O longínquo

[dropcap]O[/dropcap] que depende de nós e o que não depende nós é um operador da ética antiga. A formulação encontra-se em Aristóteles já como termo técnico, mas são os estóicos, designadamente Epicteto. O que está de facto nas minhas mãos e o que não está? O que depende de mim e o que não depende de mim? Posso ou não posso, sou capaz ou não sou capaz? Consigo ou não consigo? Estas perguntas têm domínios de interrogação, objectos relativamente aos quais cada um de nós se pode comportar. Os horizontes podem alterar-se. Cada um de nós olha para campos de possibilidade que num dado momento da vida não são para nós, mas depois podem vir a ser. Esses mesmos campos de possibilidade deixam de o ser.

Qualquer que seja o motivo, há coisas que dependem de nós e outras que não dependem de nós. Há coisas que nos acontecem por acaso, por sorte ou por azar, por necessidade ou por acidente. Outras há que são o resultado da nossa vontade, do nosso trabalho, do nosso empenho, de querermos tê-las adquirido. Os antigos compreendiam claramente que há coisas que não podemos ter. Há coisas que não poderemos nunca ter. Mas não é por não podermos tê-las que não as desejamos. Temos um desejo imenso de eternidade.

Desejo não é apenas uma veleidade. Quer dizer uma falta que se sente. Imenso quer dizer incomensurável. Temos uma sempre quer consciente quer inconsciente uma falta desmesurada de eternidade. De um modo positivo, queremos viver para sempre, queremos que quem amamos vivesse para sempre. Ora isto não está nas nossas mãos. A mortalidade da alma constitui a nossa essência. Há filosofias que se edificam a partir deste facto não anulável, inexorável da existência humana. A religião promete a vida eterna depois desta vida neste mundo, sob cláusula da existência de Deus. Mas a própria ideia que nos é mais próxima e autêntica e genuinamente humana, a da liberdade depende da possibilidade não anulável, inexorável e implacável da morte. Se não está nas minhas mãos decidir poder não morrer, como posso ser livre? Posso escolher morrer já? E como posso saber se não era esse o momento que me estava destinado e o modo que estava traçado, coincidindo a minha vontade subjectiva com a oportunidade objectiva que a morte me apresentava na ocasião? Por outro lado, a nossa mente tem também a capacidade de tornar tudo impossível, quando transforma todos os objectos reais, possíveis até, susceptíveis de serem adquiridos por nós, em objectos simplesmente impossíveis. Qualquer objecto transformado em objecto impossível é desejado com aquela falta com que se deseja a imortalidade. Toda a impossibilidade que desejemos se transforma no objecto pelo qual nos apaixonamos, mas faz-nos amá-lo de um modo infeliz.

A ilusão projecta-se sobre um sem número de coisas, pessoas, actividades, sobre nós próprios, sobre as nossas relações com as coisas, sobre os nossos comportamentos, sobre as nossas versões pessoais, sobre o que nós queremos de nós próprios para o futuro e diz-nos que não, que é impossível, que não vamos lá chegar, que não é para nós. A ilusão da paixão faz-nos querer com paixão objectos impossíveis não antes sem os tornar impossíveis. O amor eterno mas infeliz do desejo do sonho de impossível transforma o real e o possível em impossível. Logo que o impossível se converte em possível— é possível que coisas impossíveis aconteçam— o amor eterno, o desejo de impossível, desfazem-se. O que é um sonho concreto senão a realidade? A realidade é o contrário do sonho não pode ser o sonho.

Mas os antigos tinham boas razões para falar no que depende de nós e no que não depende de nós. É que a liberdade não é uma ilusão. A morte é a chave da vida. A morte não fica fora da vida. Enquanto vivemos, a própria existência é a deposição continua no tempo da situação em que nos encontramos até ao último momento. A procura pelo sentido terá sempre de ser uma procura pela inteligibilidade que dê sentido à promessa do sonho, ao voo do desejo não do impossível mas do possível, à possibilidade que possibilita, ao amor que arranca a realidade que nos deixa inerte, inactivos, feridos, para morrer, e levanta, eleva, faz mexer, expande do sítio fechado da fronteira anatómica do corpo, para o vento que sopra, o mergulho atlântico, o vento norte, a atmosfera, a chuva cósmica, o raio solar, o longe, o mais longe, o longínquo.

12 Jun 2020

Na infância

[dropcap]A[/dropcap] infância é fonte de doçura e melancolia. Havia uma fusão entre o cada um de nós e as pessoas e os lugares, uma integridade entre aqui perto e lá longe. Não porque não houvesse diferença entre próximo e distante, à superfície e no fundo do mar, mas porque tudo era tão estranho à superfície, na proximidade como era na profundeza e à distância. Cada um dos outros não era nunca um indivíduo, um sujeito, fulano, beltrano ou sicrano. Eram verdadeiras personagens reais com uma densidade disposicional que vibravam o seu ser em todo o nosso ser. Em nenhuma outra época da vida a música invade e alastra para todos os outros sentidos. O papão indefinido é o pior dos monstros porque não é definido com nenhum rosto, mas é em potência o mal que mete medo apenas por assustar. Mal nós sabíamos que já na infância encontraríamos todo o mal e todos os papões e que mais tarde na vida a distância entre o possível e o concreto é ténue, absolutamente ténue. O mal espreita-nos descaradamente invisível para nós. Está no nosso quarto, atrás de nós com o rosto pousado no nosso ombro ou a olhar-nos frente a frente com a sua testa encostada à nossa. O mal está nos becos, em ruas pouco iluminadas, mas está também nas praças públicas, na praia cheia de gente em Agosto, está na cidade inteira, no país. O mal pode ser o poder de fazer mal, causar dano, infligir dor, provocar sofrimento. O seu objectivo final é a destruição da essência da coisa que ataca. A essência do ser humano é a vida. É isso mesmo que quer atacar, se for lentamente, será lentamente, mas se tiver de ser rápido, quererá ter-nos a si por uns instantes. Mas o mal é sobretudo individual. Temos, cada um de nós um mal individual. Não falo apenas do mal que sabemos que podemos infligir a cada um de nós, tenhamos ou não a tendência para o masoquismo. Sabemos como todos temos um pouco de S&M em nós. Mas não é a essa que me refiro. É o mal que está a desdobrar-se de nós que nos olha a cada instante, que está connosco em cada momento, coincide com o nosso corpo, está continuamente a deixar-nos vulneráveis, expostos a si. Na verdade, o nosso nascimento é um triunfo sobre o mal, a nossa sobrevivência até agora, meus caros, é do outro mundo. O mal está contra, desde o princípio. O mal é o princípio fundamental da negação. Quando dizemos sim, diz não. Quando queremos, o mal quer mas quer que não. Quando alguém deseja, deseja também que nós desejemos, mas só para elevarmos a nossa fasquia às alturas do sonho para que a nossa frustração seja maior. Quanto maior é a altura a que o desejo nos eleva em voo, assim também o mal nos incute ímpeto, eleva com as asas de Icaro, leva a querer sempre mais e mais altura, mais e mais velocidade, a ter mais e mais extensão, mas só para nos precipitar no abismo que é o seu elemento, nos fazer cair continuamente, sem rede, não necessariamente para nos destruir, pelo menos não logo, mas mais tarde. Quando respiramos, o mal quer tirar-nos a respiração, quando vemos, quer cegar-nos, quando bate o coração, quer arrancar-nos, a pele que nos envolve é para ser arrancada e todos os ossos que nos mantêm é para serem partidos e desossados. O mal é o caos. O mal quer-nos para si, se for do Caos que nascemos como diziam os antigos. O caos não era só a desordem nem o desregramento sem lei. Era o abismo da negrura, situado nas profundezas. Ainda hoje dizemos que somos atraídos pelo abismo.

