António Graça de Abreu Via do MeioA história triste de Liang Shanbo e Zhu Yintai Em 1959 foi composto por He Zanbao e Chen Gang um belo concerto para violino e orquestra onde a música sinfónica ocidental se combina com os sons da ópera tradicional chinesa, obtendo-se um fabuloso efeito de suavidade e ritmo, do trinar do violino ao ressoar dos gongos, do alarido cavernoso das trompas ao martelar cadenciado das castanholas de bambu, do ímpeto galopante dos tambores ao rendilhado esfuziante do dedilhar da pipa, uma espécie de alaúde. O concerto intitula-se Liang Shanbo e Zhu Yingtai 梁山伯 祝英台, e em língua inglesa tem o subtítulo The Butterfly Lovers. Além da espectacularidade da música, o nome inglês desperta a curiosidade de descobrir quem seriam estes amantes borboletas. Não é difícil, trata-se de uma das mais famosas lendas chinesas. Há 1600 anos nasceu na China a história trágica de dois jovens apaixonados chamados Liang Shanbo e Zhu Yingtai cujo enredo resistiu a todas as investidas dos séculos e continua hoje — interligando o real, o maravilhoso e o fantástico –, a passar de pais para filhos, inspirando não só músicos, mas também poetas, bailarinos, dramaturgos e pintores da China moderna. No século IV da nossa era, Zhu Yingtai, uma jovem bonita e talentosa, vivia com os seus pais, algures nas margens sul do rio Yangtsé. Zhu estava desesperada porque queria estudar, mas as dificuldades pareciam insuperáveis dado que o acesso de uma mulher a qualquer escola era, na época, rigorosamente vedado. Zhu Yingtai elabora então um plano para cuja execução obtém a concordância do pai. Irá estudar na clássica cidade de Hangzhou, disfarçada de rapaz. Durante a viagem para Hangzhou encontra Liang Shanbo, um moço simpático que se dirige para a mesma escola. Serão companheiros de estudo, ao longo de três anos e tornam-se grandes amigos. Liang Shanbo nunca suspeita que Zhu Yingtai é uma rapariga e ela não lho diz, embora esteja profundamente apaixonada por ele. Um dia chega uma carta do pai de Zhu, pedindo-lhe que regresse imediatamente ao lar. Liang acompanha-a durante parte da viagem e a moça, através de subtis insinuações, belas metáforas e trocadilhos, tenta fazer compreender ao jovem que o ama, e sugerir-lhe qual é o seu verdadeiro sexo. Mas o ingénuo Liang acha o seu amigo (amiga!) demasiado romântico e sentimental, e não suspeita de nada. De novo em Hangzhou, Liang Shanbo encontra a esposa de um dos mestres da escola de ambos que lhe conta, numa longa conversa, que Zhu Yingtai é afinal uma bela e inteligente rapariga que, disfarçada de rapaz para poder estudar, acabou por se apaixonar pelo seu melhor amigo. Louco de alegria, Liang Shanbo decide ir, outra vez, ao encontro de Zhu Yingtai mas, chegado à cidade onde ela vivia, tem a surpresa de saber que o pai da moça já a havia destinado a esposa de um rico comerciante local. Por isso, a mandara regressar com tanta urgência. Zhu Yingtai, lacrimosa, afundada em tristeza, pede ao pai que não pense em negócios, que respeite antes o amor e a felicidade da sua filha. Em vão! O pai não cede. Na varanda da casa, uma varanda semelhante àquela onde Shakespeare, doze séculos mais tarde, colocaria Romeu e Julieta, os dois jovens despedem-se, jurando amor e fidelidade na vida e na morte. Liang Shanbo adoece gravemente e morre pouco depois. No dia aprazado para o casamento de Zhu Yingtai com o rico mercador, ela recusa o vestido de noiva, veste-se de luto e no meio de uma tempestade, dirige-se para o túmulo do seu amado Liang. Cai soluçando sobre a sua sepultura. A natureza em fúria partilha a sua dor e revolta, chove intensamente, os trovões atroam os ares, as faíscas rasgam o céu. Abre-se a tumba de Liang Shanbo que recolhe o corpo de Zhu Yingtai. A tempestade passou. No horizonte surge um esplendoroso arco-íris e o sol começa a brilhar num céu agora azul. Do túmulo, onde jazem para sempre os corpos dos amantes, saem duas lindas borboletas que esvoaçam alegremente entre as flores e brincam, beijando-se no ar. Liang Shanbo e Zhu Yingtai estão, por fim, unidos. A nós portugueses, esta lenda não nos faz recordar, embora com um ainda mais tétrico desenlace, o poema O Noivado do Sepulcro, do ultra-romântico Soares de Passos que, por sua vez, foi buscar o tema à Leonore do alemão Gottfried August Burger (1747-1794)? Já no século XII, em plena Idade Média, encontramos o mesmo tipo de amores e paixões desventuradas na famosíssima história de Tristão e Isolda. É possível a extensão ou continuidade de lendas orientais para enredos medievais europeus. E existirão, com certeza, coincidências: as gentes são iguais em toda a parte, Liang Shanbo e Zhu Yingtai não nos são estranhos.
António Graça de Abreu Via do MeioCidade de Xiamen厦门 (Amoy) mais a excelente ilha de Gulangyu鼓浪屿 No recuado ano de 1981, na Biblioteca Central de Xangai, onde não havia ainda ficheiros organizados numa língua estrangeira e os computadores estavam em absoluta gestação, pedi ao funcionário de serviço que me trouxesse livros e documentos em inglês ou em português sobre Aomen澳门, o nome chinês da nossa Macau. O pressuroso empregado apareceu-me uns dez minutos depois sobraçando uma resma enorme de livros, todos referentes a Xiamen厦门, a cidade costeira no sul da província de Fujian. Na altura, na China Popular pouco ou nada se sabia sobre Macau, e quem ouvia o nome associava-o frequentemente a um bairro de Hong Kong. O topónimo Aomen 澳门, que significa “porta da baía”, prestava-se a alguma confusão com Xiamen 厦门que se pode traduzir por “porta da mansão” dado que ambas as cidades são portos de mar situados no sul do império chinês. Na altura, ainda com tanta China por conhecer, parecia-me improvável um dia desembarcar de comboio, barco ou avião em Xiamen, a velha cidade de Amoy. Aconteceu no ano de graça de 2013, tendo chegado de avião exactamente desde Taipé, Taiwan, logo ali do outro lado do estreito da Formosa, coisa impensável há uma dúzia de anos. Mas hoje tudo são facilidades, com as ligações aéreas entre a capital de Taiwan e as principais cidades da China Popular. Xiamen ou Amoy – assim se leêm os dois caracteres厦门, primeiro em mandarim e depois no dialecto hokkien de Xiamen, variante do min do sul falado em Fujian –, é a segunda maior cidade da província de Fujian com 1,8 milhões de habitantes. Cresceu sobretudo a partir do século XVI quando as duas grandes cidades portuárias de Zhangzhou e Quangzhou que lhe estão próximas começaram a diminuir de importância devido ao assoreamento dos rios que lhes davam acesso marítimo. Por volta de 1545, o porto, ou portos de Xiamen dado que a ilha engloba vários embarcadouros ou cais, chegou a ser usado pelos navegadores e mercadores portugueses nas suas deambulações ao longo da recortada costa chinesa, nesta região polvilhada por mil ilhas, baías, embocaduras de rios, mares amarelos e terras de todas as cores. No século XIX, Xiamen era o grande porto por onde se escoava o chá, até então unicamente produzido na China. Após, a Guerra do Ópio (1839-1842), a sua importância cresceu dado ser um dos “Cinco Portos” abertos ao comércio internacional após a derrota chinesa na guerra às mãos dos ingleses e a assinatura do humilhante, para a China, tratado de Nanquim, em 1842. Os outros portos abertos foram Cantão, Fuzhou, Ningbo e Xangai. Hoje Xiamem é uma cidade airosa, desempoeirada, acho que quase livre de poluição. A proximidade do mar, o clima subtropical com chuvas frequentes, a própria abertura do centro urbano para o litoral, a natureza da terra fazem de Xiamen um dos lugares com melhor qualidade de vida em toda a China. E a cidade mantém um interessantíssimo centro histórico, com ruas e construções coloniais europeias que datam de finais do século XIX. Visita ao templo budista de Nanputuo. Inicialmente construído durante a dinastia Tang (618-907), o templo foi várias vezes arrasado e os pavilhões que tenho diante de mim são todos dos séculos XVIII e XIX. Resta a originalidade de terem sido construídos neste estilo chinês do sul da província de Fujian, com as extremidades dos telhados, às vezes sobrepostos, muito reviradas, os templos intensamente decorados e coloridos por fora e por dentro. Nanputou estende-se para o céu, ascendendo pela montanha que lhe fica por detrás o que, em termos de feng shui 風水favorece a sua localização, um monte atrás, o mar em frente, o céu por cima. Vale a pena subir algumas centenas largas de degraus para, do alto, em plataformas aqui e acolá com motivos budistas, se ter uma desafogada vista sobre esta parte da cidade e sobre o mar. Logo abaixo, encontramos o vasto campus da Universidade de Fujian, uma das mais famosas da China. Depois do templo, atravessei a pé todo o complexo universitário em direcção à praia que fica do outro lado. Últimos dias de Junho de 2013, as aulas e os exames estão a acabar, há novos doutores e doutoras que, academicamente paramentados à inglesa ou à americana tiram retratos e retratos junto ao lago central da sua Universidade. Nas janelas e varandas dos dormitórios dos estudantes há verdadeiros festivais de roupa a secar, mas a Universidade parece funcional, com departamentos e faculdades a ocuparem ora edifícios modernos, ora complexos dos anos vinte do século passado, bem conservados, tudo aparentemente bem equipado. As praias de Xiamen são um extenso sufoco por causa da quantidade de porcaria e dejectos que se acumulam na areia grossa e que bóiam nas águas mansas do Oceano Pacífico. Ali nem deu para molhar os pés. Em 1949, quando dos derradeiros combates entre comunistas e nacionalistas, antes da fuga definitiva destes últimos para Taiwan, os soldados de Chiang Kai-shek conseguiram segurar a pequena ilha de Jinmen金門, Kinmen ou Quemoy, no dialecto local, que se situa apenas três quilómetros a leste de Xiamen. Contra todas as expectativas ainda mantêm a ilha na sua posse, o que é motivo de interessada visita por parte dos turistas da República Popular da China que têm logo ali, ao alcance da mão ou de duas ou três braçadas, um território capitalista para comparar com a sua China de Mao Zedong e de Xi Jinping. Acabado de chegar de Taiwan, não fui à pequena ilha nacionalista de Jinmen. O melhor de Xiamen, para turista ver, espairecer e se surpreender é a ilha de Gulangyu, 鼓浪屿 mesmo em frente do centro da cidade, a menos de um quilómetro de distância que se percorre em sete minutos numa espécie de cacilheiro, sempre apinhado de chineses. A partir de meados do século XIX, depois da abertura do porto de Xiamen ao mundo, os estrangeiros começaram a chegar e fixaram-se sobretudo nesta bonita ilha de Gulangyu, com cerca de dois quilómetros de comprimento por um de largura. A ilha tem água doce, praias, imensa vegetação, tudo o que é necessário para a vida. Treze países, incluindo a França, a Grã-Bretanha e o Japão aqui estabeleceram os seus consulados e em 1903 Gulangyu passou a ser designada Território Internacional, tendo governo e polícia própria, a segurança era feita pelos shiks que, tal como aconteceu com os indianos que funcionaram como polícia em Xangai, os ingleses foram buscar ao norte da Índia. Curiosíssima é a arquitectura colonial dos cerca de 500 edifícios que foram construídos em Gulangyu, sobretudo entre 1890 e 1920 e que, restaurados, ainda se conservam. Trata-se de mais um museu a céu aberto, um conglomerado de casas e grandes mansões, de igrejas e jardins, de palácios e hospitais, tudo numa mais do que heterogénea mescla de estilos, nada sínicos, de talhe e arquitectura ocidental, ao modo do que se construía na Europa no início do século XX. Felizmente, e para satisfazer a multidão de turistas chineses — são tantos que diariamente chegam a atravancar o trânsito pedonal numa ilha que não autoriza veículos motorizados –, Gulanyu tem praias (também não muito limpas) e recantos sossegados onde se pode fruir a natureza, ou a nostalgia do encanto perdido do passado. E tem hotéis e pensões onde apetece ficar, sobretudo a partir de meio da tarde, após a saída da avalanche de turistas chineses. Então Gulangyu fica por nossa conta e que prazer ouvir um piano — a ilha conta com um estupendo museu com mais de cem pianos e órgãos de várias épocas –, olhar o pôr-do-sol, imaginar, mui ao de leve, as fantásticas histórias dos velhos habitantes de Gulangyu quando chineses abastados se passeavam de riquexó, homens de negócios europeus, de colete, casaco e gravata caminhavam pelas ruelas junto ao mar, e damas chinesas, mais do que formosas nas suas cabaias de brocado e seda, inebriavam a brisa da tarde. Numa das lojas de rua em Gulangyu, província de Fujian, República Popular da China, fiz uma compra absolutamente inédita em 36 anos de viagens e estadias no mundo chinês, uma peça em massa dura e pesada de plástico, com duas figurinhas, Mao Zedong e Chiang Kai-shek, ambos sentados num banco de jardim, abraçados e ternurentos, sorrindo para as gerações futuras. Malhas que o império tece…
