António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasOlhar de Eros [dropcap]E[/dropcap]ros é uma palavra com uma longa tradição. O seu significado é múltiplo. O adjectivo “erótico” ganhou ascendente sobre o substantivo eros, sobretudo nos tempos modernos nas línguas contemporâneas. A sua tradução habitual é amor, embora quem use a palavra com consciência tenha de advertir que não se trata exactamente da mesma coisa. O amor tal como o adjectivo erótico tem conotações que na verdade afunilam o seu sentido de origem. Se com o “erótico” pensamos num determinado modo como alguém surge ao olhar cobiçoso e luxuriante de outrem, com o “amor” pensamos na relação romântica entre dois seres humanos ou na relação religiosa estudada pela teologia entre um ser humano e Deus, seja ela simétrica ou assimétrica. Eros para Platão diz-se de diversas maneiras, mas sublinhe-se a sua característica divina. Eros é um daimon, uma divindade, um deus, talvez menor. Eros é uma entidade pessoal. Eros não é já um ser humano. Não é ainda Deus. Tem uma identidade que começa por ser referida negativamente. Diz Platão no Banquete tratar-se de um ente intermédio (metaxy) ou neutro (do latim: nem uma coisa nem outra). Eros é caracterizado por não ser ignorante mas também não ser sábio, existe entre a presença de qualificações superlativas positivas, determinadas por serem o máximo com que essas qualidades podem existir e as qualificações superlativas também mas negativas: o pior de tudo com que uma qualidade pode ganhar consistência. O mínimo não tende para a inexistência. O que não existe e não é não é como se nada fosse, não deixa de surtir efeito nem de ter consequências nas vidas humanas. O espantoso para o pensador Platão é que o que não é, não está disponível nem presente, o que não é real: existe com um eficácia, damos conta da sua existência. Quando eros “encosta” num ser humano não o torna susceptível de amor ao olhar de outrem assim sem mais. Quando damos conta da presença de eros nas nossas vidas, sem dúvida no modo como alguém nos surge pela primeira vez nas nossas vidas, o outro é o amor, a pessoa amada, por quem nos apaixonamos, por quem caímos. Mas para Platão erôs é mais do que o modo como alguém nos aparece e o modo como transforma toda a nossa vida e se houver um encontro feliz de amor, há a mudança da vida de duas pessoas pelo menos. Eros, contudo, é o nome para o sentido da existência. É o que mexe connosco, o que nos põe a mexer, o que nos motiva, mobiliza, entusiasma, faz ser, quando não queremos, faz fazer coisas a contra gosto mas pela força da vontade, e claro faz-nos fazer o que não queremos por disciplina. Eros faz “fazer”, faz “ser”. É como se a agenda que nos obriga cumprir os mínimos da sobrevivência para assegurar a existência: comer, beber, dormir, e depois ajudar a satisfazer os apetites que temos, as vontades que nos dão, tal como o cumprimento do dever, a observação do escrúpulo religioso para quem o tiver ou da consciência que todos temos, o gosto que temos na experiência estética, a nossa curiosidade científica ou de que natureza for, tudo é um projecto para nós da presença em nós de eros. Pode ser preenchido como pode ser decepcionado, pode até parecer que não está presente em nós, mas nós acordamos com uma relação com este móbil, este motor, propulsor que nos faz acordar de manhã e perceber em antecipação o que se vai passar nesse dia. Mesmo que seja sempre o mesmo, vamos ter de nos levantar, quando não apetece e quando apetece, fazer a higiene matinal, tomar o pequeno almoço, vestir-nos, em suma arranjar-nos para sair, ir trabalhar, exercer funções, realizar tarefas, etc., etc.. O nosso mundo interior está exposto à pressão de eros que nos faz querer ouvir música no rádio, expõe a memórias de um passado longínquo ou não deixa esquecer o que temos para fazer nas próximas semanas, obriga a pensar em alguém com gosto ou preocupação. O mundo em geral no trânsito das horas está submetido ao projecto de um eros cósmico que faz passar as horas dos dias, os dias das semanas, as semanas dos meses, os meses dos anos, as estações do ano, as épocas da vida. O erôs não é só interior, nem só exterior, não vem de fora para dentro nem de dentro para fora, não é importado nem é exportado, não é pessoal nem impessoal. E, por outro lado, é tudo isso. Eros submete-nos a uma pressão contínua, ainda que não se declare a não ser quando sentimos um entusiasmo enorme pelas presenças nas nossas vidas que nos acendem, atraem, chamam, sendo essas presenças as actividades a que nos dedicamos ou as pessoas que amamos, as nossas coisas, portanto, e as nossas pessoas. Eros exerce sobre nós um fascínio tal que queremos mudar pela sua presença nas nossas vidas. Queremos ir no seu encalce para sermos diferentes, porque nós sem amor somos diferentes de nós com amor, nós sem entusiasmo, quando tudo farta e nada motiva, somos completamente diferentes de quando sentimos nascer e crescer em nós o entusiasmo com um sentimento que se nutre por alguém ou com qualquer actividade a que queremos dedicar-nos, a aprender música ou uma arte marcial. Se achamos que vamos atrás do prejuízo porque não temos o que queríamos ter, não somos como gostaríamos de ser, por outro lado, eros está a actuar desde sempre já sobre as nossas vidas, a projectar-se no mundo e na nossa vida através de nós. Sem dúvida que tem o sex appeal que nos leva a antecipar com entusiasmo e encantamento como será quando acontecer. Esta ideia do ser do erôs é fascinante e também decepciona, frustra, mata pela sua ausência. Vivemos sempre com erôs seja ele preenchido e sempre cada vez mais e maior ou sejamos nós esvaziados dele, sintamos que é cada vez menos e menor. Para Platão Eros era o desejo de imortalidade. Imortalidade não quer dizer a duração do tempo tão longa como a eternidade e que nunca acaba. Pode ser tremendo e aborrecer-nos mortalmente. Como se pode querer para sempre o que é mau? Não acabará por fartar o que é bom, não por ser bom, mas porque tudo o que é para sempre cansa? Eros tem de ter em vista outro conceito de imortalidade que redimensiona as pequenas coisas da vida, os pormenores, o que é insignificante, tudo simplesmente. Como será possível?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDia de Todos os Santos [dropcap]É[/dropcap] difícil de perceber como cada pessoa não se esgota nem no seu semblante, nem na sua aparência, nem no seu corpo, mas como é portadora de uma multidão de gente contemporânea, antepassada, posterior. É assim que se passa conosco e podemos adivinhar que se passa com os outros por quem passamos, com quem está à nossa frente, desconhecidos, mas também conhecidos. Cada pessoa é uma atmosfera. Cada pessoa existe não apenas nesse interior contemporâneo à situação em que se encontra, mas está determinada a existir com as influências que os outros têm sobre si próprio. Acontecemo-nos uns aos outros, deixamos os outros ficar bem ou mal, damo-nos alegrias e tristezas. Cada pessoa é o mundo complexo de que é portadora. Leva a sua vida, carrega-a. Todos nós somos as nossas pessoas e estamos implicados em todos os outros por mais abstracto que seja o círculo dos círculos: a humanidade. Levamos conosco todas as pessoas das nossas vidas. Quando duas pessoas se encontram estão multifacetadas por toda a gente que existe no seu interior. Este interior é tão exterior que somos com as impressões que os outros deixaram. As vidas passadas dos outros existem ainda, mesmo que tenham desaparecido, não estejam entre nós, como dizemos. Lembro-me de como antepassados me pediram para levar cravos à sua sepultura futura, de como era importante que soubessem que ficariam a viver em mim, como se isso os isentasse à morte e não os deixasse enterrados numa sepultura não visitada. Ia sempre no dia de todos os santos visitar os parentes mortos, as avós e o avô e aquele amigo de infância desde toda a hora que teve uma vida tão breve quanto violenta e triste. Quando passava de carro com o meu pai pelo cemitério onde estava enterrado, levava-o comigo até à praia. Era só com a voz que eu convivia. Durante anos lembrava-me de como era a sua voz, mas depois acabei por esquecer, para só de quando em vez me lembrar dela. Era miúdo quando passava de carro em frente ao cemitério. Depois despedia-me dele, invisível, como quem deixa um amigo em casa e seguia a minha vida, como todos os que ficaram vivos seguem. Não é quem morre que fica. É quem permanece na vida que fica, pelo menos ainda, para morrer. Todos os nossos mortos estão já isentos, saíram de cena, não estão em jogo. E não desapareceram. Coisa estranha. À medida que o tempo passa, temos mais gente morta viva em nós do que pessoas vivas que nos digam alguma coisa. Somos determinados pelas atmosferas passadas dos outros e que criam ainda agora atmosferas presentes e futuras. Mesmo com o aumento da população mundial, sobrevivemos a todos, somos o resto, sou o resto, como se estivesse com o feixe na mão a alumiar a noite escura. As labaredas da chama têm ainda iluminado o passado presente dos outros todos que se foram. Há cemitérios cheios de gente que lá foi em romaria no dia de todos os santos, famílias inteiras que se reúnem sentadas a falar dos mortos e com os mortos. Outrora ficava perplexo com as imagens cinematográficas em filmes de personagens norte-americanas que visitavam campas relvadas em cemitérios e falavam verdadeiramente com os seus mortos. Todos falamos com os nossos mortos. Eles falam conosco, quando menos se espera, mas perguntamo-nos e se soubessem como nos encontramos agora, o que fizemos das nossas vidas. Talvez não precisemos de ir aos cemitérios nem que sejam em campos relvados ou tenhamos os nossos mortos em casa como a tradição japonesa. Se os nossos mortos não fazem sentir a sua presença podemos pensar neles, com aquela forma preciosa de conjuramento em que eles aparecem como se fosse véspera de Natal, dia de aniversário, ou então só um dia bom em que eles estavam bem e se sentiam felizes. E nós com eles.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasEsperar [dropcap]E[/dropcap]sperar” é uma relação intencional, admite um espectro de possibilidades de comportamentos relativamente a uma multiplicidade de objectos. Esperamos por A, B ou C, X, Y e Z. A relação que se estabelece entre nós e cada objecto implica estarmos depostos num futuro, mais ou menos imediato ou até tão remoto que nem parece estarmos à espera do que quer que seja. Há várias possibilidades de projectarmos futuro na espera. Há a espera accionada com a expectativa de qualquer coisa que está aí a rebentar, uma pessoa que, não tarda, chega, o início de um espectáculo, a vinda de um meio de transporte. O campo perceptivo não fica apagado, mas não está em sossego, não importa verdadeiramente na sua contemporaneidade, enquanto sincroniza sujeito de percepção, eu a ver, e objecto de percepção, a rua a ser vista. Quando esperamos por um meio de transporte, de chegada iminente, vemos a Av. de Lisboa, onde estamos, com os seus prédios de cada lado do passeio, carros que passam, nas duas direcções, se há ou não tráfego, os transeuntes, árvores, o céu que serve de plano de fundo. A espera não é, contudo, um aspecto assistencial da realidade. Não o é no seu sentido mais próprio. Se estamos à espera de um meio de transporte, se soubermos de onde se dá a sua aproximação espacial, olhamos nessa direcção. Não olhamos, portanto, com interesse ao que está a desenrolar. Tudo o que se está a desenrolar é um conteúdo sem o objecto da espera. Olhamos para tentar ver o que não pode ser visto nunca do ponto de vista da espera. Se estou à espera de um Uber olho para a aplicação, vejo a representação digital do carro no seu percurso, olho para a rua para ver se já está disponível na percepção. Enquanto não estiver estou “virado” para um espaço físico mas representado: as ruas pelas quais o carro passa, não está a ser efectivamente vistas por mim. Há bairros de prédios a esconder essas ruas, há a distância a que me encontro delas. Além disso, estou virado para o ponto que define a esquina que será dobrada pelo carro, depois de dobrada, sei que o carro se configurará em percepção. Se olho na Av. de Berna para o Campo Pequeno, é porque acho que sei que o carro aparecerá daí. Não olho para o lado da Gulbenkian, se estiver na NOVA FCSH. Se estiver do outro lado do passeio e quiser ir na direcção do Areeiro, então olho na direcção da Praça de Espanha. É daí que virá o meio de transporte. Tudo o mais perde a importância ou antes é compreendido como o plano atrás das minhas costas, na direcção do qual quero ir, que me orienta espacialmente a espera, mas não está a ser visto. Quando vejo o Uber aproximar-se, está já no campo perceptivo, mas está ao serviço do funcionamento da espera. O carro tem de se aproximar a tal ponto que eu consiga, ao esticar o braço, agarrar o trinco da porta, abrir, aproximar-me do carro para entrar, primeiro perna esquerda, depois direita, baixo-me, sento-me, espero pelo arranque, início da viagem, etc., etc.. Quando entramos para dentro de um carro a espera não se dissipa. Há uma fase da espera que fica preenchida. O carro demorou a chegar ou veio de rapidamente. Depois, é necessário fazer o caminho que leva até ao ponto de chegada. O ponto de chegada, uma vez lá, não é o preenchimento, a não ser de uma fase do que estamos a fazer, do que temos de fazer. Vamos a um sítio sempre para tratar de alguma coisa em agenda, para ir por ter de ir ou para ir para qualquer coisa específica. O que se passa para a espera por um meio de transporte, de forma evidente, passa-se para todos os objectos nos quais estamos depostos. Achamos que esses objectos de espera, os objectos por que esperamos, estão já disponíveis na nossa percepção momentânea em que presente e conteúdos apresentados parecem coincidir. Mas se parecem não são coincidentes. Se quero ir de uma divisão da casa para outra, a biblioteca não está na sala de jantar, eu sei que as duas divisões estão contíguas