João Franco, com o Douro à ilharga. E com esta varanda de 4.º andar na casa de uns amigos que me ver daqui a principal artéria da cidade com o Museu do Douro, os cais dos grandes barcos do turismo para ricos e remediados, a larga e arrepiada superfície aquática propícia à reflexão das mais esquisitas cores de um crepúsculo aveludado que só a luz ingrata dos candeeiros consegue varrer, enfim o resultado da paleta de um artista cósmico que não poupa nas tonalidades e nos rasgões cromáticos que fazem do céu um mar invertido que arde até ao mais fundo de si mesmo. Imagine-se agora o desconforto em que se fica no encontro com a figura de um João que nem sempre foi franco e nasceu no dia 14 de fevereiro de 1855 em Alcaide, concelho do Fundão, onde recebeu o nome de João Ferreira Pinto Franco Castelo-Branco, foi deputado por Guimarães do Partido Regenerador, uma espécie de Livre daquele tempo, zangou-se com o primeiro-ministro Hintze-Ribeiro, o líder, e fundou o Partido Regenerador Liberal, que, com a displicência do rei D. Carlos, transformou o país numa ditadura que durou de 1906 a 1910, e deixou muitas cabeças partidas, muitas prisões e deportações para territórios coloniais. Foi da sua lavra a célebre lei de 13 de fevereiro de 1896, que previa a deportação de “agitadores e anarquistas” para África e Timor, logo baptizada como “lei celerada” pelos republicanos. Face à greve académica de 1907 na Universidade de Coimbra e à crescente agitação social, o apoio parlamentar dos progressistas acaba e, ao contrário do que que prometera, que era “governar à inglesa”, João Franco passou a “governar à turca”. A ditadura sem disfarces (2 de Maio de 1907). Vejo a extrema-direita a avançar por toda a Europa, com os franquismos reciclados, vejo lá em baixo um cartaz com o sorriso franquista liberal do candidato Bugalho, vejo (ou imagino, desta distância) o cenho carregado do autor de “Contos Bárbaros”, “Terra Ingrata”, “Três Meses de Inferno” e “Enfermaria do Idioma”, custando-me ainda hoje a perceber como foi possível que João de Araújo Correia, apesar da sua muito avançada idade, tenha, com um suspiro de contentamento, admitido que com Sá Carneiro, vinha aí, finalmente, o “tempo da fraternidade”. Conheci pessoalmente o escritor e entrei algumas vezes, com enorme reverência, na sua apertadinha tipografia, na Régua. Foi a mim que ele disse isso, acrescentando paternalmente que eu estava “preso de fantasias”, e que compreendia a juventude que parece querer tudo de uma vez”, porque também ele tinha sido jovem e não era diferente”.
Carlos Coutinho VozesAi, o bolo António Costa, lento e oriental, segundo o diagnóstico de Marcelo Rebelo de Sousa, disse e deixou perceber muitas vezes que tinha política e pessoalmente a sua preferência pelo Campo de Tiro de Alcochete para futuro Aeroporto Internacional de Lisboa. E deixou de falar nisso depois da ida do Marcelo para Belém, acatando a “solução Montijo” sem dar um pio sobre a sua cambalhota. Nem quando pôs todos os autarcas do PS, tanto a norte e como a sul do Tejo, especialmente os do distrito de Setúbal, a exigirem que a condenada Base Aérea n.º 6, no Montijo, passasse a ser a pista de aterragem para o grande negócio. Não sei qual nem se alguma vez chegarei a saber. O que sei é que o Aeroporto Humberto Delgado vai um dia chamar-se Aeroporto Luís de Camões e que, um fulano de temperamento esbracejante, oriundo da terra das enguias, já teve de percorrer o caminho das pedras, até ser deputado e ministro. Chama-se Pedro Nuno Santos e, alegadamente, sempre teve Alcochete como o cenário introcável para acolhimento “patriótico” dos nossos caças e bombardeiros que, por qualquer outra manigância, foram inesperadamente apontados ao Montijo, pela única rota possível, bombardeando com quatro extensos roncos por minuto, de dia e de noite, os telhados das mais de 400 mil pessoas que ainda moram entre Almada e a base montijense já em regime de emagrecimento. Só que o PS local, regional e nacional, com o lento Costa a pilotar a aeronave, nem sequer precisou de mudar de rio para espetar o pau da bandeira num espigão de asfalto, uma dúzia de milhas náuticas mais a norte, e o rápido Pedro Nuno ensaiou a sua própria cambalhota circense, assumindo o Montijo como indiscutível e transformando-se no seu mais estrénuo defensor. E eis senão quando o mesmo Pedro, qual bailarina aveirense, decide que fora traído pelo Costa e, apanhando-o no estrangeiro, vem a público dizer em tom cesariano que o Aeroporto Internacional de Lisboa será em Alcochete e que, antes ainda, estaria em glorioso funcionamento uma ultramoderna e mais que ultrafuncional ponte rodoferroviária, entre o Barreiro, na margem esquerda, e Chelas, na margem direita do Mar da Palha, que mais adequadamente deveria ficar com o título eterno de Mar da Glória. Aparentemente, o Costa só sentiu a facada nas costas quando voltou Portugal e o estouvado Pedro teve de se demitir para ser agora o sucessor do ex-primeiro-ministro e, enquanto líder do PS e principal opositor do agora senhor de S. Bento Luís Montenegro, comprometendo-se a com ele cooperar em tudo que seja importante para o povo luso, que era o que o Costa já vinha fazendo, à sorrelfa e com cálculos próprios, assegurando assim um apoio sem preço para a Presidência do Conselho da Europa, trono justo e sacrossanto, lentamente conquistado, depois de uma caminhada que também Marcelo já enalteceu, não obstantes as cumplicidades múltiplas com os morticínios de Gaza e do Médio Oriente. Acontece ainda que o tal Aeroporto Luís de Camões só terá de existir de facto daqui a vinte anos e, como o tempo e os negócios não perdoam, nessa altura outra realidade se pode impor: ou o negócio já é outro, ou já são outros a negociar e o aeroporto pode precisar de novos estudos, novo dono e, obviamente, de novas razões para ser construído nem que seja sobre estacas, ao largo de Tróia ou por cima de Olivença, com escritórios no Pulo do Lobo e uma delegação em Peniche. Os que ganharam e os que perderam com tudo isto são, como de costume, os mesmos de sempre. Ganhar, todavia, só podem os donos disto tudo, seja nas terras do Baixo Ribatejo, seja no reordenamento urbanístico da Área Metropolitana de Lisboa e nas outras, na ANA, na Vinci e na TAP, nas movimentações da alta, média e baixa finança, com o Banco de Portugal em boas mãos, assim como a restante banca, e, naturalmente, na política habitacional e na reconversão da ordem urbanística de Lisboa, de Oeiras, de Cascais e do Algarve e associados, bem como nas contas das pontas-de-lança em Bruxelas o nos ‘offshores’ londrinos e outros, porque “isto anda tudo ligado”, como dizia um falecido poeta e patrício meu, e Portugal tem a alta responsabilidade de ser um dos pilares mais bem plantados em três continentes e um oceano, com vistas à escavação presente e futura na mina turística dos donos disto tudo. O que me entristece é que, mesmo se Portugal recuperasse a independência nacional, já não ia a tempo de construir uma ordem interna justa, o fim das castas e a prosperidade generalizada, ou seja, a possibilidade de o bolo ser, finalmente, bem repartido.
Carlos Coutinho VozesUm amigo ADMITO que haja e até que sempre tenha havido indivíduos de muito alta qualidade intrínseca. No caso do ouro, isso mede-se em quilates. Na espécie humana, admito que tal coisa não é nem alguma vez será mensurável, dada a natureza da matéria em questão e o seu relacionamento com o imaterial, que nunca vimos mas sabemos existir por termos constante evidência dos seus efeitos na matéria, na antimatéria, no biológico e no mineralógico, no atómico e no quântico. Substância que nem quando é imaterial – desculpem a aparente contradição nos termos – deixa de possuir um poder muito grande, como acontece com a fé e com as superstições. Também admito que o fenómeno da erosão na espécie humana e em todas as outras, bem como em cada um dos seus indivíduos, tenha começado logo no instante seguinte ao do biguebangue – ai, como eu gosto e escrever assim! – e que, dada a reconhecida expansão física de toda a matéria conhecida, tenha sido, numericamente, cada vez maior e perceptível, enquanto que, ao invés, a sua proporcionalidade talvez seja cada vez menor, se bem que imperceptível ou inabordável. Vem isto a propósito de me parecerem poucas, ou contabilisticamente muito poucas, as pessoas de alto valor humano e mais raras ainda as de altíssimo valor humano, ou ético – dúzias, quiçá – em todo este hemisfério –, apesar de eu ter algumas na minha arrecadação e de elas nem sequer imaginarem tal privilégio meu. Julgo ter um amigo assim, pelo menos esse, embora ele nem sonhe que o avalio assim, e que ele não me pague com a mesma moeda. Sei tratar-se de uma pessoa algo diferente de mim nos gostos, no percurso aquisitivo de transitórias certezas e na aprendizagem de noções e revisão de conceitos e preconceitos, na relativização do rigor matemático, na relação afetiva com canídeos, felídeos, equídeos, artiodáctilos e perissodátilos, ungulados e alados, enfim, pessoa que em várias questões tem entendimentos, valorações, metodologias de análise, capacidade de exclusão, etc. Esse velho amigo e partícipe em vários atos dos quais não estava ausente o risco de vida e conseguia dormir angelicalmente a poucos metros de uma tonelada de trotil, e não se esquecia de levar uma rosa vermelha a alguém que era cúmplice da nós ambos, um fragilizado amigo que teve se integrar numa horda que sempre nos hostilizou de todas as formas possíveis na ordem social, um diminuído amigo que, por imperativos de sobrevivência, até foi secretariar uma pequena e muito competente empresa de palhaços e que nem sonha que penso nele neste momento é mesmo um amigo que não sei catalogar e que me parece ser cada vez mais indispensável à minha sanidade psíquica, ética e cívica. Poucos terão amigos de tão alta qualidade. Eu tenho. Pelo menos este. * ALGURES, no planeta, uma agência de notícias foi encerrada por decisão governamental, por acaso aquela que era a mais visitada nos ecrãs da de todos os países da região. Esse apagamento brutal chegou-me aos ouvidos na minha esplanada do costume, onde eu convivia descontraidamente com duas famílias amigas e tinha, na mesa à minha direita, se enfronhavam asserções e corrigendas dois fulanos meus desconhecidos, talvez quezilentos, talvez necessitados apenas de esgrimir argumentos sobre matérias em que discordavam e em que depois se percebia estarem, afinal, de acordo. O tema em disputa era a liberdade de imprensa, “a liberdade de informar e de ser informado”, nos termos usados pelo mais velho, mas não chegou a produzir efeito durável e a conversa descambou para as banalidades do campeonato de futebol, que já tinha “vencedor garantido” e gerava maledicências de todo o tipo. Enveredaram os doutos “treinadores de bancada” por uma competição inesperada – qual deles conhece mais aforismos? – e caíram, por fim, no terreno tantas vezes obsceno do anedotário futebolístico, em que impera o portista, terroir em que um presidente com 42 anos de poder autocrático ainda “não queria largar o osso”, como dizia o mais novo dos meus vizinhos de esplanada que, em casos como este, é consistentemente uma esplatudo. Não tive ensejo de perguntar qual era a agência de imprensa acabada de encerrar e só em casa pude tirar a limpo que se tratava da multinacional Al Jazeera que viu subitamente os seus escritórios encerrados à força em Telavive, Jerusalém e Gaza, sendo aí cortado o pio aos repórteres e, a mais de uma dúzia, também as cabeças. Mas só em casa consegui informa-me destes pormenores insignificantes, se o direito a atribuir-lhes significado estiver nas mãos de Biden, Ursula von der Leyen, Zelenskyi, Nethaniahu, Scholz, Macron ou qualquer outro santo europeu, mesmo os mais bem penteados, como o André Ventura, o coronel-general Isidro Morais Pereira e algumas generalas de aviário que vestem a farda virtual para irem arengar às tropas do púlpito da CNN, RTP, SIC, TVI e CM. A esses, se tal estivesse a meu alcance, eu condenava-os a reclinarem-se num sofá da NATO, algemados de pés e mãos, alimentados a cabidela humana, com temperos hitlerianos ou tão-só salazarentos, mas confeccionada por Ana Gomes. Desenterrados de valas comuns por funcionários da ONU, estes palestinianos mortos pelos militares israelitas ainda estavam vivos quando foram enterrados com os pulsos atados por cordas e mesmo algemas. Apresentam vários sinais de torturas e estão a ser trasladados para sepulturas normais e campas rasas, onde é proibido deixar flores, com a ajuda da sua prestimosa governanta Zita Seabra, sentença sem direito a recurso para tribunais superiores e com ternura e escombros num inferno palestiniano como o que encerra este apontamento.