António Graça de Abreu Via do MeioTexto sobre Casimiro de Brito, autor e poeta O Casimiro de Brito, meu Amigo, partiu para as Nascentes Amarelas, algures perdidas entre nuvens, nas montanhas Kunlun, nos extremos-orientes mágicos, ascendendo ao céu. Fica a memória de um grande Senhor e a sua muita e excelente poesia. Em 1992, na Missão de Macau em Lisboa fez a apresentação da minha tradução dos Poemas de Bai Juyi e escreveu este texto: Bai Juyi ou a Nostalgia do Outro Bai Juyi (772-846) foi um poeta magoado e dividido: numa das suas vidas, a de letrado que chegou a mandarim, deambulou, ferido de má consciência, entre os festins dos poderosos e o conhecimento da fome e das guerras que assolavam a China do seu tempo, enquanto na sua outra vida, de vários exílios composta, dividiu-se entre os prazeres do vinho e das danças, o dedilhar do seu qin “de madeira rara e cordas de seda” e a contemplação das flores e das montanhas. Eu vejo e sei como nos grandes frios padecem os desditosos camponeses. Não preciso sair e trabalhar nos campos, nem fome, nem frio vêm ter comigo. Penso, sinto vergonha e pergunto: afinal quem sou eu? Quem somos nós? Náufragos da liberdade somos – a que julgamos ter perdido (o paraíso da infância), e a que desejaríamos estar-nos reservada (a utopia da serenidade) mas o que dela nos é dada são momentos, fragmentos, entre eles o prazer da solidão ou a efémera fruição de um poema. Mil e duzentos anos depois, lendo Bai Juyi (traduzido com rara elegância por António Graça de Abreu), revejo-me nos seus poemas: os desastres dos homens são ainda os mesmos (escrevo em Maputo onde a fome e a guerra dizimam populações indefesas), mas os poetas, esmagados embora pelas contradições do tempo, não deixam de escutar a injustiça e de beber com a lua, como fazia Li Bai, de apaziguar “pensamentos e inquietudes” com a flor do canto, e bem podiam cantar “Os Rolos de Seda”, de Bai Juyi: Ontem fui pagar os impostos ao yamen, através dos portões escarlate espionei os armazéns, atulhados de rolos de seda até ao tecto. Montanhas de peças, densas como nuvens, finamente tecidas. Os poderosos chamam-lhes “bens em excesso”, todos os meses oferecidos ao grande monarca. Para obter mercês, rouba-se calor ao corpo dos pobres. Os rolos de seda empilhados no tesouro imperial aí permanecem, ano após ano, depois transformam-se em pó. Será o poema – a voz do enigma – um corpo que vai tendo várias peles ao longo do tempo? O que se diz no poema é de facto a imagem de outra imagem, algo indizível e sinuosa, mas também algo que fica dito como se estivesse escrito desde sempre. “Escolhido o ritmo”, diz o poeta sobre a sua técnica, “a palavra é dócil. Se a palavra é dócil, o som entra facilmente, se o som se introduz, o sentimento manifesta-se, a emoção comunica-se. É então que a poesia se desenvolve, penetra o inagarrável, perfura o obscuro. Superiores e inferiores entendem-se, o espírito de concórdia manifesta-se, a alegria e o sofrimento equilibram-se, a esperança ganha alento.” Assim se produz uma nova “verdade” tão enigmática como a que não foi possível traduzir da música ouvida, dos ruídos do mundo que se perderam (para se ganharem de outro modo) no ouvido do poeta. Um poema, qualquer poema de Bai Juyi é uma ponte mimética entre o “eu” e o “outro”, uma ponte de água por onde passam as metáforas do homem comum, esse “bago de arroz” que anda perdido no “grande celeiro.” Levanto-me cedo, vou comprar vinho, Regresso tarde, depois do passeio entre jardins. Deixo o mundo para estar com a natureza, que tenho eu que fazer na capital? Mistério da grande poesia: este poema já não é a voz que o poeta ouviu, a iluminação que o levou a escrever o que escreveu, o canto original que ele cantou. Nem o seria se ouvíssemos o poema em chinês. Ou é e não é. Passaram séculos, a língua em que falo é outra, as palavras rolaram como seixos em praias infinitas e no entanto o poema escrito por Bai Juyi, acaso distante que resultou de uma complexa relação com o mundo e com a música das palavras, é também, é ainda esse poema que acabei de ler, esteve na sua origem, na origem destes ritmos brancos e flexíveis que integram outros acasos e sensibilidades que me iluminam tal como uma pedra na palma da mão nos liga ao vasto mundo. Um simples poema pode assim abrir-se em leque onde leio muito mais do que nele — vaso e água inesgotável –, foi vertido. Por isso o poeta pode contar-nos a sua vida falando dos seus poemas: “O que em vida eu amei, senti, desejei, consegui, experimentei, a minha ambição de liberdade, também o meu comedimento e ponderação, coisas insignificantes ou incidentes importantes da existência, tudo pode ser encontrado nas minhas obras. O que escrevi diz tudo sobre mim.” Não é como se andasse por aqui o que Rilke escreveu sobre os ritos de passagem de quem deseja ser poeta? Tempos conturbados foram aqueles em que Bai Juyi viveu, em plena dissolução da dinastia Tang, umas vezes à mesa do poder, outras vezes no exílio, “mesmo lares são coisas transitórias/porquê tanta vaidade, tanta humildade?” em cabanas à beira dos rios e das montanhas. Enquadrado umas vezes na norma, outras refugiando-se na amizade (sobretudo do poeta Yuan Zhen) e na solidão, Bai Juyi viveu um pouco ao sabor das marés do tempo e o que mais nos encanta na sua obra é o facto de ela se ter construído sem ambiguidade com os factos da mais ambígua e contraditória das biografias. Em tempos agitados é bom descansar, aos quarenta anos é cedo para me retirar. Por ora basta limpar a roupa coberta de pó, ainda não chegou o dia do regresso às montanhas. A conduta do poeta que foi sucessivamente arquivista, mandarim e governador nos intervalos das suas quedas em desgraça, foi ora a de um confucionista, “em sociedade, o respeito por regras e condutas”, ora a de um taoista “vagueando ao acaso como um pedaço de nuvem.” Ora os cargos e funções não lhe permitem usufruir o direito à preguiça, ora o abandono do homem nem feliz nem triste que “aceita o que a vida lhe dá, o efémero, o constante”, como se assistisse, um pouco impotente, ao espectáculo da sua vida: Não tenho jeito para mandarim de cidade. À porta de minha casa crescem ervas de Outono E que fazer para serenar este coração aldeão? (…) Meu maior prazer é, sentado à janela, ouvir os murmúrios do Outono por entre a ramaria. Só um letrado ferido pelos inúmeros conflitos sociais da sua época poderia ser, ao mesmo tempo, não só poeta e político (há muitos casos entre os poetas orientais) mas, sobretudo, integrar em si, na constância de si que é a sua poesia, as três atitudes existenciais que constituíam a estrutura cultural do seu tempo: o confucionismo (quadro de conduta social), o taoismo (relação sensorial com o mundo em volta) e o budismo (depuração do espírito). Tudo isto se harmonizou sabiamente na sua vida, o estudo e a governação, os rios e as montanhas, o vinho e as danças, a música e os pincéis. Sabiamente? Talvez sim, porque governou desgovernando como mandava Lao Zi; porque a sua prática do Tao, tal como a do vinho foi moderada e bastante intermitente; porque de budista apenas possuía a leve ambição de um amanhã de renúncia. Mas, enfim, cantava, incansável cantou e a sua poesia integrou como nenhuma outra as contradições do seu tempo, da sua vida, o cepticismo, a impermanência, a amizade, o prazer da solidão, o amor conjugal, a humildade, a renúncia, o esquecimento do próprio nome e nada, situação nenhuma, sentimento nenhum escapava a este mestre da devoração do quotidiano e da sua depuração em ritmos belíssimos que nunca o abandonaram: Sob os pinheiros, junto ao lago, caminho, descanso, sento-me, adormeço. O coração liberto dos pequenos desejos, ignorando a passagem do tempo. Os cabelos brancos, a confusão do mundo, tão pouco me importa cuidar do porvir. Lao Zi, esse que não sabia, escreveu um livro de cinco mil palavras. Bai Juyi, que talvez soubesse menos, escreveu muito mais, desfez-se em contradições, foi e é ainda espelho dos nossos rostos, das nossas dúvidas, da nossa insignificância – por isso o entendemos como se estivesse ainda ao nosso lado. Depois da morte, meu coração permanecerá com os vindouros a quem, silenciosamente, lego esta obra insignificante. Casimiro de Brito, poeta, ex-presidente do PEN Clube Português Junho 1992
António Graça de Abreu Via do MeioProvíncia de Yunnan – Na fabulosa Lijiang Viajo de Dali para Lijiang, trezentos quilómetros por uma estrada em mau estado – lá por baixo, por vales e túneis, existe já uma nova auto-estrada em construção –, subindo pelas montanhas até aos 3.100 metros e depois descendo para o extenso planalto ondulado e sinuoso onde se situa a cidade de Lijiang que estende o seu casario por terras a 2.450 metros de altitude. Estamos bem no norte da província de Yunnan, a duzentos quilómetros da fronteira com o Tibete. Por aqui não existem montes, nem serras, há montanhas e montanhas, infindáveis vales profundos, desfiladeiros e mais planaltos entre montanhas, e ainda mais montanhas por cima de outras montanhas. O alto Yangtsé passa também por aqui, no fundo de um canyon, rasgando a montanha há umas boas dezenas de séculos. Muito antes de chegar a Lijiang, aparecem no horizonte, por detrás do escuro dos cumes próximos, os picos nevados de Yulong Xueshan, ou seja a Montanha de Neve do Dragão de Jade, com o ponto mais alto a 5.550 metros, rodeado pelo maior conjunto de glaciares do hemisfério norte. Tudo a 20 quilómetros de Lijiang, em linha recta. Pode-se subir pelos fios suspensos nos ossos da montanha até aos 4.506 metros – dizem-me ser o mais elevado teleférico do mundo – mas a íngreme escalada não é conveniente para corações sensíveis à altitude. O ar rarefeito, a escassez de oxigénio podem provocar fulminantes ataques cardíacos, embolias cerebrais, etc. Chegada às alturas do planalto, a minha mulher de Xangai, nascida e criada na grande metrópole ao nível do mar, começa a sentir dores no coração. O motorista do carro que nos trouxe desde Dali passou meia viagem a meter-lhe medo com a altitude, as tonturas, as dores no peito, as mortes súbitas. A minha companheira já sente o coração virado do avesso, dói-lhe tudo, acima do estômago, abaixo do pescoço. Acredito que seja psicossomático mas preocupo-me, vou ter de acautelar a estadia por estas paragens e não pensar em trepar pelas montanhas. Tenho, no entanto, quase a certeza que regressada a Xangai, na lisura das grandes planícies, tudo quanto é coração, diafragma e anexos da Wang Hai Yuan, minha esposa, voltará a funcionar em pleno. Já não vou poder subir até à cidadezinha de Zhongdian, setenta quilómetros a norte, rebaptizada como Shangri-la, a 3.150 metros de altitude, logo abaixo do Tibete 丽江Lijiang, que significa “rio bonito”, é Património Mundial pela Unesco desde 1997. A cidade foi abalada por um tremendo terramoto em Fevereiro de 1996, 7,2 graus na escala de Richter, que provocou 300 mortos e 16.000 feridos. A parte nova do pequeno burgo sofreu enormes danos, mas a cidade antiga, com as casas e as empenas em madeira apoiadas em estruturas sólidas de pedra e adobe, – uma arquitectura velha de dez séculos –, permaneceu quase intacta, resistiu bem ao abalo sísmico. Tal facto despertou atenções por toda a China e foi também objecto de estudo por vários organismos internacionais. Gente da Unesco acabou por visitar Lijiang e, ano e meio depois do tremor de terra, a cidade foi declarada Património Mundial. E merece tal distinção. Estamos diante, dentro de um dos mais fascinantes lugares da China. As casas, todas de um ou dois pisos, começaram a ser construídas nas dinastias Song e Yuan (secs. XI a XIV). A arquitectura é singularíssima porque mistura estilos tibetanos, chineses e naxis, esta a minoria nacional mais presente na região. Lijiang foi, em tempos não muitos recuados, um grande entreposto, um centro de comércio, de intercâmbio e trocas na chamada Rota do Chá. Daqui partiam grandes caravanas de cavalos transportando o chá de Yunnan e Sichuan para o Tibete e para a antiga Birmânia. O burgo antigo distribui-se por milhares de casas quadradas de madeira com dois sobrados e um vasto pátio interior. Fiquei alojado numa destas casas, adaptada a pousada, com apenas dez quartos nos dois pisos e o bonito nome de Hotel das Aves Migrantes. Que sensação óptima adormecer numa cama limpa nas faldas do Tibete rodeado da serena vetustez dos séculos! E, porque era a época baixa, paguei a enormidade de 60 yuans por noite, mais ou menos 8 euros, por um duplo confortável, com as camas aquecidas – estamos em Março, ainda faz frio –, e temos direito a quarto de banho privativo, sem pequeno almoço, mas com chamadas telefónicas para a China e internet grátis. Fiz o meu turístico negócio da China!… As ruas, muitas delas atravessadas por pequenos canais com água sempre a correr, estão pavimentadas com lajes de pedra de várias cores e não faltam lanternas chinesas penduradas em tudo quanto é casa e telhado, há lojas e lojas onde se vende um pouco de tudo, quinquilharia e peças de bom artesanato, roupa às toneladas, sedas, algodões, brocados, casacões para os invernos frios feitos com lã dos rebanhos da montanha, de excelente qualidade. As montanhas de Caxemira, do outro lado dos Himalaias, não estão longe…E há restaurantes quase porta sim, porta não, com pratos típicos dos naxis, comida estranha, exótica que não me entusiasmou sobremaneira. Na praça central, todas as noites encontram-se grupos de naxis, principalmente mulheres com os trajes da sua minoria que dançam num grande círculo. Qualquer pessoa pode entrar na roda e juntar-se à festa. Também todos os dias, às oito horas da noite, num típico e original teatro em madeira, acontece um concerto-espectáculo da responsabilidade dos vinte e quatro idosos membros da Orquestra Naxi de Lijiang. Têm entre 70 e 90 anos. Pendurados nas suas barbichas de velhos sábios e nas roupas coloridas de brocado tocam nos antiquíssimos erhu, suona, guzheng (violinos, flautas, harpas, marimbas) antiga música taoísta que dizem entroncar nas dinastias Han, Tang e Song (secs. I a XI). Alguns membros da orquestra, devido à provecta idade, ao cansaço dos anos, ao ritmo embalador do concerto, de vez em quando adormecem. O recital, mais para ver os velhos e a decoração original do interior do teatro do que para ouvir a música monótona e repetitiva, também deu para eu passar pelas brasas. Para fechar a estadia em Lijiang fui até ao parque do Lago do Dragão Negro, uns dois quilómetros a norte da cidade. Sabia da sua existência há muitos anos e das espantosas fotografias que aí se tiram. A capa do meu segundo livro de poesia “China de Seda” é uma foto deste lugar que fui buscar à net em 2001. Chegou finalmente a minha vez de estar em Lijiang e fotografar tudo com os olhos, o coração e a câmara digital. As águas do lago espraiam-se abraçadas pela vegetação das margens. Ao fundo, pavilhões e torres reflectem-se nas águas azuis, paradas, tendo logo por detrás os picos imaculadamente brancos da neve em Yulong Xueshan, a montanha do Dragão de Jade. A água do lago corre depois para a cidade, com cascatas e pequenas pontes unindo o enrugar da terra. Aqui um homem, à deriva pelo mundo chinês, levitando no ar leve e depurado da manhã, acredita encontrar o Paraíso.