espacialmente, mas uma está à distância temporal do percurso que tem de, necessariamente, ser feito até lá chegar. As divisões de uma casa estão justapostas ou são contíguas espacialmente, mas estão descontinuadas temporalmente. Agora que me levanto do sofá da sala de jantar, a biblioteca onde está o livro encontra-se “depois”, “mais tarde”, mesmo que seja a instantes de uma qualidade tão breve que esse simples facto, de que há uma distância temporal entre as duas divisões, não é percebido cabalmente. Mas se estivermos numa mesma divisão, a espera está a constituir-se eficazmente relativamente a conteúdos que não se destacam nem perfilam na sua individualidade dinâmica. O meio de transporte por que esperamos ou a espera pelo meio de transporte é o sentido da situação em que nos encontramos. Não estamos à janela do mundo apenas para assistir como espectadores desinteressados ao que se está a passar. Todo o campo da percepção está situado pela espera. O livro que precisamos de consultar não está no campo de visão da sala de jantar, mas erige-se, sem uma apresentação visual forçosamente, pela ideia que tenho de que está na biblioteca. Eu vou até ele, passando pelo corredor, depois de ter saído da sala de jantar. Quando estamos a viver o campo perceptivo, quando aparentemente não se espera por nada de concreto que se destaque ou perfile de todos os objectos que aí se encontram, há ainda assim, espera. Achamos que, por defeito, nos encontramos num campo perceptivo, sem estarmos à espera de nenhum objecto, pessoa ou coisa, concretos. Mas é inversamente o caso. Estamos continuamente e sempre à espera de poder continuar a estar na Av. de Berna, ir ao Campo Pequeno, à Gulbenkian, à Pr. de Espanha. Estamos continuamente à espera de poder continuar sentados na sala de jantar ou a ler um livro na biblioteca. Por defeito, encontramo-nos na espera de continuar no horizonte de percepção que é tão pouco só a sintonia entre ver e visto, a sincronização presente, num instante ou numa duração considerável, de agentes de percepção e objectos de percepção, que a possibilidade de não continuar, de a percepção se desfazer, constitui problema. Não nos apercebemos, a não ser quando estamos “acesos” por um conteúdo específico de espera, que estamos sempre depostos num horizonte de espera que dá identidade de sentido e permite o reconhecimento da mudança no imutável, da sucessão na permanência. O que nada muda tem também o seu apelo.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasSer maior da actualidade? [dropcap]A[/dropcap] “actualidade” foi desde sempre privilegiada. Na ontologia ingénua em que vivemos, na “metafísica natural”, “o que está a dar” tem mais ser do que o que não está a dar. Seja nas notícias, seja em qualquer forma de espectáculo, seja individual e colectivo, cada momento presente é mais importante do que “o que passou” e do “que ainda não é problema”. A actualidade, o presente, é continuamente actualizado, está submetido a um updating que reconstitui, reforma, renova o próprio sistema da realidade ou então começa tudo de novo. O presente é mais do que o passado e do que o futuro. O pragmatismo acentua esta valência. É agora e não mais tarde. O que foi mesmo agora, mas há pouco, já não se projecta sobre a nossa realidade da mesma maneira. O que importa e tem valor é este istmo entre o mar do passado e o mar do futuro ou numa outra imagem fluvial, a crista da onda em que surfamos e que de cada vez a cada instante se vai formando é mais importante do que as encostas de moles de água que temos atrás das costas e à nossa frente. O passado mora lá trás e o futuro a Deus pertence. O presente é que é. O passado mesmo há pouco não é já e o futuro não é ainda. A interpretação do ser do presente é concomitante à interpretação do não ser do passado e não ser do futuro, respectivamente não ser já e não ser ainda. Vive-se um dia de cada. Mas não se pode negar a realidade do futuro. É uma realidade com que contamos, bem na esperança. Mal, na desesperança. É inegável que temos saudades do passado ou o queremos esquecer ou ainda que somos o que temos sido, mesmo quando estamos numa relação de indiferença com o passado ou até só de aparente indiferença. Nós existimos tão pouco só no ápice do presente como também para estarmos na crista da onda, no cume da montanha, na fronteira, no sítio exacto em que estamos numa deslocação ou viagem, precisamos sempre do ponto de partida e do ponto de chegada, das encostas, do vale, da mole de água que faz inchar a onda e da descida em direcção à beira mar ou lá para onde nos leva a onda. O momento presente, ensanduichado entre o passado, mesmo o passado há pouco, agora mesmo, e o futuro daqui a nada, do que está prestes a “rebentar”, a acontecer, o instante presente da actualidade mais actual que existe, não poderia nunca ser nem existir, sem o passado há pouco nem o futuro daqui a nada. É difícil perceber quem faz a actualização de cada novo momento presente que simplesmente tudo renova e, de facto, tudo renova sem excepção. O mais das vezes repete o que já está dado, ao permitir que continue a ser o que tem sido, sendo ou não bom o que é e tem sido. Outras vezes, permite começar de novo. Outras ainda dá a compreender que é o princípio do fim, que tudo muita, que tudo vai ser diferente e nada vai ficar como dantes. Custa perceber que assim é, que as coisas acabam e custa também perceber que as coisas se renovam ou nascem coisas novas. A actualidade do presente dura um instante, mas o próprio presente pode durar mais do que instantes, pode ser a própria qualidade da duração natural das situações, do que entendemos ser a constituição do tempo da duração qualitativa das coisas. As últimas notícias sabem-se na hora, na última hora. Cortam-se metas a cada instante. Os relógios marcam o tempo ao segundo e décimo de segundo já na vida quotidiana. Por maioria de razão o tempo dos atletas, da indústria de ponta, é ainda mais subdividido. Acontecem coisas dignas de registo em tempos subliminares de que não damos conta. Mas a actualidade pode ser também a do semestre lectivo, do tempo da faculdade ou da qualidade do tempo que temos quando somos estudantes. Há o tempo da época desportiva, o ano civil, religioso, a agenda política, os longos prazos mas finitos dos recursos do planeta, a duração da vida humana e de gerações e gerações de vidas humanas. O que define a actualidade ou o sentido de uma época não se reduz a um instante. Não se distende também apenas a uma duração somente quantitativa. As durações dos objectos temporais são diferentes entre si e resultam da qualidade constitutiva do tempo que é o seu. Ou seja, de algum modo fazemos valer o momento futuro imediato como já a ser integrado no momento actualíssimo do presente. Acordamos, levantamo-nos, bebemos café, tomamos banho, saímos de casa para o trabalho. Qualquer que seja a série de acontecimentos distribuídos pelos seus momentos, haja ou não conteúdos em agenda, eles estão já pressupostos e é com essa pretensão que acordamos e nos deslocamos em casa, distribuindo-nos pelas divisões onde os rápidos momentos da manhã são vividos: quarto, cozinha, casa de banho, escadas, porta da rua, caminhos, partidas e chegadas. O dia inteiro está diante de nós como o objecto temporal que se oferece a ser, a que resistimos com perseverança ou que acolhemos suavemente como algo que desliza bem ou nos faz deslizar bem no seu fluxo. Não precisamos de ler a agenda ou de passar em revista mentalmente o que vamos fazer, o que é importante nesse dia, hoje. Até podemos esquecer-nos do que temos para fazer e podemos não fazer o que era suposto fazermos. No princípio do dia, está o dia para viver, quer aconteça quando ainda é noite ou já a meio da manhã, tarde ou à hora do jantar. Podemos ter um dia longo ou um dia curto. Ainda assim, constitui-se sempre sem se saber bem como a ideia de que há para ser ou que não temos já tempo, que é também uma forma de percebermos que estamos virados para o futuro. Estamos sempre virados para o futuro, quer com ele cheguem conteúdos ou não cheguem conteúdos. O tempo da chegada e da partida de pessoas, situações, circunstâncias ou conjunturas, não pode ser confundido com o próprio ser do tempo que é sempre e continuamente a da eterna partida, passagem irreversível de tudo, simplesmente tudo. [Continua].
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasComo vai estar o dia [dropcap]U[/dropcap]m breve olhar através da janela dá para ver como vai estar o dia. É um olhar de relance. Não é um olhar reflectido. E, contudo, não é como se nada fosse. Um lapso de tempo, num ápice, dá para ver como vai estar o dia todo. Não há nenhuma pronúncia de juízo. Não se diz: “Hoje, o dia inteiro vai estar assim”. Há de algum modo uma formulação mental do que está a ver-se naquele momento exacto com consequências para o futuro mais ou menos duradouro para as horas do dia por que se distribuem as nossas incumbências, horário de expediente, ocupações, preocupações, ou lazer. Num breve instante, num olhar que se dá num segundo, vê-se para além do que se constitui nessa sincronização entre o tempo durante o qual se forma a nossa percepção e o que se passa na realidade durante um tempo que excede, é mais duradouro, o tempo da percepção. O momento da percepção, em que eu inspecciono, com um só olhar como se eu não quisesse a coisa, a meteorologia do dia, é ínfimo relativamente ao que se vai passar nas horas seguintes, no tempo do dia em que estarei acordado, pode até projectar-se em antecipação que o dia terá a mesma meteorologia até ao dia seguinte e que até amanhã vai estar bom ou vai estar mau tempo. Como é possível a avaliação ou juízo segundo o qual vai ser assim e não vai mudar ou está a assim e vai abrir ou fechar mais tarde? Há um acesso que extravasa para fora do momento da sincronização entre ver e o que é visto, entre o olhar e o que fica fixado na realidade por esse olhar. A variação ou não das condições climatéricas é o próprio conteúdo da interpretação hermenêutica, que tem uma qualidade que é diferente e excede o que efectivamente é visto. Podemos perceber as qualidades climatéricas de um sítio como sendo sempre as mesmas ao longo de um mês. Podemos perceber a variação dessas mesmas qualidades ao longo de um dia. Podemos perceber invernos frios e chuvosos como verões secos e muito quentes. Podemos perceber a instabilidade do tempo, temperatura, aberturas, climas, etc., etc., etc.. Como é possível. O nosso acesso à realidade é mais longo do que o tempo que achamos necessário para que se constitua. Achamos que os processos e eventos que se dão na realidade determinam a duração do acesso, a sua adequação e inadequação. Podemos perceber que uma sucessão de eventos é tão rápida a dar-se que não conseguimos acompanhar inteiramente o que sucede, o que está efectivamente a acontecer. Um lance de futebol pode ser tão rápido que não se tem tempo para perceber o que realmente aconteceu. O juízo pode basear-se na impressão que dá, com que ficamos da realidade: se está ou não fora de jogo um jogador, se a bola entra ou não na baliza, bate dentro ou fora do corte de ténis, etc., etc.. A realidade requer a filmagem, para que, a partir das imagens, se possa perceber ao repetir vezes sem conta a partir de diversos ângulos o que sucedeu. Podemos ver em câmara lenta, podemos, pela repetição, promover uma base fenomenológica mais consistente, muito mais consistente do que a que se produz quando vemos, ao vivo, o que sucede. O tempo da percepção é o tempo do conteúdo percepcionado. Mas o tempo da percepção pode ser muito curto para um acontecimento muito rápido. Já dei por mim num Estádio de futebol à espera do que que a câmara televisiva nos oferece sempre: repetições. Mas a realidade só se dá uma só vez no tempo que requer para acontecer. O tempo da assistência pode ser muito lento para acompanharmos o que está a suceder e não acompanhamos o que está a suceder. Já nem se fala dos acontecimentos que não acompanhamos que são a maior parte dos acontecimentos do mundo, nas vidas das outras pessoas, nos seus mundos. Mas pode também acontecer que a nossa percepção seja tão rápida que não acompanhamos o tempo em que as coisas aconteçam. Não vemos a relva crescer a fazer barulho a aumentar de tamanho. Não temos a percepção do envelhecimento dos nossos rostos, de cada vez que nos vemos no espelho. É preciso que passe tempo entre a infância, a adolescência, o começo da idade adulta, o nosso rosto velho. É por discontinuidade que percebemos o envelhecimento, não o vemos sempre a cada instante. Só nos apercebemos disso pelo contraste criado pela discontinuidade, quando vemos alguém que não víamos há décadas, quando nos vemos no espelho sem percebermos para onde foi o nosso rosto de crianças ou jovens adolescentes. O nosso acesso não depende do tempo da realidade, constitui o próprio tempo da realidade. Durante o tempo em que estivermos vivos distende-se o nosso acesso, sempre finito, limitado, confinado. Desse plano de fundo do tempo da vida vemos o plano de fundo do mundo à nossa frente, vemo-nos inseridos no horizonte formado pela abóbada celeste, pelo tempo de vida dos anos que passaram. No interior da duração do tempo que tem passado, compreendemos as durações das coisas, pessoas, estados de coisas, processos, situações, conjunturas de tudo o que existe e de tudo o que é sonhado, imaginado. Num breve olhar inspecionamos através da janela como vai estar o dia: escuro, cinzento, chuvoso, farrusco. Num só instante vemos esses conteúdos, a temperatura, a humidade, a luminosidade. Tudo é visto intrincado, entrelaçado, a ensopar o dia. Dizer que o dia vai ser assim ou de outro modo requer uma avaliação que excede o tempo da duração da percepção em que vemos o que vemos, mas implica também uma qualidade de significado muito mais complexa do que a que dá apenas para conteúdos reais objectivos aí.