Carlos Coutinho VozesCemitérios pacificados e cadáveres adiados UMA boa espreguiçadela, após o despertar e logo seguida do duche matinal, pode render um dia descontraído, se não começarmos por esbarrar em notícias como esta: a de que, impudicamente, os partidos neonazis europeus – por exemplo, a mais lepenizada extrema-direita francesa e a revanchista peste papista polaca – lideram as sondagens, tal como acontece na Áustria, na Alemanha e na Suécia, crescendo também alegremente em Portugal. Estas forças de má catadura vão conquistar entre 183 e 197 dos 720 lugares na próxima legislatura do Parlamento Europeu (PE), 25% do total de representações nacionais, ultrapassando os 25% necessários para escolha dos titulares dos cargos de topo nas instituições comunitárias e para a aprovação de legislação comunitária. É isto que se pode ver embasbacadamente num estudo do European Centre on Foreign Relations que, no dizer especialista nestes assuntos Kevin Cunningham, participante no referido estudo, já se antevê: “A composição do PE vai deslocar-se acentuadamente para a direita nas eleições de Junho, o que poderá ter implicações significativas para a capacidade da Comissão Europeia.” A horda neonazi, sob o título bem-sonante Identidade e Democracia deverá ocupar a terceira maior bancada do PE. Dá para ir à janela e gritar “aqui d’el rei!” O que deu a um professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa chamado Nuno Severiano Teixeira, que foi ministro da Administração Interna, com Guterres, e ministro e da Defesa Nacional, com Sócrates, e é agora director do Instituto Português de Relações Internacionais, foi fingir que Netanyahu é um pacato israelita sem pecados demonstráveis e que “na Rússia, Putin concorre, em Março, para o seu quinto mandato e não enfrentará qualquer oposição real. Todos os opositores possíveis estão presos, exilados ou envenenados. A vitória é certa e a coroação imperial também.” Não espantaria Nuno Severiano, pelos vistos, que alguns milhares de cadáveres fossem encontrados entre os destroços da Faixa de Gaza, nas valas comuns do Vietname, nos calabouços de Guantánamo ou entre as ruínas iraquianas. Mesmo assim, não me entra no bestunto a ideia de que as rapinas neocoloniais de alguns membros da NATO, bem como a perda da soberania nacional pelos 27 sócios da União Europeia, chegue para justificar o comportamento dos nazificados judeus de Israel e que estes, sob a compreensão ou mesmo a protecção de certas democracias liberais, possam impune e livremente proceder ao genocídio que prosseguem na Faixa de Gaza e na Palestina Ocupada, indo ao ponto de destruir cemitérios e deixar cadáveres a descoberto entre os destroços. Segundo a televisão norte-americana, a americaníssima CNN bem nossa conhecida, pelo menos 16 cemitérios da Faixa de Gaza foram completamente arrasados pelo Exército israelita, o que, aliás, classifica como “uma prática sistemática”. Por outro lado, já em Dezembro, “The New York Times” reportava imagens de satélite que mostram imagens de 6 cemitérios da Faixa de Gaza muito danificados em consequência de uma acção militar sionista. Cadáveres adiados FARIA hoje 470 anos um infeliz rei misógino e sedento de glória que se chamava Sebastião e, ao contrário do que Fernando Pessoa escreveu 400 anos mais tarde, foi um cadáver adiado por pouco mais de uma década, mas nunca procriou. No torvelinho da lendas e mitos que entram na nossa história, teremos ficado com a memória embotada, a pontos de nem repararmos no belo erro do poeta da “Mensagem”? Confirme-se, então: Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? Sebastião I de Portugal e Algarves, que encabeçou uma cruzada para Alcácer Quibir no dia 4 de agosto de 1578 e foi tema de lendas e narrativas, apelidado como “o Desejado”, “o Encoberto” e “o Adormecido”, ascendeu ao trono muito jovem, com apenas 3 anos, após a morte de seu avô, o Rei D. João III, sendo por isso, instaurada em Lisboa uma regência durante a sua menoridade, primeiro pela sua avó, a Rainha Catarina da Áustria e, depois, pelo seu tio-avô o cardeal D. Henrique, o filho de rei que foi o primeiro grande chefe da Inquisição em Portugal. Muitas foram as hipóteses geradas pela morte do tresloucado Sebastiãozinho, considerando algumas que o efeminado rei cruzado não morreu durante a batalha de Alcácer Quibir, visto haver sido raptado, pouco depois do desembarque e levado para essa cidade mourisca e providencial. O que é certo é que ele começou a governar com apenas 17 anos e logo se lançou na sua aventura africana, assim fornecendo a diversos tipos de portugueses a inebriante e salvífica crença de que haveria de regressar à pátria numa manhã de nevoeiro como a que tenho neste momento à beira-Tejo. Mas lendas, crenças e mistificações patrioteiras é o que mais abunda nos programas escolares de antigamente e mesmo na cabeça de muitos professores em exercício. A própria cidade de Lisboa ainda é geralmente apregoada como uma conquista do fogoso príncipe vimaranense filho da Tareja condessa portucalense, depois de uma conversa tida algures com um Cristo enorme rodeado de anjos, num dos vários Ouriques que havia a norte e a sul do Tejo. É pena que assim continuemos, já que algo idêntico se passa com a velhíssima cidade de Lisboa, sendo certo que até nas universidades e academias é geral a ignorância sobre a criação fenícia da Alis Ubo (Enseada Amena), topónimo que calcorreou um milenar percurso fonético até estanciar com a designação atual. Só que teve de passar pelo nome romano de Felicitas Julia Olisipo, pelo árabe Al-ashbuna e pelo Lyxbone, como aparece na carta intitulada “De repugnatione lyxbonensi”, assinada pelo erudito cruzado britânico Osberno, um eclesiástico amante de lanças e espadas, e se encontra no acervo na Universidade de Cambridge, tal como outra, mais sucinta, subscrita por Arnulfo, também cruzado no cerco, conquista e saque de Lisboa. Em 1147, quando os predadores, a caminho de novas rapinas, seguiram para oriente, entregaram a Afonso Henriques, o catolicíssimo rei minhoto, filho de uma autoproclamada rainha e de um conde francês, uma urbe formidavelmente evoluída com cerca de 20 mil residentes. Muitos lhe chamavam então qualquer coisa parecida com Lisboa, designação que frequentes vezes aparece nos documentos na forma abreviada de Lx. Felizmente, é já vasta e muito saudável a historiografia actual em que me foi possível escabichar a matéria deste meu descontraído apontamento.
Carlos Coutinho VozesChumbo neles! OPERAÇÃO Chumbo Fundido (em hebraico בצע עופרת יצוקה, transcrito como Mivtza Oferet Yetsuká, “chumbo fundido”, também chamada, incorretamente, “Operação Chumbo Grosso”) é uma grande ofensiva militar das tropas de Israel na Faixa de Gaza. Arrancou no dia 27 de dezembro de 2008, sexto dia da festa judaica de Hanucá, e nunca mais cessou. Todavia, na maior parte do mundo árabe e na generalidade dos países sem vassalagem aos EUA, à EU e à NATO, o morticínio ficou conhecido como o Massacre de Gaza (em árabe مجزرة غزة). O ataque israelita ocorreu dias após o fim de um cessar-fogo que vigorou por seis meses, conforme havia sido acordado entre o governo de Israel e representantes do Hamas, maioritário no Conselho Legislativo da Palestina com jurisdição sobre a Faixa de Gaza. Como Telavive não suspendeu o bloqueio à Faixa de Gaza e não cessou os ataques ao território da Palestina, militantes do Hamas anunciaram o encerramento oficial da trégua e passaram a lançar foguetes caseiros, tipo Qassam, em direção ao Sul do território israelita. Dias depois do anúncio do fim do cessar-fogo, o próprio grupo palestiniano ofereceu uma proposta para renovar a trégua, condicionando-a ao fim do bloqueio israelita ao território palestino. Todavia, já em 27 de dezembro de 2008, iniciou-se a mais intensa operação militar contra um território palestiniano desde a Guerra dos Seis Dias (1967). Oficialmente, o objectivo da operação era interromper os ataques de foguetes do Hamas contra o território israelita que, sintomaticamente, não tinha fronteiras legais – ia do Rio Jordão até ao mar. No primeiro dia da ofensiva militar, a Força Aérea israelita lançou, em quatro minutos, mais de cem bombas contra bases, escritórios e campos de treino do Hamas nas principais cidades da Faixa de Gaza, entre as quais Gaza, Beit Hanoun, Khan Younis e Rafah. Também foram alvos de ataques as infraestruturas civis, incluindo casas e escolas. Israel diz que destes locais são disparados muitos dos foguetes palestinianos ou servem para esconder munições. Logo, não seriam alvos civis. A marinha sionista também reforçou o bloqueio e bombardeou alvos na Faixa de Gaza, o que resultou num incidente com o barco de uma organização pacifista, que trazia ajuda médica para a população de Gaza. Militantes do Hamas, em resposta, intensificaram os ataques de foguetes e morteiros em direcção ao Sul de Israel, atingindo cidades como Bersebá e Asdode. Na noite de 3 de janeiro de 2009, começou a ofensiva por terra, com tropas e tanques israelitas a entrarem no território da Palestina, a que eles chamam Samaria. Em 17 de janeiro, o primeiro-ministro israelita Ehud Omert anunciou uma trégua unilateral, a vigorar a partir da madrugada do dis seguinte. O Hamas anunciou um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza. O representante do grupo, Ayman Taha, afirmou que a trégua valeria por uma semana, para que os israelitas pudessem retirar as suas tropas da região. O Exército de Israel declarou que retiraria suas tropas da Faixa de Gaza até à posse de Barack Obama na Presidência dos EUA, no dia 20 de janeiro. No dia seguinte, Israel completou a retirada das suas tropas da Faixa de Gaza, no dia 1 de junho uma comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, chefiada pelo juiz sul-africano, Richard Goldstone, foi à Faixa de Gaza, para investigar possíveis violações dos direitos humanos, durante a ofensiva israelita. Em 15 de setembro de 2009, a comissão apresentou seu relatório, concluindo que Israel “cometeu crimes de guerra” e “contra a Humanidade”, considerando que “o plano visava, pelo menos em parte, a população de Gaza como um todo”. O mesmo relatório reconheceu que o lançamento de foguetes pelos insurgentes palestinianos também configura crimes de guerra. Segundo a ONG israelita de direitos humanos B’Tselem, a “Operação Chumbo Fundido” resultou na morte de 1387 palestinianos, mais de metade deles, civis, sendo que 773 deles não participaram nos combates, e incluindo 320 jovens ou crianças (252 com menos de 16 anos) e 111 mulheres. Do lado de Israel, houve 13 mortos, sendo três deles por “fogo amigo”. Em junho de 2008, representantes do Hamas e do governo israelita chegaram a um acordo de cessar-fogo na região, mediado pelo Egipto, com duração de seis meses, e que expirou no dia 19 de dezembro. O grupo palestiniano decidiu não o renovar, visto entender que Israel não havia cumprido o seu compromisso de suspender o bloqueio imposto à Faixa de Gaza. Mesmo depois de 2005, quando realizou a remoção dos 8 mil colonos dos assentamentos judaicos da Faixa de Gaza, Telavive continuou a controlar o espaço aéreo da Faixa, o seu mar territorial e todas as passagens de fronteira. Era o início do grande bloqueio israelita (com apoio egípcio) ao território palestiniano, que tem impedido a entrada de alimentos, combustíveis, água e medicamentos, além de dificultar enormemente o comércio em Gaza e Palestina, bem como o acesso dos palestinianos aos seus locais de trabalho. Da mesma forma, o boicote económico do Ocidente americanizado continua a estrangular a economia local. Em 4 de novembro de 2008, Israel violou a trégua com o Hamas, ao realizar, na Faixa de Gaza, uma incursão contra militantes do grupo palestiniano, matando seis milicianos e deixando outros três feridos. No dia seguinte, os militantes do Hamas responderam, lançando mais de 20 foguetes contra o sul de Israel. No dia 14 de Novembro, as forças israelitas realizaram novos bombardeamentos massivos. Com o final do cessar-fogo, segundo o jornal “El País”, que não esconde a sua simpatia por Israel, mais de 200 foguetes caseiros do tipo Qassam foram lançados por militantes palestinianos contra o Sul do território israelita, sem causar mortes, o que serviu de pretexto aos líderes sionistas “para darem luz verde ao início da ofensiva”, segundo o jornal israelita “Haaretz”. No dia 23 de dezembro, o Hamas havia dito estar aberto à trégua, desde que o bloqueio à Faixa de Gaza fosse suspenso. Em 26 de Dezembro, o governo de Telavive autorizou temporariamente a entrada de suprimentos em Gaza, que vive uma grave crise humanitária, pois Israel vinha bloqueando o acesso ao território palestiniano havia já 18 meses. Agora, até a manhã de Natal pôde ter como prenda para os amigos e cúmplices de Israel o bombardeamento mais mortífero dos últimos meses em qualquer parte do mundo.