António Graça de Abreu Via do MeioBai Juyi – A Canção do Alaúde Tradução de António Graça de Abreu Esta Canção do Alaúde é um dos mais famosos poemas de toda a vastíssima poesia chinesa. Escrito por 白居易Bai Juyi (772-846), quando seu exílio em Jiujiang, no ano de 816, permanece como uma das obras-primas saída da pena, do entendimento, da sensibilidade e do engenho do grande Bai Juyi. Eis uma possível tradução do poema. 琵琶行并序 元和十年,予左遷九江郡司馬。明年秋,送客 湓浦口,聞船中夜彈琵琶者,聽其音,錚錚然 有京都聲;問其人,本長安倡女,嘗學琵琶於 穆曹二善才。年長色衰,委身為賈人婦。遂命酒,使快彈數曲,曲罷憫然。自敘少小時歡樂事,今漂淪憔悴,轉徙於江湖間。予出官二年恬然自安,感斯人言,是夕,始覺有遷謫意,因為長句歌以贈之,凡六百一十六言,命曰琵琶行。 潯言江頭夜送客 楓葉荻花秋瑟瑟 主人下馬客在船 舉酒欲飲無管絃 醉不成歡慘將別 別時茫茫江浸月 忽聞水上琵琶聲 主人忘歸客不發 尋聲暗問彈者誰 琵琶聲停欲語遲 移船相近邀相見 添酒回燈重開宴 千呼萬喚始出來 猶抱琵琶半遮面 轉軸撥絃三兩聲 未成曲調先有情 絃絃掩抑聲聲思 似訴平生不得志 低眉信手續續彈 說盡心中無限事 輕攏慢撚抹復挑 初為霓裳後六么 大絃嘈嘈如急雨 小絃切切如私語 嘈嘈切切錯雜彈 大珠小珠落玉盤 間官鶯語花底滑 幽咽泉流水下灘 水泉冷澀絃凝絕 凝絕不通聲漸歇 別有幽愁暗恨生 此時無聲勝有聲 銀瓶乍破水漿迸 鐵騎突出刀鎗鳴 曲終收撥當心畫 四絃一聲如裂帛 東船西舫悄無言 唯見江心秋月白 沈吟放撥插絃中 整頓衣裳起斂容 自言本是京城女 家在蝦蟆陵下住 十三學得琵琶成 名屬教坊第一部 曲罷曾教善才服 妝成每被秋娘妒 五陵年少爭纏頭 一曲紅綃不知數 鈿頭銀篦擊節碎 血色羅裙翻酒汙 今年歡笑復明年 秋月春風等閑度 弟走從軍阿姨死 暮去朝來顏色故 門前冷落車馬稀 老大嫁作商人婦 商人重利輕別離 前月浮梁買茶去 去來江口守空船 繞船月明江水寒 夜深忽夢少年事 夢啼妝淚紅闌干 我聞琵琶已嘆息 又聞此語重唧唧 同是天涯淪落人 相逢何必曾相識 我從去年辭帝京 謫居臥病潯陽城 潯陽地僻無音樂 終歲不聞絲竹聲 住近湓江地低濕 黃蘆苦竹繞宅生 其間旦暮聞何物 杜鵑啼血猿哀鳴 春江花朝秋月夜 往往取酒還獨傾 豈無山歌與村笛 嘔啞嘲哳難為聽 今夜聞君琵琶語 如聽仙樂耳暫明 莫辭更坐彈一曲 為君翻作琵琶行 感我此言良久立 卻坐促絃絃轉急 淒淒不似向前聲 滿座重聞皆掩泣 座中泣下誰最多 江州司馬青衫濕 Canção do alaúde1 No décimo ano do período Yuanhe 2 fui despromovido e afastado da corte, com o cargo de intendente militar em Jiujiang. No Outono do ano seguinte, em Penpu, quando me despedia de um amigo, ouvi ao longe o tanger de um alaúde, tocado da maneira utilizada na capital. Procurei a pessoa que descuidadamente dedilhava as cordas e encontrei uma antiga cantora de Chang’an que, esgotada a sua beleza, era agora companheira de um mercador. Mandei vir vinho e pedi à antiga cortesã que tocasse um pouco mais. Depois, ela falou-nos do tempo feliz da sua juventude e de como agora era obrigada a viajar, em terras distantes, por rios e lagos. Desde a minha partida da capital jamais me sentira tão triste e infeliz. Compreendi nessa noite o real significado da palavra exílio. Escrevi então este longo poema, com 616 caracteres3 e ofereci-o a essa mulher. À noite, um adeus ao amigo nas margens do rio, as folhas do ácer, o vento de Outono sussurrando nos juncais. Desmontei do cavalo, meu amigo já na barca, prestes a partir, bebemos taças de vinho, sem música para nos acompanhar. Brindámos tristes, por cada taça, mais próxima a separação, adeus, as águas do rio já humedecendo a lua. Eis, de súbito, o som de um alaúde sobre as águas, esqueço o regresso, meu amigo esquece a partida. Ambos seguimos a música, em busca de quem toca, a melodia extingue-se, diante de nós uma mulher em silêncio. Aproximamos da sua a nossa barca, convidamo-la a mostrar-se, vamos buscar mais vinho, avivamos a luz das lanternas, recomeçamos o banquete. Mil vezes pedimos que venha até nós, aparece por fim, o rosto meio escondido atrás do alaúde. Afina a guitarra, dedilha as cordas ao acaso, não toca ainda, eis-nos mergulhados em enlevo e magia. Um repassar de emoções em cada som, em cada nota, acordes manchados de tristeza e nostalgia. De olhos baixos, os dedos acariciando as cordas de seda transmitem a amargura que lhe vai no coração. Melodias suaves, um canto vibrante, uma súbita paragem, ouvimos o “Vestido de Arco-Íris”, a “Ronda dos Seis Tambores”. As notas altas ressoam como chuva em noite de tempestade, as notas baixas como um ciciar segredado de amantes. Tons graves e agudos entrechocando-se, mesclando-se, como pérolas grandes e pequenas tombando num prato de jade. A música saltitante como um pintassilgo entre as flores, gotejante como água das fontes caindo sobre areia. Depois, acordes como cristais de gelo, as cordas parecem romper, a música fria, sussurrante, extinguindo-se pouco a pouco. Agora um silêncio mais eloquente que todos os arpejos, melancolia, a água correndo após o quebrar do jarro de prata. Outra vez o tinir de espadas e lanças, uma zoada de armaduras, os acordes finais brotando do coração do alaúde, quatro cordas emitindo um único som, o do rasgar da seda. As barcas, a leste, a oeste, mergulhadas em silêncio, apenas a lua de Outono prateando o leito do rio. Suspirando, ela prende a varinha nas cordas do alaúde, alisa o vestido, ajeita o rosto, levanta-se e fala. “Nasci na capital, cresci junto à Colina das Rãs, aos treze anos meus dedos brincavam sabiamente com o alaúde. Era a aluna mais distinta na escola de música, professores, mestres aplaudiam meu engenho e destreza. As mais belas da cidade invejavam meu porte, minha formosura. Os jovens de Wuling disputavam a honra de me ver, depois de uma canção ofereciam-me incontáveis peças de seda. Alfinetes, pentes de prata quebrados descuidadamente, o vinho caindo ao acaso sobre minha saia cor de sangue. Escoavam-se os anos entre festas, risos, alegria, sucediam-se brisas de Primavera, luares de Outono. Um dia meu irmão partiu para a guerra, minha mãe morreu, mês após mês, ano após ano desvanecendo-se minha beleza, diante da porta, carruagens e cavaleiros cada vez mais raros. Para sempre perdida a mocidade, casei com um mercador, que, em busca do lucro e do negócio, me deixa abandonada. Partiu o mês passado para comprar chá em Fuliang, desde então permaneço nesta barca vazia, na foz do rio, vogando ao luar sobre águas geladas. A meio da noite, em sonhos, recordo minha juventude, vejam como as lágrimas avermelham meu rosto pintado.” Ao ouvir esta mulher tocar o alaúde, já os soluços se me prendiam na garganta. Agora, escutando sua história, em mim uma emoção imensa, nós dois, destroços encalhados nas margens do céu, finalmente próximos através de um encontro fortuito. O ano passado fui obrigado a abandonar a capital, a viver exilado nesta cidade de Xunyang. Doente por terras estranhas, sem guitarras nem flautas, minha casa em Penjiang, ao lado do rio pantanoso, rodeada de canaviais amarelecidos, de bambus amargos. Nesse lugar, ao nascer o dia, ao entardecer, à noite ouve-se apenas o guincho dos macacos, o piar triste dos cucos. Em tempo de Primavera e de flores, de Outono e de luar, ergo muitas vezes a minha taça e bebo solitário. Sim, há cânticos camponeses e flautas aldeãs, mas as notas estridentes magoam meus ouvidos. Esta noite chegou até mim o harmonioso tanger de um alaúde, música celestial retocada por mãos de fada. Silenciosa, sentada, a mulher ouve minhas palavras, digo-lhe que vou escrever um poema, a “Canção do Alaúde”. Ela pega, de novo, na guitarra, acaricia tristemente as cordas e vai arrancando notas intensa, saudosamente magoadas. Eu escondo os olhos, o pranto mancha nossas faces. Quem mais chorou? A cabaia azul do intendente de Jiujiang inundada de lágrimas.
António Graça de Abreu Via do MeioSegunda jornada à Falésia Vermelha – Su Dongpo Tradução de António Graça de Abreu No mesmo ano, na lua cheia do décimo mês, na companhia de dois amigos, parti de minha casa, a pé, em direcção ao pavilhão de Lingao. O orvalho já se havia transformado em geada gelada, as árvores tinham perdido todas as folhas. Na terra, distinguiam-se as sombras dos homens e, levantando-se a cabeça, aparecia uma lua brilhante. Olhávamos à nossa volta e contemplávamos a paisagem, caminhávamos cantando, ou íamos conversando uns com os outros. Por fim, eu disse, suspirando: “Tenho amigos comigo, mas não temos vinho. Mesmo se tivéssemos vinho não haveria iguarias para acompanhar. O prateado da lua, a doçura da brisa, que fazer numa noite tão bonita?” Um dos meus amigos respondeu: “Hoje, ao cair da noite recolhi a minha rede e a pesca foram uns tantos peixes de bocas grandes e escamas finas, uma espécie de percas. Mas onde encontrar vinho?” Regressámos a minha casa e falei com a minha esposa. Ela disse: “Tenho uns potes de vinho que ficaram guardados já há algum tempo, esperando que um dia te recordasses deles.” Partimos de novo com o vinho rumo à Falésia Vermelha. Impetuosa a corrente do rio, as escarpas subiam a mil pés de altura. Enormes as montanhas, pequena a lua, baixo o caudal e as ondas, as pedras no leito rompiam as águas. Habitamos estes lugares há já tantos anos e ainda não conhecemos o rio e as montanhas. Saímos da barca, levantei a cabaia comprida, trepei pela margem rochosa, caminhei sobre pedras afiadas, afastando, ao passar, as ervas selvagens. Sentei-me sobre penedos semelhantes a tigres ou leopardos, atravessei matagais, os arbustos pareciam dragões com cornos, no alto, havia ninhos de falcões. Levantando os braços procurei encontrar um poiso entre a ramaria, para passar a noite, baixando a cabeça, tentei descobrir o palácio solitário do deus das águas. Não fui seguido pelos meus dois amigos. Dei então um enorme grito que perfurou o espaço e fez estremecer as ervas e as árvores. Sonoridades na montanha, o eco, o vale respondeu. Levantou-se vento, a água caía nas cascatas. Em mim, alguma inquietação, tristeza, receio. Eu tremia, não queria ficar na margem do rio. Regressei à nossa barca que vogava ao sabor da corrente. Para satisfação de todos, era ela quem decidia por onde devia navegar. Era quase meia-noite. À nossa volta, um imenso silêncio e calmaria. Apenas um grou solitário, vindo de leste, sobrevoava o rio. Asas grandes como as rodas de uma carroça, o corpo, negro em cima, branco, em baixo. Grasnava, longos gritos que rasgavam a escuridão. Passou, rasando, por cima da nossa barca e seguiu para oeste. Os meus amigos partiram e eu adormeci. Sonhei que um monge taoista, vestindo um manto de penas ondulantes, passava junto ao pavilhão de Lingao. Saudou-me e disse: “A vossa viagem à Falésia Vermelha foi ou não foi uma jornada de espantar?” Perguntei-lhe como se chamava. Um leve aceno de cabeça e não me respondeu. Questionei-o, outra vez: “Não foste tu que ontem à noite sobrevoaste o nosso barco?” O monge sorriu. Sobressaltado, despertei por completo. Abri a janela da barca, olhei a paisagem, não se via ninguém.