O caos é a desordem porque a noite escura da eternidade é informe. Ao adormecermos temos por vezes a sensação de queda, de que vamos cair. Ao perdermos a atenção, sentimo-nos fora. Ao perdermos a concentração, dá-se o desanuviamento. A morte é a grande noite que nos engolirá, a garganta do abismo que tudo está a engolir, o buraco negro que desde sempre nus suga na sua direcção. O mal é cada instante que se oblitera, que não volta mais. Nada nunca é ultrapassado. A vida é agora e não volta nunca mais. Talvez volte toda ela para ser repetida, mas é uma suposição metafísica.

Tenho sido atirado para dias da infância, dias das férias grandes do mundo. São na verdade dois momentos de dois dias de férias grandes diferentes que não consigo datar. Ou estou com outros miúdos a brincar, jogando um qualquer jogo colectivo, ou estou na praia. No primeiro momento, senti pela primeira vez o êxtase de estar vivo, tudo rodopiava numa dança extravagante e centrífuga que sacudia o meu corpo. Não era só bem-estar, nem apenas satisfação ou contentamento, nem alegria. Era êxtase, embriaguez. Estava completamente em mim e fora de mim. Era a vida a expandir-se por todas as minhas células com todos os seus átomos e moléculas, numa extravagância sem limites. Era a vida a apresentar-se. A deixar o seu cartão de visita. A dizer-me como era possível. No outro momento, estou na praia à tarde na hora do calor. Não está ninguém ou muito pouca gente. A areia escaldante e o rio com água transparente. Do cimo das dunas, olho a foz. É um vislumbre muito mais simbólico. Estes dois momentos surgem-me. São a euforia da infância. Não ordenam a desordem. São o que o universo dá a sentir quando traz cada ser da garganta abismal do caos para a luz, para a transparência.

Na euforia do encantamento daqueles dias em que me confundia com a totalidade, estava já presente a melancolia do princípio do fim. A euforia, a transparência, são o nascimento espiritual e ao mesmo tempo o princípio da precipitação, quando o espírito que sempre nega começa a actuar. Ou foi ele que nos fez nascer?

5 Jun 2020

Um sim um não

[dropcap]A[/dropcap]inda há quem disfarce mal o incómodo de não poder saudar o outro quando o vê. Diz olá com as duas mãos no ar. “Pronto. Já estamos cumprimentados”. Há uns meses havia beijos e abraços.

Agora, sideramos com o olhar os que ainda não desbloquearam mecanismos antigos e só os desculpamos porque sabemos que estiveram muito tempo sem ver ninguém. Afastamo-nos uns dos outros claramente.

Criamos uma bolha tensa, com vectores centrífugos, repulsivos. Sentimos o mesmo da parte dos outros, nas filas para entrar onde quer que seja, nos momentos em que nos distraímos a olhar para os preços das coisas nas prateleiras dos supermercados, a apalpar fruta ou quando vamos a algum sítio público pela primeira vez e ainda não sabemos quais são as regras específicas de entrada e ocupação desse espaço. É diferente ir a um restaurante, a um café, a uma clínica, a um supermercado, à praia, à beira rio. Há regras comuns mas também há depois regras específicas.

A distância que criamos uns dos outros metro e meio, dois metros ou três metros facilmente é estabelecida e reposta, quando perdida. É estranho ver as filas que os lisboetas fazem. Sempre foram muito ordeiros, muito mais do que os alemães, por exemplo, para entrar nos transportes públicos. Não acho que haja sequer fila para se entrar num autocarro na Alemanha. Basta um português distrair-se e meter-se na fila, e é logo vilipendiado como se a voz popular fosse a voz de um Deus homicida. Agora, a distância é respeitada.

Fazem-se filas nos passeios opostos àqueles em que estão situadas as entradas dos locais onde se quer ir. Na praia, sabemos como há muita gente que estende a toalha em cima dos outros e levam ao limite da paciência a noção de “gregário”. Agora, eu reajo mal já a três metros, como se criaturas antipáticas me estivesse a invadir a sala de estar.

O mais estranho de tudo é o modo como encontramos as salas dos restaurantes. As mesas não estão equipadas. A toalha branca com pratos, talheres, copos e guardanapos, inexistente deu lugar à mesa despida só com a sua cor castanha, o mais das vezes. As mesas separadas umas das outras à distância milimetricamente medida dá uma sensação inóspita de mesas vazias à espera de clientes que ainda não vieram e ainda não se sabe se chegarão, porque não se habituaram ainda a vir jantar fora. Mesa sim mesa não é o que há. Retiraram as mesas não e deixaram ficar as mesas sim. Cadeira sim, cadeira não, deixam sentar as pessoas nas cadeiras sim e não deixam sentar nas não. Mesmo que não haja a marcação a interditar sentar-se, uma sala esvaziada na metade da sua lotação, as mesas não equipadas para esperar pelos clientes, os empregados de máscara, tudo muda.

O que muda mesmo é a totalidade da apresentação. Não é apenas do outro que importa guardar as distâncias, como se fosse dos outros que esperássemos a agência patogénica, seres transmissores da Covid-19. Assim, guardaríamos activamente a distância por um resguardo contra um invasor. A questão inverte-se porque podemos ser nós mesmos portadores sem sintomas da doença. Quando pensamos nessa possibilidade, é óbvio que a atenção é redobrada. Guardamos a distância proactivamente, como se nós próprios fôssemos transmitir a doença, aos mais próximos e aos mais afastados. Ao ter sempre presente essa possibilidade, a atenção dada aos gestos mais simples do quotidiano ganha um sentido que estes não tinham, porque executá-los ou não os executar significa não ser agente do mal ou ser agente do mal, transmitir ou não transmitir a doença. A guarda fechada é eficaz mas é uma medida adhoc, está na expectativa, depende da realidade a que se está exposto. A compreensão da possibilidade de que se pode ser agente patogénico muda a nossa percepção da realidade a cada instante e não só a percepção, também insta à execução que põe em prática as medidas adoptadas.

Um sim, um não. É o que é, para já. O insólito e o sinistro dilui-se, se percebermos que era o que teríamos feito se a sala do restaurante fosse a nossa sala de jantar e estivéssemos à espera de convidados que pudéssemos vir a contagiar.

O nosso ser com os outros não é nunca só passivo, reactivo, é também activo, proactivo. No modo como os outros nos aparecem não há só percepção. Toda a percepção tem de estar associada a um cuidar do outro na relação consigo. Só assim também se percebe o descuido e a negligência.
Um sim, um não.

29 Mai 2020

2022 ano pós pandemia

[dropcap]C[/dropcap]omo vai ser agora a nossa vida? Estamos em negação a diversos níveis, embora “estejamos a portar-nos bem”. Encontramo-nos sob um leve, levíssimo, stress pós-traumático, porque, se, por um lado, começamos a sair de casa e procuramos reivindicar o tempo do quotidiano, por outro lado, existimos desajeitados com máscaras, luvas, distantes sociais, sem beijos, abraços ou apertos de mão. Quer dizer, o nosso tempo é o do cuidado e da preocupação, ao antecipar possíveis recidivas, novos planos de confinamento, caso pudessem ser postos em prática, com uma economia esfacelada e uma psicologia histérica.