Carlos Coutinho VozesGuerra em família Muitas vezes, quando a noite é longa e o sono se atrasa na chegada, acontece-me navegar em águas indestrinçáveis, como se intimar fosse o mesmo que tornar íntimo e muito menos exequível do que intimidar. Tal como programa, vizinho muito próximo de pogrom, pode significar a maneira de ser de uma pessoa que é favorável à relva, não importando que grama seja uma erva infestante e prejudicial à agricultura. É talvez por isso que há os que gramam e os que não gramam isto ou aquilo, assim como os brasileiros falam do gramado que, para nós, é simplesmente o relvado de um estádio ou de um solo que sofre o uso intensivo de certas atividades desvitalizadoras das ervinhas rasteiras. Diz-se que pogrom é uma especial concretização de um programa que consiste no exercício de uma perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso tolerada ou aprovada pelas autoridades locais, como aconteceu em Berlim, antes, durante e depois da Noite de Cristal, e como está a acontecer no Donbass russofalante, na Faixa de Gaza e em toda a Cisjordânia ocupada. Pensando bem, o pogrom, com ou sem um programa bem definido, foi um ataque violento e massivo, a destruição de um ambiente coletivo – casas, negócios e centros religiosos – que varreu o Sul da Rússia czarista e ortodoxa, vitimizando cerca de 2 milhões de judeus, entre 1880 e 1920, mas, historicamente, tem sido o termo mais usado para denominar atos massivos de grande violência, espontânea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias étnicas da Europa. Na Rússia saída da Revolução de Outubro, como é bem sabido, o Exército Branco, acompanhado por diversas tropas europeias, alegando lutar contra o “complô judaico-bolchevique”, flagelou muitas cidades e aldeias, usando crueldades inenarráveis. Na pequena cidade de Fastov, po exemplo, o Exército Voluntário de Denikine, assassinou mais de 1500 judeus – principalmente idosos, mulheres e crianças –, estimando-se em cerca de 150 mil o saldo dos morticínios perpetrados em pogroms na Ucrânia e por todo o Sul da Rússia. Tudo isto me fez rever conceitos como semitismo e sionismo, descobrindo que o termo semita tem como principal origem um conjunto linguístico composto por uma família de vários povos, entre os quais se destacam os árabes e os hebraicos que compartilham as mesmas raízes culturais. O étimo semita aparece no Génesis 5:32 como a linhagem de descendentes de Sem, filho de Noé. Modernamente, as línguas semíticas estão incluídas na família camito-semítica. Há que reconhecer que, historicamente, esses povos tiveram grande influência cultural em metade do mundo, pois as três grandes religiões monoteístas – o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – possuem raízes semitas. Dadas as diversas migrações, não podemos falar de um grupo étnico homogéneo, mas sabe-se que são muitas as línguas compõem a família semítica. Por exemplo: o hebraico acadiano, o ugarítico, o fenício, o hebraico, o aramaico, o árabe, o etíope, o gala, o afar-saho, o amorita, o caldeu, o maltês e a tigrínia. Após a morte de Moisés, sob a direção de Deus, Josué, como é sabido, levou os judeus para as terras que são hoje Israel. Quem não sabe fica a saber e só acredita quem quiser. Depois, os hebreus sofreram diversas invasões e a religião tornou-se no principal elo entre eles. No século I d.n.e., os judeus acabaram mesmo por ser dispersos pelos romanos, dando origem à milenar diáspora judaica. Os judeus europeus subdividiram-se também, formando dois subgrupos, o dos sefarditas (Sefarad é o nome da Espanha em hebraico) e o dos asquenazes. Estes foram em grandes hordas para terras da Europa central e para países eslavos da Europa oriental. Sabemos que os sefarditas migraram para a Península Ibérica e que, seguidamente, sofreram outra dispersão, em 1492, estabelecendo-se então em países do Norte da África e da Europa Central, bem como na Itália. O século XX ficou tragicamente marcado por diversos acontecimentos envolvendo os dois povos semitas remanescentes: os árabes e os hebreus. Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o desmoronamento do Império Otomano, as regiões da Síria e do Líbano ficaram sob o domínio da França. As outras áreas, inclusive a Palestina, passaram para as mãos da Grã-Bretanha. A ocupação pela França e pela Grã-Bretanha provocou fortes reações entre os árabes. Foi nesse contexto que surgiu no Egipto a Irmandade Muçulmana, berço do fundamentalismo islâmico. Ora, a Síria só ganhou de facto o seu reconhecimento em 17 de abril de 1946 e o Líbano em 22 de novembro de 1943. À Inglaterra, nessa barafunda, coube a Palestina (incluídos os territórios da atual Jordânia e de Israel) e Mesopotâmia (o Iraque de hoje). Os respetivos governantes, na sua maioria reis, obtiveram assim áreas extremamente ricas em petróleo e ganharam meios económicos para se desenvolverem. No mesmo período, já em 1948, começou a fase de criação do estado de Israel em território palestiniano, gerando a divergência entre árabes e judeus. Desde então, aquela região é abalada por diversas guerras e se mantém em clima de permanente conflito. Actualmente, as principais regiões de cultura árabe compreendem todos os países norte-africanos, desde a África Saariana até o Médio Oriente, além de regiões isoladas no Irão. Outras vertentes semitas são a dos amáricos e a dos oromos, localizadas na Etiópia e na Eritreia, bem como as dos arameus e assírios, no Líbano e no Norte do Iraque. Quanto a sionismo e antissionismo não há muito a dilucidar aqui, dado serem realidades insanas decorrentes de todas as voltas e reviravoltas do processo histórico em que se inserem. Como expressão canónica, o sionismo, em hebraico ציונות (Tsiyonut) só se mostrou ao mundo com a categoria de um movimento político no final do século XIX. Na Europa central e oriental, foi logo associado, pela maioria dos seus líderes, à colonização da Palestina que consideravam “ocupada por estranhos”. O termo sionismo é derivado da palavra Sion (em hebraico, ציון) que significa elevado. Originalmente, Sião ou Sion eram as colinas que circundam a “Terra Santa”, onde existiu uma fortaleza com o mesmo nome. Durante o reinado de David, Sião tornou-se num abusivo “Reino de Jerusalém” ou “Terra de Israel”. O uso do termo sionismo surgiu durante um debate público realizado em Viena em 1892 na noite de 23 de janeiro de 1892, cunhado por Nathan Birnbaum, um escritor judeu local que fundara em 1885 a revista “Selbstemanzipation!” (Autodeterminação!). No entanto, considera-se que o pai oficial do sionismo foi o jornalista e escritor austríaco Theodor Herzl no seu livro “Der Judenstaat“ (O Estado Judeu). Acontece que até um historiador israelita, Benny Morris, isento de infidelidades factuais, considera em “The Arab-Israeli War”, livro publicado logo em 1948: “É evidente que os acontecimentos de 1948 na Palestina foram uma limpeza étnica executada pelos judeus nas zonas árabes. (…) Os métodos terroristas, de inspiração nazi e fascista, levados a cabo pelo Irgun (“Organização Militar Nacional na Terra de Israel”, liderado por Menachem Begin, futuro primeiro-ministro de Israel), foram denunciados no mesmo ano por diversos intelectuais judeus, entre os quais Albert Einstein e Hannah Arendt, numa carta aberta publicada em “The New York Times”. Já no século XX, quando Begin organizou o governo, tornou-se num infame genocida, prática em que Netanyauhu se tem vindo também a especializar.
Carlos Coutinho VozesFilosofando e o 25N ARISTÓTELES ‘et alia’, filosofando à grande e à grega, definiram como autarcia a situação em que o Estado controla todos os recursos necessários à sua subsistência de forma autónoma, afirmando a sua independência contra qualquer interferência estrangeira, ou, quando muito, como uma sociedade que se basta a si mesma, pelo que nunca aceitariam a designação de um presidente de câmara ou de freguesia como autarca, mesmo que fosse português ou membro da CPLP. Autarquismo, por isso, seria a eliminação do governo geral em favor do autogoverno, assim como patriarca seria o homem mais importante de uma família ou aquele que chefia uma família. Isto, entre os judeus e mesmo entre povos mais antigos. Já matriarca é um termo que apenas foi adoptado eruditamente no século XIX no âmbito dos estudos antropológicos, para indicar uma figura da mulher e mãe que assume uma posição dominante num determinado grupo social. Nas sociedades modernas, todavia, as matriarcas são geralmente mulheres já avós que, num modelo familiar alargado, têm um papel preponderante e, por vezes, despótico na sua relação com os outros membros da família. Na Biologia, nomeadamente no caso dos cavalos, a matriarca é uma égua, normalmente a de mais idade, que usufrui de uma posição superior à das outras éguas, em geral todas aparentadas, e respectivos potros. No caso dos felinos, especialmente os gatos, matriarca é a fêmea que ostenta três cores na pelagem. Os machos que apresentam as três cores são quase todos inférteis, isto é, geneticamente incapazes de se reproduziram. Também com os marsupiais é patriarca ou matriarca o elemento de maior grau hierárquico na família. Quanto aos cardeais, o caso mais notório é o do patriarca de Lisboa, de momento um tal D. Rui Valério que é também o bispo das Forças Armadas, sem nunca ter dado um tiro. Pelo menos que eu saiba. A Infopédia especifica que se trata do “nome dado aos chefes político-religiosos que dirigiram os Hebreus durante a sua vida nómada e que foram anteriores aos Juízes”. O que eu conhecia era a fase inicial da espécie humana em que matriarcado (do grego antigo μητέρος, metéros, mãe, e ἀρχή, arché, origem, ou regra) sinónimo de ginecocracia (em grego hodierno, γυναικοκρατία), algumas vezes citado como ginocracia. Em algumas culturas, a mulher ainda é líder da família e a transmissão de bens, assim como do poder tribal, se faz através dos membros do sexo feminino do grupo. Na dimensão religiosa, muitas vezes o matriarcado tem sido associado à adoração de divindades femininas da fertilidade e da maternidade. James Frazer, J. J. Bachofen, Walter Burkert Robert Graves, James Mellaart e Marila Gimbutas desenolveram a teoria segundo a qual todas as divindades da Europa e da bacia do Mar Egeu são oriundas de uma deusa matriarca pré-indo-europeia (Neolítico). Segundo esses especialistas, a religião da deusa mãe era a base de toda a Pré-História das civilizações antigas e a Deusa seria o fundamento sócio-religioso do matriarcado. Na mitologia nórdica há referências às sociedades matriarcais, como as Elvens e outros povos pré-históricos que habitaram nas regiões da Escandinávia. Algumas teorias dizem que o uso de armas duplas (dual wield) foi desenvolvido especialmente para mulheres, pela dificuldade de carregarem escudos muito pesados. Não é, no entanto, o mesmo que matrilinearidade onde as crianças são identificadas em função das mães em vez dos pais, e famílias estendidas e alianças tribais formam linhas consanguíneas femininas conjuntas. Por exemplo, na tradição judaica Halakha, somente uma pessoa nascida de mãe judia é automaticamente considerada judia. Portanto, a herança judaica é passada de mãe para filho. É também diferente de matrifocalidade que alguns antropólogos usam para descrever sociedades em que a autoridade materna é proeminente nas relações domésticas, devendo o marido juntar-se à família da esposa, em vez de a esposa mudar-se para a tribo do marido. Assim, matriarcado seria uma combinação de múltiplos factores. Inclui matrilinearidade e matrifocalidade, sendo que o mais importante é as mulheres serem encarregadas da distribuição de bens do clã e, especialmente, das fontes de sustento. A maioria dos antropólogos afirma que não existem sociedades conhecidas que sejam inequivocamente matriarcais. De acordo com J. M. Adovasio, Olga Soffer e Jake Page, não se conhece de facto nenhum matriarcado verdadeiro que tenha existido. A antropóloga Joan Bamberger argumentou que o registo histórico não contém fontes primárias sobre qualquer sociedade dominada por mulheres. A lista ‘human cultural universals’, do antropólogo Donald Brown, (as características compartilhadas por quase todas as sociedades humanas actuais) inclui os homens como sendo o “elemento dominante” nos assuntos políticos públicos, que ele afirma ser a opinião contemporânea da antropologia dominante. Existem, contudo, algumas divergências e possíveis excepções. A crença de que um governo das mulheres precedeu o governo dos homens foi, de acordo com Haviland, “sustentada por muitos intelectuais do século XIX”. A hipótese sobreviveu até o século XX e foi notavelmente duradoura no contexto do feminismo e, especialmente, do ‘feminismo de segunda onda’, mas a hipótese está em grande parte desacreditada. Eis por que Carlos Moedas se esforça tanto por ser um autarca arcaico, levando às suas celebrações do 25 de Novembro na autarquia lisboeta convidados da direita troglodita e também o cada vez mais inquietante almirante Gouveia e Melo, aquele chefão que castigou os 13 subordinados seus que se recusaram a patrulhar o Atlântico num vazo de guerra comprovadamente apto a afundar-se. * Para que não se perca a noção do que significa esta efeméride que concentra a devoção da grande vilanagem, respigo: António Barreto – “Hoje, 25 de novembro, é dia de festa. Apesar de ser data controversa e detestada por alguns (…)” Espero que não tenha dado o badagaio à Maria Filomena Mónica, ao ler isto no “Público”, porque o que parece é que o seu marido e ex-sociólogo do Pingo Doce a largou para ir de braço dado com Carlos Moedas à Festa dos Biltres. Manuel M. Gomes, fingindo desconhecer a “Lei Barreto”, afirma que “o que se passa hoje no Alentejo é simplesmente vergonhoso, desumano e imoral. A exploração do próximo é algo que pensava não existir a este nível em Portugal, mas infelizmente estou profundamente errado. Já agora, gostava de saber e, para isso, peço ajuda aos jornalistas. O que aconteceu aos que há um ano foram detidos em Odemira?” E, pergunto eu, o que vai acontecer aos que continuam a seguir a lei do Barreto no Alentejo, no Ribatejo e até em Trás-os-Montes? José Pacheco Pereira – “Ter ‘ideologia’ é normal e saudável em democracia e é de supor, por exemplo, que os socialistas sejam socialistas. (…) Há anos que reclamo de governos sem qualquer resposta o esclarecimento documental sobre muitos aspetos da negociação com a troika, que permitam saber que medidas são da autoria da troika ou dos governos Sócrates e Passos-Portas-troika, mas duvido que haja sequer um registo fiável desses contactos, em especial quando se sabia que um ministro português usava um computador de um membro da troika para enviar correspondência”. Basílio Horta – “Estávamos organizados com o PS à frente. O PS era o grande dinamizador e o grande organizador dessa reação. Nunca se soube donde vieram as armas, mas que vieram, vieram. Se houvesse alguma coisa dessas, era uma guerra civil. Eu estava em Celorico de Basto. O CDS tinha uma grande força em Celorico de Basto, o segundo concelho onde o CDS tinha a maior força e estávamos à espera do que poderia acontecer. Havia realmente armas. (Eu) já as trazia de Fafe. Não era eu, era o grupo em que eu estava integrado. Ali era mais PS. Não havia PSD. (…) O Cardeal António Ribeiro, que era muito meu amigo e esteve no meu casamento e no batizado das minhas filhas, achava que o CDS vinha dividir a direita, que não havia razão nenhuma para dividir a direita, que não havia razão nenhuma para haver CDS”, até porque, lembro eu, como o Pacheco Pereira reconheceu, a horda do partido único fascista havia-se transferido para dentro do PSD, então PPD. E o Basílio, presidente agora da Câmara de Sintra, à frente do PS, faz questão de frisar que “o dr. Mário Soares era uma figura, uma coisa que hoje nos falta.” Para que conste.
