Percebi!

CUMPRIDO um mês sobre o solstício de inverno, o sol já aquece um bocadinho mais e o dia cresceu alguns minutos. Já não era sem tempo, dirá qualquer cidadão da minha e das outras ruas de Portugal. Mas vai arrepender-se do desabafo, porque já cá estão a chegar os gelos, as neves e os ventos desastrosos que andam a matar gente por todo e hemisfério norte.

Em contrapartida, no hemisfério político que também está a norte, a temperatura não para de subir. Enquanto em Davos, Suíça, os donos da alta finança e da grande indústria discutem que ordens dar à NATO e seus capatazes nacionais, sete generais israelenses na reserva subscrevem uma carta aberta que o “Haaretz” publicou, reportando a manifestação em Telavive de dezenas de milhares de judeus alarmados com os planos do seu primeiro-ministro, Benjamin Natanyahu.

O objetivo de curto prazo deste neofascista réu de corrupção e de outras tranquibérnias, é retirar poder ao Supremo Tribunal e deixar o Parlamento sem um organismo que possa decretar a inconstitucionalidade de qualquer lei, mas o objetivo imediato é a anexação pura e simples da Cisjordânia, que divide em Samaria e Judeia, significando estas a parte principal da Palestina mártir ainda não totalmente ocupada.

Os sete generais, que são tão hebreus e sionistas como os outros compatriotas seus, escrevem que existem riscos de ser assim criada “uma nova realidade que levará a uma crise de segurança, diplomática e social”.

Os políticos – frisam os signatários da carta aberta – desconhecem, por um lado, “o que está envolvido na administração da vida e segurança nos territórios” e por outro, têm “uma crença religiosa na anexação, primeiro de facto e depois de jure de território na Judeia e Samaria. O resultado será o desmoronamento e a eliminação da Autoridade Palestiniana”, apesar de reconhecida pela ONU e pelo resto do mundo.

Perante notícias destas, preparei-me para aceitar e até reforçar a indignação dos portugueses – Governo e cidadãos – e qual não foi a minha surpresa? Isabel Santos, eurodeputada e dirigente do PS, aparece hoje no “Público” a rasgar as vestes por Macau, clamando contra o “desprezo da ditadura de Pequim pelos mais elementares direitos, liberdades e garantias”. Aux armes, citoyens!

Tadinhos dos herdeiros de Stanley Ho, o rei do jogo de Macau e do Estoril! – suspirei.
Sobre Israel, silêncio absoluto da Isabel e do Estado Maior do Largo do Rato.
Como é possível?
Espremendo os miolos, lembrei-me de uma biografia exemplar, a do pai e avatar da Isabel, o falecido António de Almeida Santos, Presidente da Assembleia da República e da Assembleia Geral da GEO Capital – Investimentos Estratégicos que foi, ao lado do impoluto Mário Soares e do seu devoto Jorge Coelho, um indómito defensor da Ota para sede do Aeroporto Internacional de Lisboa.

Sei que Macau ensinou muito ao ministro que tentou lavar as mãos com a água do Douro em Entre-os-Rios, demitindo-se estrondosamente para poder ascender a CEO do santo Grupo Mota-Engil luso-angolano. Sempre se deu bem com Almeida Santos e este, nascido em Seia muito antes dos incêndios na Serra da Estrela, começou por ser o talentoso Toninho que tocava guitarra em Coimbra e depois foi para Lourenço Marques, hoje Maputo, advogar e não sei se fazer algo mais.

Quando voltou, tornou-se o estrumador especial e providencial do terreno jurídico-constitucional, onde capciosamente se opôs a Álvaro Cunhal e onde o PS e o PPD puseram a semente da UGT, que brotou, medrou e está a dar os sumarentos frutos de que se alimenta a gulosa tríade dominante na Comissão Permanente da Concertação Social, constituída pelas confederações patronais da indústria, do comércio e da agricultura.
Ah, percebi!

À tarde

EVITA Perón, que não viveu o suficiente para ouvir a Madona cantar “Don’t Cry for Me, Argentina” (“Não chores por mim, Argentina”), chamou “descamisados” aos muitos milhares de pobres que se manifestavam na década de 60, na Praça de Maio, em Buenos Aires, frente ao palácio do Governo, a Casa Rosada.