A própria ideia de sucesso nestas circunstâncias, de superação o melhor possível de uma epidemia pandémica, é muito relativa. Custou vidas e a saúde a muita gente. Basta ver como as praias e os jardins infantis vão abrir para uso dos seus utentes para se perceber que podemos ter todas as dúvidas se não seria melhor mas era que se interditasse o seu uso até nova ordem do estado de coisas. Em todo o caso, a realidade abriu as suas portas sem que a sua chancela seja a do presente e meramente a da actualidade. A realidade está vista com o olhar retrospectivo que vem de um futuro ainda obscuro, pouco definido e com o enfoque na possibilidade de um novo surto a partir de onde nasça uma nova vaga pandémica.

Não estamos inteiramente livres para a realidade. A actualidade é vivida com os olhos postos no futuro.
A filosofia sempre nos ensinou isto, mas agora podemos “viver” na realidade o que acontece na dimensão filosófica. A actualidade realidade é negada pela actualidade do futuro. A possibilidade é mais poderosa do que a realidade. O mal possível que vem do futuro é mais poderoso do que o bem actual que existe no presente.

Estamos virados para o futuro mais ou menos próximo da realidade das nossas agendas. Percebemos que a nossa agenda entra concretamente pelos próximos meses. Temos percebido como entra nas próximas horas, dias e semanas, meses, mas quando pensamos em trimestres, semestres ou outras unidades de tempo como final do ano lectivo, férias grandes ou Verão, fim do ano civil, Natal e ano novo, tudo muda. Quando eventos como festivais, espectáculos de toda a espécie, encontros científicos internacionais, viagens de negócios, são adiados por um ano ou para 2022 estamos num adiamento complexo que permite perceber como estamos colectivamente depostos no futuro. Neste caso a nossa deposição no futuro é pelo adiamento.

Normalmente contamos com o futuro como se estivesse ligado já por associação com o presente. A ligação entre o presente e o futuro dá a sensação que o futuro está já garantido e na verdade a suspensão da possibilidade de futuro em bloco para toda a humanidade permite perceber como estamos depostos só numa possibilidade sem garantias do seu acontecer, de que venha a tornar-se realidade. A possibilidade mesmo que esteja a ser preparada com todas as garantias sérias pode esfumar-se como um sonho irreal. Neste caso temos um adiamento por meses, anos. É menos do que dois anos, mas de 2020 para 2022 dá um mal estar psicológico. Parece mesmo que estamos a adiar o futuro por dois anos. E acreditamos mesmo que entre nós e o evento futuro está a ser enxertada uma quantidade de tempo que vai ser ultrapassada e quando tiver sido ultrapassada, o futuro vai efectivamente acontecer, ligar-se ao presente, o presente vai ligar-se ao depois, ao momento seguinte. Entretanto, vamos ter de viver, com medidas profiláticas para não perder a saúde, restabelecer a saúde daqueles que a perderam, garantir a saúde da economia, cobrir as perdas, tentar recuperar os danos colaterais resultantes do confinamento. O tempo passa na mesma, mas aquele que importa, o nosso tempo com saúde, com possibilidades económicas e financeiras, com viagens, congressos, idas a espectáculos, casamentos, vindas de amigos e familiares, tudo fica em suspenso.

22 Mai 2020

O fim da quarentena?

[dropcap]A[/dropcap] quarentena foi uma época das nossas vidas. Tem tudo idêntico a uma estadia numa qualquer estância onde se passa um tempo diferente do quotidiano. Estadias podem ser residências de artistas. Não são apenas os locais mas as temporadas que as pessoas passam nesses locais. As estâncias são balneares, termais, nas montanhas ou até hospitalares. A quarentena é um objecto temporal no sentido em que é uma temporada, uma estadia. Antigamente, passada nos navios, antes de se aportarem. A quarentena que vivemos teve a sua estância que é exactamente a mesma onde vivemos, ainda que tivesse havido pessoas que tivessem ido para casas umas das outras e ainda quem tivesse mudado de região. O que define a residência e a estância da quarentena é a temporada, o modo como se viveu a estadia na nossa residência domiciliária, na nossa estância existencial. Entrar em quarentena não coincidiu com o dia do seu decreto nem requereu obediência às determinações de comando. A população em bloco e de forma maciça com um único pensamento de preservação de si e dos seus, decidiu, numa expressão excepcional de vontade colectiva, querer entrar em quarentena. A decisão antecipava o perigo iminente do contágio e constituiu uma medida de segurança activa e de resistência contra o que muitos acharam que podia ser um suicídio colectivo ou da parte das autoridades um genocídio. Entrar em quarentena é abrir o horizonte da temporada em que o contacto entre uns e outros não é possível, se determina uma “distância social”, definem-se protocolos de higiene, não se pode sair à rua, vive-se em casa e a partir de casa. Basicamente, fechamo-nos fisicamente aos outros, não nos tocamos, não temos contacto, afastamo-nos o suficiente para permanecermos intocáveis pelas as nossas respirações. A vida é virada do avesso. O mundo inteiro que se estende até ao vasto cosmos, com fronteiras desconhecidas, é um interior onde não se pode ir. A casa é o nosso mundo, limitado, pequeno, estreito, mas onde cabe o mundo inteiro, onde se come, dorme, trabalha, ama, está só e acompanhado. Onde se é, onde se tem a existência. A casa vira-se do avesso e exterioriza-se.

O mundo implode na sua vastidão. Os outros todos desaparecem. Não há pessoas na rua. Só dentro de casa, mas isso é uma suspeita. Agora é como sempre. Sabemos o que sempre soubemos dos outros: nada.

Achamos que por os vermos sabemos das vidas deles. Agora que não os vemos sabemos que sabíamos antes o mesmo que sabemos agora.

Antecipamos o fim da quarentena, mas com tanto cuidado que não foi uma saída. A temporada da preocupação não findou. Temos ainda a preocupação das últimas horas, do último fim de semana, da última semana, do último mês e meio, do fim de Fevereiro atrás das costas, a fazer sombra sobre o nosso presente e a projectar-se nas próximas horas, dias e semanas. A temporada desta estadia não terminou completamente. A nossa residência não terminou completamente. O guião está a ser escrito com esforço, com tentativas de antevisão, procuramos todos os boletins de previsão e prognóstico, não antecipamos nada de bom, contamos com o pior. A tensão vibrante com a abertura escancarada da rua, da praça pública, do aperto de mão, abraço do- e beijo ao- outro não se dá ainda.

É ainda esta estadia, esta temporada estranha, nesta estância das nossas vidas tão conhecida, tão próxima, a nossa casa. A nossa casa, a minha casa passou finalmente a ser o meu mundo. O mundo é uma extensão implosiva que colapsa num movimento e deslocação centrípeto para dentro e para o meio da minha cabeça.
Tudo o que há é da minha cabeça, de alguma maneira (Aristóteles).

14 Mai 2020

Quarentena a dar que pensar

[dropcap]É[/dropcap] inegável o misto de sentimentos com que a quarentena provocada pelo Corona vírus tem sido vivida. Há um estado alerta generalizado, nacional e internacional, à escala local, monitorizada pelo poder de uma câmara municipal, e à escala global. Importa a atenção dadas às notícias a nível global. Interessa-nos tanto o que se passa na avenida Marginal quanto o que se passa no parlamento europeu, em Wuhan como em Washington. O mundo é global e local, regional. Basta ver os boletins informativos para percebermos que a epidemia pandémica provocada pela Covid-19 tem consequências microcósmicas, nas casas de cada um, nas medidas que cada um adoptou para si a pensar nos outros. Não apenas nas novas medidas como distanciamento social medido ao centímetro, forma de tossir para o cotovelo, lavar as mãos amiúde, uso de luvas descartáveis, máscara. Mas todas as nossas acções, comportamentos, relação com os outros, explícita ou implicitamente estão envolvidos por um filtro ou ecrã total que erguemos entre nós e os outros, todas as coisas em que tocamos, peças de mobiliário, volante de automóveis, interruptores, electrodomésticos, etc., etc.. Mas também entre nós e nós adoptámos medidas assépticas. Lavamos as mãos, não levamos a mão à cara, não nos coçamos, esfregamos os olhos. Estamos vigilantes. Evitamos os outros como evitamos ir até à proximidade dos outros. Trabalhar a partir de casa, não ir à rua a não ser quando é estritamente necessário, não ver ninguém a não ser aqueles com quem partilhamos o quotidiano e sabemos que não poderíamos evitar terem sido para nós com nós para eles agentes recíprocos de contaminação.