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA casa [dropcap]O[/dropcap] interior de uma casa não é dado por uma geometria pura do que está dentro por oposição ao que está fora. O que delimita o interior do exterior pode ser apenas a percepção da possibilidade do fora. Um quarto sem janelas deixa adivinhar corredores e outras divisões, a rua e as ruas contíguas. Mas são naturalmente janelas e portas que fazem a fronteira complexa entre dentro e fora, que permitem espreitar para dentro e olhar janela fora, entrar e sair, fechar e abrir, prender e soltar. Há portas e portões que nos estão interditos ou podem estar abertos. Abrimos ou não a porta da nossa casa. Mas portas e janelas têm dimensões multifacetadas, como os portais virtuais do tempo passado e do tempo fantástico do sonho e da imaginação. Neste sentido apenas se tem acesso ao “interior” da casa a partir de uma percepção da intimidade afectiva da própria casa. A casa não está apensa inserida na natureza que a acolhe: piso, andar, monte, colina, ravina, mas só existe humanamente quando ela começa a inserir-se, a enraizar-se na intimidade do humano. Demora muito tempo a estar-se em casa, tanto quanto demora a sentirmo-nos em casa. A essência da casa é a intimidade do humano. A intimidade do humano não existe em nenhuma geometria esboçada até à data. O acesso à intimidade da casa é o acesso que o humano pode ter à sua intimidade. A intimidade da casa é de alguma maneira a intimidade do humano e não é perscrutável por quem nela não viva ou para quem se tenha já tornado outro e diferente de quem era. Só o sonho pode como hipótese psicanalítica sintonizar e canalizar essa dimensão perdida para a memória de uma casa e das nossas vivências dela, distribuídas ao longo do tempo. “O sonho seria uma espécie de elevador que iria buscar, de forma alucinada, essa geografia perdida”. O que o sonho faz viver oniricamente como irreal não deixa de surtir efeito, accionar afectivamente o horizonte de sentido que se projecta sobre todo e qualquer conteúdo real, transformando-o, metamorfoseando-o. O trabalho do acesso é hermenêutico. Se por defeito o quotidiano se encontra em “negação” relativamente ao estranho, inóspito, angustiante, ou melhor, se o quotidiano produz “recalcamento”, é necessário encontrar vestígios, muitas vezes avulsos e mascarados, que nos ponham na pista da dimensão profunda da existência, ou como os platónicos lhe chamam o outro mundo, ideal, mas mais verdadeiro do que mundo da realidade física. As portas de abertura encontram-se esporadicamente e requerem não apenas atenção mas um trabalho de elaboração hermenêutica. Se o quotidiano provem de e acaba numa psicopatologia, os momentos de neutralização do pathos podem ser “vistos” no “equívoco, lapso, acto falhado”. São estas formas de descontinuidade no contínuo psicopatológico que constituem verdadeiras fissuras ou fendas, portais de entrada no que a psicanálise chama “inconsciente”, que o é tão pouco que nos acontece por sua visitação, talvez.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO estrangeiro dos desaparecidos [dropcap]H[/dropcap]á uma aparente cristalização do outro ausente no sítio onde se encontra. É como se não envelhecesse. Fica na nossa memória como era da última vez que vemos esse alguém. Podemos pensar como se encontram os amigos da escola que também se encontram nesse “estrangeiro” que é a parte incerta ou, se certa, encontra-se oculto num campo de latência, desaparecido. Há várias frequências de encontro, consoante os prazos. Parece imperceptível a transformação do outro como é imperceptível a nossa transformação ao espelho. Há momentos em que percebemos que o outro mudou como percebemos também que nós mudamos: o peso, o cabelo, o aspecto. Há pessoas que não vemos sempre, com maior ou menor frequência. Podemos só ver alguém depois de vinte anos e a pessoa parece que se mantém intacta ou então quase não a reconhecemos. Não há nunca uma correspondência biunívoca entre a percepção da nossa lucidez e a duração da existência da outra pessoa. Talvez do mesmo modo que só por vezes “caímos em nós” e “nos enxergamos”, isto é, só em momentos de qualidade perceptiva importante temos uma a-percepção de nós próprios, quer dizer, o mais das vezes e habitualmente registamos a nossa presença em nós próprios, mas não temos uma auto-apercepção de quem somos, como mudamos ou se estamos sempre cada vez mais na mesma. A duração da percepção é infinitamente inferior à duração da existência de cada um de nós próprios e dos outros nas suas vidas. Um momento de percepção projecta-se para o futuro com os dados das impressões que alguém deixa em nós. Há uma continuidade projectada para o futuro dessas primeiras impressões. Há uma caracterização dogmática de alguém feita pela presente impressão. Mas uma impressão é momentânea e por isso admite uma alteração do objecto que cria essa impressão do mesmo modo que admite uma interpretação diferente e uma história camaleónica nas nossas existências. Há pessoas que só vimos uma vez na vida e outras que vamos vendo. Outras há que vemos em épocas das nossas vidas e depois caem para o campo de latência de onde apareceram, só para desaparecer. Há vidas que têm uma apresentação e uma ausência intermitentes, mais ou menos regular, como os amigos de férias que só víamos quando era verão e literalmente hibernavam como nós também para eles hibernávamos. Os outros resultam de um filme em que há determinações claramente presentes, mas a maior parte delas existem na sua ausência. As ausências dos outros, quando estão desaparecidos, não são absolutas, como se desaparecessem da existência, mas estão a ser compostas por nós, mesmo quando não pensamos neles. A maior parte das pessoas, mesmo as que nos estão tão próximas que vivemos com elas, estão sempre no estrangeiro existencial, desaparecem do horizonte de perceptibilidade, saem da vista para fora, deixamos de as ouvir, de as sentir nas suas fragrâncias, como nos tocam e têm nas suas mãos e nós nos encontramos nas mãos deles. A interrupção do contacto, a sua perda, o desaparecer é o entrar para o campo da latência. O mais das vezes e primariamente o outro encontra-se neste campo de latência, tal como de resto a maior parte das coisas. E, contudo, elevam-se anonimamente teses sobre o seu ser. À luz projectada por essas teses, temos a esperança de que os outros continuem aí no rio das suas existências, mesmo que a baixar para o mar, ainda que essa persistência no fluxo e na corrente do rio da vida, se alterem, transformem, mudem. Tal como cada um de nós, todos nos tornamos diferentes com o tempo. Às vezes nem sequer os outros nos aparecem, pode ser uma canção na rádio, a fragrância de um perfume, uma peça de roupa, uma fotografia. Outras vezes, pressentimos a sua presença como se estivessem de pé atrás de nós ou sentados ao nosso lado, como nos momentos em que não dormimos mas também não estamos acordados e importamos dos nossos sonhos imagens reais dos nossos ou fazemos transitar os nossos fantasmas adoráveis para as fantasias oníricas em que as nossas vidas continuam sem que houvessem sido interrompidas por morte, física ou afectiva.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO paradoxo sorites [dropcap]S[/dropcap]e uma multidão de gente for subtraída de uma pessoa, quando é que deixa de ser uma multidão parar passar a ser um conjunto de pessoas, algumas pessoas, poucas pessoas, etc. Hoje estive numa praia onde estive quando tinha seis anos. Uma família a sul. Alguém atira uma bola ao rio. A corrente leva a bola a uma velocidade estonteante. Era a mãe, o pai e o mano, sobrevivente a uma doença mortal. A bola é levada para a foz. Mal podia eu saber que era uma metáfora viva da vida. E estamos a ir todos na corrente do rio para o mar. Esta mesma praia é onde estou. Não está lá ninguém que eu conheça. Há o mesmo bar de praia de que me lembro. Era só madeira outrora. A madeira apodreceu. Hoje, é uma coisa moderna com pessoas que não sabem da bola nem do rio. O rio é sempre diferente. Quando a maré sobe, quando faz frio, quando chove, quando faz sol. O rio vai para o mar. É por isso que nasce. É para ir ter com o Atlântico. E esta multidão é o quê? Os antigos cépticos tinham vários paradoxos. Quanto se perde de cabelo para se ser considerado careca? Quantos grãos de areia fazem uma praia? Há uma multidão sem uma pessoa. Quantas pessoas fazem uma multidão? Quantas pessoas estão ausentes para se dizer que a praia está vazia? Nós estamos lá a olhar para a praia, quando é inverno e não há ninguém, só o nosso ponto de vista. Mas há também uma multidão sem ti. Nada compensa a tua ausência. Nada. Olho para a praia cheia de gente e não estás lá, nem a bola, nem a maré a vazar em direcção ao rio. Pediste-me que te espalhasse as cinzas onde olhavas o horizonte. Ainda não o fiz. Estás aqui connosco, mãe e eu. o que é uma multidão de gente sem ti? Só eu dou por isso. Há uma multidão sem uma pessoa que continua uma multidão mas é a abominação da desolação. Só tu enchias a praia. A praia vista sem ti e praia vista contigo é completamente diferente. Não há praia sem uma pessoa. A praia sem ti é uma lente sem objecto. E quando a praia está no inverno estar e não estar, aparecer e desparecer é diferente de tudo. A vivência sem prendimento e com a entrega que a infância representava a vida que estava para ser e que foi. Agora não se está bem lá sem se perguntar se é ou não a última vez. A primeira até à última vez da visita é sempre só nós lá, num só sítio, até que nós a encerramos e fechamos para sempre. Uma praia sem ti é diferente de uma praia contigo. Agora, estás lá, com todos os teus jornais, todos os teus dias, os almoços, a política, os amigos que também se foram, os teus filhos que estão velhos. Há uma família que vai a uma praia pela primeira de todas as vezes da tua vida. A bola chutada vai para o rio, o rio leva-a para o Atlântico. Ninguém a salva. Ninguém nos salva. O rio é diferente sempre todos os dias, maré que enche e maré que vaza. Onde estás? Quantas pessoas saem para fazer uma praia vazia? Olho para todos os grãos de areia, para todas as gotas do rio que é diferente à superfície e no seu fundo. Não te encontro. Não vives já, mas continuas a existir, moreno, a beber vinho tinto, a falar política, a ter misericórdia pelos pobres. Encontrava-te sempre sentado, a escutar rádio, a ler o jornal. Encontro-te ainda sempre, porque não sairás de mim nunca.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDias de mudança I [dropcap]H[/dropcap]á dias que fazem convergir para si linhas de acção de diversas frentes e com prazos diferentes de desenvolvimento. Seja a preparação de um negócio, mesmo simples, a compra ou a venda de um artigo, um instrumento musical ou uma obra literária. Seja a inscrição num ginásio para finalmente se pôr em prática o que queríamos há tanto tempo, ter actividade física, ou na mesma linha de acção: deixar de fumar, beber menos, fazer dieta. Seja fazer a viagem ou as férias que podemos finalmente ter. Tudo pode acontecer num mesmo dia e a fazer confluir frentes idênticas de sentido. Não se compra ou vende a guitarra apenas mas compra-se ou vende-se a guitarra, os livros. Parece que nesse dia somos pessoas de negócio, só que habitualmente nada disso acontece. Temos a primeira aula no ginásio, deixamos ou reduzimos os cigarros e a ingestão de bebidas alcoólicas, iniciamos uma dieta, compramos roupa desportiva, tudo parece reluzir como nos primeiros dias de adolescência quando tínhamos o primeiro dia na piscina ou no dojo. Marcamos a viagem para uns dias num sítio em que alguém tem uma casa que nos oferece para estadia. Tudo no mesmo dia. Há dias em que tudo acontece e nada parece abortar, a trama da vida a ser faz que aconteça mesmo que mudemos de vida. Por maioria de razão acontece quando encontramos alguém. II Desde sempre percebi, desde o insondável e distante horizonte da infância, que havia momentos na vida, que definiam marcos, antes e depois, melhor: a partir dessa altura tudo haveria de ser diferente e nada continuaria como dantes. Parece uma redundância. Como é que o que será diferente poderia continuar igual e como é que o que não continua como dantes poderia ser igual depois. Mas é mesmo assim. Há uma compreensão do tempo anterior à experiência de vida por que se passou que também se dá relativamente ao tempo ulterior à experiência. Antes e depois colidem. Não há um único instante, mas há a vida toda. A vida que tinha sido levada até esse instante e a vida que se desenrola à nossa frente, sem pormenores mas na sua configuração. A partir de agora a vida vai ser totalmente diferente do que foi até aqui. Numa outra formulação possível a vida que podia ter sido como foi até aqui vai ser completamente diferente. A vida que era suposto ser tida passa a ser outra. Aquilo por que se passou, os momentos que se atravessaram, reconfiguraram a vida. Não sem antes a terem posto debaixo de um único horizonte que não sabíamos que havia, porque tudo parecia exterior a nós, o espaço, o tempo, os outros, nós próprios. Agora, só há interior e um interior que parece existir no tempo, um tempo que passa a ser radicalmente diferente do que foi até então, como se até então não tivesse havido tempo e agora passa a haver tempo, um tempo que começou a contar de forma decrescente e nós temos de viver uma vida que não foi desenhada por nós, mas pelo trauma. Tudo é post-traumático. III Os primeiros instantes em que conhecemos alguém que fica na nossa vida são diferentes dos primeiros instantes em que vemos alguém que conhecemos mas não fica na nossa vida e diferentes daqueles em que nem sequer nos apercebemos que vemos alguém. Há pessoas que ficam nas nossas vidas em ausência permanente. Tal como os nossos mortos estão sempre presentes a constituir a nossa mente lúcida, assim também eles estão presentes, independentemente de avaliarmos as suas existências como boas ou más para nós. Num instante parece lançar-se um projecto para sempre de convívio e co-existência. Ou antes, dá-se um excesso de sentido que vai para lá da mera sincronização entre ver e visto, sujeito e objecto. Há qualquer coisa que capta a história daquela miúda ou miúdo na infância, mas é sobretudo porque dá a sensação que já nos conhecíamos uns aos outros antes e que era a altura de nos revermos. Do mesmo modo, para além do reconhecimento há logo um quotidiano, um lance de futuro. Não é só presente e história pressentida é também futuro lançado numa antecipação e previsão meramente formais mas eficazes. Não só já éramos antes de nos termos conhecido como a nossa vida seria completamente diferente se não tivéssemos conhecido aquelas pessoas. Não seria possível ter futuro sem aqueles encontros. Não seria possível ter as nossas vidas sem aquelas pessoas. O futuro da vida é antecipado de tal forma que o calcorreamos até ao fim. Aqueles encontros arremessam-nos para o fim das nossas vidas. Lá estarão na hora da nossa morte. Um instante distendido do passado para o futuro e não a abstracção de ter a percepção de alguém: na piscina, no recreio, na sala de aula, no ginásio, numa rua a acenar.