“Para mim”, explicou mais tarde a esbelta primeira dama, “descamisado é o (…) que ama, sofre e goza como povo, mesmo que não se vista como povo. Descamisado é o que esteve na Praça de Maio no 17 de outubro, ou quis estar.

Descamisado é o povo, culturalmente inferior, que aceita, com honra, essa inferioridade, porque, no fundo, se sente forte, por meio do seu líder, e potencialmente superior, porque, por seu intermédio, se sente ascender a uma nova dignidade.”

Para o comum dos portugueses, “descamisado” tem quase só a ver com as maçarocas do milho e significa “despojado do folhelho”. Daí, as tão celebradas desfolhadas. Ou seja, sem a casca ou, numa interpretação mais livre, sem a capa do poder, como agora o ex-ministro Matos Fernandes chamou ao grupo de WhatsApp que criou para os inocentes jantares-convívio que têm juntado outros ex-ministros dos governos de António Costa (Marta Temido, Siza Vieira, Brandão Rodrigues, Alexandra Leitão, João Leão e Graça Fonseca).

A ideia dos repastos dos descamisados começou depois das últimas eleições legislativas e o próximo convívio de faca e garfo já deverá contar com Pedro Nuno Santos.

O que me intriga em toda esta inocência é que nenhum deles é pobre e até inclui o atual ministro hipernatista João Cravinho. Quem vai escrever os próximos capítulos da novela? E vão ser em estilo jocoso, dramático ou claramente conspirativo, à moda de Le Carré?

*

SÃO mais de 40 milhões (Portugal multiplicado por 4) os curdos divididos por 5 países: Turquia, Irão, Síria, Iraque e Arménia. O seu país natural e necessário continua adiado por vontade dos EUA, da NATO e da própria ONU que nem disto querem ouvir falar.
Será por Saladino ter sido um curdo e haver conquistado grande parte o ocidente cristão?
E não haverá na mártir Ucrânia quem levante esta questão aos dois contendores?

19 Jan 2023

Não posso crer

Ainda não consegui superar a minha velha dificuldade em pensar racional e friamente em certas pessoas antigas, mitificadas ou não, porque, apesar de todos os esforços que faço para me adaptar a uma norma ética no seu e no meu tempo, acabo sempre por descobrir que cada preconceito que estrangulo é sistematicamente substituído por outro, quase sempre o seu inverso.

A ética de Aristóteles ou Plutarco opõe-se mesmo à de Cristo e de Espártaco?
E a razão dos cátaros é maior ou menor que a dos iluminados?
E a resistência pacífica de Francisco de Assis e a de Gandhi causaram menos ou mais mortos que a luta armada, na Europa, na Ásia, e na Africa?

E o calculismo de Maquiavel é mais lúcido e menos justo que o de Giordano Bruno e de Lutero?
Como definir ou simplesmente contabilizar o saldo da contradição entre ambas as escolhas?
Como avaliar a necessidade do predador e a da presa?

Como não perguntar como Garrett quantos pobres são precisos para fazer um rico?
Mais concretamente, como enriqueceram os brasileiros de torna-viagem?

Assaltam-me estas questões, quando, por exemplo, me ponho a pensar na personalidade do Infante D. Henrique ou na de Luís de Camões. Um deixou morrer o irmão numa enxovia prisional de Marrocos para não devolver a cidade sarracena que havia conquistado e deixar saquear no meio de um morticínio, além de ser filho de rei e comandante de corsários no Mediterrâneo. Comandou drasticamente, com a insanidade da sua misoginia, o início da globalização económica mercantil e amoral, bem como a escravatura como um objetivo económico.

E como avaliar a honorabilidade de Camões sabendo dos seus poucos escrúpulos nos dias e noites de Lisboa, da Ilha de Moçambique, de Macau, etc., sabendo-o um marginal, um zaragateiro contumaz e, tantas vezes, um alcoólatra completamente destrambelhado? Tudo isto apesar da sua dimensão enquanto persona genial só comparável na Europa a Homero, a Petrarca e a Shakespeare.

E como distinguir a responsabilidade de um pedófilo, de um toureiro, ou de um vendedor de droga a miúdos e graúdos nas imediações das escolas e de certos cafés, como o da minha rua?

Porque não deixaram nem os gregos, nem Marx uma noção intemporal da diferença ontológica entre o moral e o imoral, até porque como amoral apenas sei do pragmatismo?