Há, assim, uma camada virtual com consequências físicas a evitar o contacto directo, de proximidade, com o mundo na sua totalidade, com os outros principalmente e com as coisas em que os outros podem tocar.

Tornamo-nos solipsistas uns relativamente aos outros. Mas isso não quer dizer que não pensemos nos outros ou não falemos com eles por todos os meios que temos à nossa disposição. Falamos com amigos no estrangeiro com quem não falávamos há anos e amiúde com quem falamos raramente.

Há uma causa comum à sociedade. Há um envolvimento de toda a gente nesta causa comum a nível planetário. A alteração do modo como exercemos as nossas actividades, o fecho de algumas actividades e a abertura de outras, a transição do espaço aberto da rua para o espaço fechado da casa, o colapso do espaço físico real, a construção do espaço virtual: são algumas das acções que foram e têm sido levadas a cabo. O espaço físico e real é tão virtual como é físico e real o espaço em que abrimos o computador, a cadeira em que nos sentamos. Mas há uma diferença entre a vivência de espaços com o direito à reserva de admissão e sem essa reserva. Há uma diferença entre a interdição e o levantamento de interdições, entre proibição e não proibição. O que acontece é que a rua ficou fechada e a casa ficou a ser o sítio mais aberto que temos à nossa disposição. A casa não ficou aberta nem a nós, porque já dispúnhamos dela, nem aos outros que agora nem sequer cá podem vir.

O privado não se tornou público nem o público privado em geral. Sucede que muitas das situações em que nos encontramos passaram a ser controladas a partir de casa. O espaço público passou a ser partilhado virtualmente a partir da casa de cada um, e entramos no chating que foi inaugurado pelos voyeurs de pornografia e violência, youtubers, jogadores de jogos virtuais. O lazer, o brincar, o jogar, o que se faz para passar o tempo passou a ser a possibilidade estruturante das actividades sérias da vida. Por outro lado, há uma imposição de regime que resulta da disciplina. Procuramos ter uma vida mais saudável: fazer desporto, como se vai menos às compras, faz-se uma previsão e um cálculo diário do que se vai comer, temos cuidado com os mais velhos e com as crianças que vieram para ficar 24 horas por dia em casa.

Vivemos num esforço contínuo de antecipação, quantas pessoas adoeceram e quantas morreram, quantas se curaram e quantas se irão curar? Quando saímos da situação de emergência? Com que custos? Como vai ficar o desemprego? Como seremos abalados na nossa saúde física e financeira?

Existimos no modo de sobrevivência. Compreendemos ou ficamos sensibilizados para os níveis de stress em pessoas que são obrigadas a passar mais tempo juntas do que habitualmente. Muitas nem sequer estiveram alguma vez a sós consigo mesmas. Mas não pode haver uma tensão total para que de tão rígida fiquemos paralisados. A situação é crítica a diversos níveis. Não se sabe quando passa nem como passa. A indefinição não poderá manter-se para sempre. Mas não pode haver fuga para a frente em que se deite a perder tudo o que foi alcançado com a quarentena

Temos de guardar a calma. O impacto de totalidade implica uma reorientação, um redireccionamento, que levem a uma focagem que resulte de uma compreensão do que é importante e do que não é importante, se temos o que necessitamos ou não, se somos o que fazemos ou fazemos o que somos, se a vida é desperdiçada com o que não tem significado nem importância. Não estamos sozinhos. Temos as gerações passadas para nos ajudar com os relatos que nos deixaram, cartas endereçadas do passado para nós seus irmãos posteriores. Do mesmo modo a nossa responsabilidade é com os nossos contemporâneos, velhos, novos e os que estão ainda por nascer. Importa esgotar as possibilidades que são criadas na impossibilidade e no caos.

24 Abr 2020

Epidemia pandémica

[dropcap]N[/dropcap]a raiz das palavras “pandemia” e “epidemia” está a palavra grega para “dêmos” que quer dizer originalmente “distrito”, “região”, “país”, mas ganha o sentido das, por extensão, do número de pessoas que habita esses locais, portanto, os habitantes, o povo. O verbo epidêmeô quer simplesmente “estar em casa” ou “viver no país”. Opõe-se me sentido ao verbo “apodêmeô” que quer dizer “estar ausente”, por exemplo, de visita ao estrangeiro, “não estar em casa”, “não estar no país”. O adjectivo “epidêmios”, na acepção contemporânea do termo, refere-se, assim, a uma doença que se fixa numa comunidade. A doença não ataca um indivíduo apenas, nem uma casa, como quando uma família fica “de molho”, porque um membro “apanhou” uma gripe e acabou por “pegar” todos os restantes elementos. Aqui a doença é uma entidade que existe fora de portas, é levada para casa, sem dúvida, mas é também exportada, existe nos lugares públicos, não “faz acepção de pessoas”, não segrega ninguém, nem velhos nem novos, nem mulheres nem homens. Atinge toda a gente. A doença é um “ser” à solta.

Não se sabe onde está. É um “agente secreto” com poder letal que tem de ser identificado, controlado, eliminado. Existe clandestinamente. Pode manifestar-se, acordar, dar a entender por manobras de distracção que vai deixar-se apanhar, para escapar no momento seguinte. Adormece e hiberna. Parece ter desaparecido. Às vezes parece submergir para sempre, porque não provoca baixas, mas volta sempre à superfície de maneiras insuspeitadas, com poder letal reforçado, capacidade de alastramento mais rápida do que a irradiação de infinitas bombas atómicas a deflagrarem, mas com um poder de destruição que avança em todas as direcções, do interior ínfimo de onde nasce e cresce para as zonas periféricas ainda no interior do corpo humano onde se aloja, para ser exportado para as pessoas disponíveis na proximidade a uma velocidade supersónica. O advérbio “pandêmi” que Tucídides usa para referir um exército que marcha com todo o seu poder, infantaria leve e pesada, cavalaria e naval, ao avançar com todo o seu contingente e tropas aliadas, progredindo “em bloco” ou “como um só corpo” é aplicado na epidemia pandémica para descrever uma doença com um poder de contaminação fulminante capaz de alastrar rapidamente a toda uma população. As descrições antigas de como a guerra se declara e acontece são em tudo semelhantes ao acometimento de uma doença. Em ambos os casos estamos perante um fenómeno de ataque, um acometimento.

