Crepúsculos

Choveu esta noite, forte e feio. A meio da manhã, em todo o Douro, o céu ainda era um dossel total em tons de chumbo que impunha uma espécie de crepúsculo matinal. Tudo continuava molhado nesta varanda, nestas vinhas em cascata e em toda a paisagem apreensível.

Parecia urgente voltar a adormecer e em nada pensar. Só que o meu pensamento é rebelde, mesmo quando não deve, e mantém tiques de mergulhador – entre outros desvarios, foi cair em Tordesilhas.

Aconteceu aí, num dia 7 como o de hoje, a assinatura de um acordo internacional que ficou para a História com o título de “Tratado de Tordesilhas”.

Foi em junho, no ano de 1494, que os altos representantes do Reino de Portugal e da Coroa de Castela firmaram um compromisso que atribuía a propriedade das terras “descobertas e a descobrir” de um lado e do outro do Atlântico, tendo como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. Por isso é que os idiomas dominantes, ainda hoje, no Brasil e no Chile, respetivamente, são o português e o castelhano, enquanto no país da morna predomina o crioulo.

É bom recordar tudo isto, porque o incumprimento de acordos e tratados está a fazer uma guerra fratricida na Ucrânia e, aqui para nós que ninguém nos ouve, até o caudilho Franco chegou a arquitetar uma grande operação de conquista de Portugal ainda antes de iniciar a Guerra Civil de Espanha, em 1936.

O Tratado de Tordesilhas foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494. Do lado português estiveram presentes na cerimónia Rui de Sousa, senhor de Sagres e Beringel, o seu filho João Rodrigues de Sousa, almotacém-mor, e Aires de Almada, corregedor dos feitos civis na corte e do desembargo real.

*

FIQUEI hoje a saber de um terrível desastre português, já bem visível do Minho ao Algarve, que resulta igualmente das alterações climáticas que ontem aqui chamei e que atacam, de facto, não só os pássaros, mas também os outros seres viventes, incluindo a fauna humana, porque todos dependem fundamentalmente de haver água no céu e na terra.

No final de abril já estavam oficialmente em situação de seca severa, no nosso país, 40 concelhos e em seca extrema 27, o que corresponde a 40% do território continental. A manter-se a falta de chuva, muitas hortas e quintais vão sendo abandonados, canteiros floridos vão murchando, não poucas vinhas vão sendo menos cuidadas e milhares e milhares de árvores vão fenecendo. Assim, daqui a poucos anos, vai ser dramática a continuação da falta de chuva e o envelhecimento das populações rurais e urbanas, já que vão instalar em Portugal grandes áreas desérticas, mesmo que se passe, como acontece em boa parte da França, a um regime drástico de racionamento do precioso líquido no consumo doméstico, à proibição do uso e da comercialização de piscinas, bem como o fim da lavagem de carros e da rega de jardins e mesmo interdição de novas edificações em localidades em que menos de um terço das casas apenas sejam habitadas sazonalmente pelos proprietários de segundas habitações ou por turistas.

Talvez surpreenda que os franceses, apesar da sua história cultural, ainda tenham casos extremos de religiosidade popular como aqueles que nós registamos relativamente a Fátima, ou em povoações que organizam procissões a pedir água a Deus e a sua mãe.

Na sua crónica de ontem, no “Público”, Ana Cristina Leonardo contava que “em Perpignan, terra fronteiriça frequentada por Dali e Picasso, a falta de água atingiu proporções tais que as forças católicas locais decidiram reavivar, no passado mês de maio, uma procissão esquecida há quase 150 anos. Em devoção do santo Galderic (nome catalão), um santo de origem camponesa já conhecido no século IX (e provavelmente até os menos crentes…) percorreram as ruas de Perpignan implorando chuva ao Altíssimo.

Não foi o único cortejo realizado na região dos Pirenéus Orientais. Se, entretanto, não chover, a meio de agosto não haverá mais água” aproveitável em toda essa região.

Acresce que uma reportagem de há um ano e picos, realizada pela BBC, mostrava que a escassez de água já afeta aproximadamente 40% da população mundial, segundo estimativas da ONU e do Banco Mundial que calculam para 2030 o número terrível de 700 milhões de deslocados em consequência das secas. Em simultâneo, na Europa, na Ásia, na África e nas Américas, sucedem-se as tempestades catastróficas, as inundações navegáveis, a submersão de extensas regiões, os aluimentos e derrocadas de terras com arrastamento de casas e milhares de mortos e desalojados, além de mobilidades várias.

Estou em Vila Real, onde tem chovido nos últimos dias e há previsão de trovoadas e brutais ganizadas, mas ainda não ouvi alguém falar de procissões nem de outras rezas coletivas. Não me admiraria se Dali ou Picasso, ressuscitados por um milagre de Fátima, preferissem vir passar nas civilizadas faldas do Marão os últimos dias das suas vidas.

A nossa embaixada foi secretariada por Estêvão Vaz e teve como testemunhas João Soares de Siqueira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira. Por parte de Castela e Aragão, o mordomo-mor D. Henrique Henríquez, D. Guterre de Cárdenas, comendador-mor, e o doutor Rodrigo Maldonado, secretariados por Fernando Álvarez de Toledo, que levaram consigo três testemunhas, Pêro de Leão, Fernando de Torres e Fernando Gamarra, nomes agora nada nos dizem, mas que talvez se arrependessem hoje de grande parte do que impuseram uns aos outros.

Os originais encontram-se depositados no Archivo General de Indias, na Espanha, e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, onde são consultáveis, mas deixaram de vigorar a partir de 1750, quando ambas as coroas estabeleceram novos limites fronteiriços para a divisão territorial nas colónias sul-americanas, concordando que rios e montanhas seriam usados para demarcação dos limites.

Portugal, buscando proteger o seu investimento, já tinha negociado com Castela em 1479 o Tratado de Alcáçovas, obtendo em 1481, do Papa Sisto VI a bula Æterni regis, que dividia as terras descobertas e a descobrir de ambos os lados do paralelo que passa pelas Canárias.

Foi como dividir o mundo em dois hemisférios e deixar o do norte para a Castela e o do sul para Portugal, resultado a que se somavam o efeitos das duas outras bulas anteriores a Dum Diversas, de 1452, e a Romanus Pontifex, de 1455, do Papa Nicolau V, que concedia à Ordem de Cristo todas as terras conquistadas e a conquistar a sul do cabo Bojador e da Gran Canária.

Gentes e bichos que lá vivessem eram bons para o tráfico de escravos e para a caça grossa, que dava muito jeito a conquistadores e missionários. Claro que as negociatas não acabaram aqui, mas já chega de curiosidades pouco edificantes.

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