Carlos Coutinho VozesCurvas e contracurvas EMPANQUEI no étimo “calamento” por mero acaso e tenho consciência de que não é fácil explicar-me, até a mim mesmo, de forma cabal e satisfatória. A primeira vez que vi esta palavra escrita foi quando a encontrei a nomear um romance notável de Romeu Correia, que só li anos depois. Apenas mais tarde vim a saber que calamento era também o que muitos presos políticos faziam nos interrogatórios da PIDE, sob tortura – cerrar os dentes e nada dizer. “Nem um pio”, explicou-me certo dia no Museu do Neorrealismo, em Vila Franca de Xira, o então director do “Avante!”, Dias Lourenço. Mas não foi com esta significação que Romeu Correia utilizou essa palavra terrível. É que calamento era, desde séculos antes, um pedaço de corda de sisal que tinha numa ponta um barquito de pesca ou as mãos de um pescador e, na outra, um peso que prendia a precária embarcação desses famintos violadores do mar onde fosse preciso. As comunidades de ílhavos e de algarvios que vieram, respectivamente, do mar salgado e da ria de Aveiro, bem como do sotavento algarvio, instalaram-se lado a lado com uma inultrapassável faixa de separação entre ele, perpendicular à costa, instaurando rivalidades e correspondentes lutas e violências recíprocas que a miséria gerava. Ao ponto de um rapaz de marca ílhava que ousasse namorar uma rapariga proveniente de Portimão poder ser perseguido e às vezes até sovado. No século XX, o escritor almadense ainda verificou comportamentos colectivos destes e eu, num engasgamento das minhas emoções, a acabei por ser encaminhado para topónimos como Trafaria e Caparica, redutos destas atávicas tradições. Há quem diga que o nome Trafaria deriva do facto de ter havido ali muitas redes de pesca, designadas localmente como tarrafas. Terá chegado ao conhecimento do Marquês Pombal que, na chusma de cabanas miseráveis da povoação piscatória, se escondiam muitos refratários à tropa e que, por isso, a mandou incendiar, missão que coube ao chefe da Polícia, um tal Pina Manique, poupando apenas os que se integrassem legalmente nas fileiras militares e assim deixassem de sobreviver por expedientes perigosos para as populações e para o Reino. Não parando na minha pesquisa, descobri que Trafaria significava o fim da terra conhecida dos algarvios e, muito antes disso, viera de Almaraza – do árabe al-maraje, ou seja, lugar por onde se sobe. Já Caparica terá resultado de étimos latinos – cappar, cappari ou capparis, provindos do grego kapparis que significa alcaparra. Terá, portanto, sido um alcaparral, sendo que, em vários lugares de Trás-os-Montes, alcaparra é uma saborosa azeitona descaroçada que já comi em Miranda e recomendo. Também se admite que o topónimo resulte de aí ter existido um cabo de areia, (“parte final”), lodo ou outro material macio – “rk” , “ser mole, macio” – pelo que aqaberik pode ter evoluído para qaberik e por fim para qaperik. Calcula-se que a cidade da Costa de Caparica, onde já visitei o Convento dos Capuchos, a Igreja de Nossa Senhora do Monte de Caparica e a Fortaleza da Torre Velha, tenha tido para os romanos uma importância semelhante às de Alcochete, Montijo e Sesimbra. Lá no alto, fica Sobreda, a antiga Suvereda rodeada de sobreiros de que falou Fernão Lopes e é hoje uma vila arejada ao lado da Capa Rica (Costa e Charneca de Caparica) onde morou, quase até à morte, um velho amigo meu, o Gabriel Raimundo, que frequentou a Sorbonne, a Aliance Française e a Universidade de Lovaina, tendo andado pelo maio de 68. Fundador em Paris de “Portugal Cá & Lá”, foi mais tarde jornalista do “Diário de Notícias” no tempo de Saramago e seguidamente de “o diário”, comigo, antes de partir para Cabo Verde como formador e redator da “Voz di Povo”. Este rijo beirão de Tortosendo foi preso em 1971, perto de Vilar Formoso, pela Guardia Civil, com mais cinco companheiros portugueses e logo encarcerado em Salamanca. Vinha para Portugal, integrado na luta clandestina antifascista. O que são as curvas e contracurvas da memória… Martinhando ESTE ano, o Dia de S. Martinho mais parecia, logo de manhã, o Dia de S. João – a madrugada evoluiu para um nascer do sol amarelíssimo e durante as trevas tinha havido estrelas incontáveis, brisas suaves e cantigas de festa facultadas pelos pássaros noturnos. Depois, já quase ao fim da manhã, o céu ficou cinzento e a chuva não se fez rogada. Pelas onze horas, mastigando umas castanhas assadas quase a escaldar, já estávamos na esplanada do costume, nos nossos fins de semana. Íamos temperando o calor na boca com uns goles aspirados de um tinto novo que este ano é de excelente qualidade, celebrando o Dia de S. Martinho, quando chegou o filho do mais careca de nós todos. Vinha a arfar, armado com um computador portátil. Sacudiu o capuz e os ombros molhados, para logo se sentar na mesa que continuava livre, ao nosso lado. Assobiou para o balcão, fez uns acenos com as duas mãos e, quando a empregada coxa se aproximou, pediu-lhe uma bica dupla e um copo de água. Esta, com uma vénia e uma tossidela inexplicável, deu meia volta e, quando voltou com a bandeja quase ao nível dos joelhos, trazia também um pires com duas castanhas assadas e um rebuçado. Disse-lhe: – Oferta da casa. – Obrigadíssimo. O pai, apontando-lhe a maquineta, ordenou: – Larga isso e senta-te com a gente. – Tenho umas coisas para ver, enquanto a chuva não para. Posso? Foi evidente uma certa arrogância na asserção do jovem. Martinho, julgo eu. Na nossa mesa, trocámos olhares uns com os outros e voltámos a atacar o prato das castanhas e as taças de tintol. Nisto, apareceu a namorada do Martinho que se ocupou a esvaziar uma garrafa de cerveja preta e lhe atirou: – Afinal, hoje não é só o teu dia. Vai ao Google. E ele foi. Descobriu e disse-nos que na China se estava no Dia dos Solteiros, ou Guanggun Jie (em chinês 光棍节), um festival de entretenimento que celebra o orgulho em ser solteiro e já se transformou num dos principais dias de comércio on-line no mundo. Em casa, fui também ao Google e fiquei a saber que a coisa começou na Universidade de Nanquim, em 1993, inicialmente só entre os homens, sendo logo a seguir um evento popular em várias universidades chinesas durante a década. O milionário festival continua cada vez mais a servir para a socialização entre solteiros, contando com eventos de encontro às cegas para que os interessados abandonem, à sorte e sem culpar ninguém, a vida de solteiros. O ano de 2011 marcou o chamado Dia dos Solteiros do Século com várias ações promocionais do evento, visando, principalmente, atrair jovens consumidores acríticos e ávidos de novidade. Já no Reino Unido, o que se celebra é o Dia do Armistício, visto que no dia 11 de novembro de 1918, a na “undécima hora do undécimo dia do undécimo mês”, foi assinado pelos Aliados e pelo Império Otomano, em Compiègne, França, o fim das hostilidades na Frente Ocidental. Após a Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido e a maior parte dos países da Commonwealth decidiram unir as celebrações do Dia do Armistício e estabelecer o Dia da Lembrança (Remembrance Day), um feriado criado para honrar os militares e civis envolvidos no maior conflito do século XX. Nos EUA a data também é comemorada junto com o feriado do Dia dos Veteranos.
Carlos Coutinho VozesGatinhos JORGE Almeida Fernandes relembrou há dias no “Público” que o Hamas nasceu com apoio de Israel para debilitar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) que gozava de simpatia generalizada em grande parte do mundo e era presidida por Yasser Arafat, uma figura cimeira o século XX que morreu envenenado pela Mossad, a polícia secreta de Israel. De tudo isto eu sabia e até bem mais: que o apoio israelita ao Hamas era de ordem técnica, financeira e diplomática, explicitamente acompanhado pelos EUA e complementado por cumplicidades dentro da NATO e, sobretudo, francesas e britânicas, dados os interesses de Londres e Paris no Médio Oriente e na África. Assim como não posso ignorar o terrorismo de estado praticado por Israel ao longo dos últimos 75 anos e a expansão de colonatos ilegais e novos colonatos com impunidade garantida por Telaviv. Quando a ONU definiu a existência de dois estados e decidiu colocar um cordão militar entre eles, Israel, espantosamente, rejeitou esse dispositivo multinacional de separação de forças armadas e Washington nada fez para que a vontade repetidamente reiterada pela comunidade internacional fosse cumprida. Hoje tomei nota de que o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, que já vi referido como “excremento de Beja” e possuidor de uma personalidade semelhante à da perfumada Zita Seabra e à do herói nazi ucraniano Stepan Bandera, acusou por estes dias a extrema-esquerda de “conivência com terroristas”. No comentário de Ana Sá Lopes, também no “Público”, ontem, o que Moedas parece desejar é que “todos sejamos animais” domésticos. “Antes fôssemos animais: haveria mais empatia, se tivessem sido 3000 gatinhos mortos em Israel e na Palestina e não o número de pessoas de carne e osso dos dois lados.” Assinala a jornalista que “os termos da discussão pública – mesmo nas mais altas instâncias (da União Europeia), a começar pela presidente da Comissão – são indignos e limitam-se à desumanidade que é a de cada um escolher o seu morto. Isto é barbárie”. De facto, Ursula von der Leiden, aquela insignificante loiraça que, comprovadamente, vampirizou relatórios técnicos e científicos para subir na vida, alegadamente, por mérito próprio, foi a Israel na sexta-feira, acompanhada da sua alma gêmea Roberta Metsola, presidente o Parlamento Europeu, que a ouviu dizer que os israelitas podiam fazer aos palestinianos o que quisessem, porque a sua Europa os acompanharia cegamente. Perante esta miséria moral, há quem pense que a senhora Ursula ainda não superou o possível remorso geracional, de terem os seus ascendentes familiares e amigos mais próximos participado no Holocausto. Talvez o mesmo aconteça com o chanceler Scholz que aparece apaixonado pela ‘blitzkrieg’, mas os EUA, que têm somado alguns desaires na vasta envolvente do Mar Negro e que veem a Turquia, a Arábia Saudita, o Irão, o Egito, a Rússia, a Índia e a China a navegarem em águas circunstancialmente afins, não podem apreciar este belicismo acéfalo, quando muitas movimentações que lhe são hostis juntam forças no Indo-Pacífico. Biden não teve outro remédio senão mandar o seu aflito secretário de Estado, Anthony Blinken, à zona e andar de governo em governo a aconselhar cabeça fria. De seguida, até precisou de declarar pubicamente: “A nossa humanidade – o valor que atribuímos à vida humana é o que nos torna quem somos. E é um dos nossos maiores pontos fortes. É por isso que é importante tomar todas as precauções possíveis para evitar ferir civis. Por isso lamentamos a perda de todas as vidas inocentes, de civis de todas as religiões, de todas as nacionalidades, que foram mortos.” Apenas acredita nesta hipocrisia quem não sabe de Vietnames, Coreias, Cambojas, Iraques, Líbias, etc., mas, quando há interesses maiores em jogo, não há que estranhar esta modalidade seráfica do pragmatismo bem norte-americana.