António Graça de Abreu Via do MeioDa tradução de poemas de Su Dongpo Traduzir poemas de Su Dongpo (1037-1011) para língua portuguesa. Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas, movimentar-me nas assombrações da vida fantástica de Su Dongpo, o real com toneladas de sofrimento à espreita em cada esquina, mais os caminhos por alamedas plenas de alegria e humor. A estrutura da língua chinesa tão diferente e afastada das línguas ocidentais. Desbravar o infinito. A tradução próxima e distante. Lá do Extremo Oriente, do rendilhado das margens do lago Oeste, em Hangzhou, da ilha de Hainan ou da província de Shandong lançam-me música, um erhu chinês, um violino, uma pipa, o guzheng a enobrecer sentimentos. Acompanho Su Dongpo, com a sorte de tentar conhecê-lo, de ser seu amigo, de ter viajado por parte importante dos lugares do Império do Meio onde o poeta nasceu há mil anos atrás, desempenhou funções de mandarim, cruzou montes e vales, subiu e desceu rios, jornadeou pelos espaços do vazio, foi afastado para o outro lado do mar, para terras do degredo e do exílio.[1] Em prefácios a traduções anteriores de grandes poetas da China, sobretudo Li Bai, de 1990, Han Shan, de 2009 e Du Fu, de 2015, debrucei-me, tanto quanto sabia e era capaz de explicar, sobre o trabalho de tradução. O tradutor assume-se como o feitor de uma tarefa diferente, que se abre a partir de um outro código linguístico, mas no português de chegada têm de estar a raiz original das palavras e um mesmo sentir. Em Su Dongpo, encontrar a delicadeza, a suavidade, o encanto, a frescura da grande poesia clássica chinesa. Depois, difícil de fazer bem feito, mas é por aí que caminho. Yan Fu (1853-1921) um dos primeiros grandes tradutores de obras literárias inglesas e norte-americanas para língua chinesa falava nos três princípios fundamentais de uma tradução譯事三難:信 xin, ou seja fidelidade ao texto original, 達 da ou seja, fluência e legibilidade e 雅ya , ou seja, elegância e beleza, assim se harmonizando a língua de partida com a língua de chegada. Min Xiaohong (1963-), professora na Universidade de Senzhen, especialista em Su Dongpo, diz que “Translation is an art of transforming everything in form while changing nothing in meaning.”[2] Nuno Júdice, num texto brilhante sobre David Mourão Ferreira tradutor, refere George Steiner, no seu Depois de Babel onde o autor fala da tradução como “contrabando” processado a partir da língua e da cultura originárias para a língua e cultura de chegada. [3] No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa. Porque se o poema sínico parece intraduzível (por isso eu o traduzo!) tudo o mais é reinvenção, recriação, reimaginação, transcriação, retradução. E o poema contrabandeado já é outro poema. É de Su Dongpo, mas também é meu. Do grande universo da poesia da China clássica passou para o mundo da língua de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Contrabandear, com certeza, considerando um produto poético em busca de qualidade literária também na língua de chegada. E, porque os conhecimentos de língua chinesa serão sempre reduzidos, a necessidade da viagem por traduções noutras línguas mais próximas do português, sobretudo as boas traduções inglesas e norte-americanas. Vamos a um exemplo de um poema de Su Dongpo, conhecidíssimo na China, objecto de múltiplas traduções. É um 绝句 jueju, uma espécie de quadra, com sete caracteres por verso, assim: Eis uma tradução portuguesa possível, caracter a caracter: Meio Outono Lua Anoitecer nuvem juntar excesso límpido frio Via Láctea ausência silêncio tornar-se jade prato Esta vida esta noite não extensa boa Próximo ano brilho lua onde contemplar Minha tradução A lua do Meio Outono Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade. Se esta noite, no nosso existir, não fruimos prazeres, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? Agora a tradução inglesa du professor chinês Xu Yuanzhong, com rimas emparelhadas que não existem no original de Su Dongpo. Recordo que o poema tem outras rimas tonais praticamente intraduzíveis, características dos jueju: Evening clouds dispelled, a jade plate turns on high, Pure, cold flood overwhelms the silent silver sky. We can’t oft in this life have a mid-Autumn night, Where shall we see next year a harvest moon as bright?[4] A tradução do mesmo poema pela chinesa Wang Yun, há muitos anos radicada nos Estados Unidos da América: Dusk clouds vanish as a crystal chill blooms The moon’s jade plate turns against the soundless Milky Way This life this night is a flower about to fade Where will we see this lustrous moon next year[5] Por último, a tradução do norte-americano Bill Porter, aliás Red Pine: As evening clouds withdraw a clear cool air floods in the jade wheel passes silently across the Silver River This life this night has rarely been kind Where will we see this moon next year[6] Tenho tido como mestre no meu labor de tradutor, o velho Arthur Walley (1889-1966). O historiador Jonathan Spence (1936-), talvez hoje um dos mais brilhantes estudiosos e divulgadores da cultura e civilização chinesa no mundo da língua inglesa, e não só, referia-se a Arthur Waley como tendo aprisionado no seu peito o que de melhor existia nas literaturas chinesa e japonesa. Spence diz que nunca ninguém fez nada de parecido, embora “there are now many Westerners whose knowledge of Chinese or Japanese is greater than his, and there are perhaps a few who can handle both languages as well. But they are not poets, and those who are better poets than Waley do not know Chinese or Japanese.” [7]l Waley era um bom poeta e muitas das suas traduções foram incluídas como poemas seus integrados na literatura inglesa, por exemplo no Oxford Book of Modern Verse 1892-1935, ou no Penguin Book of Contemporany Verse (1918-1960). Recebeu, em 1952, a condecoração de Commander of the Order of the British Empire e, no ano seguinte The Queen Medal for Poetry. Su Dongpo é um poeta maior, atravessando os trinta e um séculos de poesia chinesa, amado e lido em toda a China, até hoje, não muito conhecido em Portugal, embora a modernidade da sua mensagem poética contemple o perpassar do tempo. Talvez com alguma surpresa, o leitor de traduções de poesia chinesa para língua portuguesa descubra que Su Dongpo já foi objecto de umas tantas versões, recriações e traduções poéticas em português. Foi António Feijó (1859-1917) quem, em finais do século XIX, no seu Cancioneiro Chinês, traduziu do francês quatro poemas atribuídos a Su Dongbo, que, na realidade, não saíram do pincel e da inteligência do nosso poeta. Feijó traduziu e reinventou setenta e um poemas aparentemente chineses que formam o Livre de Jade, de Judith Gautier e de Tin Tun-ling, de 1867, um sucesso literário na Europa culta da época. Ora os poemas chineses pretensamente traduzidos pela jovem filha de Theóphile Gautier, são, quase todos uma reinvenção absoluta. No que a Su Dongpo diz respeito cito as frases do estudo de Ferdinand Stocès: “Du poème de Su Dongpo Bloqué par le vent sur le lac Ci, qu’elle intitule Un navire à l’abri du vent contraire, sur les cinquante-six caractères de ce poème de huit vers, Judith Gautier et son tuteur — en ont identifié quatre, ce qui ne leur a point permis de saisir le message du poète chinois.” [8] As engenhosas traduções parnasianas de António Feijó são assim, quase todas traduções de não traduções. Camilo Pessanha, em Macau, interessou-se pela poesia chinesa e chegou a traduzir, com a ajuda de um letrado chinês e do seu amigo José Vicente Jorge, pelo menos oito poemas chineses, de poetas menores da dinastia Ming (1368-1644). Pessanha tinha admiração pela língua chinesa que, na sua opinião, era “a mais formosa e a mais sugestiva de todas as línguas literárias vivas ou mortas.” Pena os maiores poetas da China, homens como Li Bai, Du Fu, Bai Juyi, Su Dongpo ou a delicada Li Qingzhao terem passado ao lado da caneta de Camilo Pessanha. Existe a lenda de que na última vinda a Portugal, em 1915, trouxe de Macau sete mil páginas manuscritas com poemas que entretanto desapareceram. Não será de acreditar, dada a desorganização completa com que, nesta fase da sua vida, já afundado em ópio, Pessanha tratava os seus papéis. Gil de Carvalho, no seu trabalho Uma Antolologia de Poesia Chinesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 2ª. Edição, 2010, traduziu sete poemas de Su Dongpo. Na primeira edição, de 1989, havia incluído apenas um poema do nosso poeta. Adelino Ínsua, poeta e editor, publicou no ano 2000, na Pedra Formosa Edições, a primeira antologia de Su Dongpo em língua portuguesa, constituída por apenas 27 poemas e uma apresentação de duas páginas que intitulou A Flor da Ameixieira, Poemas de Su Dongpo. Trata-se de um pequeno trabalho, deveras simpático. Na também pequena antologia de poesia chinesa que Adelino Ínsua publica em 2002, sob o título Pavilhão da Chuva, aparece um poema de Su Dongpo. Em 2013, com o apoio de Carlos Morais José, eu próprio organizei uma grande antologia que intitulámos 500 Poemas Chineses, com uma edição feita em Macau e outra da responsabilidade da Vega Editora, em Lisboa, 2014. Su Dongpo entra com 18 poemas, com traduções António Feijó, Alberto Osório de Castro, Jorge Sousa Braga, Adelino Ínsua, Gil de Carvalho e António Graça de Abreu. Eu tive a ousadia de traduzir cinco poemas de Su Dongpo. No Brasil, tanto quanto sei, Su Dongpo não tem sido muito traduzido. Em 2022, foi defendida na Universidade de São Paulo, uma dissertação de Mestrado, da autoria de César Augusto Matiusso, intitulada “Meditação sobre o passado: tradução comentada da poesia de Su Dongpo.” Bom será que seja colocada na net ou editada em livro. Su Dongpo e os leitores de língua portuguesa merecem tudo. [1] Nos dois volumes de Toda a China, Lisboa, Guerra e Paz, 2013 e 2014, ver os textos sobre as minhas jornadas pelas actuais províncias de Sichuan, Hunan, Hubei, Shaanxi, Shanxi, Henan, Shandong, Jiangsu, Zhejiang, Guangxi, Guangdong e ilha de Hainan, de quando em quando na companhia de grandes poetas da China Clássica, como Su Dongpo. [2]Ambos os textos estão na net, onde é infindável a busca por Su Dongpo, com milhares e milhares de entradas e pistas de trabalho. Ver também o You Tube, tendo a vida e carreira de Su Dongpo sido na China objecto de uns tantos filmes e telenovelas. [3] Nuno Júdice, in Jornal de Letras, nº. 1290, 11.03.2020, pag. 10. [4] Su Dongpo – a NewTranslation,,(bilingue), Xu Yuanzhong (trad.), Hong Kong, The Commercial Press, 1982, pag 98. [5] https://www.amazon.com/Dreaming-Fallen-Blossoms-Poems-Dong Po/dp/194568027X/ref=sr_1_2?crid [6] Poems of the Masters, Red Pine (trad.), Port Townsend, Copper Canyon Press, 2003, pag. 319. [7] https://site.douban.com/106369/widget/notes/134616/note/137774609/ [8] https://www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee-2006-3-page-335.htm. E também de Ferdinand Stocès, O Livro de Jade, de Judith Gautier, características gerais das edições de 1867 e 1902, Revista Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pags 3 a 20.
António Graça de Abreu Via do MeioA ratazana astuta Ia adiantada a noite quando eu, Su Dongbo, comecei a ouvir o roer de um rato. Bati na madeira da cama para acabar com o ruído. Parou durante alguns instantes, mas logo recomeçou. Pedi ao meu criado que me trouxesse uma vela e, depois de muito procurar, encontrámos um saco vazio, do interior do qual provinha o barulho. Eu disse: “Ah, a ratazana ficou fechada lá dentro e não pode sair.” Então abrimos o saco, olhámos para o interior e não vimos nada. Levantámos a vela e descobrimos o que parecia ser uma ratazana morta. O meu criado exclamou, surpreendido: “Como é possível este animal que ainda agora roía a madeira, ter morrido tão depressa? Há pouco, de onde vinha o ruído, não seria o fantasma do rato?” Ditas estas palavras, tirou a ratazana para fora do saco. A bicha, assim que tocou o chão, desatou a correr a uma tal velocidade que nem mesmo o mais rápido estafeta a conseguiria apanhar. Eu suspirei e disse. “Estranhas as artimanhas da ratazana. Fechada num saco de onde não podia sair, começou a roer, para chamar a atenção, depois fingiu-se de morta e assim conseguiu escapar.” Tenho ouvido dizer que o homem é o mais inteligente dos seres vivos, consegue domar dragões, vencer infindáveis monstros, caçar unicórnios, subjugar tartarugas. Será, por isso, o mestre de toda as criaturas. E agora, aqui temos um homem enganado pela astúcia de uma simples ratazana, um animal que associa a velocidade da lebre ao comportamento de uma donzela.[1] Eu pergunto, onde está a inteligência dos homens? Sentei-me, num leve dormitar. Interrogava-me quanto a estas questões quando, de súbito, me pareceu ouvir uma voz, dizendo: “Os teus conhecimentos são demasiado livrescos, procuras o Tao e não o encontras. Em vez da subjectividade, tentas ser objectivo e acabas por te escravizares às circunstâncias. Até o roer de uma ratazana te perturba. És um homem que não sabe viver com jóias raras e lamentas a perda de caldeirões cheios de coisa nenhuma. És capaz de atacar tigres ferozes, mas mudas de côr ao seres picado por uma abelha. Estas são algumas das moléstias que fazem parte de ti e as palavras foram pronunciadas por ti próprio.[2] Já as esqueceste?” Levantei a cabeça e sorri. Depois, completamente desperto, pedi ao meu criado que me trouxesse um pincel e tinta para eu escrever este texto, nada elogioso sobre a minha pessoa. Tradução: António Graça de Abreu [1] “Primeiro assume o comportamento de uma donzela, e o teu inimigo abrir-te-á as portas, depois sê rápido, como uma lebre em corrida e o teu inimigo não terá tempo para se defender.” Citação de Sun Zi (544 a.C.-496 a.C.), Arte da Guerra, cap. 9. [2] Aos dez anos de idade, a pedido do pai, Su Dongbo escreveu uma pequena composição sobre um homem que não gostava de jóias e queria destruir grandes caldeirões. Atacava tigres ferozes mas mudava a cor do rosto com a picada de uma abelha.
António Graça de Abreu Via do MeioSu Dongpo | O vinho enquanto segunda vida Texto e tradução de António Graça de Abreu O grande poeta Su Dongpo gostava de se reunir com os amigos, comiam, bebiam gloriosamente, diziam ou compunham poemas, pintavam. Um deles, Huang Tingjian黄庭坚 (1045-1105), a seu respeito, escreveu: “Ele adorava viver mas, após três ou cinco copos, já ébrio, parecia meio morto. Deitava-se sem cerimónia num qualquer recanto e ressonava com o ruído de um trovão. Algum tempo depois despertava, sentava-se à mesa e começava a escrever ou a pintar com a velocidade do vento.” Nestes encontros de amigos e em momentos de solidão prevalecia a exaltação das bebidas fortes e encorpadas. O vinho, 酒 jiu em chinês, ou melhor, as vinte mil variedades de bebidas alcoólicas, fazia parte dos quotidianos de quase toda a gente. Nos seus poemas e na sua prosa, Su Dongpo faz referências frequentes ao vinho e aos prazeres do álcool. O que bebiam não era propriamente vinho de uvas, também existente em algumas regiões da China, mas sobretudo baijiu, aguardentes destiladas a partir do sorgo, do painço, do arroz, de uma série de plantas e frutas que, levedadas, produziam néctares de elevada graduação que chegavam aos sessenta graus. Fabricavam-se também os mais variados licores e xaropes com menor teor de álcool e era vulgar uma espécie de cerveja que se obtinha misturando aguardentes e fruta com água, o que resultava numa bebida leve que alegrava o espírito de quem a bebia, mas não embebedava. Todos estes derivados alcoólicos se chamam jiu, normalmente traduzido por “vinho” mas os chineses, tal como acontecia com o chá, sabiam muito bem diferenciar os diversos jiu. Num texto que intitulou “Em louvor do vinho forte” Su Dongpo vai longe na definição e valorização dos supremos néctares, em palavras que por certo grandes beberrões subscreveriam, poetas como Horácio, Ronsard, Baudelaire, Omar Kahyan, Alberti, o nosso Fernando Pessoa: “Nos homens é preferível um temperamento brando, mas no vinho não se devem evitar a potência e a força. É através do vinho que se esquecem os sonhos de uma noite e com ele se chega a entender as verdades do universo. O vinho é para os homens como uma segunda vida e frequentemente é só no estado de abençoado conforto e maravilhosa tranquilidade criada pelo vinho que alguém pode ter a sensação de encontrar a própria alma.” E escrevia assim, em sublimes poemas: Fraco, o vinho O pior de todos os vinhos, melhor do que água quente. Trapos, melhores que nada ter para vestir. Uma mulher feia, uma concubina conflituosa, melhores do que ter a casa vazia. Quanto mais fraco o vinho, mais fácil emborcar dois copos, quanto mais fino o tecido da cabaia, mais fácil vesti-la, a dobrar. Existe a contradição entre o feio e o belo, mas, quando embriagado, uma coisa tão boa como a outra. Esposas mal-parecidas, concubinas briguentas, quanto mais velhas, mais se assemelham. Impossível saber como será o final dos nossos anos, toma apenas por conselho o teu bom senso. Evita audiências imperiais, os grandes governantes do reino, o salão Florido do Leste, a poeira do tempo, o vento na Passagem do Norte. Cem anos, parece uma eternidade, mas, célere, tudo chega ao fim, nós acabamos por cumprir tão pouco. Vale tanto o cadáver de um rico como o cadáver de um pobre, no rico, para conservar o corpo, pedras de jade, pérolas colocadas na boca do ilustre defunto. Não são grande ajuda, mil anos depois enriquecem ladrões de túmulos, por recompensa, apenas uma ou outra referência literária. Felizmente gente tonta pouca importância dá a tudo isto, enganam meio mundo, enrubescem de contentamento, homens justos são seus inimigos. Para o mérito, um bom vinho por recompensa, em toda a parte, o bem, a alegria, a tristeza, simples manifestações de um mesmo todo, o Vazio. O mau vinho é como os maus homens Bebendo com Liu Ziyu, no templo da Montanha Dourada. Ébrio, adormeci no terraço da meditação. Despertei a meio da noite e escrevi este poema nas paredes do terraço. O mau vinho é como os maus homens, ataca, é mais mortífero que flechas ou facas. Alquebrado, desmaiei no terraço, foi necessário decretar tréguas. O velho poeta é um homem de coragem, gentis, profundas, as palavras do mestre budista. Demasiado ébrio para tudo entender, esbatida a mente em vermelhão e verde, horas depois, acordei, já a lua se afundava no rio. Diferente o bramido do vento, num altar do templo, ainda o leve fulgor de uma lamparina. Os meus dois heróis, desapareceram. [1] Imagens perfeitas Os vapores húmidos do vinho revolteiam-me as entranhas. Dos pulmões, do fígado, numa torrente, como numa avalanche, saltam rochas e bambus. Pinto-as na parede côr de neve, imagens perfeitas. [1] Lin Ziyu, amigo do poeta e Pao Xue, o superior do templo budista.