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDias de chuva no Verão [dropcap]N[/dropcap]a infância e adolescência, as férias na praia obedeciam a um único requisito: ir à praia. O quotidiano girava à volta das horas solares de quando se ia à praia, de manhã e à tarde, só de tarde, para os finórios e de manhã e à tarde para quem era adepto inveterado de praia, do sol, dos banhos de sol. Para quem era gordinho como eu e com alma de peixe, não é difícil de entender que entrávamos dentro de água de manhã, quando éramos levados por pais, pais amigos dos pais, arrastados com outros miúdos que ficariam referências para toda a vida, e só saímos quando nos chamávamos. Acho que desenvolvi barbatanas entre o polegar e o indicador naqueles anos. O meio ambiente era sempre o que esperávamos que fosse, céu azul, temperatura quente, água gelada, mas “mergulhável” e “nadável”. Quando não era dentro de água, o meu meio favorito, onde nadava, remava, mergulhava, era fora dela, claro. Não que fosse dotado para o que quer que fosse de jogos e a moral já despontava em mim. Não achava curial estar à raquetada a bolas que faziam barulho e magoariam as pessoas em quem acertassem, mas também lia, sobretudo, na adolescência. Quando ia para a praia, levava uma parafernália que ia desde o que qualquer pessoa podia considerar dispensável, tal como eu o achei anos mais tarde, mas que para mim era absolutamente necessário e indispensável: chapéu de sol, geleira, o que é básico, mas também cadeira para poder ler e muitos livros. Nem me levantava da cadeira para me deitar. Aliás, tudo me dói quando me deito na areia da praia. De qualquer modo estava sempre acompanhado da “malta”. Uns tinham barcos e iam curar a ressaca para a praia. Nunca ninguém me poderá explicar como é que alguém cura uma ressaca na praia a não ser se também bebesse na manhã seguinte como bebeu de véspera, porque ninguém consegue dormir nem ir para o banho se não tiver dormido bem e se tiver bebido como se não houvesse amanhã. Esses dias eram os dias que não eram perspectivados como dias seguintes, pois de véspera a noite ia prolongar-se para todo o sempre. Não haver amanhã quer dizer não haver ressaca. Não haver ressaca quer dizer não haver realidade. E a realidade não é compatível com a possibilidade de uma véspera sem amanhã. Mas regresso ao ponto. Na infância e adolescência, as férias de verão andavam à volta da praia. O quotidiano girava à volta do tempo diurno quando há sol. Mesmo que fôssemos para a praia acender fogueiras, tocar guitarra e dançar ao luar tudo andava à volta da praia e quando não tínhamos pela idade autonomia, era de dia que tudo se passava, quando chegávamos porque a praia fazia bem era de manhã e tínhamos de regressar ao almoço porque pai e mãe assim o determinavam. Se queríamos regressar logo para a praia, engolíamos o almoço, mas era em vão porque a seguir havia sestas à tarde e a seguir uma página de português e de matemática, porque a escola não podia ser esquecida. Era em vão. Lá íamos ao fim da tarde ou quando a praia não faz mal, quando quem lá tinha estado também tinha morrido de tédio, já tinha comido gelados, sanduíches ou bolas de berlim com creme, mas também tinha mergulhado e nadado e secado e cumprido todo o ritual de então. Agora, há barcos para alugar, pranchas que são de surf, mas onde se pode estar de pé, os cafés de praia oferecem todo o tipo de serviço, famílias inteiras vão para a praia com parafernálias mais completas do que a minha outrora para ler, parece que levam ginásios e cozinhas para a praia. Não vão para a praia para serem trabalhados pelos elementos são tão narcisos que nem percebem o barulho que fazem o cheiro que exala dos seus tachos ou como se apresentam nos seus fatos de banho. Tudo isto pressupõe que há sol, faz calor, que tudo se repete dias sem conta. A indumentária é simples: calções de banho, uma toalha levada ao ombro, uma T-shirt e sandálias nos pés. Depois, era encontrar todos os outros da mesma maneira. Não havia camisas brancas do colégio, nem calções ou para os mais velhos calças, não havia sapatos, muito menos cintos e ainda menos camisolas ou casacos. Isso era roupa de inverno. Pior, era roupa do tempo das aulas. Não era a indumentária das férias grandes do mundo, a durar três meses, às vezes quatro meses. A durar desde a inauguração que consagrou as nossas vidas dedicadas ao rio e ao mar, ao oceano Atlântico, e que só quem lá esteve sabe do que se trata, até agora quando a nossa inauguração foi absolutamente consagrada e somos os seres religiosos que unem o nosso eu de então ao eu de agora, o nosso eu isolado ao dos outros de então e de agora, os mortos e os vivos. E depois vinha a chuva. Interrompia-se o ritual incessante que adora o deus sol. Já não se vai à praia do rio, porque chove e talvez faça frio ou então porque não se vai à praia de Verão, quando não faz sol e não faz calor. Quem “faz” o que quer que seja de sol e de calor é também quem faz a chuva cair em Agosto. Ninguém cura ressacas em conjunto na praia. Os pais aproveitam e vai-se à povoação maior para fazer compras, visitar sítios dignos de visita. A praia aparece vazia como nos dias de Inverno, como nos dias frios, não está lá ninguém. Chove copiosamente. As nove da manhã não são as nove da manhã de Verão, são as nove da manhã de Inverno, quando esperávamos a carrinha para ir para o colégio ou já apanhávamos meios de transporte para ir para o liceu. Os amigos já estavam vestidos como para uma cerimónia, mas era só a impressão disso. Porque estar vestido com roupa é sinal da civilização e do sério, quando na praia no Verão regressamos a um estado primordial, expostos aos elementos. Íamos para os cafés, já de calças se tivesse de ser ou calções. Não escaparíamos à camisa ou à T-shirt com pullover. Aquele dia interrompia o ciclo do verão. Havia uma resistência ao ritual de adoração do Deus Sol. A vida séria era antecipada: o primeiro dia de escola ou o primeiro dia de trabalho. O outono e o inverno acotovelavam-se para vir ter connosco. Mas era chuva de pouca dura. E tudo era como se não houvesse amanhã. Talvez ainda hoje prefira o verão sem que outra estação se imiscua. Celebro o sol e comemoro os amigos que estiveram naqueles dias da infância e adolescência, quando vinha a chuva como um dia de inverno e transformava em metamorfose o verão noutra coisa.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt IV [dropcap]A[/dropcap] nossa relação com o corpo é uma relação também com o nosso ambiente, com a humidade, a temperatura, a alimentação sólida e líquida, a nossa exposição às águas que nos banham ou que bebemos, o ar que respiramos e que nos envolve, os sítios que habitamos e que nos são familiares e nos acolhem. Também temos biorritmos diferentes ao longo do dia. As horas do dia (ao romper da aurora e ao nascer do dia, de manhã, à hora do almoço, à tarde, à tardinha, ao pôr do sol e ao crepúsculo, de noite) projectam sobre o nosso corpo, alma e vida tonalidades diferentes, modos de estar físico e somático diferentes, sujeitam-nos a estados de espírito também diferentes. As horas do dia, como as estações do ano, as idades da vida influenciam o meio ambiente, influenciam-nos a nós, influenciam a relação que temos com o meio ambiente. Somos no meio ambiente diferentes ao longo das horas do dia. Do mesmo modo que nos sentimos diferentes num dia cinzento e num dia de sol, também somos diferentes ao longo das horas do dia, de dia e de noite. Há assim uma relação complexa entre os humores, bílis negra, amarela, fleuma e sangue e as disposições do Thumos. Há um nexo psicofisiológico e uma relação psicossomática no interior do próprio corpo que só é possível havendo uma psicologização do soma e uma somatização da psychê. É possível indagar deste facto não apenas em episódios e de forma avulsa, mas também diacronicamente. Há uma interacção complexa entre o grande ano da vida e as idades da vida, o ano meteorológico e as estações do ano, cada dia e as horas do dia. As idades da vida, as estações do ano, estão ligadas a curto, médio e longo prazos. Mas como se dá a ligação entre as horas do dia e o meio ambiente e as horas do dia e nós? Como se dá a ligação entre as estações do ano e o meio ambiente? Como se dá a ligação entre as estações do ano e nós? Como se dá a ligação entre a passagem dos anos e as estações do ano e o meio ambiente e a ligação entre a passagem dos anos e cada um de nós ao longo de uma vida? Há uma correlação complexa tal que o humano é o meio ambiente, o humano é a idade da vida. É do interior ou do plano de fundo do ano que se estabelecem fronteiras entre as estações do ano, as horas do dia e as idades da vida e que é isso que influencia o meio e o humano, a relação complexa saudável e nociva implica uma exposição do humano ao ano que finda. O humano está distendido no espaço, à escala universal e encontra-se distribuído num tempo que é o ano da vida.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt III [dropcap]O[/dropcap] ser humano existe sob o plano de fundo do grande ano da vida com estações do ano, idades da vida e horas do dia. O corpo é o órgão da existência, o órgão da vida. O tempo meteorológico é uma indicação viva do tempo cronológico. O ser humano existe exposto ao grande ano da vida no interior do qual se gizam fronteiras de teor temporal, cronológico e meteorológico. O ser humano tão exposto ao tempo cronológico como ao tempo meteorológico. Como os gregos diziam o tempo é o céu. O tempo meteorológico é uma indicação do tempo cronológico. Há línguas que usam a mesma palavra para se referirem aos dois tempos. Cada estação do ano existe como fronteira limite relativamente às restantes. É o ano que serve de plano de fundo às estações do ano. É do ano ou dos anos da vida, então, que as estações do ano são estações. Num só ano: primavera, Verão, Outono e Inverno são delimitações temporais, estações, que duram entre as fronteiras temporais de cada estação. O ano manifesta-se de modo diferente no seu decurso. Vê-se como produz diferentes aspectos no planeta no seu transcurso. O ano solar altera o clima num mesmo local, altera a qualidade do ar e das águas, embora, claro está, cada região ou localidade da terra tenham diferentes climas, atmosferas, ares e águas. A própria geografia dos locais é já diferente, consoante é montanha ou planalto, interior ou litoral. Qualquer latitude e longitude está exposta às estações do ano com consequências diferentes. Mas a translação, perfazendo o ano solar, permite perceber o espectro temporal onde se produzem as variações e alterações resultantes das estações do ano. O ser humano está assim exposto ao lugar em que vive. O lugar não é apenas o sítio localizado pelo GPS com as respectivas coordenadas, latitude e longitude. Cada lugar é um aí estrutural complexo que varia ao longo das estações do ano bem como os seus ares, a sua atmosfera, a qualidade das suas águas. Dá-se uma variação ao longo do ano provocada por secas e chuvas, humidade e temperatura. Um lugar tem uma identidade diacrónica com características diferentes e uma personalidade próprias, variáveis ao longo do ano. Basta lembrar-nos da praia da infância como era quando crianças e de como ela agora nos surge. Há uma diferença abissal entre o modo como nos surge um lugar no Verão e no Inverno. Também nós somos diferentes na primavera e no verão, no outono e no inverno, na infância e na velhice.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt II [dropcap]O[/dropcap] corpo humano aparece-nos, ao longe, nas suas fronteiras físicas como qualquer outro corpo tridimensional, como qualquer planta e qualquer animal. Mas o aspecto relevante para o autor Hipocrático do acerca do ar, águas e locais, é a transcendência do ser humano para além das fronteiras do seu corpo. Não apenas temos uma percepção do próprio corpo dentro das suas fronteiras físicas delimititadas pela epiderme, mas temos uma percepção que vai para além das suas fronteiras: vemos para lá do globo ocular e ouvimos através das paredes, sentimos as fragrâncias no prado e não no nariz como o gosto da comida e não da língua. Mas não apenas assim. O plano de fundo para a existência do corpo humano meteorológica. É o clima do local em que vivemos com os seus ares e águas, é o dia como plano de fundo às horas do dia e à sua passagem, é a vida como plano de fundo às idades da vida e à sua alteração, é o grande ano da existência que serve de plano de fundo às estações do ano e à sua mudança. O corpo humano está exposto a diversas distensões temporais. O corpo humano em que cada um de nós existe, ou melhor, com o qual cada ser humano existe, é o tempo meteorológico. O ano meteorológico divide-se em horas ou estações do ano. O corpo humano existe na dependência do que se passa em cada estação do ano, na mudança de uma para a outra, a cada hora do dia, todos os dias da vida, em cada época da vida. O corpo humano existe neste espaço estrutural, com estas fronteiras no interior do horizonte temporal do ano como metáfora do tempo de duração pelo qual se estende a vida humana. Os autores hipocráticos dizem assim que a medicina tem de estudar a mudança de estações e as estações do ano para se perceber a alteração qualitativa que produzem nos ares, águas e locais. Esta alteração qualitativa dá-se mesmo no mesmo local geográfico. Esse estudo é totalmente relevante para a compreensão medicinal do ser humano, das doenças a que o que está exposto.