Mao terá cometido erros e talvez alguns graves, tal tomo todos seus sucessores, incluindo o actual, mas o que estamos a ver é um desempobrecimento de milhões de chineses e o fulgurante progresso do seu país. É caso para recordar o autocrata Marquês de Pombal e questionarmo-nos se o despotismo esclarecido foi uma perversão ou uma salvífica emergência.

Não gostaria de chafurdar no pântano do relativismo e muito menos no conforto insano do pensamento norte-americano, tantas vezes imitado pelos britânicos e por tantos outros, mas a pandemia de antivalores e de outros vírus de ocasião, mas temo que seja mesmo um risco muito sério para quem dá prioridade à sobrevivência e ao sucesso pessoal ou coletivo. Veja-se a história do Cristianismo e de todas as outras religiões e desígnios nacionais.

Quem sabe se o papa emérito não estaria ainda traumatizado pelo escândalo de pedofilia que envolveu o seu mano Padre Georg e o arranhou também a ele, quando ambos eram sacerdotes em Munique…

À tarde

Ninguém esperava, julgo eu, que o ano de 2023, além das sequelas da pandemia e da continuação do morticínio russo-ucraniano, tivesse também de suportar a carga de ridículo que Lula não conseguiu evitar num Brasil já tão ferido de tragédias e de irrisão.

Já tinha caído no esquecimento a postura bacoca da Presidente Dilma Rousseff, quando decretou que passaria a ser tratada por “Presidenta”, acabando corrida de Brasília por sofrer um “impeachment” injusto que teve outras razões, mas aparece agora algo ainda mais patético – a nova ministra da Cultura do enorme Brasil, a cantora baiana Margareth Menezes, já descobriu e mandou usar três géneros na morfologia dos substantivos. Exemplo: todos, todas e “todes”.

Não sei se este dislate resulta de pressões vindas de algum ‘lobby’ do universo LGTBI, que eu muito estranharia ver acatar por uma dengosa e morena filha da Baía, ou se é apenas uma ressonância da castiça pronúncia da beirã Alcains, onde o seu mais célebre filho, o ex-Presidente Eanes, aprendeu a falar.

O que sei é que ainda não logrei serenar, entre o riso e a náusea, vendo que vários ministros de Lula já começaram a também dizer “todes”.

Será que o novo Presidente vai ceder à palermice inqualificável da sua ministra da Cultura que corre o risco de ser vazada para o Ministério da Coltura, onde Bolsonaro aprendeu a falar?
Não posso crer. Nem com um Colt apontado à minha cabeça.

13 Jan 2023

Da inquietação ou o inexplicável brinco de pérola

Estamos todos a ver bem o inexplicável brinco de pérola que Johannes Vermeer pendurou na orelha daquela rapariga de olhar misterioso que nos encara com a maior das complacências?

Por incrível que pareça, no mesmo dia que o pintor flamengo, mas exactamente 277 anos antes, tinha igualmente nascido, mas em Coimbra, o nosso rei “Formoso”. Dá para nos pôr a matutar esta coincidência? Porque não?

Ora, talvez não seja completamente inapropriado recordar que Fernão Lopes definiu D. Fernando como um “amador de mulheres e chegador a elas”, um monarca verdadeiramente “Inconstante” que, no entanto, padecia de uma obsessão permanente pela caça. Para ele, a vida da corte era a condenação a um tédio mortal que só podia ser aliviado com perseguições implacáveis a fidalgas, lebres e pombos.

Não me venham cá com histórias. A ordem universal possui as suas próprias leis e a verdade é que Vermeer era casado com uma mulher quase-megera e tinha de pagar as contas todas da família. Foi isso que o livrou do tédio? Não creio.

O pintor de Delft aprendeu cedo, bem à sua custa, a refugiar-se no mundo imaginário de “A Leiteira”, ou de “A “Mulher de Azul Lendo Uma Carta”, ou de “O Copo de Vinho”, ou de “A Alcoviteira”, ou do enigma metafísico que lhe era facultado secretamente pelo olhar daquela rapariga que nunca viria a conhecer Freud.