António Graça de Abreu Via do MeioFantásticas miragens no mar Su Dongpo Tradução de António Graça de Abreu Oiço, há muito tempo, falar em miragens fantásticas que aparecem sobre o mar na costa de Dengzhou.[1]As pessoas mais antigas do lugar disseram-me que, normalmente, aparecem na Primavera e no Verão, e como eu cheguei tarde já não esperava vê-las. Cinco dias depois de ocupar o meu posto, recebi ordens para regressar à corte. Fiquei aborrecido por não ter a possibilidade de ver as miragens e decidi fazer uma oração ao Deus do Mar, o Rei da Ampla Virtude. No dia seguinte, consegui vê-las e escrevi: A leste, nuvens e mar, vazio e mais vazio, será que os imortais se passeiam nas luzes do vácuo? Todas as formas nascem do ondular de um mundo flutuante, não existem portas de conchas fechando palácios de pérolas. A minha mente sabe, é tudo uma grande ilusão, mas meus olhos pedem, desejam a invenção dos deuses. O dia frio, o mar gelado, lacrados céu e mar, por bem, deixem-me acordar os dragões adormecidos. Torres inclinadas, colinas verdes embebidas na geada da noite, aí estão as miragens, maravilhas para assombro dos velhos. Neste mundo, tudo se consegue com o labor dos homens, nada mais existe por detrás do outro lado do mundo. Mas quem concebeu tanto deslumbramento? Inventei justificações, as divindades concordaram. Confundir as coisas tem a ver com os homens, não se trata de pragas caídas do céu. Quando o governador de Chaoyang[2] regressou ao norte, após o seu exílio alegrou-se ao ver os picos aguçados de Hengshan[3] considerou que o seu honesto coração tinha comovido os espíritos da montanha. (afinal o Criador apenas tivera pena do velho!) Viveu um raríssimo momento de prazer, os deuses concederam-lhe breves benesses. Aqui, o sol desce, um pássaro solitário perde-se na distância, contemplo o esverdeado do mar, como um espelho de bronze polido. Para que serve este poema, este mágico entrelaçar de palavras? Como todas as coisas, desaparecerá, pouco a pouco, quando soprar o vento leste. [1] Em 1085, Su Dongpo foi nomeado governador de Dengzhou, na província de Shandong, mas permaneceu apenas uma dúzia de dias no lugar porque, logo após a sua chegada, foi mandado regressar a Kaifeng para desempenhar funções mais importantes na corte. [2] O governador de Chaoyang é o poeta e prosador Han Yu 韓愈 (768 – 824). Em 819 foi exilado para o sul da China. Amnistiado três anos depois, regressou a casa, tendo cruzado parte da montanha Hengshan, em Hunan. Han Yu escreveu: “O mais perfeito dos sons humanos é a palavra. A poesia é a forma mais perfeita das palavras.” Ver Quinhentos Poemas Chineses, coord. António Graça de Abreu e Carlos Morais José, Lisboa, Vega Ed., 2014, pags. 185 e 186. [3] A montanha Henghshan, na província de Hunan, é uma das cinco montanhas sagradas do taoismo chinês. Han Yu, ao passar por aí, os cumes de Hengshan estavam cobertos de névoa. O poeta rezou então aos espíritos da montanha e logo depois toda a névoa desapareceu. Ele considerou que isso aconteceu devido à honestidade que continuava a prevalecer no seu coração.
António Graça de Abreu Via do MeioCarta ao poeta 白居易 Bai Juyi (774-842), em Hangzhou Escrevo-te, meu querido e reverenciado amigo Bai Juyi, para te agradecer o acolhimento fraterno, de grande irmão mais velho que me proporcionaste nos cinco dias em que, no início da Primavera de 2011, estive a teu lado em Hangzhou, nas longas deambulações em redor do Lago Oeste, na visita aos tempos de Lingyin e de Yongfu, no passeio pelos diques e pela perfeição das ilhas do Lago. Encontrei-te logo à chegada a Hangzhou. Estavas igual ao que sempre foste, agora moldado no bronze dos séculos, ali na margem norte do Lago despedindo-te da gente boa da cidade, em 824, após três anos como governador de Hangzhou. Nos olhos, na memória de todos, a figura do digno mandarim e letrado defensor de pobres e humildes. Um forte abraço na tua estátua de bronze, e fomos retratados os dois, para testemunho da minha velha admiração. Imortal da Poesia, foi cumprida nos séculos VIII e IX a tua excelente missão de funcionário imperial, mandarim, poeta e homem de bem. Hoje continuas sereno a assistir ao perpassar dos anos, junto ao Lago Oeste, admirado por multidões de chineses que, tal como eu, não resistem ao apelo da fotografia a teu lado. Aproveitei para te segredar que havia traduzido a tua poesia para português, a quinta língua mais falada do mundo e publicado em 1991, em Macau uma antologia, os Poemas de Bai Juyi[1], com parte representativa da tua obra, 202 poemas no total. Um finíssimo sorriso teu, de bronze, cumplicidade e amizade. Chegaste a Hangzhou no Verão de 822, com 50 anos de idade e pouca vontade de exercer as funções de governador. Escreveste então: “Há muitos homens sábios na corte, eles dirigem os destinos do império. Eu prefiro voltar o meu rosto para o Lago Oeste e durante dois ou três anos ter como única ocupação o vinho e a poesia”. No entanto, o teu nome ficou ligado a uma obra ainda hoje existente e emblemática para as gentes da cidade, a construção do Bai Di, um extenso dique no lado oeste do Lago capaz de conter e regularizar o fluxo das águas, o que facilitou a irrigação e os trabalhos agrícolas. Uma das tarefas de um governador de cidade era endereçar preces aos deuses, pedindo auxílio e protecção. Deixaste-nos, Bai Juyi, bons exemplos do teu pragmatismo e utilitarismo, tão comum no homem chinês. Ao Dragão Negro do Norte, um dos espíritos que comanda as chuvas, escreveste: “Dirigimo-nos a ti na esperança de um favor, mas não te esqueças que a tua divindade depende de nós. As criaturas não são divinas por conta própria, são os crentes que as fazem divinas. Se dentro de três dias as chuvas começarem a cair, a água será uma bênção para os camponeses e nós reconheceremos os teus poderes sagrados. Mas se permaneceres quieto, olhando calmamente o estiolar das colheitas por falta de chuva, isso não será apenas desastroso para o povo, será também mau para ti. A ti compete decidir.” Os quotidianos em Hangzhou, segundo as tuas próprias palavras, eram “festas, passeios, comer e dormir”. Em 824, no regresso a Chang’an, a actual Xi’an, capital do império, estavas triste, a vida na cidade do Lago Oeste fora agradável, pacífica e enriquecedora. Num adeus às gentes de Hangzhou, escreveste: Não governei a cidade como os sábios do passado, Porque vejo então lágrimas em vossos olhos? Foram pesados os impostos, o povo é muito pobre, Tempos difíceis para os camponeses, a seca assolando os campos. Tudo o que fiz foi levantar um dique nas águas do Lago, Ajudar um pouco a irrigar a terra. Fizeste-me companhia nestes dias em Hangzhou, também nas caminhadas pelos arredores da cidade. Subimos ambos os montes até ao famoso e antiquíssimo templo budista de Lingyin construído no ano 326 onde os muitos romeiros chineses, em sucessivas genuflexões sentidas, pediam ao velho Buda de madeira de cânfora com 20 metros de altura, benesses e protecção, a eliminação do sofrimento, uma vida melhor e mais rica. Avançámos depois para o pouco conhecido templo de Yongfu, ou seja da Felicidade Completa. Longe dos homens, no vazio da floresta, havia pavilhões suspensos no verde das encostas, portões de madeira lavrada, a pequena névoa azul dos fumos de incenso, sorrisos dos budas, o rosa suave e denso das ameixieiras em flor, a água chilreando nas cascatas embalada pelo cantar dos pássaros. Regressámos em paz ao Lago. Diante do pagode de Leifeng sentámo-nos num pequeno varandim sobre as águas, bebemos uns cálices de aguardente de sorgo. Caía a tarde, ouvimos cânticos do céu. Ofereceste-me então este teu poema, escrito aqui no ano de 824. A norte, o mosteiro, a ocidente, o grande pavilhão, cheio o lago Oeste, transbordando para as margens, As nuvens dançam, parecem suspensas nas águas. É Primavera, rouxinóis procuram árvores ao sol, andorinhas ziguezagueiam sobre pequenas ondas, a erva começa a cobrir os cascos dos cavalos, meus olhos fascinados pela profusão das flores. Gosto muito de passear na margem leste do lago, poderia passar aqui todos os meus dias na restinga de areia branca sombreada por salgueiros verdes.
António Graça de Abreu Via do MeioYuan Mei – Palavras Poéticas Tradução e textos de António Graça de Abreu Yuan Mei 袁枚 nasceu em Hangzhou em 1716. A cidade, na margem do lago Oeste, em Zhejiang, com mil e quinhentos anos de história, será talvez a mais bonita capital de província de todo o império chinês, rodeada de montes e florestas, polvilhada de templos e pavilhões, com um lago enorme que nas margens se desdobra em recantos onde são possíveis quase todos os encantamentos do mundo. Hangzhou está embebida no lastro do passado, recordando mil vilanias e todos os prazeres. Yuan Mei, talvez o maior poeta da dinastia Qing (1644-1911), provinha de uma família de modestos letrados da cidade. Seria ele o primeiro mandarim da família, grau que obtém nos exames imperiais aos 23 anos. Exerceria as funções de funcionário estatal apenas durante nove anos. Voltou ainda aos afazeres de mandarim, mas tinha pouco ou nenhum gosto pelas malhas do poder, um dos seus maiores prazeres era nada ter que fazer e dedicar-se apenas à escrita e à leitura. Os seus poemas começavam a ser conhecidos e tinham venda. Ele próprio acabaria por montar na sua casa uma espécie de tipografia, com painéis de impressão com pranchas de caracteres móveis em madeira. Editava assim os seus próprios livros e obtinha avultados rendimentos. Com menos de quarenta anos, Yuan Mei retirou-se para uma grande mansão que comprou em Suiyuan, nos arredores da também bonita cidade de Nanquim, e, com muitas viagens de permeio, aí viveu até ao fim da sua longa vida. Fechou os olhos, para sempre, em Dezembro de 1798, aos 82 anos de idade. Três poemas de Yuan Mei 袁枚 (1716-1797) , Contemplando um amigo que toca flauta ao luar Noite de Outono, visito um ermita meu amigo. Vem até mim a música, acordes perfeitos debaixo do céu, ondeando na superfície do lago, à luz fria do luar. O trinar de uma flauta, o coração do amigo, a melodia agarra nuvens azuis que descem sobre as águas. Encontramo-nos no meio de perfumes coloridos pelo rosa das flores de lótus, cobertas de gotas de orvalho cristalino. Na claridade prateada humedecidas nossas vestes. Na estrada para Baling[1] A oeste do lago Dongting, um templo, uma deusa no altar, jovens de sobrancelhas pintadas confortam viajantes cansados. A região montanhosa, vazia de gentes, as tendas fechadas, distantes os faróis na margem, a minha barca ao entardecer. Não entendo o dialecto do lugar, preciso de alguém para traduzir, pássaros estranhos, de nomes desconhecidos, envergonham o poeta. Raros barqueiros conhecem a minha vontade, o meu sentir, levanto a janela do barco, por toda a parte, ramos em flor. [1]Baling, ao lado da actual cidade de Yueyang, famosa pelo torreão junto ao lago Dongting, na província de Hunan. Aceitando a minha sorte Fechado em casa assumo os dias como um pobre poeta. Acumularam-se os anos, entrei agora no carreiro dos velhos. Fascinado por montanhas rodeadas de nuvens esqueço a minha própria terra, por vizinhos, tenho macacos e pássaros. Abandonei todos os meus cargos, dedico-me a fruir o prazer de existir. Porque não tenho um filho varão. vou casando, vez após vez.1 Esqueci o grande talento que julgava ter para mandar e governar, e aceito ser um simples poeta, minha sorte, meu destino. [1] Só aos 62 anos, Yuan Mei conseguiu ter um filho rapaz da sua quarta concubina. Nas últimas duas décadas da sua vida, Yuan Mei entreteve-se a redigir um vasto conjunto de Shi Hua 詩話, Palavras Poéticas, utilizando sobretudo a prosa. Com esta denominação apareciam desde o século XI inúmeras recolhas de textos breves da autoria dos mais diversos letrados. Yuan Mei não inovou no título dos seus escritos. Tratava-se fundamentalmente de pequenos excertos autobiográficos, meditações sobre a essência da poesia, vidas de poetas, anedotas, etc. Por exemplo: “Wang Chizi foi meu colega nos exames de 1744. À entrada na sala das provas, recitou um poema da sua autoria com o título Junto de túmulos antigos. Assim: Sombrio, triste, minúsculo o antigo templo, um mocho descansa nas gravuras do arco de pedra. Ainda é dia quando quem perdeu entes queridos se reúne e prepara as cerimónias fúnebres. Enorme confusão de cavalos e carruagens. Eu ousei perguntar-lhe porque é que ele parecia tão satisfeito por ter escrito este poema,. Wang Chizi sorriu e disse: “Fecha os olhos e pensa.” Outro exemplo: Os taoistas para ascender ao céu precisam de fabricar nove vezes os seus pozinhos da imortalidade. Os confucionistas apreciam sobremaneira a rectidão e o meio justo. Um cozinheiro conhece bem a sua arte, sabe como controlar o fogo, como manter o lume. Yuan Mei continua questionando o leitor. Alguém me perguntou qual o nome do melhor poema escrito durante esta dinastia. Eu argumentei, perguntando: qual é o melhor poema do Shi Jing, (o Livro das Odes.)[1] Não obtive resposta. Então disse: A poesia é como as flores, uma orquídea na Primavera, um crisântemo no Outono, não podemos dizer que uma é melhor do que a outra. Quando a música das palavras e a ideia na concepção do poema emocionam um coração, estamos diante de um bom poema. E continua Yuan Mei: O poeta Yang Wanli (1124-1206) terá escrito “Porque é que as pessoas com pouco talento literário sempre falam sobre métrica e a utilização dos tons em poesia? A métrica e os tons são apenas a armação e não é difícil levantá-los. Mas é na concepção do poema que se expressa o génio do poeta, é aqui que se mostra a sua qualidade. Outro exemplo da prosa breve de Yuan Mei, citando Bu Xian um amigo presidente de uma academia em Guilin onde o nosso amigo o encontrou em visita que fez à cidade, em 1784: Bu Xian disse: “A poesia nasce do coração e depois faz-se com as mãos. Se o coração controla a mão, está tudo bem, mas se a mão faz o trabalho do coração, está tudo errado. Hoje em dia, muitos imitam as bases da poesia, copiam um pouco daqui e de acolá, usam tudo o que está amontoado em pilhas de papel velho em vez de contarem com o que brota dos seus próprios sentimentos. É o que eu chamo ‘A mão fazendo o trabalho do coração.’” Na China do século XVIII aconteciam ainda acaloradas discussões sobre a poesia do passado. Yuan Mei explica: A divisão da poesia entre estilo Tang e estilo Song continua hoje a manifestar-se. Isto corresponde ao facto de muitos ignorarem que a poesia é o produto dos sentimentos dos homens, enquanto que Tang e Song são simplesmente nomes de duas dinastias. Os sentimentos das gentes não mudam com o renovar das dinastias. Para terminar, uma referência a um incerto poeta chamado Tai Yuyang: Este senhor escreveu o seguinte verso: “O ar da noite envolve os montes/ apequena-se a terra e o céu.” A beleza reside na margem existente entre o inteligível e o não inteligível, trata-se de dois versos primorosos. Mas quem foi Tai Yuyang, o autor? Não faço a mínima ideia.