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt I [dropcap]O[/dropcap] ser humano para a medicina antiga não era o corpo humano desligado anatomicamente do meio ambiente, do milieu físico, da Umwelt. Não é o interior somático delimitado pelas fronteiras físicas do corpo humano. Podemos conceber o corpo humano como a configuração mecânica com que nos surge. É como o aspecto físico que um profiler esboça a partir da descrição que alguém faz de um suspeito. Nesse sentido, as características: sexo, idade, etnia, compleição física, tamanho, envergadura, peso, altura, aspecto do rosto, etc., etc., são determinações que apontam para uma morfologia mais ou menos complexa, mas exterior do ser humano. A percepção do corpo humano é igual à percepção de qualquer corpo. Capta só superfícies, isto é, o lado visível do objecto dentro da nossa perspectiva. Não vemos nada do que está tapado. Para lá da epiderme não vemos nada. Nenhum horizonte interno é captado à vista desarmada. Assim, compramos roupa, ocupamos espaços públicos e privados, temos lugar ou não em transportes públicos, restaurantes, espectáculos, etc., etc.. É inegável que cabemos ou não cabemos com outras pessoas em aviões e que sentimos mais ou menos as dimensões simpáticas e acolhedoras do tamanho de apartamentos, roupa, camas, cadeiras, etc., etc.. Isto é, nós somos o tamanho do corpo que temos. Temos também uma percepção do que se passa no nosso interior. Sentimo-nos mais ou menos enfartados, pesados, leves, com o comemos, se muito, se pouco. Sabemos da nossa altura, se somos mais ou menos altos. Somos, portanto, o que achamos ser a configuração mecânica do corpo. O nosso corpo está continuamente sob acção de um radar interior. O corpo não se reduz nunca apenas a músculos, tendões, articulações, ossos, carne, órgãos e aparelhos. Há sempre um sobredeterminação funcional a dar sentido ao conteúdo estritamente percepionado. Sabemos como puxar e empurrar, agarrar e soltar, porque há uma acção do corpo todo, com uma maior solicitação de uns músculos do que de outros. A própria pele — que cobre toda a extensão do nosso corpo — sente-se diferente ao vento, ao frio e ao calor, dentro e fora de água. Sentimos também o bater do coração, o fluxo sanguíneo, a falta de ar, dores musculares e de cabeça, tudo no nosso interior por assim dizer. Não damos conta dos músculos solicitados habitualmente. Há actividades físicas que, às vezes, solicitam músculos que nem sabíamos que tínhamos. O texto sobre o ar, as águas e os lugares esboça uma concepção do corpo humano a existir para lá do interior das suas fronteiras físicas. O ser humano é mais do que um volume tridimensional. É mais do que um vulto com um determinado aspecto. Por um lado, cada pessoa é igual a si própria e diferente de qualquer outra. Cada um é como cada qual. Para a medicina, cada caso é um caso. Por outro lado, podemos apurar características semelhantes e diferentes entre indivíduos: rostos, compleições físicas. Um asiático é diferente de um europeu. Mas há asiáticos e europeus parecidos e diferentes entre si.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDesarrumações [dropcap]A[/dropcap] desarrumação é forma de disfunção. Não é só o quarto da infância que está desarrumado. Há muitas coisas sem rumo. Se desarrumar for impossibilidade de encontrar o rumo na direcção de X, Y ou Z ou na orientação por A, B ou C, não são só os objectos que estão desarrumados. Os objectos não estão no sítio certo ou no sítio habitual objectiva ou subjectivamente. Se livro estiver fora de sítio, está desarrumado, embora ocupe uma posição no espaço. Numa casa, as coisas têm sítios certos e muitas vezes diferentes, para as pessoas que habitam a casa. O açucareiro pode estar apenas a dois dedos de distância do sítio certo do açucareiro para alguém. Mas para uma outra pessoa pode estar perdido sem poder ser encontrado, porque uma pessoa não vai à procura de uma coisa num sítio onde ela não poderia estar nunca. Mas é a ideia de ausência ou de impossibilidade de rumo que importa perceber aqui. A desarrumação das coisas num quarto, em vários quartos, na casa de banho e na cozinha, em todas as divisões de uma casa podem tornar uma casa inabitável. Não é apenas o quarto que está desarrumado, quando todas as outras divisões podem oferecer acolhimento. É a casa inteira que não dá rumo à vida. Não se consegue trabalhar no gabinete de trabalho, não se consegue tirar um copo para beber água, porque todos estão acumulados no lava-loiças. Toda a loiça está suja e por lavar. E basta pensar que não falta a água por umas horas apenas e de que nos vale uma casa de banho? A casa toda afunda o rumo da existência. Nada pode ser usado. Torna-se disfuncional. Há diversos tipos de disfuncionalidade, claro. Para uma criança que mal ande a casa é diferente da que um adulto habita, bem como é diferente a casa para um sénior que já anda com dificuldades, o mesmo vale, é óbvio, para pessoas com deficiência. Os espaços têm de melhorar para poderem ser “vestidos”, “habitados” de modo funcional, para que as divisões ofereçam as possibilidades que habitualmente oferecem o melhor possível. Que bom que era ter casas excelentes, sempre arrumadas, a oferecer rumos, onde vamos para fazer o que lá fazemos ou só para lá estarmos. Mas também há formas de disfuncionalidade e falta de rumo, quando perdemos uma entrevista, quando perdemos uma consulta, quando não fomos a um encontro, por haver trânsito, por termos ficado a dormir, por nos termos esquecido. Tudo o que podia acontecer não aconteceu. Não se fala apenas de consequências. Fala-se de não ter havido X, Y e Z que poderiam ter acontecido. Em todas as formas de cancelamento, de falta de comparência, verifica-se também este não ter acontecido que não deu rumo, não abriu portas, não se sabe o que teria sido. É difícil invocar esses momentos, que ficaram vida fora. Podem ser muitos ou poucos, mas estão a constituir tensão na nossa vida. Pergunta-se o que faltou, o que não aconteceu, a que encontro não fomos, o que falhou? Mas pode não ser apenas a, b, c, d, ou tudo até ao z das oportunidades perdidas por falta de comparência. Tudo pode ser assim mesmo quando não falhamos em nada, tivemos sempre presença assinalada, fomos assíduos. Já não se percebe como é que a assiduidade nos possa marcar falta de comparência, como se lá tivéssemos estado mas tivéssemos sido transparentes e a oportunidade que estava em ocasião não foi vista e por isso não foi agarrada. O mesmo se passa com os dias perdidos. Quantos dias perdidos sem fazer nada? Quantas férias grandes a gastar tempo? Quantos dias? Poucos, muitos, nenhuns? Como na doença da infância, saímos para fora do quotidiano mais ou menos complexo da escola. Ficamos em casa, com quem nos tem em casa. Os dias são mágicos cheios de febre, cowboys, jogos, muito tédio. Os outros continuam as suas vidas na escola, nos ginásios, na saúde dos dias. Quando regressamos ganha-se de novo o fluxo do sentido da vida em direcção a exames, provas, que nos façam passar de um ano para o outro de épocas escolares para épocas escolares, tudo está regulado. Perdem-se os momentos mágicos em que o entardecer de inverno traz a chuva a bater nas janelas do quarto da infância. Quantos dias perdidos sem fazer nada? O que acontece quando toda a gente trabalha, exerce competências, desempenha funções, tem trabalho, tem vida, e nós não temos trabalho ou não queremos ter trabalho, e nada apetece? Pode ser uma vida inteira em greve de zelo, sem querer fazer nada, em desobediência total às regras que mandam trabalhar, à disciplina, ao cumprimento que nos faz não brincar em serviço. E pode ser uma vida ao Deus dará. Conheci algumas pessoas, não muitas, assim, quando o sentido da vida, o quotidiano tem precisamente esta forma de desobediência. Poderei dizer que há uma desarrumação ou disfuncionalidade, quando se sente a liberdade de alguém que é absoluto, que está absolvido das amarras dos outros próximos e afastados. Há seres impermeáveis a qualquer sociedade e não são foras da lei. São errantes, mas não são criminosos. Viram qualquer coisa diferente da que eu vejo, que não tolero um quarto desarrumado e quando não encontro um livro me apetece chorar depois de o ter procurado com o zelo intenso de um concupiscente? Sem nunca ter feito greve de zelo, sem nunca ter desobedecido, tendo sido cumpridas todas as regras, trabalhando como se não houvesse amanhã também pode ser disfuncional, quando tudo parece ser sem rumo. O desenraizamento, a desarrumação, o desnorteamento dá-se quando todas as coisas, tudo sem excepção parece estar arrumado. Mas quando não chega um pensamento até nós, daqueles de que fala Hofmannsthal que é como uma jovem águia a voar, não até nós mas para nos levar nas suas asas, então, sim: tudo se sente desarrumado. E espera-se que de novo chegue esse pensamento como asas de jovens águias.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasLiberdade [dropcap]D[/dropcap]estino e fado são palavras muito antigas. O sítio onde se vai parar. A vida que foi predita. Se assim é, haverá margem de manobra para a escolha? Schelling diz o que Heidegger repete: deixar-se actuar pela liberdade. Ser livre é possível se temos um destino e um fado? Se temos uma destinação e uma predição como é possível escolher. Quantas vezes escolhemos na vida? Temos grandes superfícies para escolher o que queremos? Não queremos já antes de escolher? Podemos escolher vidas diferentes? Podemos fazer que o que não queríamos que acontecesse não tivesse acontecido? Podemos fazer acontecer aquilo que queríamos que tivesse acontecido? Lembro-me de, quando a sul, em Agosto, via uma estrela cadente. Pedia-se um desejo. Eu sei o que pedia. O mesmo se passava, quando soavam as doze badaladas na passagem do ano. Engolíamos doze passas e pedíamos um desejo. Eu sabia o que pedia. Pedir significa que não temos escolha. Gostaríamos de ter o que não temos ou ser quem não somos. Ainda. Há grandes escolhas na vida que estão feitas para nós. Assim, não as escolhemos: mãe e pai, família, país, época do ano em que nascemos, amigos que encontramos, gostos, desportos se for caso disso e livros que é o caso. Sem ler não há viver. Mas como se fazem as pequenas escolhas? Como é possível escolher? Sobretudo, quando podemos perder e dizer não ou não dizer sim? Lembro-me muito bem de como, infante, não queria estar no próprio corpo nem fazer o que me diziam para fazer ou então só viver a vida que viviam para mim. Como ser livre? E como ter uma ânsia de liberdade? O que é ser livre se somos obrigados a ser livres? Querer uma coisa implica trabalho. Os gregos achavam que se queríamos alguma coisa ela não viria sem trabalho. Hércules e Jasão ou Perseu, o meu herói de sempre, sabiam disso. Para libertar uma mãe, um País, ou alguém ou até só o próprio. Ser livre é também livrar-se de qualquer coisa ou do alguém que não gostamos de ser. Como nos libertamos para nós próprios? Como pode o rei Édipo não se cegar, depois de partilhar a cama com a sua mãe e matar o seu pai? Como podemos nós não ser quem nós somos, quando não queremos ser os próprios? Os próprios são os outros que somos. Temos um apego a nós e não queríamos ser outros. Contudo, a vida pode ser outra, diferente, um mega gato que não quer e nós não somos donos de nada. Quando aparece um amor, é uma escolha? É a possibilidade de ser livre? Primeiro, há a beleza, que tanto queremos ter por perto. Depois, a liberdade política, deixar e querer ser livre, fazer livre. Depois, talvez a morte, quando não temos escolha. Mas a vida é para a escolha. Tanto que morrer pode ser opção. Ficar livre de si para sempre. Ou assim Hamlet pensa. Ser ou não ser, não ser é ser ainda do lado de cá da vida. O acto criativo por mais mínimo que seja é o que liberta. A gentileza liberta. A amabilidade liberta. Mas um poema alinhado ou então uma canção que se diz a medo também liberta. Um beijo liberta. Um livro lido ou ensaiado liberta. E passamos a vida inteira a ser o que os outros querem que sejamos ou então só nós para nós. Muda de vida! Como se pode mudar de vida? Só numa escolha complexa. Não é intelectual. É prática. É ser a fazer. Quem não faz o que é não compreende o que é para ser. Quem não compreende não explica. E queremos que tudo seja diferente ou que tudo seja exactamente como é e tem sido até agora. Que escolha? Como escolher quando não se pode escolher? Só escolhemos quando não podemos ser o que somos ou não queremos ter o que temos? Há uma ânsia de liberdade que é uma ânsia de amor. A verdade há-de nos libertar. A verdade revela-se. Ser outro, ser diferente, ser de outra maneira consigo e com os outros. O mundo é outro quando o amor se revela. Uma estrela dançante ou cintilante ou atirada para o céu, quando todos os outros estão aí connosco e saem de cena ou entram em cena. Como gostaria de compor um poema, quando o poema vem e pede para ser escrito. Como eu gostaria de compor uma canção no trânsito quando pede para ser cantada. Como eu gostaria de ensaiar um pensamento quando ele se forma tão consistente à espera de ser pensado e dito. Ou só ter uma rapariga. Falar com ela à beira mar, mesmo quando é inverno, entrar pelas águas frias da Fonte da Telha. Falaríamos dos nossos pais e lutas e futuro. Escolher é ter futuro. Não. Escolher é fazer o futuro. É tão bom não estar só e não ser só. E ver alguém que connosco é livre. Ser livre é também ser feito livre. Ser livre é libertar. Como o combatente que não mata para matar mas para libertar pessoas. O amor, a verdade, são os elementos da escolha. Sem escolher não somos. Não há igualdade de oportunidades. Há uma talvez. E escolher faz de nós quem somos. Somos o que escolhemos. E se for em nome do amor, então, fomos!