17 Abr 2020

Como teriam sido as nossas vidas, se…

[dropcap]P[/dropcap]ensamos muitas vezes no que teriam sidos as nossas vidas se os factos determinantes que vieram a definir-nos não tivessem acontecido. Pensamos também no que poderia haver de transformador se a história tivesse seguido cursos alternativos ou até um percurso exactamente contrário àquele que veio a seguir, se Hitler tivesse ganhado a guerra o que seria da Europa. O que se nos oferece para pensar tem a sua origem na nossa vida que corre paralela à da realidade, a vida na possibilidade. Alguns de nós conhecíamos bem esta dimensão mágica da vida: fantástica, cheia de imaginação, com personagens reais e criados nas nossas cabeças, se tivermos tido um sonho de infância. Houve tempos na nossa juventude, essa época fascinante das nossas vidas em que nem sequer podemos dizer que nos entregámos à ficção, porque, pura e simplesmente, o que havia de realidade era um engano. A época da vida que corresponde à juventude tem ainda a dimensão fantástica da infância, mas tem agora o vigor não anulável da tempestade e da paixão, é romântica ou apresenta uma qualquer variação do romantismo com os seus múltiplos objectos: uma outra criatura humana, um comprometimento político, um estilo de vida, uma definição, uma tendência, a fixação de uma inclinação num estilo. Na infância e na juventude o que nós pensamos, o que se nos oferece a pensar, não existe num plano diferente do plano da realidade. O que se passa na casa dos nossos amigos, na nossa rua, na escola, no clube e o que se passa no isolamento aparente do sonho a dormir à noite ou no sonho a dormir acordado é indistinto. A vida é fantasia, fascínio, encantamento. Pode ser, na verdade, maravilhoso como pode ser tremendo. É um mistério. E, contudo, não se percebe bem como ou quando se impõe a versão da verdade que chamos realidade, a realidade objectiva, a verdade pura e dura posta a descoberto nua e crua. Há uma diferença clara entre o mundo do fascínio da infância, apenas sonho, o mundo da juventude, só esperança, e o mundo adulto: pragmático, sem sonho, sem esperança. E, contudo, o mundo adulto não é um mundo à parte. É um mundo projectado por uma forma de pensamento, que reduz a fantasia à percepção, o sonho à realidade, a esperança no futuro à actualidade, sem conexão com o futuro.

Como seriam as nossas vidas se tivesse acontecido o que, pelo menos assim nos parece às vezes, queríamos tanto que nos tivesse acontecido: desfazer um não e fazer que sim, aproximar-nos em vez de nos afastarmos, quando tínhamos podido, ou no que não está nas nossas mãos: assistir ao rumo positivo das coisas, quando elas acabaram, não houve as negas que tivemos, não houve interdições, nem proibições, nem nada de negativo, não fomos nós que não conseguimos, que não chegamos a tempo, não foi o espaço que se fechou o tempo que não houve, alguém continuou nosso amigo e não houve mal entendidos, o amigo da infância não morreu num desastre de automóvel, os nossos pais são imortais. Como seriam as nossas vidas se não acontecesse o que está a acontecer, e o que está a acontecer é inexorável? Como seriam as vidas das crianças e dos jovens no Verão de 1914 antes de arrostarem com a carantonha feia e sinistra da guerra e que desfez infâncias e juventudes, pior: desfez futuros individuais e colectivos? Seria ainda possível deixar chegar o Verão de São Martinho a 1939 ao norte da Europa e assim ao Ocidente?

Pode a Europa deixar-se enredar na semântica das palavras e afundar-se no ocidente (a terra do sol poente)?
A nossa vida é o que é. Existe como realidade indelével. A resolução para o impasse está na infância e na juventude, se não foi extirpada a raiz onírica do pensamento. O pensamento cria esperança. A origem do pensamento é o futuro. A infância e a juventude estão próximas do princípio, mas o princípio vem do futuro.

Como os antigos tão bem perceberam, no princípio o que havia era já o fim e o tempo das nossas vidas passa em contagem decrescente. O princípio e tudo o que tem sido vivido está à nossa espera na hora da nossa morte, chegue essa hora quando chegar.

3 Abr 2020

Peste III

[dropcap]O[/dropcap]s corpos dos mortos amontavam-se. Criaturas meio-mortas cambaleavam. Juntavam-se à volta de todos os fontanários. Os lugares sagrados encontravam-se pejados de cadáveres. À medida que a catástrofe passava todos os limites, os homens, sem saberem o que lhes ia acontecer, tornavam-se completamente indiferentes a tudo, fosse sagrado ou profano. (Tucídides H. 2, 52.3-4). Os homens atreviam-se, agora, a fazer às claras o que, anteriormente, procuravam fazer sem dar nas vistas. O rápido desaparecimento das pessoas e daquela maneira atroz, o prejuízo dos melhores e o benefício dos piores levava que tudo esbanjassem, sobretudo no que desse prazer. A riqueza era tida como coisa de um só dia. Perde-se a vergonha e a honra. A conduta tinha como única regra o gozo do presente. Apenas o gozo é honroso e útil.

O medo dos deuses e das leis dos homens não constituía limite algum ao modo de viver “Ninguém esperava viver o tempo suficiente para ser levado a julgamento por causa das suas ofensas, antes sentiam que uma pesada pena havia já sido lavrada contra todos eles, estando suspensa sobres as suas cabeças. Pelo que, antes que lhes caísse em cima, era justo que não pensassem noutras coisa senão em gozar a vida.”

Toda a especulação acerca da origem e das causas da doença, se é que é possível encontrar causas capazes de produzir tão grande devastação, é deixado ao cuidado de outros, leigos ou profissionais.

A descrição, identificação, isolamento e reconhecimento do decurso e história clínica da doença bem como dos seus sintomas tem como único objectivo a possibilidade de poderem ser reconhecidos, caso a doença volte a aparecer. É isso que Tucídides pretende.

Em causa está a possibilidade da prevenção, da profilaxia. Os indícios estão no passado. Mas são indícios no interior do horizonte humano. O seu rastreio é por mor do futuro. Não enquadra nenhum outro interesse senão esse. O estatuto ontológico da investigação não visa nenhuma apreensão do que se passou, mas o reconhecimento possível do que poderá vir a passar-se. É talvez o destino da res humana e da nossa condicio estender-nos entre o que se passou e o que poderá vir a passar-se. Mas se a causa fáctica se encontra objectivamente dada, é do futuro que ela abre. Talvez a causa final não esteja identificada. Mesmo com as 17 ocorrências do substantivo em Th.. Mas ela opera de modo tão fundamental que não permite por defeito de finitude o seu reconhecimento ou isolamento. Em causa não está nenhuma disputa de estilo literário, mesmo quando em causa estão formulações líricas, trágicas, técnicas. A narrativa não é um conto. O que se pretende é examinar com transparência o que terá acontecido, porque o que aconteceu será possivelmente o que poderá acontecer outras vezes no futuro, de acordo com a constituição humana. Tem em vista a utilidade. Não o prazer.”

O que Tucídides escreve é sempre por mor do futuro. É uma posse para a eternidade. As causas da Guerra terão de ser reconhecidas para a podermos evitar. Os sintomas da doença habilitar-nos-ão ao tratamento eventual ou à prevenção profilática.

Trad. David Martelo

27 Mar 2020

Peste II

[dropcap]A[/dropcap] descrição da peste na História do Peloponeso é feita com a precisão de um cirurgião: os sintomas da doença, o modo como o mal alastra, como se dá o contágio, a infecção, como se verifica imunidade. A identificação de cada um destes dados surge num quadro geral de análise clínica se assim se pode dizer. O carácter geral da doença (eidos tês nosou) ultrapassava a descrição, logos, e o poder devastador atacava severamente a condição humana (anthrôpeia physis). O eidos tês nosou é descrito em vista das características gerais da doença (epi pan tèn idean). Tucídides relata o início do surto. Onde e quando teve o seu início. Parte do pressuposto evidente mas que não deixa de enunciar. A doença tal como a guerra tem um poder destrutivo para a condição humana. Descreve depois a forma como alastra.