António Graça de Abreu Via do MeioLi Qingzhao – Poemas do erotismo suave Li Qingzhao李清照 (leia-se Li Chin-tsao) é a grande dama da poesia chinesa. Nasceu em 1084 em Jinan, hoje capital da província de Shandong e é, por certo, a maior poetisa da China. Aos dezassete anos casou com Zhao Mingsheng, um ilustre letrado e mandarim como ela amante das belas-artes, da poesia, da cultura. Viúva, após trinta anos de vida feliz em comum, Li Qingzhao dedicou-se por inteiro à poesia, tendo escrito alguns dos poemas de amor mais famosos e sentidos de toda a poesia chinesa. A sua obra – conhecem-se apenas sessenta e dois poemas – costuma ser dividida em três períodos, primeiro, os anos felizes de casamento e juventude; segundo, o tempo em que viveu separada do marido por causa das guerras que assolaram o império, com versos melancólicos e tristes, na esperança do reencontro com o homem amado; e o terceiro, os anos de viuvez, com poemas de profunda saudade pelo companheiro que partira. Faleceu em 1155. No mundo chinês ninguém mais a esqueceu. Em Li Qingzhao, a extraordinária sensibilidade feminina mesclando a sublime natureza com o indefinível pulsar de um grande coração. Assim: 采桑子 晚来一阵风兼雨 洗尽炎光 理罢笙簧 却对菱花淡淡妆 绛绡缕薄冰肌莹 雪腻酥香 笑语檀郎 今夜纱幮枕簟凉 Colher fruta madura A noite, o vento arrasta a chuva, apaga o fogo sufocante do sol. Fui buscar a flauta de bambu, diante do espelho, retoco o meu rosto. A minha carne, sob o robe de seda púrpura, como jade ou neve, liso e perfumado. Sorrio e digo: “Meu amor, esta noite, por detrás das cortinas de gaze, na frescura do nosso leito.” Ou: 如梦令 常记溪亭日暮 沉醉不知归路 兴尽晚回舟 误入藕花深处 争渡 争渡 惊起一滩鸥鹭 Como um sonho Recordo o pavilhão junto às águas, ao entardecer, e nós, embriagados, incapazes de encontrar o caminho de regresso. Longe de tudo, encharcados em prazer, remávamos ao acaso, entre tufos de lótus verdes. Mais depressa, mais depressa… Na margem, assustadas, garças e gaivotas levantavam voo. Ou: 武陵春 风住尘香花已尽, 日晚倦梳头。 物是人非事事休, 欲语泪先流。 闻说双溪春尚好, 也拟泛轻舟。 只恐双溪舴艋舟, 载不动许多愁。 Primavera em Wuling Cessou o vento, a terra exala o perfume das flores caídas, cai a noite, para quê pentear os meus cabelos? Sua roupa está lá, mas ele não. Nada mais faz sentido. Queria falar-lhe e desfaço-me em lágrimas. Dizem-me, nas margens do lago é esplendorosa a Primavera. Eu também gostava de passear de barco, mas receio que uma barca tão frágil não aguente o peso de tanto sofrimento. Ou, recreando a fala de uma cortesã, ou prostituta: 点绛唇 蹴罢秋千, 起来慵整纤纤手。 露浓花瘦, 薄汗轻衣透。 见有人来, 袜铲金钗溜, 和羞走。 倚门回首, 却把青梅嗅。 Pintar os lábios de vermelho Após os muitos jogos do baloiço, levanta-se, cansada, pinta outra vez o rosto. Foi o orvalho pesado numa frágil flor, pérolas de suor humedecem a sua roupa fina. Chega um novo cliente, volta a tirar as meias, caem os alfinetes dourados. Provocante, encosta-se à porta do quarto, respirando o aroma de uma maçã verde. traduções de António Graça de Abreu, Outubro 2022
António Graça de Abreu Via do MeioSu Dongpo – Carta ao amigo Qin Guan 蘇東坡 Su Dongpo (1037-1101), um dos grandes poetas da China e do mundo, conheceu o degredo e o exílio, mas sabia transformar as adversidades em tempos de pequenos e inesquecíveis prazeres. No ano de 1080, após 130 dias na prisão, por supostamente ter criticado o imperador, Su Dongbo foi despromovido e enviado como fiscal das águas e segundo comandante da guarda da insignificante vilazinha de Huangzhou, na margem norte do rio Yangtsé, a meio caminho entre os lagos Dongting e Poyang. A sua casa situava-se no lugarejo de Lingao e aqui Su Dongbo escreveu alguns dos seus mais belos poemas. Este é um excerto de uma carta então enviada ao seu amigo Qin Guan. Quando cheguei a Huangzhou estava preocupado com o que iria encontrar. O meu salário havia sido cortado e a minha família era extensa. Contudo, fazendo poucas despesas, consegui não gastar mais de 150 sapecas por dia. No início do mês recebia 4.500 moedas e dividi-as em 30 sacos que pendurava nas vigas da casa. Todos os dias, de manhã, com uma cana pesco um saco de sapecas. Também penduro uns caniços de bambu onde guardo o dinheiro que sobra. É um método que me foi ensinado pelo meu amigo Xia Yunlao. Creio ter dinheiro suficiente para um ano ou mais, e depois aparecerão outras soluções. A água quando corre escava a terra, não vale a pena preocupar-me demasiado com o futuro. Entendes porque são tão poucas as inquietações na minha mente? Nas margens do rio Yangtsé situa-se Wuchang. Em redor, a paisagem de montanhas e água é prodigiosa. A cidadezinha é habitada por um homem chamado Wang, natural de Sichuan. De quando em quando, o vento e as águas agitadas do rio impedem-me de regressar ao lar, então o meu amigo Wang mata um frango e cozinha uma panela com milho miúdo. Posso permanecer em sua casa durante vários dias, não é coisa que o aborreça. Tenho outro amigo, o Pan, dono de uma taberna no cais de Fankou. Bastam umas tantas remadas numa barca e chego à sua quitanda. O vinho da aldeia é encorpado, abundam tangerinas e dióspiros. Os inhames têm mais de um pé de comprimento e podem ser comparados aos das terras de Sichuan. O arroz vem de outras regiões, por via fluvial, e custa apenas vinte taéis por alqueire. A carne de carneiro é tão boa como a das províncias do norte, porco, vaca e cabra são muito baratos, os peixes e caranguejos não custam quase nada. Hu Tingshi, o inspector do Departamento Vinícola, trouxe dez mil livros com ele que tem prazer em emprestar aos amigos. Em Huangzhou existem vários pequenos funcionários estatais, todos amantes da boa cozinha que gostam de oferecer banquetes. Depois desta descrição podes aperceber-te de que a minha vida por aqui é mais do que agradável. Adorava conversar contigo sobre todas estas coisas, mas já não tenho papel, a folha está a acabar. Imagino-te a leres esta carta, um sorriso de concordância, cofiando a barba. 1080 Viajando para Chi Ting Na viagem para Chi Ting, Pan, Ku e Guo, três homens da região são meus companheiros. Vamos ao mosteiro da doutrina chan (zen), a leste da aldeia de Nu Wang.[1] A Primavera fria, não saio de casa há dez dias, não me apercebi que rebentos de salgueiro baloiçam já sobre os telhados da aldeia. Oiço o estilhaçar do gelo, o ruído espalhando-se pelo vale. Manchas de erva verdejante irrompem dos fogos de Inverno. Talhões de terrenos baldios pedem-me para eu ficar por aqui. Aqueço meia botija de vinho turvo, dia após dia avanço por estes caminhos. A chuva fina, ameixieiras em flor abalam-me a serenidade da alma. 1081 [1] Nu Wang fica a trinta léguas da vilazinha de Huangzhou. Pan é comerciante de vinhos, Ku vende ervas medicinais e Guo é um monge ermita.
António Graça de Abreu Via do MeioPrimeira visita à Falésia Vermelha, de Su Dongpo Tradução de António Graça de Abreu 赤壁赋 壬戌之秋,七月既望,苏子与客泛舟游于赤壁之下。清风徐来,水波不兴。举酒属客,诵明月之诗,歌窈窕之章。 少焉,月出于东山之上,徘徊于斗牛之间。白露横江,水光接天。纵一苇之所如,凌万顷之茫然。浩浩乎如冯虚御风,而不知其所止;飘飘乎如遗世独立,羽化而登仙。于是饮酒乐甚,扣舷而歌之。歌曰: “桂棹兮兰桨,击空明兮溯流光。渺渺兮予怀,望美人兮天一方” 客有吹洞箫者,倚歌而和之。其声呜呜然,如怨如慕,如泣如诉,余音袅袅,不绝如缕。舞幽壑之潜蛟,泣孤舟之嫠妇。苏子愀然,正襟危坐而问客曰:“何为其然也? ”客曰:“月明星稀,乌鹊南飞,此非曹孟德之诗乎?西望夏口,东望武昌,山川相缪,郁乎苍苍,此非孟德之困于周郎者乎?方其破荆州,下江陵,顺流而东也,舳舻千里,旌旗蔽空,酾酒临江,横槊赋诗,固一世之雄也,而今安在哉? 况吾与子渔樵于江渚之上,侣鱼虾而友麋鹿,驾一叶之扁舟,举匏樽以相属。寄蜉蝣于天地,渺沧海之一粟。哀吾生之须臾,羡长江之无穷。挟飞仙以遨游,抱明月而长终。知不可乎骤得,托遗响于悲风。” 苏子曰:“客亦知夫水与月乎?逝者如斯,而未尝往也;盈虚者如彼,而卒莫消长也。盖将自其变者而观之,则天地曾不能以一瞬;自其不变者而观之,则物与我皆无尽也,而又何羡乎! 且夫天地之间,物各有主,苟非吾之所有,虽一毫而莫取。惟江上之清风,与山间之明月,耳得之而为声,目遇之而成色,取之无禁,用之不竭,是造物者之无尽藏也,而吾与子之所共适。” 客喜而笑,洗盏更酌。肴核既尽,杯盘狼籍。相与枕藉乎舟中,不知东方之既白。 No Outono de 1081, a 16 do sétimo mês, fui de barco com alguns amigos até à Falésia Vermelha. Soprava uma brisa doce, serenas as águas do rio. Ofereci vinho aos meus amigos, recitámos poemas em louvor da lua, entoámos canções da minha autoria. Depois, a lua apareceu sobre as montanhas do leste e começou a sua viagem entre as constelações. Uma leve névoa branca estendia-se sobre o rio, o brilho das águas confundia-se com o resplandecer do céu. Demos liberdade à frágil barca e vogámos para águas distantes, como se flutuássemos no vazio, cavalgando brisas, despreocupados quanto a parar, como se tivéssemos abandonado o mundo suspensos nas asas do vento e fôssemos uma espécie de génios imortais. Bebíamos, satisfeitos, cantávamos marcando a cadência na madeira da barca. Foi esta a canção: Os remos traseiros são de pau de canela, os remos da frente são caules de orquídeas. Batem na luminosidade do céu, subindo no cintilar da corrente. No espaço ilimitado abre-se o sentir de um coração. Ao longe, um homem sábio, caminha pelos confins do mundo. Um dos convidados da jornada sabia tocar flauta e acompanhou a nossa canção. A música suspirava, como um queixume, um soluço, um gemido, o som prolongava-se, ondulante, estendendo-se como fios de seda. O dragão das águas dançava na sua caverna escondida, lágrimas encharcavam a barca de uma viúva solitária. Emocionado, apertei os panos da minha cabaia e perguntei ao meu amigo o porquê da tristeza e da melancolia. Respondeu: “O príncipe guerreiro Cao Cao já tudo explicou. Clara a lua, raras as estrelas, os corvos sombrios voam para sul.” Ora a oeste de onde nós estávamos, situa-se Xiakou, do outro lado, a leste, fica Wuchang. Misturam-se as montanhas e os cursos de água, imensos, sombrios, azuis. Aqui foi Cao Cao derrotado pelo jovem Zhou Yu. Depois de ter tomado de assalto a cidade de Jingzhou e submetido Jiangling, o príncipe Cao avançou para leste, seguindo o leito do rio. As suas barcaças de guerra estendiam-se por cem léguas, os seus pendões e bandeiras escondiam o céu. Sentado nas margens do rio, tendo guardado a sua alabarda, bebia vinho e recitava poemas. Cao Cao foi um dos grandes heróis da nossa História, mas onde está hoje? Como falar então de mim ou de vós, lenhadores, pescadores nas ilhotas do rio, camaradas de peixes e amigos de veados… Viajamos numa barca minúscula como uma casca de árvore, em vez de termos taças de vinho, bebemos em humildes calabaças, esvoaçamos entre céu e terra como gente efémera, somos simples grãos de cereal no meio de infindáveis mares. Lamentamos a passagem de uma vida tão breve e rápida, temos inveja do grande rio Yangtsé que jamais se cansa de correr. Gostávamos de nos juntar aos imortais no seu vôo, de partir para longe, de existir para sempre, arrastados pelo brilho do luar. Sabemos que tudo isso é impossível de alcançar e deixamos cair na placidez do vento o eco lúgubre das nossas queixas. Eu pergunto: “Conhecem a água e a lua? Desaparecem, mas jamais se separam de nós. A lua cresce, decresce, mas não aumenta nem diminui.” Se considerarmos o todo do ponto de vista do que muda, então o céu e a terra não deviam durar mais do que um piscar de olhos. Se considerarmos o todo do ponto de vista do que não muda, então a natureza e nós próprios, mudamos mas pouco. Vale a pena invejar o que quer que seja? Para tudo o que existe na natureza, entre céu e terra, surge sempre um mestre. É algo que não podemos escolher e decidir. Mas podemos contar com a brisa serena por cima do rio e uma lua clara entre montanhas. A primeira traz o som aos nossos ouvidos, a segunda, as cores aos nossos olhos. Estas podem ser nossas, para fruir sem gastar, o que mostra que o criador não escondeu tudo, há prazeres à solta ao alcance do coração dos homens. Feliz, o meu amigo sorriu. Enxaguámos então as calabaças que enchemos outra vez de vinho. Comemos fruta e umas tantas iguarias. Os pratos e os copos espalhavam-se em desordem. Deitámo-nos nas tábuas da barca, encostados uns aos outros, sem nos apercebermos que, a leste, o dia já nascia.