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPara o Diogo Calado [dropcap]É[/dropcap] do fundo dos tempos que vem a relação do ser humano com a luta. A palavra “agonia” dizia o lugar onde as pessoas se reuniam para assistir às competições entre atletas pela disputa de um prémio. Hoje, a palavra está reservada para o derradeiro combate que se trava contra a morte. As competições desportivas entre os gregos eram uma disputa mortalmente séria. Lutava-se pelo título, mas, sobretudo, pelo prestígio, porque os atletas, os competidores, representavam uma casa, uma família, um estado. Competir era ter a possibilidade de inscrever o seu nome no livro dos vivos. É sobreviver, de alguma maneira, à lei da morte. A morte em combate é o ideal orientador da disputa e o gatilho da violência máxima. Embora haja apenas relatos de quatro mortes em combate desde o ano 550 até 110 a.C., a própria lei ateniense reconhecia morte em combate como não intencional e, portanto, involuntária. Não admitia abertura de processo nem, por isso, condenação e castigo. Dito isto, ninguém se apresentava para disputar uma competição sem estar absolutamente bem preparado. Todos os rapazes nascidos livres tinham algum tipo de treinador: um pai, um irmão ou um estranho, seja contratado por um dos pais ou compartilhado com os outros no ginásio. Além disso, nenhum rapaz, por mais aristocrata que fosse, poderia disputar a competição pan-helénica em boxe, luta, ou o pancrácio, sem uma preparação competente. E longa. Não eram poupados gastos para se poder ter o melhor treino possível. Mas é como laboratório da vida que importa tentar perceber o que estava em disputa num combate. Demos a palavra a Platão: “Se fôssemos boxeurs, deveríamos ter estado a aprender a combater, muitos dias antes do combate e a trabalhar no duro, praticando em mimetismo todos aqueles métodos que pretendemos empregar no dia em que estaremos a lutar pela vitória, e imitando a coisa a sério da melhor maneira possível: assim, deveríamos usar luvas acolchoadas em vez de luvas usadas no ringue, para obter a melhor prática possível a dar golpes e a evitá-los; e se por acaso não tivermos companheiros de treino, […] se alguma vez estivéssemos num deserto, e sem companheiros de treino, não poderíamos recorrer à luta de sombra do tipo mais literal, contra nós mesmos? Ou o que mais adequadamente se deveria chamar à prática da postura do pugilista?” (Platão. Leges 830a). Píndaro, o grande poeta lírico grego, entretece com cada descrição do que objectivamente se passa num combate um saber sentencial. A “moral da história” pode ser folclore nacional ou a forma mais ou menos popular com que sobrevem um pensamento. É da profundidade abissal da vida que se projecta a própria compreensão de um sentido para o combate. Não é um sentido óbvio, mas faz vibrar quem se encontra no ringue, quem assiste ao combate, quem lê sobre ele. Nada, nunca, é apenas o que acontece no momento em que a prova tem lugar. O dia do combate é a cabeça de um cometa que traz atrás de si a cauda de dias e dias, meses e anos, até décadas de preparação. E joga-se a vitória ou a derrota. Joga-se um modo de vida, aquilo com o qual alguém se relacionará para sempre depois de ter acontecido. Pode ter repercussões para a vida inteira, podemos ficar presos de derrotas e de vitórias. Também podemos não fazer nada de vitórias passadas e as derrotas poderão estar à nossa espera na hora da nossa morte. Tal como na vida, a preparação é ao mesmo tempo que a disputa. Na citação conhecida de Samuel Butler: “a vida é como executar um solo de violino em público, aprendendo a tocar o instrumento ao mesmo tempo que se toca”. Tal como o passo de Platão, a preparação é feita com vista à antecipação de todos os cenários possíveis, da esquiva ao contra-ataque, de todos os golpes que se possam desferir, trabalhados isoladamente e em encadeamento. Procura-se antecipar as acções possíveis do combatente do outro canto. Todo o treino, dieta, descanso tem em vista a disputa. A disputa tem em vista a vitória. Um combate não é um acto isolado. Quantos combates pode um combatente disputar na sua carreira? Quantos terá perdido. Ali, um dos grandes, para alguns o maior boxeur do século XX, perdeu cinco dos seus 61 combates. Parece impensável que os grandes combatentes não tenham permanecido invictos. Mas, na verdade, se o ringue for como a vida, é provável que coisas improváveis aconteçam e que numa saraivada de golpes ou num só, inesperado, as luzes se apaguem, e acordemos sem ter acompanhado a nossa própria queda. Aprende-se com a possibilidade da derrota, como se aprende com a derrota. Uma derrota é um desfecho de um combate, como a vitória, se excluirmos o empate. A derrota não existe para qualquer um. Só quem disputa a vitória pode perder. Só quem disputa a vida pode viver. Os gregos não achavam que tínhamos um lugar garantido na vida. Só alguns o poderão encontrar. “Só um homem que sabe o que é ser derrotado pode atingir o fundo da sua alma e erguer-se com um grama extra de poder capaz de o fazer vencer quando o combate está empatado.” (Ali)
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA linguagem I Noite de inverno Georg Trakl [dropcap]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela Tocam, longamente, os sinos. A mesa está pronta para muitos, E a casa está bem arrumada. Alguns chegam à porta, Pelos caminhos sombrios da peregrinação. Dourada floresce a árvore das bênçãos, O suco fresco que vem da terra. Caminhantes entram em silêncio. O limiar petrifica a dor. Aí, num clarão puro, reluzem Pão e vinho sobre a mesa. Ao comentar este poema de Trakl num ensaio, a Linguagem (Die Sprache), Heidegger faz a aproximação em várias frentes ao significado da linguagem poética de Trakl. A poesia usa a língua mas não para designar factos. Mesmo os factos têm sentido. Há uma diferença entre dizer que as temperaturas serão baixas e cairá neve numa noite de inverno, e o chamamento da noite de inverno. Há uma diferença entre o conteúdo de um boletim meteorológico e a vivência, a experiência que se faz da noite de inverno. A poesia chama à palavra. “Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade.” O chamamento convoca. Mas para onde? Pergunta H.? Para nos levar até ao longe ou trazer o longínquo até nós. Este lugar, onde o que é chamado permanece ainda, existe, não enquanto presença, mas “na sua ausência.” O lugar do longe não é espacial. Não é uma casa particular, numa localidade de uma região. Não é também o lugar do tempo unilinear do passado. Pode até dar-se o caso de nunca termos vivido uma noite de Inverno debaixo de neve. Este aí é multidimensional e não tem necessariamente referente. As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são nem fácil nem imediatamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é uma mera expressão de factos reais e objectivos, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes. Existe como condição de possibilidade de transformação da própria realidade. A realidade dos factos existe apenas, depois de se haver neutralizado todo o potencial de significados. O facto como facto ocorre sempre já num acontecimento de sentido. Há, por isso, significado. Não, factos. A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos. A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos fora da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDina Pedro da Dinamite Team [dropcap]Q[/dropcap]uem sobe a um ringue, tem as maiores expectativas, a da vitória. Um ringue é um laboratório vivo da vida. Quando um dos meus sobe ao ringue, eu só penso na sua vitória, por ele, pela minha Mestra, pela sua família e seus amigos. Quando alguém sobe a um ringue para combater só tem um pensamento na sua cabeça, a vitória. Se eu pudesse, fazia que só os meus ganhassem, mas há o combatente do outro canto, também tem a sua disciplina, a sua treinadora, a sua família e os seus amigos. Se eu pudesse, só os meus ganhariam. Não se pode entender mal o que eu digo. Não aposto por dinheiro. Aposto o que os meus apostam. A vida toda. A vida toda não é a preparação para um combate. Tenho assistido a meses que se estendem por anos. Quando vemos um combatente treinar, só podemos acreditar nele, na sua técnica, na sua dieta, no seu sono, no seu treino. Nem nos passa pela cabeça que são corajosos. Parece que não sofrem nem com o treino, nem com a dieta. Muito menos, parece que sofrem com a dor física. E a dor física é de toda a espécie. Não é só a aceleração, não é só as horas sem descansarem bem até regressarem ao treino. É a dor que é tão aguda que só a adrelina a sufoca. Não é que não haja dor ao sofrer um golpe. Até pode parecer que se sofre, mas é mais a consciência de se ter perdido. Não há dor. Há outra coisa. A compreensão de que o corpo apagou. E se não apagou, a mente já não vai buscar nada ao corpo. Podemos achar, quem vê de fora, que há violência. Violência há com armas e haveria se um fosse treinado e o outro combatente não. Temos dois combatentes que não lutam um contra o outro, mas um com o outro. Se tudo tiver sido como mandam as regras, treinaram. Estão um para o outro. Mas eu tenho os meus e os outros terão os deles. Eu pensava que os meus não perdiam. Mas como não? Todos nós perdemos algures, em algum tempo na vida, com quem merecemos perder e com quem não merecemos perder. No knock down vai-se abaixo. Há contagens. O combatente ergue-se. O que achamos nós que lhe passa pela cabeça? Não é perda. Quer-se erguer, quer ficar de pé, mostrar as luvas ao árbitro, mostrar que está apto a continuar. E quer continuar. Não, não pensa na dor, não pensa na família, não pensa na treinadora, não pensa em si. Sim: pensa em tudo, em todas as pessoas que o levaram ao ringue. Alguém no canto diz-lhe para respirar, para fazer a contagem: um, dois, três, quatro, cinco, seis, aos sete tenta levantar-se e levanta-se. Podemos pensar que fica ali, queremos que fique ali, porque somos a mãe ou o pai ou a namorada ou o namorado. Mas a nossa treinadora diz coisas incompreensíveis para o público e para o outro canto. Diz qualquer coisa simples como: respira, levanta a guarda, bate com a perna esquerda no lado de dentro da direita, fica com a guarda alta. O segundo round ecoa. Depois das miúdas anunciarem outro round. Ninguém vê como são belas. Não há sexo dentro de um ringue. Há a disputa da vitória. Há a liberdade para se disputar a vitória. Há a competência que quer a vitória, porque se é livre. O que se quer é a liberdade. Ninguém consegue perceber um combatente se não compreender que quer ser livre. A vitória é a liberdade. A dor não existe. Existe depois, se calhar. Mas os combatentes querem a vitória porque decidiram ser livres. Pode ser um sonho de infância, mas nunca é um sonho negativo. Nunca ninguém ganha por raiva. Só se ganha por… amor. Um combate é um acto de amor. E tu vais ao tapete. É a segunda contagem. E levantas-te. Um, dois, três, quatro, cinco, seis… E lembras-te do que te disse a tua treinadora. Levanta-te com tempo. Toma o teu tempo. E lá está outra vez o teu oponente. Pode parecer maior do que tu, mas tu não queres que nada acabe. Não tens tempo, agora, para que o combate acabe, queres que continue a eternidade, porque tu sabes que tens a técnica, a coragem. E vais de novo ao tapete. O árbitro dá-te a terceira contagem. Não foste ao tapete de qualquer maneira. Do outro lado, comemoram a vitória. E tu bates palmas ao teu oponente. A vida é celebrada. Lembras-te de todas as vezes que venceste. Sobretudo, uma vez mais, lembras-te do que pensaste quando perdeste da última vez. “Segunda, quando tiver lambido as feridas do meu corpo e, sobretudo, as da minha alma, regresso aos treinos.” E os treinos são no local sagrado, onde vais voltar a perder peso, fazer dieta, treinar. E a tua treinadora diz-te: “acredito absolutamente em ti, querida, querido”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDia da mãe. [dropcap]T[/dropcap]inham-te deixado no princípio da floresta com um machado e uma ração de sobrevivência. Disseram-me. Tinha perguntado por ti. Tínhamos estado todos juntos num treino antes do Natal, como fazíamos sempre. A tua flexibilidade e plástica deixavam ver como eras. Tinhas fundado uma empresa. Tu e o teu irmão. Vendias para a Europa toda e para a América. Era uma aplicação de sucesso. Tu e o teu irmão eram três com a vossa mãe. Combatíamos as lutas nipónicas. Vivias à distância do tempo dos estágios de Karaté. Outrora, Cascais e Lisboa ficavam quase à distância do tempo entre o fim das férias grandes e o seu início. Quando nos encontrávamos, sempre com o Mestre Raul a orientar o estágio e o Mestre Haradá, medíamos forças, sobretudo técnica. Quando éramos miúdos, ficávamos sempre à espera de quem vinha de onde. Nós, os de Lisboa, éramos do Judo Clube. Vocês vinham do Dramático de Cascais. Um Mestre, uma prática, um sentido, no Dojo. Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Não percebia bem por que razão. Entretanto, ganhavas cintos negros como quem os merece. E tinhas uma aplicação: tu, o teu irmão, e a tua mãe. Víamo-nos duas vezes por ano. Punhamos à prova técnica, porque a coragem estava garantida. O Karaté era a nossa disciplina. O tempo passava durante décadas, desde que éramos miúdos. Púnhamos tudo em causa. Procurávamos a eficácia. Antes, era a beleza das formas ancestrais. Depois, acháramos que era a eficácia. Os judokas diziam que a eficácia era medida pela projecção. O karaté tinha o controle. Falávamos da tua agricultura e eu da minha filosofia. Um dia encontramo-nos num casamento de um amigo. Tu tinhas a tua aplicação vencedora na empresa da mãe do teu irmão e tua. Vendias por toda a Europa. Tinhas perdido o pai, mas a nossa prática era o teu mundo. A maneira como punhas o teu mawashi, perna direita e perna esquerda, à altura da cabeça de quem quer que fosse que te defrontava era exímia. Mas nós falávamos do que era a técnica que tínhamos visto e que nos formara. Nós tínhamos sido formados pela técnica, pelo Do, pelo caminho. Tínhamos sido miúdos no Tatami. Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Tu que eras o grande mago das pernas que batem sem armas. A tua plástica era a coreografia antiga dos velhos mestres que tínhamos visto. Antes mesmo de tudo, havia o que procurávamos. Fomos a tantos estágios e a tantos sítios. Falávas-me da tua mãe. Mãe única que te tinha ficado. O teu pai tinha partido cedo. Dizias que era a tua herança: praticar Karaté. Vinha do Mestre Raul Cerveira. O Mestre era comum. A tua mãe tinha-vos criado. Sofria de dores agudas de uma e de outra pernas. De manhã, fazias café. O teu irmão vivia com a mulher e tinha filhos. Tu cuidavas da terra e da mãe como quem cuida da mãe. A tua mãe era a terra. Vivias momentos felizes: entre os teus mawashi geri’s, o sucesso da tua empresa, a amizade com todos os que se confrontavam com mãos e pés nus. A tua mãe cuidava de ti como tu cuidavas dela. Às vezes, poucas, falavam do pai, do teu pai e marido dela. Saudades não se sabe bem de quem, porque eras miúdo quando ele partiu. O teu irmão nem se lembra dele. Tem uma ténue imagem dele em ti. Os teus amigos estavam sempre em Karaté Gi. Ele era e foi um grande irmão. Amavas o teu irmão como ele te amava a ti. Eras tu, o mano, a mãe. A mãe adoeceu. Deixaste de aparecer aos estágios. Não sei se ias treinar. Mas tinha sido uma doença dura e severa. Tu, o mano e a mãe fizeram um pacto. Ficariam juntos sempre até que alguma coisa acontecesse. Estava a acontecer. Os estágios, a agricultura, o mano, tu e mãe ficaram envoltos num todo confuso. Mãe, perguntavas tu, como estás hoje? Hoje, estou bem. Mãe, perguntavas tu, sempre, como estás. Esperavas que ela te mentisse o melhor possível. A mãe não te enganava. Tu já não querias e não deixavas que te enganasse. Tu, o mano e mãe jantavam pelo menos três vezes por semana, mas eras tu quem estavas com ela, que a levavas às compras. Depois, ajudava-la a subir as escadas, fechavas as portas dos armários e, quando precisavas de trabalhar, fingias que não a ouvias. Às vezes, não eras tão gentil como querias. Disseram-me que te tinham deixado numa mata, uma floresta espessa. Ficaste com um machado e uma ração para uma semana. Haviam de ir-te buscar. Perguntei por que razão. Disseram-me que não aguentaste a perda. Toda a tua força da infância e juventude, todos os teus combates, tudo o que tu tinhas aprendido, tinha-te ditado o destino. Quando viste a tua mãe morrer-te, apertada no vosso abraço, tão apertado que a asfixiariam, se não estivesse já morta – era para a manterem viva — soubeste logo o que fazer. Quero que me deixem na mata mais virgem que houver. Quero que me dêem as árvores mais nocivas e cheias de vida. Com o meu machado irei sem comer nem dormir desbastar o mundo até criar de novo a minha mãe.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasLiberdade. I [dropcap]A[/dropcap] liberdade humana é uma das três ideias reguladoras do pensamento kantiano com a imortalidade da alma e Deus. Ser livre, ser imortal, ser em Deus entroncam no mesmo acontecimento da vida. Enquanto ideias localizam-se no espaço estrutural da razão, acima do entendimento e da sensibilidade. Uma leitura adolescente de Kant pode dar a sensação que o acesso ao mundo, proporcionado pela nossa perspectiva, produz, primeiro, sensações a partir da matéria dada pelos objectos perante nós. As primeiras impressões que teríamos do mundo seriam os aspectos dos objectos a partir do seu exterior mais ou menos confuso, sem fronteiras definidas dos seus contornos. A matéria da sensação está distribuída por todo o espaço. Cada ponto de cada matéria de cada sensação estaria constituído por relações espaciais: dentro e fora, próximo e distante, à direita e à esquerda, em cima e em baixo. A cada ponto no espaço poderiam corresponder diversas matérias: cor, textura, figura, forma, som, volume, qualidade de som, textura táctil, temperatura, humidade, rugosidade, lisura, fragrância, paladar. O tempo coordenaria a simultaneidade dessas qualidades sensíveis num mesmo foco de irradiações, desde o centro até à periferia, numa sequência da coexistência de todas as matérias possíveis de um objecto. Um só objecto do mundo estaria assim numa sequência a coexistir com todos os outros objectos do mundo. A sequência permite perceber o aparecimento de objectos, a sua duração, o seu desaparecimento. A sequência permite compreender a distribuição dos pontos imaginários do espaço a coexistir entre si em simultâneo, ainda que as simultaneidades possam não ser percebidas a não ser em sequencias. A própria sequência integra simultaneidades. Num segundo plano, encontra-se o entendimento com as suas categorias, que permitem compreender identidade e diferença, quantidade e qualidade, existência, possibilidade e necessidade, o comércio entre substâncias entre si e as suas acções recíprocas, causa e efeito, acção e paixão, etc., etc., etc.. Só num terceiro plano, encontramos as ideias, designadamente, a da liberdade humana, a da imortalidade da alma e a de Deus. Ou seja, de certo modo, a leitura desatenta seria uma elevação de planos que estão relacionados uns com os outros numa ascensão do plano elementar de contacto com os planos seguintes, até ao plano da razão tal que do cimo da sua altura se poderia ver o do entendimento e o da sensibilidade. Mas o nosso plano é o da razão. Lidamos melhor ou pior, de uma forma ingénua ou séria, com a possibilidade da liberdade, da existência imortal da nossa alma, com a possibilidade da existência de Deus. Kant acentua a antinomia destas ideias. Não conseguimos provar a existência de Deus. Ou antes, podemos provar que Deus existe e que Deus não existe. A fé que faz crer põe Deus a existir. A relação com o objecto Deus pode ser de tal forma que não se quer crer que exista. O ateu é negativamente religioso, como o crente é dogmaticamente anti-céptico. A indiferença relativamente à ideia de Deus é filosófica. Compreender um começo, um momento em que se deu a criação de todas as criaturas é equivalente a não compreender como tudo começou. O mesmo se passa com a possibilidade da eternidade. Ou será que estamos condenados a um fim inexorável para todas as coisas e até para Deus? Há sentido ou não para tudo em geral? Estas perguntas, diz Kant, andam à volta na razão humana ou nós andamos à volta com elas, mesmo que com formulações diferentes. Mais tarde ou mais cedo na vida debatemo-nos com elas. Um dia enfrentamos a morte do outro que nos é querido, em antecipação e depois quando ele já partiu. Conversamos com os nossos mortos. Não os deixamos ir ou eles não desaparecem ao longo da nossa vida. Estão presentes, quando falamos sobre eles, até com quem nunca os viu. Arrostamos também com a nossa própria morte, a precariedade existencial da vida, a doença, a impossibilidade, o seu carácter caduco. A imortalidade da alma é uma formulação para as nossas preocupações com o carácter finito do tempo deste lado da vida, neste mundo aqui. Projectam-se sonhos possíveis de uma existência que nunca acabasse, de que as vidas dos outros que morreram continuasse, de que existíssemos para sempre. Mesmo que possamos compreender que tal é impossível, namoramos a ideia de existirmos para sempre, temos pena de que os outros reais partam como temos pena da morte dos outros todos, da sua passagem para o possível reino do impossível, de onde ninguém regressa, como pensamos eufemisticamente. A liberdade humana situa-se assim numa relação íntima com a possibilidade da existência do criador, do criador da vida, do autor da sua manutenção, do portador do sentido, inteligibilidade e compreensão de tudo quanto existe. A liberdade humana situa-se entre a mortalidade e a imortalidade da alma. Como podemos ser livres, quando sabemos inexoravelmente que vamos morrer, que estamos continuamente a morrer? Como podemos viver à vontade, estar à vontade, quando os outros todos aí se encontram no mesmo processo de perecimento, estão a finar-se sem apelo nem agravo? É do nó complexo e cego destas ideias que parte a interrogação filosófica. Somos nós os interrogados. Não somos nós a fazer a pergunta. A interrogação acontece. Alguma vez na vida, talvez com formulações diferentes pensamos o que seria se os nossos pudessem continuar vivos e os dias da infância se perpetuassem e houvesse uma repetição contínua para sempre? E Deus existirá para nos consolar pela perda da nossa vida? Porquê nascer, então, se estamos condenados à morte? Ou será que vou continuar só como alma sem corpo? A razão e a ciência poderão dirimir estas preocupações? Poderei eu ficar sossegado e tranquilo com as suas verdades?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasObituário. [dropcap]A[/dropcap]pagaste-te nesta Páscoa. Não sabíamos de ti. E. ligou-te muitas vezes desde quinta-feira santa até Domingo. Talvez tivesses ido à pesca. Foste até aos noventa. É muita maré. Lembro-me daquela rua. Não era bem uma rua. Era um caminho. Fomos vizinhos durante muito tempo como se fosse uma comunidade. A princípio, encontrávamo-nos só no verão, quando éramos jovens imortais. Depois, quase todo o ano, durante alguns fins-de-semana. Sempre tinha havido os muito velhos, aqueles que tinham um quotidiano moderado, sensato. Ou então se calhar era outra coisa, era a velhice a “dar-lhes” já. Que é feito dessa gente? Pouco menos de vinte anos tinha eu e eles eram já tão velhos. Subsistem ainda na minha memória, mas não podem continuar ainda vivos. Revisito esses tempos. Lembro-me da rua antes de ser habitada, quando ainda era só um pinhal, prestes a ser colonizado, como se fôramos colonizadores do Sudoeste português. Estava deitado numa cama de rede. Olhava o céu azul, plano de fundo para árvores recortadas nas suas formas. Eram castanhas, quase negras, e verdes. O que se vê a olhar o céu é virgem. É igual ao que tantas gerações de homens viram, sem fios ou parabólicas, postes de electricidade ou o que tiver sido feito pelo ser humano. Tive essa percepção. A natureza tem outro tempo e outra história, diferente da do ser humano. Antecipei o que aí vinha. Ano após anos viríamos de férias, haveria festa e romance, descanso. Os pais tinham uma outra experiência de férias. Os miúdos viviam as férias grandes do mundo. E vieram anos atrás de anos. Sestas dormidas e mergulhos dados, bebedeiras e romance. Aprendizagem difícil de ser-se fora de si e ao mesmo tempo estar-se em si, ser-se o próprio, o único com quem se tinha intimidade e ao mesmo tempo aquela remissão ancestral, arquetípica, primordial e proto qualquer coisa que nos atirava para o outro, a outra pessoa. O desejo que nascia e não era um acrescento, algo que queríamos ter a mais. Era a falta de outra pessoa, a falta inteira de sermos outros, uma outra versão completamente diferente de nós mesmos e que passava pelo outro que queríamos encontrar e só inventávamos no sonho. Era isso que eu via a olhar deitado de costas o céu azul, plano de fundo daquela percepção com formas de árvores, pinheiros e eucaliptos. Era o princípio informe de qualquer coisa que iria acontecer, a história, a minha biografia. Tudo aquilo iria transformar-se com os 15 anos que viriam e depois os 16 e os 17 com fim do liceu e a faculdade. Tudo a perder de vista, perdido da vista, longe da vista, estava já naquela percepção daquela tarde do início de Agosto em que a nossa rua não existia ainda. Os dias seguir-se-iam. Depois, o tempo entre o fim das férias grandes e o princípio das férias do ano seguinte. Amizades que se mantinham à distância temporal de um ano. Sentia-se a transformação. Ela ligou-te para te desejar boa páscoa. Começou a ligar-te na quinta-feira santa e continuou até Domingo. Já não nos víamos há algum tempo. O tempo passa. Já não há a nossa rua. Desfizeram-na, quando transplantamos as nossas vidas para outras ruas e as casas foram dadas ou deixadas ao abandono. A rua já nem sequer é insólita como nas noites de inverno, despovoadas de gente, vividas a pão e vinho e conversa. Aquecíamo-nos como podíamos. Ainda tínhamos tempo. Ainda viria um verão e outro. Depois, os velhos começaram a morrer. Os outros, os das outras famílias. As casas, pouco a pouco, começaram a ficar desabitadas. Primeiro, ainda bem conservadas. Algum dos mais novos vinha e ainda passava lá um fim de semana, limpava a casa, fechava a casa. Era uma casa habitada mas pouco frequentada. Os mais novos emigraram ou perdiam o interesse, deixavam de pagar a renda ou esqueciam e abandonavam as casas. Abandonar uma casa é abandonar uma legião de famílias. A casa esperava as famílias o ano inteiro e despedia-se delas no fim do verão. As casas ficaram decrépitas. Mais velhos morreram. A maior parte dos jovens envelheceram e quiseram ir viver para outras ruas, outros bairros, outras vilas, outras cidades. Tudo envelheceu. Já não testemunhei a vinda de mais novos. Também acabei por fazer o que fizeste. Não emigrei, mas dei a casa. Ninguém ma comprava e para não a deixar abandonada, dei-a a quem mais precisava. Foi um descanso. As memórias seriam intoleráveis. Preferi lembrar-me da casa desde o primeiro dia até ao último dia. Foram mais de três décadas felizes. Vivas dadas ao Verão e o gosto por regressar para a rentrée. Telefonei-te para te desejar boa páscoa. Estaríamos lá naquela rua se fossem outros tempos, quando era o princípio antes de estar definido e quando começou a estar definido. Os tempos da estabilidade quando eu próprio deixei há já muito os meus 14 anos. Alguém atendeu o ™. Era uma sobrinha tua. Disseram-me que foste ao hospital para um exame de rotina. Abriram-te. Fecharam-te. Duraste mais três dias e morreste. Ressuscitaste escandalosamente para mim, que não te via há quase cinco anos. Não ver alguém é deixar alguém no campo de latência que é idêntico à morte. Ressuscitaste-me também aquela rua onde passamos férias durante mais de três décadas. Vi-a, como se fosse daquela primeira vez, sem casas, nem pessoas. Só o céu azul e árvores. A floresta tornara-se virgem, de novo. Nunca nada nem ninguém testemunha a nossa infância ou juventude ou idade adulta já. É tudo como se não tivéssemos sido. Quase como se não tivéssemos sido. Agora, tu habitas em mim esse olhar. Não és visto, mas vives comigo no meu olhar. É um olhar à distância. Não é perceptivo. Nem é só o da lembrança. Sou eu no meu futuro despovoado de ti, mas a fazer vida ainda.