Geograficamente onde teve início: nas regiões altas da Etiópia, sobranceiras ao Egipto. Daí desce para o Egipto e Líbia. Penetra na maior parte dos domínios do Rei. Surge abruptamente em Atenas, onde flagela primeiro a população do Piereu.

Num segundo nível de abordagem liga a pandemia à guerra. Provavelmente será uma das primeiras acções de guerra biológica relatadas.

Não se trata apenas de um surto de uma doença. É um surto provocado. Os verbos utilizados por T. são os mesmos que descrevem um ataque, um assalto. Uma forma de acometimento severo. As palavras com raiz em PIPT (πιπτ-) “cair” têm um uso médico. A personificação é expandida com o verbo: atingir, chegar.

A descrição exterior do percurso geográfico objectivo e da causa intrínseca da guerra biológica, não conseguem senão uma personificação. As causas de uma tal transformação com o poder de devastação total (dynamis eis to metastêsai) ou não são reconhecidas ou têm de ser procuradas de um outro modo completamente diferente. Os sintomas da doença terão de permitir um reconhecimento de um surto no futuro. Portanto, o sentido da descrição é a prevenção ou a cura. As notas fazem lembrar necessariamente a metodologia historiográfica a que se aludiu no início deste percurso.

Sintomas específicos:

Calor na cabeça. Inflamação dos olhos; inchaço na língua e garganta; hálito fétido (49.2). Rouquidão com tosse violenta e espirros; vómito da bílis (49.3:). Erupções da pele: úlceras pustulentas; hiperestesia total do corpo e inquietação; sede irresistível e desejo de mergulhar em água para aliviar o calor do corpo (49.4). Exaustão terminal, aparentemente produzida pro diarreia (49.6:). Perda dos dedos dos pés, da mão e genitais; destruição dos olhos; amnésia (49.8).

Traços gerais:

Os pássaros e os cães são infectados (50.1-2). Todos os tipos físicos são susceptíveis de contágio (51.3). Os sobreviventes adquirem uma imunidade específica (51.5).

Mas finalmente, dá-se o descalabro total das restrições sociais e morais (52-54).

Acresce à descrição, o testemunho pessoal de quem padeceu da mesma doença. O relator ficou doente e sobreviveu. Tucídides analisa de seguida a alteração convulsiva que o horizonte de sentido da vida experimenta ao ficar sem quotidiano. A população fica na circunstância complexa de viver toda ela ou sem futuro ou com os seus como vítimas da doença. O apocalipse que Tucídides descreve mostra a forma como cada um reage perante a morte. Mas a morte é experimentada na sua iminência de forma colectiva. A ameaça de morte iminente não é provocada pelo ferro e fogo, mas pela doença. O mundo às avessas que se experimenta colectivamente opera também de transmutação dos valores outrora expressa pela revisão do sentido habitual dos termos.

Tucídides procede com a descrição de sintomas no interior (ta entos) do corpo. Como se alguém estivesse numa consulta a dizer ao medico as suas queixas. Contrasta-os com o que se passa do interior do corpo para fora do corpo (to men ecsothen: 49, 5). A descrição faz-se de fora para dentro do corpo humano. Os sintomas evoluem da cabeça para o estômago e do estômago para as extremidades. Depois a descrição faz-se de dentro do corpo para o meio ambiente, contágio e infecção. (2, 49, 2: sem nenhuma razão aparente, mas de repente, a doença ataca quando as pessoas estão de boa saúde).

A dada altura, as aves de rapina deixaram de comer carne humana. Depois, desapareceram por completo. A atitude geral das pessoas perante a vida alterou-se completamente. Deu-se uma mudança de mentalidades, a dissolução do pacto social.

Quem vive paredes meias com sofrimento e morte, perda de entes queridos tem a sua vida oprimida pelo facto de se tratar da solidão de cada um espelhada na solidão do outro. O carácter comum da doença deixou todos sem excepção numa situação histérica sem precedentes, nec plus ultra.

20 Mar 2020

A peste I

[dropcap]A[/dropcap] metamorfose da paz em guerra, a mudança de uma vida que corre bem para a impossibilidade de constituir um quotidiano não resulta apenas na violência extrema. Leva a uma alteração do próprio sentido e da sua compreensão. Até a correspondência das palavras às acções se altera convulsivamente.

Diz Tucídides nas suas Historias (3, 82.4): “A audácia selvagem” passou a ser considerada “coragem”, a hesitação, cobardia, a moderação, falta de virilidade, a consideração de todas as opções inépcia no agir, a conspiração, autodefesa, o extremismo, confiança; o intriguista, astuto. As associações não visavam o benefício, mas causar danos às existentes. A confiança fundava-se na cumplicidade decorrente dos crimes cometidos. A vingança superior à autodefesa. O cessar fogo valia enquanto o recurso à violência não fosse possível. Os patifes eram tidos por espertos e um bom homem estúpido. O orgulho em ser patife opunha-se à vergonha de ser-se bom.

A subtracção da possibilidade de uma quotidianeidade e do livre curso das vidas das pessoas em paz dá origem a uma inversão total no horizonte de sentido do modo como as pessoas são umas com as outras ou umas para as outras. Tucídides faz o diagnóstico da consequência da perda da base de confiança e possibilidade de entendimento em que haja uma quotidianeidade. Mas não faz apenas esse diagnóstico dos sintomas que são decorrentes de uma dada causa. Estalou a guerra civil. A sua pergunta é de segunda ordem. Qual é o motivo da deflagração de uma guerra.

“O fundamento de todas estas situações era o amor pelo poder que nasce na ganância e na ambição e as paixões que nascem quando os homens são lançados num combate.” (Th., H. 3. 83. 8).

Na raiz de todos os fenómenos que Tucidides elenca encontra-se a “natureza humana”. A ganância, a luxúria do poder, a ambição são os operadores categoriais que se salientam do plano de fundo: — O humano. É assim que Tucídides gosta de descrever os fenómenos: as primeiras ocorrências porque constituem a novidade. Mas está continuamente a detectar novas configurações num enquadramento “clínico”. Novas etologias para os sintomas.

A Guerra condiciona o humano. Mas o humano é condicionado pela pleonexia (ambição desmesurada, ganância). A ganância leva à transmutação total dos valores. Ou então à acentuação de um único modo de ser com eles. Querer ter tudo implica sempre um querer que os outros tenham nada. Elege cada pessoa como o “máximo” e todos os outros vêm por aí abaixo. O partido ou a facção é a hipostaziação do único que cada indivíduo é numa sociedade em que quem não é por si é contra si.

A descrição da peste tem um mesmo padrão.

Tucídides relata o início do surto. Onde e quando teve o seu início. Parte do pressuposto evidente mas que não deixa de enunciar. A doença tal como a guerra tem um poder destrutivo para a condição humana.

Descreve depois a forma como alastra. Geograficamente onde teve início: nas regiões altas da Etiópia, sobranceiras ao Egipto. Daí desce para o Egipto e Líbia. Penetra na maior parte dos domínios do Rei. Surge abruptamente em Atenas, onde flagela primeiro a população do Piereu.

[continua]

13 Mar 2020

Doença mental

[dropcap]D[/dropcap]a profusão da catalogação da doença mental no virar do século XIX para o século XX, há duas tipificações importantes que Emil Kraeplin esboça: a doença maníaco-depressiva (doença bipolar) e demência precoce (esquizofrenia). A psicopatologia geral acentua o anómalo e o anormal relativamente ao estado normal mais ou menos controlável não doentio em que a pessoa consegue funcionar. Há assim limites aquém e além da funcionalidade.