António Graça de Abreu Via do MeioDo Silêncio e do Vazio na poesia de Su Dongpo O grande 蘇東坡Su Dongpo (1037-1101) não pára de nos surpreender. A sua vasta poesia, multifacetada nos temas, na abordagem ao real e ao fantástico, desdobra-se diante dos nossos olhos e sensibilidades, num painel distante e próximo de encantamentos e maravilhas. O vazio e o silêncio são temas caros à grande poesia chinesa. Eis quarenta caracteres de poemas de Su Dongbo, recriando o tema: Vazio e silêncio (dois excertos) 欲令诗语妙 无厌空且静 静故了群动 空故纳万境 Para a maravilha do poema, o melhor é o vazio e o silêncio. Em silêncio, floresce tudo o que se move, o vazio alberga dez mil imagens. 我心空无物 斯文定何间 君看古井水 万象自往还 O meu coração vazio, suportando coisa nenhuma, não importam as comezinhas coisas do mundo. Olhem a água de um velho poço, dez mil imagens aparecem, desaparecem. A propósito destes versos, do silêncio e da água no velho poço, escreveu He Qing, letrado chinês nosso contemporâneo: “O vazio e o silêncio são considerados como o princípio primevo da poesia. Quanto mais vazio e silencioso um poema soa, mais valor estético ele ganha. “(…) Pode-se imaginar esse silêncio, essa imobilidade, essa limpidez, essa frescura, essa profundidade temporal da água de um antigo poço, e imaginar que esta água silenciosa reflecte, serenamente, os vôos das aves, as viagens das nuvens, as vibrações da luz do sol, as oscilações das relvas e dos ramos das árvores, as mil cores da natureza. Nesta imagem poética reside não só a maior sabedoria chinesa, mas também o estado ideal da estética chinesa: permanecer ancorado no silêncio mais profundo e contemplar os movimentos mais íntimos do universo…” (He Ding, Images du Silence, Pensée et Art Chinois, Paris, L’Harmattan, 1999, pag. 79/80.)
António Graça de Abreu Via do MeioPoemas de Su Dongpo 苏轼 Su Shi, ou 苏东坡 Su Dongpo, é considerado o maior poeta da dinastia Song (960-1279) e um dos maiores de toda a poesia chinesa, ao lado de Li Bai e de Du Fu. Nasceu em Meishan, em 1037, na província de Sichuan. A sua figura corresponde ao ideal do letrado/mandarim da velha China, poeta e prosador, calígrafo e pintor, homem político e criador de jardins. Crítico dos poderosos do império, conheceu mais de uma dezena de despromoções e exílios. A sua poesia, imaginativa, rica de cores e tonalidades, influenciada pelo budismo禅 chan (o zen japonês) desdobra-se por excelentes descrições da natureza e também pelos temas da amizade e do amor. A lua, no meio do Outono Ao entardecer, nuvens dispersas desaparecem, não se vêem mais montanhas, silenciosa, a Via Láctea dá a volta, na abóbada de jade. Se nesta noite, neste nosso existir, não fruirmos prazer, mil alegrias, no próximo mês, no próximo ano, quem sabe por onde se desdobrarão as nossas vidas? 鹧鸪天·林断山明竹隐墙 林断山明竹隐墙。 乱蝉衰草小池塘。 翻空白鸟时时见, 照水红蕖细细香。 村舍外,古城旁。 杖藜徐步转斜阳。 殷勤昨夜三更雨, 又得浮生一日凉。 Fim da floresta, resplandece a montanha Acaba a floresta, resplandece a montanha, os bambus escondem um muro feito pelos homens. O canto das cigarras na erva murcha, junto ao lago, pássaros brancos em círculos no céu aparecem, desaparecem. Lótus vermelhos reflectem-se na água, soltam perfumes, uma muralha antiga rodeia um velho lar. Lentamente, apoiado no bastão, caminho para o sol poente, de súbito, uma chuva cai, ilumina o céu, Sempre a incerteza no avançar do tempo, o final do dia envolto em espasmos de frescura. Ainda, o último poema de Su Dongpo, escrito em 1101, numa das mais fantásticas montanhas da China, Lushan, na província de Jiangxi. 庐山烟雨浙江潮 庐山烟雨浙江潮, 未至千般恨不消。 到得还来别无事, 庐山烟雨浙江潮。 Névoas de Lushan, marés de Zhejiang Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Antes da viagem, nostalgias mil, depois da viagem, o crescer dos dias. Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Tradução e texto de António Graça de Abreu
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasTrês amigos, Camilo Pessanha, Padre Manuel Teixeira e Armando Martins Janeira Com Camilo Pessanha, em São Miguel de Seide [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m São Miguel de Seide, rasgado pelo esplendor de um estranho ocaso, falo de Camilo, o outro, o grande Pessanha, “morto vivo” em Macau. Lá longe, as paredes da casa humedecidas pelo tédio, uma imensa “abulia, sem remédio”, as mulheres chinesas, o desamor, o descarinho, o ópio enegrecendo os dias, de mansinho. Aqui, o cintilar das rimas, no triste entristecer, lá fora, água cristalina nos lameiros, a luz insinuando-se pelos meandros do entardecer, o ondular da bruma nos outeiros. Apetece ajoelhar, reverenciar o deus da poesia, beber o sublime das palavras, do sentir, em tempo de extremado sofrer, de melancolia, os lábios numa prece. E depois partir. Com Monsenhor Manuel Teixeira, em Freixo de Espada à Cinta Sempre o conheci, de batina e barbas brancas ondulando na brisa, sobraçando livros e canhenhos, a História de Macau, os missionários, a gesta portuguesa pelo Extremo-Oriente, tudo na confusão e poeira dos arquivos, depois a baloiçar na ponta da sua pena. Alegre e afável na companhia das gentes, as senhoras bonitas para a fotografia, com os amigos bebericando o “chá da Escócia”, excelso whisky com uma pedra de gelo, garantia certa, dizia, “para afastar o calor.” Todos os dias, às sete da manhã, missa na capela de Santa Rosa de Lima, o padre falava com Deus, levava chinas ao Céu. Em Trás-os-Montes, na sua Freixo de Espada à Cinta, de onde saiu menino, venho ao seu encontro, na memória distante do Portugal que lhe corria no sangue. Por Macau, viu passar dezanove governadores, quase oito décadas de vida de mãos abertas para a cidadezinha na foz do rio das Pérolas que, para sua tristeza, passou de portuguesa a chinesa. Velho, aproximou-se de Deus e foi, depois do regresso à sua bravia terra transmontana, que, serenamente, fechou os olhos e partiu. Deixou escrito: “O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza.” Com Armando Martins Janeiro, em Torre de Moncorvo Armando, meu amigo, nado e criado na singeleza assombrosa destas terras, sob a silhueta azul do céu e os verdes e castanhos esparramados pelos montes. Criança ainda, no alpendre da casa da avó, na aldeia de Felgueiras, crescia o sonho de conquistares o mundo. Quem diria, havia todo o Japão à tua espera, séculos de história luso-nipónica, Wenceslau, mais mil diplomacias, e gueishas perfumadas levitando no requebro dos dias! Chego a Torre de Moncorvo com o sol poente descendo pela crista da montanha. Entro na velha igreja onde foste baptizado, a pedra carcomida pela erosão dos anos, a voz silenciosa das colunas medievais, um altar barroco, anjos e querubins, a Senhora intercedendo por nós, diante de Deus. Em mim, uma prece, o joelho descendo para a laje fria do templo e saio com o repicar dos sinos. Sigo depois pela encosta da vila, ao encontro do teu busto de bronze, cinzelado tal e qual como te conheci, o Armando, excelente cepa transmontana, orgulhoso e humilde, inteligente e sagaz. Uma saudação, um afago na luz ténue do teu rosto, uma despedida e sigo viagem, pelos últimos raios do entardecer, entre montes dourados onde a noite nasce.
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasA Peregrinação – Um filme segundo João Botelho [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme é mauzinho. O João Botelho tinha pepitas de ouro entre as mãos, desbaratou-as em diálogos e flashbacks inventados, fantasiosos, redundantes, tanta vez metidos a martelo. Claro que cinema é ficção mas vejam como neste filme o mais puro, simples e excelente (tão ricamente complexo!) são as falas directas tiradas do esplendor do texto da Peregrinação. Depois, todas as figuras dos companheiros de Fernão Mendes, são, deliberadamente, feias, gente nossa, títeres fedorentos e andrajosos a entoar uma bem aproveitada música do Fausto Bordalo Dias. O filme é pesado, não há alegria, uma gargalhada, o prazer de viver que existe mesmo entre ladrões e piratas, exceptuando-se uns copos de aguardente que bebem todos juntos logo a seguir a sobreviverem a um naufrágio. No entendimento de João Botelho, os piratas infelizes (era porém verdade o sofrimento a morte, quase dia a dia!) somos todos nós, antónios de Faria, miserável gente lusa de quinhentos, a roubar, a matar, a violar. Uma visão obtusa, radical, esquerdizante da nossa expansão, da nossa História. E, no entanto Fernão Mendes Pinto, no seu espantoso e admirável texto, leva-nos também pela mão a descobrir , a avançar pelo Extremo-Oriente, com o lufa-lufa dos mercadores e a azáfama das cidades, os quotidianos, a veniaga e o pícaro das situações. No que à China diz respeito, vejam-se as suas descrições de Pequim ou da Grande Muralha, quase tudo ausente no filme. Aparece um português com uma prostituta chinesa, e Fernão Mendes Pinto a violar uma noiva chinesa, notáveis invenções de João Botelho, ou de quem o ajudou, com a originalidade de meter umas meninas chinesas, nada esbeltas mas bem despidas, no filme. Contudo, um momento brilhante desta Peregrinação cinematográfica são as palavras sábias de uma mulher chinesa endereçadas a Fernão Mendes Pinto. A recordar, a registar, a louvar. Mas repare-se, a chinesa violada é a mesma que aparece depois a dar uma lição de sabedoria ao Fernão Mendes Pinto. Isto faz algum sentido? Imagine-se a história ao contrário, uns chineses corsários de quinhentos, chegam a Setúbal. Em terra, o capitão do navio viola uma jovem e bonita noiva portuguesa. A rapariga aparece depois, meio apaixonada pelo corsário chinês, a dar uma lição de bons costumes e de cristianismo ao capitão chinês. Isto faz algum sentido? Será bom não nos cobrirmos de ridículo. O João Botelho alguma pensou que a sua Peregrinação em cinema pode passar na China, traduzida para chinês? Será vista com que olhos? O prof. Jin Guoping andou vinte anos aflito no trabalho de tradução para chinês do texto original da Peregrinação. Teve mil dificuldades. Porquê? Também porque sabia que, sem um devido enquadramento da gesta lusitana na descoberta da Ásia, era assustadora a receptividade dos textos de Fernão Mendes Pinto no mundo chinês. Prevalecia a ignorância e a xenofobia chinesa em relação aos portugueses de quinhentos. Será bom recordar o provérbio chinês: “Muitas as ervas, cada uma com a sua sua gota de orvalho.” Ora as ervas também podem estar acastanhadas por pedaços de lama. E que ideia estranha, essa de levar de barco os portugueses que assaltavam os túmulos dos imperadores China, na enseada de Nanquim, para as terras de Leshan, com o seu Buda gigante na província de Sichuan, a dois mil quilómetros de Nanquim, entre montanhas, bem no interior do Império do Meio… Nem rio, nem mar existiam para se chegar ao buda de Leshan. Curioso também o intérprete de Fernão Mendes Pinto. Fala mandarim (no século XVI na China falavam-se sobretudo os muitos dialectos locais, só no início do século XX o mandarim é institucionalizado a nível império!) e chegado ao Japão o extraordinário intérprete já fala fluentemente japonês. Coisas que só acontecem no cinema feito em Portugal… E a pequena caravela quatrocentista, de vela latina, a aparecer como junco chimês e o junco chinês a aparecer como caravela de duas velas latinas… E que final do filme tão eivado de sensaboria! Entendem-se as dificuldades da produção, mas concluir a gesta pela Ásia de um dos maiores e excelentes aventureiros de toda a nossa História com umas simples imagens da calmaria do mar, algures no Japão, de certeza em Sesimbra… Mas vejam o filme, vale sempre a pena e, apesar de tudo, apesar de muitos tropeções, João Botelho consegue levar-nos até às paragens extremo-orientais. TRAILER https://www.youtube.com/watch?v=TOFaivxbOlA