Carlos Coutinho VozesDiscrepâncias PENSANDO bem, há, mesmo entre cientistas, algumas discrepâncias de ordem conceptual e sistemática que me custam a engolir. É o caso, por exemplo, da configuração e definição do Antropoceno que é o período em que a acção humana interfere com o clima da Terra e com os seus ecossistemas. Não sendo eu perito em ramo algum da Ciência, mas sentindo-me com direito a ter e expandir opinião própria dentro do senso comum, considero que o Antropoceno começou há largos milhões de anos, quando o primeiro hominídeo se pôs a mastigar e a deglutir os primeiros cereais, raízes, folhas, frutos, cascas moles, etc., devolvendo-os seguidamente à Natureza transformados em dejectos que rapidamente passam a nutrientes da flora e até de alguns bichos escatológicos. Com a partida do primeiro primata humano para sua primeira caçada, o fenómeno acelerou-se notoriamente e ninguém me tira da cabeça que o Antropoceno começou logo a preparar o futuro, até chegar, caótico e autodestrutivo, aos precários dias de hoje. É a disrupção conceptual tende a agravar-se de tal modo que mesmo nas páginas do mesmo jornal do mesmo dia e em substâncias distintas – neste caso, o “Público -, ode aparecer um cientista a explicar que o grande facínora que é o CO2, aquele gás amoral que produz o efeito de estufa é assim ameaça gravemente a continuação da vida na Terra, afinal, tanto pode ser orgânico como inorgânico e, em ambas as condições, vai encontrando maneira de assentar nos leitos marinhos, onde agradece que não o revolvam nem de qualquer outra forma o incomodem. Oliver Moore, investigador na área da geoquímica da Universidade de Leeds, Reino Unido, garante que os oceanos absorvem 30 por cento do CO 2 emitido nas actividades humanas. Há vários processos que contribuem para isso e é mesmo o que acontece “o carbono orgânico se agarra a uma partícula mineral na coluna de água, tornando-se menos flutuante e por isso afundando-se mais rapidamente para o leito do. mar, diminui o tempo para os micróbios o degradarem” e tornarem prejudicial na atmosfera.. Ou seja, se a Humanidade encontrar resposta para isto, como sempre tem acontecido ao longo da história, estamos safos. Isto remete-me, aliás, para um artigo de Arlindo Oliveira, um engenheiro que preside aia INESC e que, também no “Público”, escrevia anteontem: “A expressão latina ‘sapere aude’, que se deve originalmente ao poeta e filósofo romano Horácio, é geralmente considerada como o lema central do movimento iluminista, tendo sido proposta pelo filósofo Immanuel Kant. Traduzida para português, significa algo como ‘atreva-se a conhecer’ ou ‘ouse conhecer’, a que eu acrescentaria “em vez de se reger pela fé, como supersticioso”. Até porque, no mesmo jornal, algumas páginas antes e no dia anterior, uma simpática enfermeira que parece ter deixado de exercer, escrevendo todos os domingos uma crónica de página inteira, zurzia os destituídos de fé num estilo caceteiro que nunca lhe vi. Confessa ela que também foi ao Papa e diz: “(… ) Mas eu que sempre soube lidar com estas coisas e até com a pretensa superioridade intelectual dos meus amigos ateus (…), confesso que não estava preparada para aquilo que vi durante a última semana e que foi, nada mais, nada menos que ódio mal disfarçado. Caramba, isto foi mesmo feio. Tanta gente cega por um ódio ao catolicismo a roçar o irracional.” Pobre Carmen Garcia, que rasteja angelicamente ao apelo da fé, tão crédula e devota como os que vão à bruxa, os que temem encontrar lobisomens em todas as encruzilhadas, os oram piedosamente nas procissões organizadas para pedir chuva aos céus, os que acreditam em moiras encantadas, os que rezam àquela virgem eterna que vinha, sempre vestida e calçada a rigor, esfregar os pés no ramo mais alto de uma azinheira e caucionar o milagre do sol dançante, os que vão à Kathmandu aspirar o ar espiritual, os que pagam a quem lhes lê a sina na palma da mão, os que adoram as serpentes emplumadas de Macchu Pichu, os que suportam a espiritualidade das vacas hindustânicas, os que contam e beijam as cagalhetas místicas de uma cabra animista no Vale do Rift, porque, senhores, para com nenhum destes fiéis devotos, destes iluminados exemplares do “homo sapiens”, a cronista do “Tanto faz não é resposta” é incapaz de mostrar superioridade intelectual. A fé é a fé, chiça! E nada há mais digno de respeito e reverência, caramba! Por mim, tudo bem, porque percebo que a Terra, afinal, é menos que um micróbio unicelular num sistema planetário que também é menos que um micróbio pluricelular, num dos prováveis quatriliões de quatriliões de galáxias que perfazem o incomensurável Universo que Deus criou por desfastio e para arranjar um poiso discutível para as pessoas com fé, mesmo que obrigadas a conviver com ateus, aqueles desalmados dialécticos que, tal como os agnósticos – estes mais timoratos – exigem provas para todos os teoremas e fundamentos para todos os acórdãos.
Carlos Coutinho VozesA temperatura e os crepúsculos COMEÇOU na segunda-feira o maior exercício militar aéreo da história da NATO, o “Air Defender 23”. Coordenado pela Alemanha, onde o ‘kaiser’ e o ‘führer’ deixaram certas ambições antigas e recalcadas, o objetivo destas manobras é demonstrar a conformidade e a prontidão de todos os membros da aliança, face a potenciais ameaças, venham elas da Rússia ou da China, mancomunadas estas ou não, e vai decorrer até dia 23. Aliás, o chanceler Scholz, social-democrata em modo Kautsky, afirmou hoje mesmo que a China é uma ameaça para a Alemanha. Assim, aumenta seriamente a temperatura que já é tórrida na presente II Guerra Fria. Nos céus atlânticos, mediterrânicos, bálticos, nórdicos e polares já voam 250 aeronaves de 25 países natistas, além do Japão, que alegam querer fortalecer a resposta ao ar, ao mar e à terra, em caso de confronto que pode incluir drones e mísseis. Em jeito de rodapé, apetece-me pôr aqui o que certamente não aconteceria na martirizada Ucrânia e Donbass, se o Pentágono, a NATO, a União Europeia e o Presidente Zelensky obedecessem ao que ficou plasmado na Ata Final dos Acordos Internacionais de Helsínquia e no Acordo de Minsk. Sem contar os mortos de ambos os lados, que já são muitos milhares (militares e de civis), a ofensiva bélica da Rússia causou até agora, segundo a ONU, a fuga de 14,7 de pessoas, ou seja, 6,5 milhões de deslocados internos e mais de 8,2 milhões de ucranianos para países europeus. Leopardices ENCONTREI quarta-feira, na Régua, com o longo canhão apontado às vinhas de Loureiro, um Leopard 2, o ultramoderno carro de combate que dá, quase todos dias, histórias com deliciosos temperos aos gulosos que comem tudo o que chegue da guerra da Ucrânia. Veio de Lamego para a celebração, hoje, do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, à beirinha do Rio Douro, e, a meio da descida da A24, teve ser salvo do fogo que desatou a queimar as 16 rodas do reboque. Foi um vê se te avias de carros de bombeiros a rolar no asfalto, mas só ali passei dois dias depois, pelo que não ouvi o concerto de sirenes alarmadas que, compreensivelmente, revoou pelas encostas. Salvou-se o leopardo guerreiro, mas eu, a 400 quilómetros de distância, vou, se tiver pachorra para tanto, ouvir o Marcelo na televisão. É bem possível que ele aproveite a circunstância para deitar mais umas pitadas de veneno de efeito lento no prato do Costa. Crepúsculos CHOVEU esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível. Aí pela hora do almoço, já não chovia nem disso se notava ameaça. Depois de Lamego, o sol começava a bater em pontos vários das serranias frontais, porque o dossel estava a sofrer grandes rasgões e as massas escuras de nuvens densas, fragmentando-se, formavam enormes rebanhos de nimbos zoomórficos que arranhavam impunemente o azul celeste. EU tinha pela frente 400 quilómetros de asfalto molhado e um tráfego nervoso que não me assustou, porque apenas se adensou a partir de Viseu. Começou a molhifar na zona de Coimbra, passando a chuviscos intermitentes em poucos minutos, porque o dossel se refez e até o ar escureceu, ficando baço e pardacento. À passagem pela zona de Santarém, a chuva tornou-se tão intensa e barulhenta que só os farolins vermelhos das constantes travagens à minha frente eram discerníveis, como se a depressão “Óscar”, que anteontem fustigou a Madeira e estava prevista a tarde de amanhã no Continente, houvesse antecipado a sua chegada para hoje. Aliás, de madrugada, quando acordei e fui ver a água teimosa que escorria oblíqua do céu, não percebi a situação e pareceu-me urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas e por lá navegou durante alguns minutos. Felizmente adormeci de novo já no crepúsculo matinal, ainda com chuva, mas depois, nas quase cinco horas da tormentosa viagem do meu regresso à beira-Tejo, voltei a matutar nas manobras de D. João II. Num dia anómalo como este, a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa foi escabichar nos meus livros o que havia sobre o Tratado de Tordesilhas. Aconteceu, de facto, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”. Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo. É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936. O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real. A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros. Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites. Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias. Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária. Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.
Carlos Coutinho VozesCrepúsculos Choveu esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível. Parecia urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas. Aconteceu aí, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”. Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo. É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936. O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real. * FIQUEI hoje a saber de um terrível desastre português, já bem visível do Minho ao Algarve, que resulta igualmente das alterações climáticas que ontem aqui chamei e que atacam, de facto, não só os pássaros, mas também os outros seres viventes, incluindo a fauna humana, porque todos dependem fundamentalmente de haver água no céu e na terra. No final de abril já estavam oficialmente em situação de seca severa, no nosso país, 40 concelhos e em seca extrema 27, o que corresponde a 40% do território continental. A manter-se a falta de chuva, muitas hortas e quintais vão sendo abandonados, canteiros floridos vão murchando, não poucas vinhas vão sendo menos cuidadas e milhares e milhares de árvores vão fenecendo. Assim, daqui a poucos anos, vai ser dramática a continuação da falta de chuva e o envelhecimento das populações rurais e urbanas, já que vão instalar em Portugal grandes áreas desérticas, mesmo que se passe, como acontece em boa parte da França, a um regime drástico de racionamento do precioso líquido no consumo doméstico, à proibição do uso e da comercialização de piscinas, bem como o fim da lavagem de carros e da rega de jardins e mesmo interdição de novas edificações em localidades em que menos de um terço das casas apenas sejam habitadas sazonalmente pelos proprietários de segundas habitações ou por turistas. Talvez surpreenda que os franceses, apesar da sua história cultural, ainda tenham casos extremos de religiosidade popular como aqueles que nós registamos relativamente a Fátima, ou em povoações que organizam procissões a pedir água a Deus e a sua mãe. Na sua crónica de ontem, no “Público”, Ana Cristina Leonardo contava que “em Perpignan, terra fronteiriça frequentada por Dali e Picasso, a falta de água atingiu proporções tais que as forças católicas locais decidiram reavivar, no passado mês de maio, uma procissão esquecida há quase 150 anos. Em devoção do santo Galderic (nome catalão), um santo de origem camponesa já conhecido no século IX (e provavelmente até os menos crentes…) percorreram as ruas de Perpignan implorando chuva ao Altíssimo. Não foi o único cortejo realizado na região dos Pirenéus Orientais. Se, entretanto, não chover, a meio de agosto não haverá mais água” aproveitável em toda essa região. Acresce que uma reportagem de há um ano e picos, realizada pela BBC, mostrava que a escassez de água já afeta aproximadamente 40% da população mundial, segundo estimativas da ONU e do Banco Mundial que calculam para 2030 o número terrível de 700 milhões de deslocados em consequência das secas. Em simultâneo, na Europa, na Ásia, na África e nas Américas, sucedem-se as tempestades catastróficas, as inundações navegáveis, a submersão de extensas regiões, os aluimentos e derrocadas de terras com arrastamento de casas e milhares de mortos e desalojados, além de mobilidades várias. Estou em Vila Real, onde tem chovido nos últimos dias e há previsão de trovoadas e brutais ganizadas, mas ainda não ouvi alguém falar de procissões nem de outras rezas coletivas. Não me admiraria se Dali ou Picasso, ressuscitados por um milagre de Fátima, preferissem vir passar nas civilizadas faldas do Marão os últimos dias das suas vidas. A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros. Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites. Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias. Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária. Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.