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDiários Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê. Camões. Não Pode Tirar-me as Esperanças. In “Sonetos” [dropcap]A[/dropcap] inquietação provoca a insónia. Noite longa não dormida. Depois, ao longo do dia: inquietação, ansiedade, angústia, preocupação. O corpo tenso, enervado. Não se consegue estar sentado. Tenta-se ler em voz alta pela casa toda. Dá-se um esforço tremendo à procura da concentração. Que métodos os monges Zen terão desenvolvido para poderem concentrar-se? Perda de acuidade de atenção. De novo a tensão. Não há nunca nestes dias relaxamento descontraído. Um diário pessoal não pode ser apenas uma agenda das coisas que têm de ser tratadas pela nossa acção nem uma acta de coisas tratadas. Uma agenda pessoal virtual ou no papel não tem apontadas as nossas maiores preocupações. É para não esquecer, claro, que apontamos na agenda o que há para fazer: marcações de consultas, encontros mais variados profissionais e pessoais. Não marcamos tudo. De resto, podemos falhar a encontros ou consultas que estão marcados na agenda, como podemos não nos esquecer do que não marcamos, porque está tão presente que não carece de marcação. Há uma agenda pessoal a partir da qual, depois há agendas virtuais e físicas. O lance diário traz consigo as preocupações presentes que vêm dos últimos dias ou das últimas semanas, meses ou até anos e décadas do passado. Distribuem-se não apenas num só dia, mas por vários dias, semanas, meses, semestres ou como podemos organizar o nosso ano, que pode ser lectivo, civil ou religioso ou só assim como quem não quer a coisa. Podemos também não ter nada para fazer e ter dias de lazer, fins-de-semana prolongados, feriados ou férias. Durante esses períodos de tempo da vida há uma espécie de suspensão de quem somos enquanto somos o que fazemos. Há um intervalo de tempo, uma pausa, uma paragem em que o dia-a-dia vem da agenda do tempo de lazer. Ir às compras, ir à praia, ir para o campo, ler, ouvir música, ver o pôr do sol. Diferente de exercer funções ou cargos, realizar tarefas, cumprir prazos. Mas o lance diário começou antes do próprio dia ou da hora quando começam as consultas ou os encontros ou as outras marcações. Tudo começa antes do seu início com uma antecipação que pode ser de meses, que é quando marcamos as coisas, às vezes só na nossa cabeça. A lembrança é para memória futura. É agora que marco coisas para a tarde, quando é de manhã, para amanhã, fim de semana desta semana ou para as próprias semanas. Hoje, está já a ser vivido como o resultado de intenções gizadas que se projectaram para um futuro que agora é realizado. Somos o resultado do projecto de intenções que nos lançam para o dia de hoje, que começou lento ou rápido, com o pequeno almoço, a vinda para o local de trabalho, o início do exercício de funções. Trazemos connosco também o resultado por mais provisório que seja dos últimos meses: pessoas com quem vivemos e existimos, trabalho realizado. Hoje é já diferente do dia do calendário no ano passado, eventualmente no mesmo local e à mesma hora. Hoje é o resultado de um lance que se pode ter aberto num qualquer dia de Verão do ano passado ou de há muitos anos, muitas décadas, antes mesmo de compreendermos bem quem somos ou o que fazemos ou quais são as verdadeiras intenções da vida para nós. Hoje, abre também um futuro intencional que configura várias possibilidades ainda só em intenção, mas já com a abertura à possibilidade real e efectiva do possível que é possível, diferente de um sonho que se desfaça como uma vaga apaga desenhos na areia. O nosso diário teria de ser de uma natureza diferente de uma mera recensão das coisas que fizemos ou que poderíamos ter feito. Encontros a que fomos. Encontros a que faltamos. Consultas marcadas e em que estivemos presentes ou as que faltamos. Aulas dadas e tidas. Aulas faltadas. Espectáculos a que assistimos e aqueles a que não assistimos. Mas a nossa agenda teria de ser no condicional. O que poderíamos ter feito e não fizemos. O que não poderíamos ter feito e foi o que fizemos. O que poderíamos ter sido e não fomos o que não deveríamos ter sido e acabamos por ser. A possibilidade de inflexão. A possível reversão do que parece estar destinado e, tão petrificado que não muda nunca. É como se houvesse uma intenção por vida. Cada pessoa tem de lidar com a sua aspiração. Somos o desejo que é como quem diz a falta que sentimos de algo ou de alguém. Somos o desejo de nós próprios que é como quem, então, pode dizer a falta que sentimos de nós próprios, a carestia de um si que não foi e que não pode ser já ou ainda pode ser. Cada pessoa é esse trajecto de uma estrela cadente, como dizia Platão, atirada para o cimo em direcção ao alto e a riscar o céu. A antecipação do que está para ser e por ser e a que damos início não é nossa por assim dizer. Desde sempre já lidamos com essa antecipação. A antecipação que está envolvida com desejo, ânsia, intenção, esperança, futuro é excêntrica. É ela que nos visa a nós. Nós somos concebidos no anterior desta concepção prévia e meramente formal de que há um futuro e que temos de ser esse futuro, num ter de fazer, ter de agir, ter de ser. A antecipação usa-nos para se expressar através de nós no mundo, na vida, com outros, connosco. A cada instante exprimimos sempre na coreografia da existência a nossa relação intrínseca com a intenção constitutiva do nosso ponto de vista e estamos já a caminho, na direcção do que achamos é nós próprios, num modo de ser que nos é de feição, a chegar até nós. Também, é certo, sentimos que estamos puxados como pela corrente forte de um rio na direcção inversa àquela para que queríamos ir e que nos esforçamos por atingir. A antecipação preocupa não por este ou aquele conteúdo que exerce pressão sobre nós, as ralações do dia a dia, a preocupação com os outros de quem cuidados, nós que somos preocupação para os outros e que nos preocupamos com o ser uma preocupação para os outros. A antecipação não é apenas para o dia de hoje ou para o curto ou médio prazo, nem é para o longo, longuíssimo prazo, do que está para haver sem sequer percebermos bem como, porque se encontra na linha do horizonte do tempo para lá do qual não haverá mais tempo. A antecipação que preocupa arromba essa linha do horizonte, esse espaço temporal abobado, catapulta-nos para um tempo a haver sem que percebamos bem como será a sua vivência, algo de para sempre. Podemos esquecer-nos das nossas acções, não nos lembrarmos do que fizemos no dia de hoje, mas cada uma das nossas acções é inscrita, quando feita, no tempo passado em que coincidimos com a eternidade do passado e, por isso, é já indelevelmente conteúdo da vida, do mundo. Cada uma das nossas acções inscreve um conteúdo no presente que não será também nunca apagado da nossa vida. Requereu tempo para ser, para cair no mundo, para ser conteúdo da minha vida, intersectar vidas que connosco fazem a trama do tempo.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras IV. Corpo e alma. [dropcap]A[/dropcap] psique afecta o sôma. O sôma afecta a psique. A afecção é enunciável na voz passiva. Ser e estar afectado por qualquer coisa que aconteceu, por X. X é o agente da passiva. Este esquema serve para o corpo e para a alma. Mas o corpo pode ficar afectado por qualquer coisa que lhe acontece. Por exemplo, a respeito da temperatura: sofre com o calor ou sofre com o frio. Mergulhamos com calor na praia. Entramos no sauna no inverno, com frio. Pode ser conteúdos higrográficos: a humidade ou o clima seco, uma casa húmida ou uma casa seca. Por outro lado, podemos sofrer com quartos escuros. A escuridão na infância metia medo, fazia sentir o mundo na sua indefinição. Sofremos de fotofobia: a luz crua do meio-dia. Mas há uma relação entre estados mentais e o corpo. A coreografia do corpo de quem não tem confiança e é tímido ou está vulnerável é diferente da coreografia do corpo e da fácies de quem tem confiança. Há uma relação entre a alma e o exterior como há entre corpo e exterior. Reagimos a espaços fechados ou extensos, ao clima mental e meteorológico, a atmosferas física e mentalmente. Podemos gostar do deserto ou achá-lo desolador, como podemos expandir o olhar pelo mar com entusiasmo e fora de si ou então achá-lo a solidão inabitável de um elemento alienador de nós próprios. Há, assim, relações no próprio edifício: descemos da cabeça até aos genitais, estômago, pulmões e coração. Subimos desses terminais até à cabeça. Os orifícios podem ter funções várias ou só funcionais ou eróticas, o que permite compreender funções diferentes e sintéticas entre si. Há uma relação psico-somática que permite compreender a correlação entre o que acontece anatomicamente no corpo, mas também com a nossa percepção do corpo, se estamos gordos ou magros, com bom ou mau aspecto, com energia ou sem ela, treinados ou não, em boa ou má forma. Esta avaliação ultrapassa o conteúdo anatómico. Pensa uma relação com o corpo que pode ser estética mas é desde sempre já uma avaliação do bem estar ou do mal estar com que nos sentimos na nossa pele. Podemos fazer qualquer coisa para alterar o estado do corpo e assim poder estar melhor na nossa pele. Por outro lado, percebemos que também podemos mudar de hábitos de vida, alimentares ou modos de vida. Nesse caso percebemos a diferença que há entre não praticar desporto e praticar desporto, como nos encontramos depois de vir ao treino a que não queríamos ter ido e como nos encontramos à mesma hora, quando devíamos estar a vir do treino, mas a que não fomos. O gosto que fazemos ao fazer o que fazemos ou a dificuldade com que fazemos a contra gosto o que temos de fazer. Não há nada que façamos que não tenha esta forma de interpretação mínima do prazer e do sofrimento, do gosto e do desgosto, do bem estar e do mal estar, do bem ser e do mal ser. O ser das nossas actividades vive precisamente do prazer afectivo e emocional que dispense, com que nos outorga. Haverá actividade produzidas na nossa psique que a alterem? Isto é, há actividades da psique que actuam sobre a psique deixando-a objecto, vítima exposta e submetida a si? Os antigos perceberam a acção da psique activa sobre a psique passiva, uma relação que é estudada pela natureza correlativa da psique sobre a psique. Por outro lado, é possível que a atividade da psique se difunda e distribua pelo mais ínfimo poro da existência do meu corpo. O bem estar da alma é o bem estar do corpo, quando descansa, depois do trabalho ou do exercício, da actividade sexual, quando dorme, e estando cansado e cheio de sono. O corpo altera-se convulsivamente para se deixar estar e entregar ao relaxamento, ao sossego, como no sono que se segue a uma sessão de massagem. Mas o corpo próprio também pode estar tenso como num combate, na ânsia do prazer sexual possível e iminente, quando, prestes a atravessar a rua, olha para a direita e para a esquerda com atenção e cuidado, quando está a trabalhar no seu ofício, quando me concentro no teclado e procuro escolher as palavras que resultam do pensamento das frases e do argumento que tenho em mãos. Todas as nossas acções, todas as nossas actividades, pensamentos, sentimentos, estão implicados num horizonte que é anterior, interior e exterior, antecipa e é consequência na psique e no corpo. O corpo flui no fluxo da consciência do mesmo modo como o fluxo de consciência inunda, alaga, submerge o corpo. A psique é corpórea porque está diluída em todas as partes do meu corpo, do lado de dentro e do lado de fora. O corpo manifesta-se a partir de si à psique que lhe está justaposta, ou melhor que o atravessa em toda a sua extensão, ossos, articulações, tendões, músculos, aparelhos e órgãos, extremidades e epiderme. O corpo é da extensão do que eu vejo. O que eu vejo não é do tamanho dos meus olhos. Olho para alguém e vejo nos seus olhos, no hemisfério dos seus olhos ou espelhado nos óculos escuros, a paisagem que se estende à sua frente. Vejo a praia inteira e as nuvens no céu nos óculos de alguém ou no seu globo ocular. Será comigo assim? Ouço não nos meus ouvidos, nem interiores até, os carros que passam no tabuleiro da ponte 25 de Abril. Mas a ponte, com tabuleiro e carros, que eu ouço na sua passagem não está dentro da minha cabeça. Sinto o frio da praia na costa vicentina, mas só tenho contacto com água nos meus pés e não na totalidade dessa extensão. O cheiro que sinto rebentar-me os pulmões tem a fragrância do vento que desce das montanhas até à cidade, quando é noite. Todas as flores espalhadas pelo cume e pelas encostas das montanhas está fora do meu nariz e é no cérebro que eu sinto que o vento penetra e me embebeda. Eu toco o rosto de uma criança e não é apenas a sua bochecha ou apenas os meus dedos e a palma da mão, mas é o outro, pequeno, a pessoa inteira na sua vida que me está a ser indicada, a sua alma e não apenas a parte das bochechas que eu aperto e acaricio. A invasão do corpo é também a invasão da alma. É através do corpo que a alma se abre, estende ou contrai e fecha. Mas sou eu quem existe no corpo e na alma. Ser eu ao modo do meu ser, ser eu ao modo do meu sou, ser o ser do sou, é excêntrico relativamente à alma e ao corpo. “Sou” acompanha-me a mais ínfima parte do meu copo, sente pudor e vergonha ou mal estar, gosta e não gosta do que tem, do que faz e do que lhe fazem. Sou acompanha-me em todos os meus estados de espírito desde manhã até à noite, toda a vigília e todos os meus sonhos ou noites em que parece que não sonho e outras em que sonho acordado, bons sonhos e maus sonhos.