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasNuku Alofa, Ilhas Tonga, Polinésia [dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s oito e meia da manhã saio do navio para a descoberta impossível-possível desta ilha de Tongatapu onde se situa Nuku Alofa, a capital do reino de Tonga. Reino? Exactamente. Tonga é uma antiga monarquia e não existe mais nenhuma em toda a Polinésia. Sua Majestade o rei Tupou VI e a rainha Nanasipau’u dão logo as boas vindas aos recém-chegados, em dois painéis gigantes à entrada do pequeno porto. O arquipélago conta com 176 ilhas, sendo 40 delas habitadas, e forma também o único território do Pacífico Sul que nunca foi colonizado por estrangeiros. Os tonganeses têm orgulho nisso. A sua pele é escura, lábios grossos, olhos grandes, maçãs do rosto salientes, feições marcadas pela origem polinésia. Parecem gente simples, respeitadora do próximo e muito religiosa. Irei comprovar, um pouco por toda a parte, a existência de variadíssimas igrejas católicas e protestantes. A ilha é plana, sem edifícios altos. Em Nuku Alofa, destaca-se o palácio do rei, um excelente conjunto arquitectónico rodeado de relvados e jardins, construção de madeira pintada em branco, com telhados vermelhos, pré-fabricado na Nova Zelândia em finais do século XIX e depois trazido para a ilha, e aqui montado. Não é visitável porque Sua Majestade habita no palácio, não costuma receber convidados e mais raramente ainda é visto pelo seu povo. Dou uma volta pelo centro de Nuku Alofa, uma cidadezinha com 20 mil habitantes, não muito interessante. Descubro uma originalidade, uma agência de viagens que tem o curioso nome de Teta Tours. Entro num mini-bus que leva passageiros para parte incerta, a leste, e pergunto ao condutor se vamos passar por alguma praia. Ele responde, num catastrófico inglês, que no fim da linha existe uma praia. Avanço. Foram 20 a 25 quilómetros de estrada, sentado no meio da gente boa e simples da ilha de Tonga, sempre a sair, sempre a entrar, surpreendida por encontrar dois estrangeiros na carrinha de transporte. Passamos por um hospital moderno, circundamos a grande laguna que entra por dentro da ilha e quase a corta ao meio, atravessamos a vila de Mu’a. Continuamos viagem para norte, já não há ninguém no mini-autocarro, só nós dois e o motorista. Pergunto-lhe pela praia. Diz-me que fica dois quilómetros mais adiante mas temos de pagar três dólares US pela continuação do trajecto. Ok! Chegamos à praia, pequena, com pouca areia e as águas não completamente limpas. Falo-lhe em outras praias, mais bonitas. Sim, ele pode-nos levar, fecha o mini-bus ao serviço público – agora o negócio é outro, o veículo ficará por nossa conta –, e vamos dar a volta a toda a ilha, coisa aí para quatro horas. São 150 dólares US. Não era bem isto que eu queria. Pagamos os três dólares cada um e saímos. Olho o mapa, podemos caminhar ao longo do mar e retomar mais adiante a estrada de regresso. Encontro três tonganeses que metem conversa. Só a mulher fala um pouco de inglês e pergunta de onde é que nós somos. Não sei se entendeu o nome de Portugal, mas acrescentei: “Viajamos desde a Europa num grande navio italiano.” Algum espanto no semblante dos ilhéus que habitam em três ou quatro pobres casas de madeira, do outro lado da estrada, frente ao mar. Têm porcos pretos que andam à solta pela rua procurando comida, chafurdando à vontade por tudo quanto é sitio. Uma mãe porca, extremosa e dedicada, deixa seis ou sete bacorinhos chuparem desalmadamente as suas tetas. Os leitões assustam-se com a minha aproximação para tirar uma fotografia e fogem, cada um para seu lado. Depois voltam à protecção da mãe e às saborosas tetas da porca. Associo a cena ao nome da agência de viagens de Nuku Alofa, rigorosamente Teta Tours. É isto mesmo. Pergunto aos tonganeses se podemos tomar banho na praia. A mulher diz-me que sim, mas acrescenta que quando alguém mergulha naquelas águas lisas é normal um porco atravessar a estrada, fazer companhia ao banhista e meter-se também por dentro do mar. Tomar banho na praia de uma apetecível ilha da Polinésia, na companhia de um porco preto? Regresso a Nuku Alofa, com paragem no porto primitivo onde o capitão Cook, descobridor do sul da Austrália, desembarcou em 1777, na vinda a este lugar. Avanço. Na pequena estação de autocarros da capital pergunto por um mini-bus que me leve para o outro lado, o oeste da ilha, até à praia de Ha’atafu que, segundo o mapa de Tonga e a fotografia do folheto turístico, me parece ser um lugar excelente. Mais trinta quilómetros por boa estrada marginada por casas de melhor qualidade do que as do lado leste da ilha, e chegamos a Ha’atafu. A praia não exibe os predicados que eu imaginava. Tem águas límpidas, mas também muita pedra e areia pouco fina. Saudades das praias das Caraíbas, mas provavelmente ainda não acertei numa boa praia do Pacífico. Um bom banho, duas horas de papo para o ar e é tempo de pensar no regresso ao navio. Uma longa caminhada pelo estreito alcatrão da estrada, por entre uma estonteante floresta tropical, algumas casas bonitas rodeadas de jardins, o verde intenso dos relvados e arbustos, e chego a uma singular aldeia grande que dá pelo nome de Nukunuku. Com nome tão sugestivo, estou com curiosidade em conhecer. Vou descobrindo que o idioma tonga também é muito traiçoeiro. Pergunto qual o significado de tão estranho topónimo. Muitos simples, nuku significa “habitação, casa”, nukunuku será uma “aldeia”, “um conjunto de casas.” O nome de Nuku Alofa, a capital, tem a ver com nuku, ou seja “casa” e alofa que significa “amor”. Portanto haverá “amor nas casas”, ou um conjunto de nukus, as “casas” onde reina o “amor.” Em Nukunuku, ao lado da estrada, um grupo de miúdos joga à bola no recreio da escola. Num grande relvado, rapazes e raparigas correm, lançam-se à molhada para agarrar uma bola oval, não de futebol, mas de rugby. Tonga tem a Nova Zelândia e a Austrália como países de referência, as ilhas Fiji ficam relativamente perto. Aqui o desporto nacional é o rugby. Terminou o jogo, acabou o tempo de recreio na escola de Nukunuku. A campainha que marca a reentrada nas aulas é uma bilha de gás vazia percutida com uma espécie de martelo agitado impiedosamente pela mão de uma professora. Outro mini-bus e estou de novo em Nuku Alofa, num aprazível café onde bebo um razoável “expresso” e utilizo o wi-fi gratuito. Na minha tablet vejo os mails da última semana e leio as notícias do Portugal distante. Pelo telemóvel, ligo para os meus filhos. Dois deles ignoravam por completo que existissem umas ilhas chamadas Tonga. Últimas, e únicas, compras. Por oito dólares US, trago uma espectacular t-shirt preta com um golfinho dourado estampado no peito e, nas costas, também a dourado, as palavrasKingdom of Tonga. É para vestir no Verão, em dia de festa, em homenagem ao povo desta ilha.
António Graça de Abreu Diário (secreto) de Pequim h | Artes, Letras e IdeiasPequim, 11 de Novembro de 1978 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s chineses são mestres no fabrico e manipulação de todo o tipo de materiais. Hoje foi dia de visita a uma das muitas fábricas de artesanato de Pequim, oportunidade para ver e entender como se criam excepcionais peças artísticas. A fábrica, no sul da cidade, é pequena e os artesãos são maioritariamente mulheres, 56% do total. Têm umas mãos a quem os deuses concederam o privilégio de cerzir e lapidar pequenas e grandes maravilhas. Esculpem o jade e o marfim, mas quando não há marfim trabalham o osso de búfalo ou de iaque. Fiquei a saber que o marfim é raro e muito caro, proveniente da Tanzânia custa entre 400 a 500 yuans por quilo. Mais acessível e capaz de satisfazer qualquer gosto é o cloisonné, típico de Pequim. Trata-se, no essencial, de jarras de cobre e latão cobertas cuidadosamente de esmalte vidrado, de diferentes cores, segundo o desenho saliente de um rendilhado de flores e figuras que é colado na jarra e depois cheio com o esmalte, utilizando o artífice uma espécie de pipeta. Em seguida, a jarra vai ao forno e no fim é polida. Uma espectacular obra de arte! Também as mini-pinturas no interior dos pequenos frescos de vidro, teoricamente para guardar rapé, são um hino ao engenho destes artífices que usam um pequeníssimo pincel dobrado introduzido pelo gargalo do frasco e criam paisagens ou desenhos de animais, dragões, temas mitológicos e beldades de espantar. Os operários, os artesãos têm apenas o 1º. ou o 2º. ciclo de escolaridade. Os veteranos ensinam os mais jovens e os melhores de todos conseguem uma graduação pelo Instituto Central do Artesanato Industrial. O salário mais baixo é 40 yuans, mas os artesãos veteranos podem ganhar 250 yuans por mês. Há uma creche e uma clínica destinada aos artesãos e suas famílias. Tudo muito pobre, mas funcional. Pequim, 15 de Novembro de 1978 Há dias, aqui em Pequim, dizia-me o Gonçalo César de Sá, jornalista da Anop a trabalhar em Macau, de visita à China: “Hoje convidaram-me a conhecer a redacção e as oficinas do ‘Diário do Povo’ (Renmin Ribao). Quase tudo aquilo me pareceu velho e desactualizado, a precisar de urgente modernização”. O Gonçalo tinha razão. Não é apenas o maior diário chinês que precisa de se modernizar, é toda a enorme China que, nos últimos anos, por múltiplas e complexas razões, se deixou atrasar e quase ia perdendo o comboio do progresso. As gentes desta terra parecem voltadas para o futuro e ninguém lhes poderá levar a mal por pretenderam aproveitar e desenvolver as suas enormes potencialidades. A China é um país rico. Possui jazidas de petróleo, ferro, carvão, estanho, bauxite, ouro, prata, etc. Com uma população laboriosa de quase mil milhões de pessoas consegue, graças aos esforços gigantescos dos seus camponeses, com 1/17 do solo arável existente no globo alimentar quase 1/5 da população mundial. Mas a China é também um país pobre. A população é predominantemente camponesa e continua agarrada à terra onde vai buscar o arroz de cada dia; os recursos naturais estão pouco explorados, a indústria é muitas vezes incipiente, faltam técnicos e pessoal especializado, a mão-de-obra está muito longe de ser plenamente aproveitada, o rendimento per capita é muito baixo. Após os enormes sobressaltos da Revolução Cultural, a morte em 1976 dos seus três maiores dirigentes, Mao Zedong, Zhu Enlai e Zhu De, a China, agora com Deng Xiaoping, procura a estabilidade e a modernização. A estabilidade é sempre relativa num país extremamente diversificado, com uma superfície cento e dez maior do que a de Portugal e com as chagas de vários conflitos políticos ainda não cicatrizadas. Mas os chineses procuram uma acalmia na luta política. O fulcro é hoje a modernização da China. Um dos aspectos que mais seduzia certos ocidentais que visitavam a China nas décadas de cinquenta e sessenta eram encontrarem um povo com as necessidades primárias quase todas resolvidas, a alimentação, a saúde, a habitação, o ensino, mas que permanecia pobre e aparentemente feliz. Ora o mundo evoluiu. Até há poucos anos atrás, era fácil comparar a Nova China com um passado tenebroso de morte e miséria, anterior a 1949 que estava na retina de tanta gente. Hoje, os chineses, sem esquecer esse passado, fazem sobretudo comparações com os países mais avançados do mundo, reconhecem o seu atraso e vêem que têm muita coisa a aprender com o estrangeiro. Recentemente, no Diário do Povo” fazia-se a seguinte pergunta: “Será que é muito revolucionário viajar de mula enquanto no estrangeiro viajam em jactos supersónicos? Será que enquanto os outros usam computadores, nós vamos continuar a utilizar o ábaco”? Havia muito gente na China que defendia um tipo de vida género “pobrezinho mas honesto”. Ora se as pessoas podem deixar de ser pobres – a honestidade é um conceito muito complexo e relativo, sobretudo no mundo chinês — o que há de mau em procurar viver melhor? Socialismo não pode ser sinónimo de pobreza. Socialismo não pode ser continuarem a viver indefinidamente seis pessoas numa única assoalhada, como ainda acontece em muitas grandes cidades da China. Quando existem neste país meios para se construir uma casa decente para toda a gente, como se compreende que situações como esta não caminhem para uma solução? Há dias, no Congresso dos Sindicatos da China, Ni Zhifu, membro do Burô Político do Comité Central do Partido Comunista da China, disse, tal como vem no boletim diário da agência Xinhua, a Nova China: “Se o socialismo não permite aos trabalhadores uma vida sossegada e feliz através de um considerável desenvolvimento das forças produtivas, mas se significa que o país deve permanecer pobre e que o povo deve ter uma vida muito difícil, que espécie de socialismo é este?” Para se modernizar, a China está a recorrer à tecnologia e aos empréstimos estrangeiros. Há quem veja associado a isto a importação de ideias do mundo capitalista e o abandono da política de “contar com as próprias forças”. É capaz de ser verdade. Em finais de 1977, visitei o complexo petroquímico de Pequim que engloba uma cidade com 110 mil habitantes, situada cinquenta quilómetros a sul da capital. Aí funcionam cinco grandes refinarias, uma delas integralmente importada do Japão. É ultramoderna, controlada por computadores e foi instalada em 1975 e 1976. Em dois anos de laboração já produziu quase o suficiente para pagar a sua instalação e continua a refinar petróleo que se destina principalmente ao Japão. Existe um provérbio chinês que diz: “Nunca nos devemos meter no casulo como o bicho-da-seda”. A China saiu do “casulo” e trabalha para, modernizando-se, garantir a melhoria das condições de vida deste povo que tanto tem sofrido e bem merece uma existência mais feliz. Pode experimentar-se simpatia, cepticismo ou receio face à China actual, pode concordar-se ou não com o sistema político chinês, mas é preciso estar atento e tentar conhecer o que de facto vai acontecendo cá pelas bandas do Extremo-Oriente. Porque uma China poderosa e moderna pesará como chumbo nos destinos da Humanidade. Pequim, 25 de Novembro de 1978 O meu filho Sérgio, de três anos, quase só fala chinês, com o sotaque nasalizado e arredondado de Pequim. O português começa a ser para ele uma língua difícil. Hoje perguntei-lhe: “Se não falas português, quando chegares a Portugal como vais falar com a avó?” Resposta imediata: “A avó fala chinês.” Aos três anos de idade, pela língua, o entendimento o mundo chinês plasma-se na mente do menino de Lisboa. E não há nada a fazer, para ele é fácil, toda a gente do mundo fala chinês… Pequim, 7 de Dezembro de 1978 A lanterna do desânimo acende-se por vezes num dos muitos recantos de mim. Ilumina este sentir azedo de quem anda amiúde pontapeando a lua com sapatos de papelão. Sei de coisas grandes que olhos pequenos raramente vêem, de palavras bonitas e acções bem feias, do desaforo de gente mascarada que traz orquídeas nos dedos e cultiva cardos no coração. Falo cada vez menos. Acentua-se este pendor para uma quase misantopia, não inata, adquirida ao longo dos sinuosos caminhos que conduziram à decepção e à tristeza diante de tanta vilania humana.