Carlos Coutinho VozesMatar o pai SIZA Vieira tinha de levar uma grande bofetada e, dada a sua dimensão internacional, só o presidente da mais importante autarquia portuguesa poderia dar-lha. Para tanto, Moedas, foi driblando sucessivas tentativas de atendimento solicitadas pela Comissão de Honra constituída na Associação Conquistas da Revolução que pretende erigir em Lisboa um monumento em memória de Vasco Gonçalves. Escapando a este embate, deixou-se entrevistar por um jornalista que, por pudor, não quero nomear, num jornal que não leio nem recomendo. Diz-me, no entanto, uma testemunha fiável que o homem das moedas falsas terá, então, revelado que, enquanto for ele a riscar na Câmara de Lisboa, nunca haverá na capital portuguesa uma estátua ou sequer um busto do culto e humaníssimo general de abril e principal impulsionador do novo Portugal que, em grande parte, ainda temos. Conheci em Beja, no “Diário do Alentejo”, o seu pai, isto é, o poeta e jornalista Zé Moedas que tinha por Vasco Gonçalves um enormíssimo respeito e não escondia o facto de ser comunista. Vendo a atitude do seu filho, único e desnaturado, temo que este se tenha deixado formatar por aquela engrenagem edipiana que põe o adolescente a matar o pai para poder desposar a mãe. Neste caso, a augusta figura maternal chama-se ideologia reaccionária e só pode ter nascido da terrível herança gonçalvista de que deixo aqui alguns tópicos: – Igualdade de direitos para homens e mulheres (na magistratura, por exemplo, não existiam, assim como na administração pública); – Direito à habitação para todos os portugueses (dois milhões viviam em bairros de barradas); – Direito à educação (88% dos portugueses tinham menos que a antiga 4.ª classe e 26% nem sequer sabiam ler); – Direito à escolaridade tendencialmente gratuita em todos graus de ensino; – Direito à saúde, universal e gratuito. – Direito à greve. E isto para não me alongar noutros direitos verdadeiramente civilizacionais como os 90 dias de licença na situação de maternidade, o divórcio nos casamentos católicos, a reparação material e moral para os deficientes das Forças Armadas, o salário mínimo e a pensão social, os subsídios de desemprego, de férias, de Natal e vitalício de proteção na velhice, etc. De facto, é preciso ter muita lata para ir incomodar Carlos Moedas, reclamando um monumento de homenagem a um general para quem povo e pátria eram sinónimos operativos e até saiu mais pobre dos cinco governos provisórios que comandou. Consta, aliás, que são também dessa era a Constituição da República Portuguesa e a independência das ex-colónias que hoje se nos irmanam nos PALOP. Não consigo entender que o arquitecto Álvaro Siza Vieira, genial como é, tenha aderido, com o maior entusiasmo, à assunção da autoria do monumento que, honrando Vasco Gonçalves, também honra Portugal. Para que conste CHEGAM do Médio Oriente notícias cada vez mais inquietantes. No dia 7, aviões israelitas bombardearam o aeroporto de Alepo, por onde entra na Síria a ajuda humanitária internacional. Foi uma frutuosa maneira de agravar os efeitos do sismo catastrófico que no mês passado arrasou grande parte do país e da vizinha Turquia. No dia 12, helicópteros norte-americanos, aproveitando a maré de azar, transportaram da prisão de Al-Sinaa elementos do Estado Islâmico, para o enclave de Shaddadi, no Sul de Hasakeh, devendo seguidamente passar para a base militar que os EUA mantêm ilegalmente em Tanef, na Síria, junto à fronteira com o Iraque. Aí vão estes mercenários receber formação especial para atos terroristas a cometer contra o exército sírio e populações. Enquanto isto, no vasto deserto sírio de Al-Badieh aumentam as ações destes fundamentalistas islâmicos orientados pelos serviços secretos de alguns países da NATO. APRESENTADO foi também, no dia 13 de março, o projeto de orçamento militar dos EUA, propondo para o ano fiscal de 2024 uma verba recorde de 842 mil milhões, o que significa um aumento de 3,2 por cento em relação ao que este ano está em vigor e que já era bastante superior aos anteriores. O Pentágono assume publicamente que está no horizonte uma confrontação decisiva com a China e a Rússia. Para o arsenal nuclear a fatia é de 37,7 mil milhões de dólares. É caso para perguntar aos propagandistas da pax americana, se ainda estamos bem aqui. E, para não parecer fofoquice minha, cito um americano insuspeito, William Hartung, investigador do Instituto Quincy para a Governança responsável, que declara os EUA como o maior traficante de armas do mundo. Segundo do Instituto Internacional de Estudos para Paz, com sede em Estocolmo, as vendas de armamento norte-americano, entre 2018 e 2022, constituíram 40 por cento de todas de todas as vendas de armas no mundo e foram para 103 países, tendo seguido para o Médio Oriente 41 das encomendas aviadas. Para que conste.
Carlos Coutinho VozesMar terminal NUNCA imaginei tão depravado um pequeno mar interior como o Mediterrâneo que até no nome é enganador. Alega encontrar-se no meio da Terra e nem sequer está no meio do mais pequeno dos continentes como tais considerados, a Europa das sucessivas guerras imperiais. E muito menos a meio do Hemisfério Norte que tem serras e neves pelas costas e serras e areais escaldantes pela frente. Também é verosímil dizer que esta Europa do Sul tem como contraponto setentrional os países do Báltico e do Mar do Norte, onde a brutalidade nunca teve limites, nascida da coabitação com ursos e lobos e da infinitude dos gelos que produziram víquingues na Dinamarca, na Noruega e na Suécia, bem como lares cavilosos para os saxões e os anglos que exploraram a Grã-Bretanha, ao sucederem ao Império Romano. Foram, aliás, esses lapões e aparentados que, fundindo-se com hordas famintas vindas da Ásia mais próxima e do Norte da Índia, se converteram em normandos e foram constituir nacionalidades zaragateiras em ambos os lados do Canal, deixando as traseiras para os celtas sobrantes e os godos cristianizados que vieram até Cascais. O que agora importa, no entanto, são aqueles rochedos aguçados que se aninham junto às praias da Calábria e não tiveram a mínima hesitação em estraçalhar o casco de velho barco de madeira que trazia dentro, apertadas como sardinhas em lata, cerca de 200 pessoas. O naufrágio aconteceu na madrugada de domingo. Até à manhã de ontem, pelo menos 80 pessoas tinham sido resgatadas, ou chegaram à praia de Steccato di Cutro pelos seus próprios meios, e as autoridades já tinham recolhido 64 cadáveres, incluindo os de 11 crianças e de um bebé. A confirmarem-se as estimativas sobre o total de passageiros da embarcação despedaçada, o número de mortos poderá ultrapassar uma centena, mas esse número ainda não é conhecido. Nem sei se alguma vez será, porque, para o país que fez de Giorgia Meloni primeira-ministra, não se deve gastar muitos cabedais com uns chatos que fugiam da fome e das perseguições nos respetivos países – Paquistão, Afeganistão, Irão e Somália. Refugiados destes já a Itália tem que chegue, não é Ventura? Para quê aceitar mais? À tarde ANDAM por aí milhões e milhões de terráqueos a jurar que Voltaire dissera certo dia: “Posso não concordar com o que dizeis, mas defenderei até à morte o vosso direito a dizê-lo.” Ninguém imagina quantos trampolineiros, cartomantes, demagogos e branqueadores da História logo bateram palmas e quantos o citam sempre que dá jeito, nos parlamentos, nos comícios e nos debates televisivos, ainda hoje, do PS ao Chega, passando pelo PSD e pela IL. Na sua carta a Cideville, datada de 28 de janeiro de 1754, o grande filósofo do Iluminismo, que viria a sentir-se arrasado pelo terramoto de Lisboa em 1755, foi: “Este mundo é um grande naufrágio. Salve-se quem puder.” Precisámos de chegar ao século XXI para que, numa das suas imprescindíveis crónicas no “Ipsilon”, Ana Cristina Leonardo viesse pôr os pontos nos is, recordando que foi Eveliyn Beatrice Hall, ao tentar resumir o essencial do pensamento voltairiano, inventou e escreveu a tal frase que criador do Pangloss nunca disse nem pôs por escrito em lado algum. Daí que continue a fazer carreira aquele mantra democrático e cristão que atribui aos famintos africanos e asiáticos todas as culpas de virem morrer afogados no Mediterrâneo e, até, que o economista austríaco Joseph Schumpeter tivesse rejubilado com a sua descoberta da “destruição criativa do capitalismo”. Assim, ai de quem venha pôr em dúvida a falsa autoria da famosa frase posta na pena de Voltaire ou, mais perigoso ainda, vir alguém mostrar como o europeu, primeiro cruzado e, depois, colonialista, passou os últimos séculos a invadir, conquistar, pilhar, escravizar e até de seres humanos fazer mercadoria, justificando-se com a alegação de que muitos outros faziam o mesmo. Nada melhor do que citar também uma ave apocalítica igualmente citada pelo poeta nobelizado T. S. Eliot: “Ide, ide, ide, disse o pássaro: a espécie humana Não pode suportar muita realidade.”
Carlos Coutinho VozesPesadelo carnavalesco NÃO há como uma terça-feira de carnaval para viajar confortavelmente nas autoestradas. Como temos um feriado tácito e governamentalmente prodigalizado ou apenas consentido, milhões de portugueses ficaram em casa de manhã e à tarde vão assistir aos desfiles e outros desmandos langorosos dentro das localidades carnavaleiras. E, como nada rende carnavalar nas estradas e autoestradas, hoje até os camiões eram raros e rápidos no asfalto. Resultado: nunca percorri 200 km sobre rodas com tanta generosidade viária, apesar de quase não haver indícios de sol na atmosfera toldada de pó esbranquiçado trazido por ventos provenientes de desertos africanos. É caso para se pensar que rejubilam as nossas almas em dias como este, já que nem sequer temos de descer a pala para nos defendermos do sol nos olhos e até descobrimos que uma paisagem mortiça pode ter os seus encantos. Nada mais falso, porque as nossas vidas nunca estiveram tão perto do precipício, aquele terrível barranco para onde nos querem levar os cegos que conduzem outros cegos. Talvez por ser tempo de folia carnavalesca, Joe Biden foi ontem a Kiev acirrar Zelensky ainda mais. Só que, por sorte nossa, seis horas antes de o seu avião presidencial levantar o voo para a Polónia, ele teve a inaudita valentia de telefonar a Putin para, debaixo de maior secretismo, o informar da sua viagem, não fosse este seu inimigo de estimação detetar as movimentações militares no ciberespaço e no espaço físico do planeta. É que isso faria o líder russo pensar que era desta que vinha aí o apocalipse e que, inesperadamente, não teria mais que seis minutos para também ele pôr o dedo no gatilho e premir com toda a força. Já na capital da Ucrânia mártir, onde a toda a hora morrem ucranianos e russos, foi depois de uma viagem de comboio, por entre paisagens flageladas, que Biden caminhou até ao muro dos caídos em combate para aí colocar uma coroa de flores e, talvez, pensar sem o dizer: “Sorte a vossa! No Vietname e nos outros países que bombardeámos, matámos mil vezes mais! E não nos vamos ficar por aqui…” Já com muita gente a ouvi-lo, Biden disse: “Considerei que seria determinante que não restassem dúvidas nenhumas sobre o apoio dos EUA à Ucrânia na guerra. (O objetivo desta visita é dizer que) “os EUA estão aqui para ficar. Não nos vamos embora.” Por cá, António Costa, servil e bem-educado como de costume, fez logo eco das palavras do patrão, jurando a pés juntos: “A paz é uma vontade universal, mas todos temos consciência de que essa paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia.” Ao mesmo tempo, no Parlamento Europeu, a maltesa que é sua presidente, Roberta Metsola, confessava: “Há muito dinheiro para a reconstrução da Ucrânia.” O que equivale a recomendar: “Partam, arrasem, derrubem, não deixem pedra sobre pedra, que o negócio vive disso, até na família de Joe Biden.” Hoje, ainda perplexo, pus-me a ouvir Putin em direto na CNN e dei comigo a pensar na desgraça daquele goraz colorido que fica com a cabeça apertada entre as pinças aceradas de uma mandíbula inalargável de um caranguejo gigante, porque é assim que a Rússia está, do Báltico ao Mar Negro, entalada entre a Finlândia, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a Letónia, a Estónia, a Lituânia, a Polónia, a Alemanha, a Hungria, a Roménia, a Bulgária a Moldova, a Ucrânia e a Turquia, todos natistas e com a dentuça afiada. E ouvi Putin dizer que suspendia a participação da Rússia no tratado START II, que limita os arsenais nucleares dos dois signatários, os EUA e Federação Russa, embora ele logo acrescentasse que nunca o seu país iniciaria um conflito de tal natureza. Só que não deixou de repetir, pela enésima vez, que a intenção da NATO quanto à natureza soberana do seu país é simplesmente existencial e que a resposta russa a tal ameaça não admite limites. Depois historiou detalhadamente o começo e a atuação do inimigo para concluir que “Eles querem a guerra e rejeitaram todas as nossas propostas de paz.” Imagino que nunca uma catástrofe dessas vai acontecer, porque até o vencedor estaria morto, ainda antes da vitória final, mas o que o momento presente me indicia é o empobrecimento de milhões e milhões de pessoas em todo o planeta, a compressão das liberdades e um ciclo perigosíssimo de retrocesso civilizacional. E acho mesmo que carnavais destes são absolutamente indesejáveis.