Ou seja, um clarão suave que nada perde com a vizinha exuberância dos panejamentos que o rodeiam nem, sobretudo, a verticalidade absurda daquele lenço que se destina a contrapor a cor do marfim à do tecido marítimo que lhe envolve a cabeça. Metade do barrete, metade da orelha e mais de terços da pérola ficam na sombra.

Porquê?

E o juvenil carmim daqueles túmidos lábios entreabertos que furor disfarça? E o colarinho branco está ali para mostrar que basta uma pequena fracção da pérola iluminada para demonstrar que a luz, mesmo sendo incorpórea, pode conter a noção precisa de qualquer paraíso?

Não faço a mínima ideia, mas não me custa a crer que lampejos destes possam ser suficientes para tresloucar um Fernando Inconstante ou salvar da loucura um génio mal remunerado que trabalha humildemente numa pequena reentrância de um minúsculo país quase submerso.

E o que agora me inquieta – desculpem-me esta tentação de repetir, por tudo e por nada, o título de uma novela minha – é a ameaça que temos sobre a cabeça: os quatro elementos estruturais da vida e do cosmos – a terra, o fogo, o ar e a água – tentam nitidamente recolocar-se sob o arbítrio dos deuses que, como se sabe, nunca dão ponto sem nó.

As alterações climáticas e a sobrevivência das religiões devem, portanto, ser entendidas como um sério aviso, tanto da iminência da cegueira saramagueana como do prosseguimento do desvario da sua imparável Blimunda. O inexplicável brinco de pérola.

20 Dez 2022

Voltando ao carmim

Também podemos imaginar o que seria ser mulher no tempo de Artemisia Gentileschi pelo carmim que a grande pintora italiana, contemporânea de Vermeer, usou na construção do seu “Autorretrato” pintado em Nápoles entre 1638 e 39 (óleo sobre tela, 96,5 x 73,7 cm) e que agora podemos ir ver a Londres em The Royal Collection da National Galery, onde está desde 16.2.2018.

É certo que Artemisia prefere um denso azul mediterrânico para o lenço que lhe cobre parte da cabeleira loira, o seu nariz é idêntico na forma e no ângulo de captura ao da rapariga do holandês de Delft e o queixo de ambas não comporta a erótica covinha que faz o misterioso apelo estético de tantos rostos femininos, tanto em humana carne como em pintura.

Também o subqueixo difere, existindo apenas na terna Gentileschi, e, nesta, a mão que guarda uma espécie de adaga vegetal tem a doçura suprema imaginável em certa exterioridade juvenil, seja na forma das unhas, seja na fisionomia viva dos dedos.

Mas as pupilas mostram, em ambos os casos, a líquida janela que dá para um mundo insondável, lá atrás, talvez muito lá atrás, em que apenas difere a tonalidade da substância carnal da íris. Só que a obliquidade dos lábios fechados e a sua carnação irresistível à fúria de um impulso voluptuoso apenas cede à frescura do carmim que é tão promissora em Artemisia como em Vermeer.

O resto é um conjunto muito coerente de tons rosa e encarnado que talvez na Holanda não existissem, mas que em Nápoles abundam muito variadamente, com o sol local que se alarga e vibra entre as portas de Hércules, a oeste, e a Creta helénica ou mesmo perto dos sonhos de Gilgamesh que precedem o deserto.

Se eu fosse perito em qualquer das disciplinas que atacam na área cada vez mais indefinida das artes plásticas, ou mesmo na vastidão já degradada da História da Arte, estaria agora ocupadíssimo com alguns destes pormenores do “Autorretrato” e a relacionar a especificidade orgânica de Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Velasquez, Van Dyck, Poussin, ou Murillo e mais alguns, sobretudo na Espanha.

Talvez até enfrentasse o risco de ir ver imagens da recém-falecida Paula Rego, Vieira da Silva, Frida Kalo, Mary Kassatt, Leonora Carrington, e, acima de tudo, da genial Sofonisba Anguissola, assim como de Berthe Morissot, Elisabet Sonrel, Suzanne Valadon, Anne Fragonard, Elisabeth Louise de Vigée-le Brun, que retratou Marie Antoinette.

É possível uma explicitação tão rigorosa da futilidade real, na Franca rococó ou em qualquer outra corte europeia?
Mas fico-me por este deslumbramento pessoal que, por ser meu, chega e sobra para continuar completamente indefeso perante o poder da beleza.

29 Nov 2022