Embora o núcleo do diagnóstico seja a mente, há um envolvimento somático: fisiológico, morfológico, biológico do indivíduo, mas também ambiental e social, sincrónico e diacrónico. O diagnóstico é holístico de tal forma que os sintomas não se limitam a estudar uma interioridade do mundo próprio pessoal com a psicologia do indivíduo mas a totalidade da vida com todas as suas consequências que a vida mental ou psíquica tem para a existência. A causa e consequência é a vida no seu todo. “Anómalo” quer dizer em grego irregular, superfície acidentada, carácter inconsistente. É diferente do “anormal” que sai para fora da regra, da norma estatística do primariamente e o mais das vezes.

O modelo de Kraepelin consolidou a maioria dos principais transtornos afectivos numa única categoria, devido à semelhança dos sintomas nucleares, o histórico familiar de doença e, principalmente, o padrão de recorrência ao longo da vida dos pacientes, com períodos de remissão e exacerbação e um resultado comparativamente benigno, sem deterioração significativa.

Mas fundamentalmente considerou a mania (hipomania e euforia) como uma manifestação da depressão, não como um sinal distintivo de um transtorno bipolar separado, como o é na prática de diagnóstico norte americano de hoje.

A leitura do sintoma maníaco, hipomania e euforia, é historicamente decisiva. Nos hipocráticos ainda a melancolia e a euforia ou mania são sintomas diferentes de doenças diferentes. Lemos ainda no Fedro de Platão a quadrupla raiz da loucura como mania: Transe divinatório, transe de consolação, transe poético, transe erótico. A melancolia é um estado de dysthymia ou depressão sentido no quotidiano que pode alterar o estado da consciência como o vinho. Tem consequências positivas também porque permite a manifestação do génio em alguns homens extraordinários na acção e na teoria. A ligação entre estes dois estados diferentes do ânimo, como manifestações de uma mesma doença, em etapas ou épocas diferentes, é uma descoberta ulterior e implica claramente um diagnóstico lento feito diacronicamente, longitudinalmente. A integração de episódios heterogéneos com sintomas diferentes numa mesma etologia e terapêuticas idênticas implica uma revolução na hermenêutica do diagnóstico e consequente prognóstico. O diagnóstico diferenciado, a sua integração no meio familiar, história clínica de pais e parentes próximos antepassados e descendentes, interacções com amigos e colegas, relação com o meio social: profissional, classe, alargamento holístico é já uma consequência de uma interpretação da doença que tem como plano de fundo uma ontologia desenvolvida ao longo de séculos. A própria concepção da filosofia como terapêutica, homeopatia, relação íntima de uma doença para a morte, etc., etc., resulta do convívio existencial ôntico senão teórico e ontológico com a doença estudada pela medicina. A interpretação do ser da doença e da sua relação com a saúde, a interpretação do elemento saudável, do poder, afirmação, da vida resulta de uma cosmovisão filosófica da existência. A presença avassaladora nas nossas vidas de Healthclubs, SPAs, a indústria omnipresente do bem estar, SNSs, até a doença mental como doença do século, etc., etc.. são “objectos”, manifestações, fenómenos a ser interpretados numa vida que se compreende assim doente, mortal, decadente, com riscos de remissão, recaída, regresso a velhos hábitos, à má vida?

6 Mar 2020

Abóbada tubular

[dropcap]E[/dropcap]xistir num corpo não é estar dentro de uma anatomia. Somos estendidos num túnel, num tubo temporal. Há uma enorme dificuldade em comunicar a experiência do estender temporal que põe o corpo a ser tubular. Olho pela janela e encontro o mesmo céu de há 30 anos. Há uma ligação imediata entre o céu de agora e o céu de há trinta anos. Os trinta anos são um abcesso que não aparece. O mesmo se passou com o dicionário que vejo sobre a minha secretária. vi-o numa Livraria em Freiburg e depois em casa. O transporte do livro trouxe-o e ao mesmo tempo deslocou-o. Como penso a desmaterialização? Penso sempre que nunca há desmaterialização, que o que há é a matéria e contudo a maior parte do tempo as pessoas não existem, antes de terem nascido e depois de terem morrido, as coisas não têm realidade antes de terem realidade e depois de se terem desintegrado. O meu corpo desrrealiza-se, desmaterializa-se. Entre continuamente num túnel, num tubo que mantem a sua realidade metafísica e lhe permite telecinética e telepatia e o transporte de um sítio para o outro mas está continuamente a deixar de estar no sítio em que está e se está no mesmo sítio está continuamente a deixar de ser no tempo em que era para ser no tempo em que é agora e no sítio em que existe agora ou onde for. O corpo que chega de uma viagem é um corpo diferente do corpo que inicia a viagem, desmaterializou-se, desrealizou-se, passou para um domínio do onírico e não apenas por está mais cansado ou diferente, mas porque não é recuperado, não está no mesmo sítio, nas mesmas coordenadas do GPS, na mesma situação existencial, o carro em que se encontra é irrecuperável e se compararmos com a memória nítida que temos dos momentos iniciais da partida, sabemos que são momentos irrepetíveis, não podemos entrar nesse carro, esse carro é o mesmo carro, mas já não podemos entrar nele, já não existe, já se desmaterializou, agora é o carro que acabamos de arrumar, de onde saímos, fechamos e trancamos a porta, está continuamente a ser trancado e podemos acelerar o processo de blindagem ao percebermos que a cada instante a secção circular ou global de cada tubo temporal fica irreversivelmente inacessível ao portal da realidade, do tempo da realidade, ao tempo e ao espaço da realidade. Fica acessível ao portal virtual do tempo e do espaço da realidade virtual, onde podemos navegar e ir com o nosso corpo ou os nossos corpos de que nos armamos e com que forramos as nossas existências reais com que nos transmutamos e metamorfoseamos, sem dúvida, mas só para perceber que há uma diferença entre transpor esse portal e não o transpor. Mas percebemos que há continuamente barreiras que estão a ser erigidas ou portas temporais, cascatas temporais, que não permitem aceder às galerias abobadais que estavam presentes justamente há pouco, mesmo agora, no lugar exacto onde estávamos, quase no mesmo preciso instante do mesmo agora. O ser é o ir, o ir é o deixar de ser que desmaterializa e continuamente concretiza ou materializa mas existe no arco tenso de que não nos apercebemos. Somos o portal onde se abre e fecha, onde se dá a materialização e a desmaterialização do ser ainda a devir. O nosso percurso no túnel existencial, no globo universal na sua deslocação temporal tubular é uma nave, uma nau como os antigos bem viram como quando olhamos o céu e vemos as nuvens passar e pensamos que estão paradas e somos nós que nos deslocamos ou então que estamos parados algures na Terra, e que é ela no seu todo que se desloca errando vagabunda pelo vasto cosmos. Somos portadores da totalidade complexa da cápsula em que estamos submersos, o espaço estrutural que está continuamente a fazer-se e a desfazer-se, a refazer-se o projecto é o lance que de antemão está a antecipar no seu todo o sentido do momento seguinte.