Carlos Coutinho VozesA nova praga urbana ESTÃO, infelizmente, desatualizados os números do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), mas ainda não há outros e eu nem por isso perdi o direito de os incorporar nestes apontamentos, não só pela sua dimensão, mas, sobretudo, pelo que significam. Além disso, não os vi atempadamente divulgados pela nossa Comunicação Social. Segundo o ACNUR, milhões de pessoas fugiram da Ucrânia devido à rápida deterioração da situação e às ações militares no país. São já 5,9 milhões as pessoas deslocadas dentro da Ucrânia. No total, mais de 14 milhões fugiram das suas casas, desde 24 de fevereiro de 2022. Trata-se do o maior movimento de refugiados, em 75 anos, na Europa. “A situação é cada vez mais instável, delicada e imprevisível, porque o número de pessoas em fuga está a aumentar a cada minuto” considera o ACNUR que acrescenta: “A maioria dos refugiados da Ucrânia são mulheres, crianças e pessoas mais velhas. Muitos chegam traumatizados às fronteiras de países vizinhos. Alguns tiveram de deixar as suas casas com pouca ou nenhuma bagagem, deixando todos os seus pertences para trás.” Vejamos, então, os “números atualizados a 16 de janeiro: mais 7,9 milhões de refugiados ucranianos registados em toda a Europa, acrescidos dos 4,9 milhões registados para proteção temporária ou sistemas nacionais de proteção semelhantes na Europa. Mais de 5 milhões de pessoas deslocadas internamente”. Enquanto isto, as forças em confronto em toda a Ucrânia intensificam os bombardeamentos, indiferentes ao número de cadáveres que deixam à vista e debaixo dos escombros. Fui ao “Euronews” tentar saber um pouco mais, porém só me apareceram culpas de um lado, como de costume. Mas nem por isso deixo de as recolher, visto me parecerem credíveis: “A Rússia continua a bombardear várias cidades ucranianas e iniciou a próxima grande ofensiva na região de Lugansk, no leste do país, segundo a informação avançada pelo Instituto para o Estudo da Guerra (ISW no acrónimo em inglêsi) num relatório recente. “As forças russas recuperaram terreno na Ucrânia e começaram a próxima grande ofensiva na região de Lugansk. O ritmo das operações russas ao longo da linha de Svatove-Kreminna, em Lugansk, aumentou acentuadamente durante a última semana. “O destacamento de elementos que fazem parte de pelo menos três grandes divisões russas especializadas em operações ofensivas para esta região indica que a ofensiva começou, mesmo que as forças ucranianas estejam até agora a impedir as tropas russas de conseguirem ganhos significativos”, segundo o relatório citado. E nunca informou que Zelensky tem 800 milhões de dólares em ‘offshores’ e que Joe Biden não o deixa abrir uma porta, por mais pequena que seja, para negociações de paz. Que números vou encontrar, quando voltar a estas pesquisas? À tarde QUEM nunca viveu em Lisboa ou no Porto, ou mesmo em Coimbra ou em Setúbal, não faz a mínima ideia de como uma boa intenção ganhou corpo e rapidamente se transformou numa praga, as trotinetes motorizadas. E, mesmo para os lisboetas é difícil lembrarem-se da altura em que se deu o seu boom. Verdes, brancas, cor de laranja, pretas, de aplicações ou pessoais, a verdade é que as trotinetes têm, cada vez mais, sido vistas como pragas, não só na capital como também noutros pontos do país. Afinal, ainda é uma alternativa de mobilidade que só aumentou o número de acidentes, já que, muitas vezes, são abalroadas por carros ou atropelam peões. Segundo o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central – que é constituído pelo Hospital S. José, Hospital Curry Cabral, Hospital Santa Marta, Hospital Santo António dos Capuchos, Hospital Dona Estefânia e Maternidade Dr. Alfredo da Costa –, em 2022, foram atendidas 995 pessoas na Urgência Geral e Polivalente do Hospital de S. José, devido a acidentes envolvendo trotinetas. No mesmo Segundo o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Centro – que é constituído pelo Hospital S. José, Hospital Curry Cabral, Hospital Santa Marta, Hospital Santo António dos Capuchos, Hospital Dona Estefânia e Maternidade Dr. Alfredo da Costa –, em 2022, foram atendidas 995 pessoas na Urgência Geral e Polivalente do Hospital de S. José, devido a acidentes envolvendo trotinetas. No mesmo período, recorreram ao Centro de Responsabilidade Integrado de Traumatologia Ortopédica 359 pessoas. Embora não exista registo de vítimas mortais, de acordo com os dados registados pelas forças de segurança, face ao crescente aumento destes utilizadores, o número de feridos tem vindo a aumentar, tendo-se registado 14 feridos graves de janeiro até novembro de 2022, que compara com três em 2019, e 399 feridos ligeiros que compara com 81 em 2019. Não haverá que regulamentar melhor a moda do uso deste meio de transporte?
Carlos Coutinho VozesVá-se lá saber porquê… CHAMA-SE Harald Kujat, é alemão e, em 2005, ainda era o presidente do Comité Militar da NATO, em Bruxelas. Tem também no seu currículo – ou no seu cadastro, não sei – a nota de que desempenhou o mais alto cargo na Bundeswehr, as Forças Armadas do seu país. O que sei é que, no dia 18 de Janeiro, deu a um jornal suíço, o “Zeits-Chehen-im-Focus.cgs”, uma entrevista muita esclarecedora que os média portugueses do sistema ou não viram ou não os deixaram ver tal como grande parte dos seus congéneres na Europa. Então, não é que o homem tem o descaramento de afirmar, relativamente à tragédia ucraniana, que “esta guerra podia ter sido impedida e devia ter sido impedida”? E acrescenta: “Talvez um dia se faça a pergunta de quem quis esta guerra, quem não a quis impedir e quem não a pôde impedir.” Perante um desabafo destes, só posso imaginar que o general está entre os que não conseguiram impedir o trágico desporto de Zelenski, Stoltenberg, Ursula von der Leyen e Joe Biden, este o dono deles todos, e que isso ainda hoje lhe dói, apesar de ser alemão e ter sido o que foi na NATO. Surpreendo-me ao verificar que um general de topo da Aliança Atlântica, que sabe muito bem o que são os tubarões e os outros predadores que ciclicamente vão a Davos acertar contas, seja capaz de pensar e afirmar que “não, esta guerra não é pela nossa liberdade. Os problemas de fundo que conduziram à guerra e que fazem com que ela ainda decorra, embora pudesse ter acabado há muito, são bem diferentes. (…) O objectivo (dos EUA) é enfraquecer a Rússia, do ponto de vista político, económico e militar, a tal grau que depois se possa virar para o seu rival geopolítico, o único capaz como potência mundial: a China”. Kujat lembra também que, de acordo com informações fidedignas, o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson interveio em Kiev a 9 de Abril (de 2022), para impedir a assinatura do acordo Ucrânia-Rússia alcançado nas negociações realizadas em Istambul”. E pergunta: “Quem fez explodir o Nordstream 2?” Como é sabido, Angela Merkel, depois muito apertada em e em Bruxelas, lá confessou “apenas ter assinado os acordos Minsk II (2015) para dar tempo à Ucrânia e a Ucrânia usou esse tempo para construir a suas Forças Armadas. O ex-presidente francês François Hollande confirmou isso mesmo.” A minha sorte é ainda haver jornais como o “Avante!”, onde Jorge Cadima pôde escarrapachar isto e muito mais na edição de 2 de Fevereiro. Mas, para saber mais da presidente da União Europeia, tive de suar as estopinhas, talvez por serem escassos os dados que poderiam interessar-me especialmente neste breve apontamento. Lá fui pesquisando à minha maneira e pouco mais apurei que Ursula von der Leyen ter sido acusada de plágio na sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina em Hanôver, Alemanha. Casou-se, apesar disso, ou por causa disso, com o director executivo de uma empresa de engenharia biomédica e aprendeu tanto com ele que, em 2013, a tal chanceler filha de padre fez dela ministra da Defesa, podendo assim chefiar à sua maneira a Bundeswehr que nem depois de Hitler mudou de nome. É daí que vão sair uns quantos Leopard 2 para a Ucrânia, onde a guerra vai continuar, até estar outra pronta para eclodir, porque a indústria de armamento precisa de clientes e não deve contribuir para a vaga de desemprego que flagela os EUA e a própria Alemanha já em recessão. À tarde AVERROIS, que já foi embora há 854 anos, disse coisas que me fazem pensar muito sempre que oiço frau Ursula von der Leyen, uma loiraça alemã que se delicia com tropas e guerras, onde quer que seja. Chamava-se Abu Alualide Maomé ibne Amade ibne Maomé ibne Ruxide, nasceu em Córdova num tempo cruel em que viver era uma aventura dos diabos e foi morrer a Marraquexe, em Marrocos. Era um supersábio, ou polímata, porque sabia tudo sobre medicina, filosofia, teologia, medicina, astronomia, matemática, física, jurisprudência, direito islâmico e linguística. Serviu muitas vezes tanto de juiz como de médico, mas nem por ser um neoaristotélico, se coibiu de criticar o seu avatar grego. Só muitos séculos depois, um outro génio que dava pelo nome de Leonardo Da Vinci, o conseguiu imitar em desarricanços de polímata. Nasceu em Córdova, em 1126, numa família de juízes proeminentes — um seu avô era o célebre juiz supremo da cidade —, mas em 1195 foi alvo de várias acusações, provavelmente por razões políticas, exilou-se em Lucena. Era forte defensor do aristotelismo que tanto agradava a alguns eminentes teólogos católicos, até porque verberava as tendências neoplatónicas de pensadores muçulmanos anteriores, como Alfarábi e Avicena, que também eram polímatas, mas não tanto. O seu pensamento gerou brutais controvérsias na cristandade latina, desencadeando um movimento filosófico baseado em seus ensinamentos, Averroísmo, mereceu a condenação pela Igreja Católica em 1270 e 1277. Embora enfraquecido pelas críticas de um teólogo como Tomás de Aquino, que via na mulher a sede do mal, o averroísmo latino permaneceu e atraiu importantes seguidores, durante o século XVI, e a verdade é que, ainda hoje, o celibato é uma condenação irremissível para os eclesiásticos católicos. No âmbito religioso, a interpretação do Corão por Averróis estabelece que há verdades óbvias para o povo, místicas para o teólogo e científicas para o filósofo. E todas podem estar em desacordo umas com as outras. Então, havendo o conflito, os textos devem ser interpretados alegoricamente. É daí que decorre a ideia herética de que existem duas verdades, em que uma proposição pode ser teologicamente falsa e filosoficamente verdadeira. E vice-versa. Averróis teve o favor e a protecção de vários sultões, até que foi desterrado para Marrocos, onde faleceu pouco depois, na corte de Iacube Almançor. Deste Almançor terão muito que dizer os portugueses, mas isso não é agora para aqui chamado. Rafael pintou Averróis em Atenas, uma cidade onde ele nunca esteve. Vá-se lá saber porquê…
Carlos Coutinho VozesÉ obra! AGORA que o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros revelou a sua ternura pelos beligerantes ucranianos e até acha muito boa a generosa política de beneficência da NATO na guerra da Ucrânia, mesmo que isso resulte em mais tempo para morrerem ucranianos, russos e outros infelizes de duvidosa proveniência (mercenários internacionais, polacos e letões com dupla nacionalidade arranjada à pressa), a CNN, que nem sequer esconde as suas simpatias e as dos seus donos por Zelensky, atreve-se a informar que João Gomes Cravinho participa no capital de uma empresa imobiliária juntamente com um sócio condenado por fraude fiscal. Francamente… A empresa em causa, de nome Eurolocarno, tem como sócio um tal Marcos Lagoa, condenado no processo que lesou os CTT, através da venda de imóveis e já teve também como sócio António Barão, que participou num negócio que lesou o Novo Banco em 270 de euros, deixando-nos a nós a pagar. Eu acredito piamente na sinceridade do ministro quando revelou à CNN que não tinha conhecimento dos problemas judiciais dos sócios. Então não é comovente a candura de uma alma que entra numa sociedade empresarial com tão notórios desconhecidos? Então isto não é tudo boa gente? E não bastava sabermos que o ministro João Gomes Cravinho, enquanto pôde, fingiu não saber que a derrapagem do Hospital Militar de Belém triplicou os custos, quando ele era ministro da Defesa? Despesa que foi orçamentada, recorde-se, como de 750 mil euros e passou rapidamente para mais de 3 milhões. Que nós todos tivemos de pagar, como não podia deixar de ser, até porque num estado de direito é assim mesmo que se procede. E não temos de lhe agradecer a sua imensa e magnânima influência nas decisões estratégicas da NATO que, sentindo que a credibilidade da Aliança Atlântica estava a entrar em défice, ordenou a Zelensky uma lavagem profunda na sujeira governamental de Kiev, dadas as personalidades que rodeiam o excelso Presidente? Vejamos os primeiros resultados: Em menos de 24 horas, segundo o britânico “The Guardian”, “contabilizam-se já 11 saídas do poder em Kiev. E nos últimos 4 dias, são já 12. A lista prossegue com a demissão de 5 governadores regionais: Valentina Reznichenko, da região de Dnipropetrovsk, Oleksandra Starukha, da região de Zaporíjia, Oleksiy Kuleba, governador de Kiev, Dymtro Zhivytskyi, da região de Sumy, e, por fim, Yaroslav Yanushevich, governador da região de Kherson. Por fim, para já, Oleg Nemchinov, secretário do gabinete da presidência, confirmou também a saída de Vitaliy Muzychenko, vice-ministro da Política Social.” Vyacheslav Negoda, ministro-adjunto do Desenvolvimento dos Territórios da Ucrânia, demitiu-se do cargo. Também Ivan Lukerya, ministro-adjunto das Comunidades, assim como o ministro adjunto da Defesa, Vyacheslav Shapovalov, apresentaram a demissão. O procurador-geral-adjunto da Ucrânia, Oleksiy Symonenko, foi ontem corrido do cargo, durante uma reunião de altos funcionários. Então, não seria de ter mais compreensão pelo nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, pelo nosso Primeiro-Ministro e pelo nosso Presidente da República? À tarde ATÉ no Vaticano a guerra está muito acesa, embora se desenrole sobre as alcatifas e à meia luz na Cúria, ora rastejando, ora trepando pelas paredes carregadas de santos e beatificados, clérigos e não tonsurados. Ao que consta, uma carta com remetente do Vaticano deixou os bispos alemães em estado de choque e de candeias à avessas com o Papa Francisco e a sua governança da Igreja Católica, porque se diz na incendiária missiva que os bispos germânicos não podem de maneira alguma criar um órgão de governo independente para gerir a igreja no seu país. Tal órgão foi aprovado em Setembro, em Frankfurt, por bispos e leigos seus cúmplices, no sentido se superar “a estrutura rígida, fechada, opaca que terá contribuído para manter impunes, durante muitos anos, os casos de abusos sexuais no seu interior”. Muitos dos quais, ao que também constava, eram virilmente praticados por clérigos alemães. “Desejamos deixar claro que nem o caminho sinodal, nem nenhum organismo por ele estabelecido, nem nenhuma conferência episcopal tem competências para estabelecer um conselho sinodal a nível nacional, diocesano ou paroquial”, diz a tal carta datada de 16 de Janeiro. Quem fala assim não é gago. O Papa Francisco, que está perfeitamente de acordo, vem a Lisboa encontrar-se com a juventude mundial e já prometeu resignar a seguir. Encontra-se em adiantado estado de preparação um palco à beira do Trancão que vai custar mais de 6 milhões de euros. É obra! Viva a comissão fabriqueira! No final, os custos da vinda do Papa a Lisboa poderão ultrapassar os 80 milhões. Para isso e muito mais é que existem os contribuintes e os impostos, graças a Deus. Viva a Pátria que é uma nação valente! Vivam os heróis do mar e o nobre povo!
