Pesadelo carnavalesco

NÃO há como uma terça-feira de carnaval para viajar confortavelmente nas autoestradas. Como temos um feriado tácito e governamentalmente prodigalizado ou apenas consentido, milhões de portugueses ficaram em casa de manhã e à tarde vão assistir aos desfiles e outros desmandos langorosos dentro das localidades carnavaleiras.

E, como nada rende carnavalar nas estradas e autoestradas, hoje até os camiões eram raros e rápidos no asfalto.
Resultado: nunca percorri 200 km sobre rodas com tanta generosidade viária, apesar de quase não haver indícios de sol na atmosfera toldada de pó esbranquiçado trazido por ventos provenientes de desertos africanos. É caso para se pensar que rejubilam as nossas almas em dias como este, já que nem sequer temos de descer a pala para nos defendermos do sol nos olhos e até descobrimos que uma paisagem mortiça pode ter os seus encantos.

Nada mais falso, porque as nossas vidas nunca estiveram tão perto do precipício, aquele terrível barranco para onde nos querem levar os cegos que conduzem outros cegos.

Talvez por ser tempo de folia carnavalesca, Joe Biden foi ontem a Kiev acirrar Zelensky ainda mais. Só que, por sorte nossa, seis horas antes de o seu avião presidencial levantar o voo para a Polónia, ele teve a inaudita valentia de telefonar a Putin para, debaixo de maior secretismo, o informar da sua viagem, não fosse este seu inimigo de estimação detetar as movimentações militares no ciberespaço e no espaço físico do planeta.

É que isso faria o líder russo pensar que era desta que vinha aí o apocalipse e que, inesperadamente, não teria mais que seis minutos para também ele pôr o dedo no gatilho e premir com toda a força.

Já na capital da Ucrânia mártir, onde a toda a hora morrem ucranianos e russos, foi depois de uma viagem de comboio, por entre paisagens flageladas, que Biden caminhou até ao muro dos caídos em combate para aí colocar uma coroa de flores e, talvez, pensar sem o dizer: “Sorte a vossa! No Vietname e nos outros países que bombardeámos, matámos mil vezes mais! E não nos vamos ficar por aqui…”

Já com muita gente a ouvi-lo, Biden disse: “Considerei que seria determinante que não restassem dúvidas nenhumas sobre o apoio dos EUA à Ucrânia na guerra. (O objetivo desta visita é dizer que) “os EUA estão aqui para ficar. Não nos vamos embora.”

Por cá, António Costa, servil e bem-educado como de costume, fez logo eco das palavras do patrão, jurando a pés juntos: “A paz é uma vontade universal, mas todos temos consciência de que essa paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia.” Ao mesmo tempo, no Parlamento Europeu, a maltesa que é sua presidente, Roberta Metsola, confessava: “Há muito dinheiro para a reconstrução da Ucrânia.” O que equivale a recomendar: “Partam, arrasem, derrubem, não deixem pedra sobre pedra, que o negócio vive disso, até na família de Joe Biden.”

Hoje, ainda perplexo, pus-me a ouvir Putin em direto na CNN e dei comigo a pensar na desgraça daquele goraz colorido que fica com a cabeça apertada entre as pinças aceradas de uma mandíbula inalargável de um caranguejo gigante, porque é assim que a Rússia está, do Báltico ao Mar Negro, entalada entre a Finlândia, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a Letónia, a Estónia, a Lituânia, a Polónia, a Alemanha, a Hungria, a Roménia, a Bulgária a Moldova, a Ucrânia e a Turquia, todos natistas e com a dentuça afiada.

E ouvi Putin dizer que suspendia a participação da Rússia no tratado START II, que limita os arsenais nucleares dos dois signatários, os EUA e Federação Russa, embora ele logo acrescentasse que nunca o seu país iniciaria um conflito de tal natureza.

Só que não deixou de repetir, pela enésima vez, que a intenção da NATO quanto à natureza soberana do seu país é simplesmente existencial e que a resposta russa a tal ameaça não admite limites.

Depois historiou detalhadamente o começo e a atuação do inimigo para concluir que “Eles querem a guerra e rejeitaram todas as nossas propostas de paz.”

Imagino que nunca uma catástrofe dessas vai acontecer, porque até o vencedor estaria morto, ainda antes da vitória final, mas o que o momento presente me indicia é o empobrecimento de milhões e milhões de pessoas em todo o planeta, a compressão das liberdades e um ciclo perigosíssimo de retrocesso civilizacional. E acho mesmo que carnavais destes são absolutamente indesejáveis.

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