Carlos Coutinho VozesPercebi! CUMPRIDO um mês sobre o solstício de inverno, o sol já aquece um bocadinho mais e o dia cresceu alguns minutos. Já não era sem tempo, dirá qualquer cidadão da minha e das outras ruas de Portugal. Mas vai arrepender-se do desabafo, porque já cá estão a chegar os gelos, as neves e os ventos desastrosos que andam a matar gente por todo e hemisfério norte. Em contrapartida, no hemisfério político que também está a norte, a temperatura não para de subir. Enquanto em Davos, Suíça, os donos da alta finança e da grande indústria discutem que ordens dar à NATO e seus capatazes nacionais, sete generais israelenses na reserva subscrevem uma carta aberta que o “Haaretz” publicou, reportando a manifestação em Telavive de dezenas de milhares de judeus alarmados com os planos do seu primeiro-ministro, Benjamin Natanyahu. O objetivo de curto prazo deste neofascista réu de corrupção e de outras tranquibérnias, é retirar poder ao Supremo Tribunal e deixar o Parlamento sem um organismo que possa decretar a inconstitucionalidade de qualquer lei, mas o objetivo imediato é a anexação pura e simples da Cisjordânia, que divide em Samaria e Judeia, significando estas a parte principal da Palestina mártir ainda não totalmente ocupada. Os sete generais, que são tão hebreus e sionistas como os outros compatriotas seus, escrevem que existem riscos de ser assim criada “uma nova realidade que levará a uma crise de segurança, diplomática e social”. Os políticos – frisam os signatários da carta aberta – desconhecem, por um lado, “o que está envolvido na administração da vida e segurança nos territórios” e por outro, têm “uma crença religiosa na anexação, primeiro de facto e depois de jure de território na Judeia e Samaria. O resultado será o desmoronamento e a eliminação da Autoridade Palestiniana”, apesar de reconhecida pela ONU e pelo resto do mundo. Perante notícias destas, preparei-me para aceitar e até reforçar a indignação dos portugueses – Governo e cidadãos – e qual não foi a minha surpresa? Isabel Santos, eurodeputada e dirigente do PS, aparece hoje no “Público” a rasgar as vestes por Macau, clamando contra o “desprezo da ditadura de Pequim pelos mais elementares direitos, liberdades e garantias”. Aux armes, citoyens! Tadinhos dos herdeiros de Stanley Ho, o rei do jogo de Macau e do Estoril! – suspirei. Sobre Israel, silêncio absoluto da Isabel e do Estado Maior do Largo do Rato. Como é possível? Espremendo os miolos, lembrei-me de uma biografia exemplar, a do pai e avatar da Isabel, o falecido António de Almeida Santos, Presidente da Assembleia da República e da Assembleia Geral da GEO Capital – Investimentos Estratégicos que foi, ao lado do impoluto Mário Soares e do seu devoto Jorge Coelho, um indómito defensor da Ota para sede do Aeroporto Internacional de Lisboa. Sei que Macau ensinou muito ao ministro que tentou lavar as mãos com a água do Douro em Entre-os-Rios, demitindo-se estrondosamente para poder ascender a CEO do santo Grupo Mota-Engil luso-angolano. Sempre se deu bem com Almeida Santos e este, nascido em Seia muito antes dos incêndios na Serra da Estrela, começou por ser o talentoso Toninho que tocava guitarra em Coimbra e depois foi para Lourenço Marques, hoje Maputo, advogar e não sei se fazer algo mais. Quando voltou, tornou-se o estrumador especial e providencial do terreno jurídico-constitucional, onde capciosamente se opôs a Álvaro Cunhal e onde o PS e o PPD puseram a semente da UGT, que brotou, medrou e está a dar os sumarentos frutos de que se alimenta a gulosa tríade dominante na Comissão Permanente da Concertação Social, constituída pelas confederações patronais da indústria, do comércio e da agricultura. Ah, percebi! À tarde EVITA Perón, que não viveu o suficiente para ouvir a Madona cantar “Don’t Cry for Me, Argentina” (“Não chores por mim, Argentina”), chamou “descamisados” aos muitos milhares de pobres que se manifestavam na década de 60, na Praça de Maio, em Buenos Aires, frente ao palácio do Governo, a Casa Rosada. “Para mim”, explicou mais tarde a esbelta primeira dama, “descamisado é o (…) que ama, sofre e goza como povo, mesmo que não se vista como povo. Descamisado é o que esteve na Praça de Maio no 17 de outubro, ou quis estar. Descamisado é o povo, culturalmente inferior, que aceita, com honra, essa inferioridade, porque, no fundo, se sente forte, por meio do seu líder, e potencialmente superior, porque, por seu intermédio, se sente ascender a uma nova dignidade.” Para o comum dos portugueses, “descamisado” tem quase só a ver com as maçarocas do milho e significa “despojado do folhelho”. Daí, as tão celebradas desfolhadas. Ou seja, sem a casca ou, numa interpretação mais livre, sem a capa do poder, como agora o ex-ministro Matos Fernandes chamou ao grupo de WhatsApp que criou para os inocentes jantares-convívio que têm juntado outros ex-ministros dos governos de António Costa (Marta Temido, Siza Vieira, Brandão Rodrigues, Alexandra Leitão, João Leão e Graça Fonseca). A ideia dos repastos dos descamisados começou depois das últimas eleições legislativas e o próximo convívio de faca e garfo já deverá contar com Pedro Nuno Santos. O que me intriga em toda esta inocência é que nenhum deles é pobre e até inclui o atual ministro hipernatista João Cravinho. Quem vai escrever os próximos capítulos da novela? E vão ser em estilo jocoso, dramático ou claramente conspirativo, à moda de Le Carré? * SÃO mais de 40 milhões (Portugal multiplicado por 4) os curdos divididos por 5 países: Turquia, Irão, Síria, Iraque e Arménia. O seu país natural e necessário continua adiado por vontade dos EUA, da NATO e da própria ONU que nem disto querem ouvir falar. Será por Saladino ter sido um curdo e haver conquistado grande parte o ocidente cristão? E não haverá na mártir Ucrânia quem levante esta questão aos dois contendores?
Carlos Coutinho VozesNão posso crer Ainda não consegui superar a minha velha dificuldade em pensar racional e friamente em certas pessoas antigas, mitificadas ou não, porque, apesar de todos os esforços que faço para me adaptar a uma norma ética no seu e no meu tempo, acabo sempre por descobrir que cada preconceito que estrangulo é sistematicamente substituído por outro, quase sempre o seu inverso. A ética de Aristóteles ou Plutarco opõe-se mesmo à de Cristo e de Espártaco? E a razão dos cátaros é maior ou menor que a dos iluminados? E a resistência pacífica de Francisco de Assis e a de Gandhi causaram menos ou mais mortos que a luta armada, na Europa, na Ásia, e na Africa? E o calculismo de Maquiavel é mais lúcido e menos justo que o de Giordano Bruno e de Lutero? Como definir ou simplesmente contabilizar o saldo da contradição entre ambas as escolhas? Como avaliar a necessidade do predador e a da presa? Como não perguntar como Garrett quantos pobres são precisos para fazer um rico? Mais concretamente, como enriqueceram os brasileiros de torna-viagem? Assaltam-me estas questões, quando, por exemplo, me ponho a pensar na personalidade do Infante D. Henrique ou na de Luís de Camões. Um deixou morrer o irmão numa enxovia prisional de Marrocos para não devolver a cidade sarracena que havia conquistado e deixar saquear no meio de um morticínio, além de ser filho de rei e comandante de corsários no Mediterrâneo. Comandou drasticamente, com a insanidade da sua misoginia, o início da globalização económica mercantil e amoral, bem como a escravatura como um objetivo económico. E como avaliar a honorabilidade de Camões sabendo dos seus poucos escrúpulos nos dias e noites de Lisboa, da Ilha de Moçambique, de Macau, etc., sabendo-o um marginal, um zaragateiro contumaz e, tantas vezes, um alcoólatra completamente destrambelhado? Tudo isto apesar da sua dimensão enquanto persona genial só comparável na Europa a Homero, a Petrarca e a Shakespeare. E como distinguir a responsabilidade de um pedófilo, de um toureiro, ou de um vendedor de droga a miúdos e graúdos nas imediações das escolas e de certos cafés, como o da minha rua? Porque não deixaram nem os gregos, nem Marx uma noção intemporal da diferença ontológica entre o moral e o imoral, até porque como amoral apenas sei do pragmatismo? Mao terá cometido erros e talvez alguns graves, tal tomo todos seus sucessores, incluindo o actual, mas o que estamos a ver é um desempobrecimento de milhões de chineses e o fulgurante progresso do seu país. É caso para recordar o autocrata Marquês de Pombal e questionarmo-nos se o despotismo esclarecido foi uma perversão ou uma salvífica emergência. Não gostaria de chafurdar no pântano do relativismo e muito menos no conforto insano do pensamento norte-americano, tantas vezes imitado pelos britânicos e por tantos outros, mas a pandemia de antivalores e de outros vírus de ocasião, mas temo que seja mesmo um risco muito sério para quem dá prioridade à sobrevivência e ao sucesso pessoal ou coletivo. Veja-se a história do Cristianismo e de todas as outras religiões e desígnios nacionais. Quem sabe se o papa emérito não estaria ainda traumatizado pelo escândalo de pedofilia que envolveu o seu mano Padre Georg e o arranhou também a ele, quando ambos eram sacerdotes em Munique… À tarde Ninguém esperava, julgo eu, que o ano de 2023, além das sequelas da pandemia e da continuação do morticínio russo-ucraniano, tivesse também de suportar a carga de ridículo que Lula não conseguiu evitar num Brasil já tão ferido de tragédias e de irrisão. Já tinha caído no esquecimento a postura bacoca da Presidente Dilma Rousseff, quando decretou que passaria a ser tratada por “Presidenta”, acabando corrida de Brasília por sofrer um “impeachment” injusto que teve outras razões, mas aparece agora algo ainda mais patético – a nova ministra da Cultura do enorme Brasil, a cantora baiana Margareth Menezes, já descobriu e mandou usar três géneros na morfologia dos substantivos. Exemplo: todos, todas e “todes”. Não sei se este dislate resulta de pressões vindas de algum ‘lobby’ do universo LGTBI, que eu muito estranharia ver acatar por uma dengosa e morena filha da Baía, ou se é apenas uma ressonância da castiça pronúncia da beirã Alcains, onde o seu mais célebre filho, o ex-Presidente Eanes, aprendeu a falar. O que sei é que ainda não logrei serenar, entre o riso e a náusea, vendo que vários ministros de Lula já começaram a também dizer “todes”. Será que o novo Presidente vai ceder à palermice inqualificável da sua ministra da Cultura que corre o risco de ser vazada para o Ministério da Coltura, onde Bolsonaro aprendeu a falar? Não posso crer. Nem com um Colt apontado à minha cabeça.