28 Fev 2020

Ser é querer

[dropcap]“S[/dropcap]er é querer” leio no tratado da liberdade humana (Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana, 1809) de Schelling (Friedrich Wilhelm Joseph Schelling 1775-1854). Não é um querer de uma vontade qualquer, dessas que se apregoam nos livros de auto ajuda, como se não fôssemos os objectos preferenciais de ajuda. Nem é o querer da frase batida: “querer é poder”. Não se entendermos a frase como o slogan do empreendedorismo da self-made mulher/homem de sucesso, entendido como o êxito expresso no que pode financeiramente, na vida boa que “tem”. Schelling interpreta este “querer” como o agir acção de uma vontade de um “eu”, não existindo nada que não seja conforme a um “eu”. Toda realidade objectiva estudada pela mecânica pode ser considerada uma natureza morta. Contudo, a natureza morta existe paredes meias com a natureza viva. A inércia existe em tensão com o movimento. São manifestações possíveis de um mesmo sujeito. O inorgânico tem em si partículas subatómicas numa dança louca inimaginável e como quer que pensemos átomos, não é de certeza em sossego. Diz Schelling que o ser humano em particular no fundo do seu ser tem um querer. Querer é ser. Cada pessoa para existir passa por este ser a querer. Todo o viver é interpretado como um querer. O romper da aurora tende ao nascer do dia. O crepúsculo tende ao cair da noite. Ir nas horas tende ao fim de cada uma. O fim de cada hora e de cada tempo é o início de cada outra hora e de cada outro tempo ou fase de tempo. Todo o instante está cheio de um ser que é um querer mesmo quando não pensa que quer ou deixa de querer, mesmo até quando explicitamente não quer ou quer que qualquer coisa não aconteça. Não querer não é nada. Não querer exprime-se em cada pessoa de formas extraordinárias de protesto, em que se diz não, age contra, interdita, proíbe, boicota, cria distância, afasta, desiste, renuncia. Querer testemunha-se de modo extremo quando achamos que não conseguimos, quando sentimos que estamos à beira da desistência, quando parece mesmo que não se é capaz. Querer é oferecer resistência, é não desistir, é insistir. Falamos connosco na segunda pessoa do singular do presente do imperativo “aguenta!”. Pedimos capacidade de resistência e um instante de tempo para perseverar. Um só instante em que “não deitamos a toalha ao chão”, um breve lapso de tempo, pode representar toda uma vida de sentido. O momento em que se desiste dura o mesmo tempo que o momento em que se resiste menos aquele brevíssimo instante em que se fica ainda. Esse brevíssimo instante de resistência dá sentido a toda uma vida. O tempo da desistência, mais breve do que o da resistência, estende a sua sombra por toda a nossa vida, é lamentado e temos pena de não ter aguentado.

Não ter sido não quer dizer que não “seja”. Aquilo de que desistimos e não fizemos, aquilo a que renunciamos e que não fomos, o “não”, o negativo, a nulidade existe e está encastrado nas nossa vidas. Mas Schelling dá um sentido decisivo ao querer ser de que cada pessoa é portadora. Não é apenas um querer resistir nem um não querer desistir, nem a avaliação complexa das diversas possibilidades que se jogam nas nossas decisões com verdades e consequências, bases, motivos e fundamentos num complexo de relações. Desistir pode ser sensato como resistir. É óbvio. Em todo o caso, parece que é depois de “elas se darem” que podemos fazer um diagnóstico da situação, o que contradiz a própria ideia de diagnóstico, porque vem tarde demais. E não só. Não sabemos bem se poderíamos escolher de outra maneira, adoptar outras medidas diferentes, resolver de outro modo. Ser é querer porque o seu sentido como todo o querer é futuro. Não apenas o que cada um de nós quer não é possuído ou se o é, queremos continuar a ter isso à nossa disposição, como o que move todo o querer é algo que se quer ao manifestar-se a partir do futuro como um polo de atracção que nos atrai para si, que é sexy, tem sex appeal, nos vira para lá, mexe connosco, faz-nos virar para lá, orienta-nos e dirige-nos. Mas o querer do ser não é de uma única coisa, de muitas coisas ou de todas elas. Para o querer do ser é o querer de si, um querer-se a si nas suas manifestações positivas: querer simplesmente e positiva: “não quero mais isto!”. Schelling diz que há em cada ser humano uma saudade que faz vibrar todo o nosso ser, porque é a própria vibração do ser a ser, independente de mim, ti, dela ou dele. É uma saudade do ser que faz querer, um querer de nada em particular mas sempre de um querer-se-a-si, não para continuar a ser o que é, mas que se perspectiva como nunca tendo sido. Querer-se a si descobre-me como não existindo, não tendo sido verdadeiro, não tendo sido o meu potencial. E desse meu eu verdadeiro que não fui ou ainda não fui que o ser tem saudades, afinal eu não fui ainda. As saudades de me parir.

21 Fev 2020

Semiótica

[dropcap]O[/dropcap] sinal de proibido, um círculo vermelho com um hífen branco – lembra-me sempre por associação imediata a bandeira da Suíça – está bem pendurado na cancela amarela, mesmo no meio da rua onde habitualmente arrumo o carro. Antes mesmo de lá chegar, contrariado, claro, corto à esquerda, a única opção para virar de que disponho, se não quero ficar parado, especado no meio da estrada. Ao fundo da rua, está o sinal azul de sentido obrigatório com a seta branca virada para a direita. Tomo esse rumo. Guio por ruas intersectadas por outras com sinais de proibição de virar à direita e à esquerda, que, na vertical a estrada negra na horizontal, sobre o fundo branco, é proibida a vermelho. Automaticamente, respondo às interdições e às proibições, obedeço de olhos bem abertos ao obrigatório sem pestanejar. O caracter deontológico é plasmado na condução sob pena de, ao desobedecer, a integridade física do próprio e de terceiros ser posta em causa.

O problema que me é posto resulta do fecho de uma rua, presumivelmente para obras. O problema obriga a um programa de resolução: como estacionar o carro na proximidade, ir onde se tem de ir para tratar do que se tem de tratar. As soluções não são desenhadas no papel, nem na imaginação, nem na fantasia, nem no GPS. Nunca tinha passado pelas ruas pelas quais passei até estacionar o carro onde acabei por as ter estacionado. Desde o primeiro confronto com o problema que obriga a uma solução durante a condução, e, na verdade, uma solução que passa por manobras ao volante, sem parar o carro no meio da rua, virando o volante para a esquerda, reduzindo a velocidade, engatando a primeira, subindo a rampa, até ao segundo momento quando, depois de ter cortado a rua, me deparo com um novo sentido obrigatório de rumo à direita, e assim sucessivamente, até ter soluções para a esquerda e direita. Quando essas possibilidades se me apresentaram, houve um primeiro momento em que uma má escolha me fez regressar ao ponto de partida, tendo sido obrigado a conduzir no perímetro de um círculo. Da segunda vez, tendo chegado a essa bifurcação, segui, sem saber onde iria dar, pela segunda opção, no sentido contrário. Quando encontramos sentidos proibidos ou sentidos obrigatórios, escolher, por estar condicionado, tem a sua opção determinada.

Há um jogo contínuo entre antecipação vazia, não abstracta, mas concreta e tensa, que pergunta sem verbalizar: “e agora? onde vai dar esta estrada?” e o preenchimento que vai esclarecendo o sentido das opções tomadas ainda que demore tempo, o tempo de fazer uma rua ou mais ruas em toda a sua extensão, até chegar finalmente a um ponto conhecido de uma rua ou de um bairro da cidade, a partir do qual se trace uma linha de orientação com uma direcção definida até ao ponto terminal, onde queremos ir, estacionar o carro, sair, ir fazer o que temos de fazer, ao ir onde temos de ir. A antecipação projecta-se de antemão sem que haja qualquer espécie de reflexão do género “deixa lá ver onde isto vai dar”. Não há tempo. Tudo acontece rápido demais, dá-se ao mesmo tempo em que se age, guia o carro, faz escolhas, toma medidas, nos resolvemos mesmo sem saber onde vamos dar, mas continuamos, porque ficar parados no meio da estrada não é opção.

“Vemos” sempre mais do que achamos que vemos. A nossa percepção da realidade, quando conduzimos, está montada numa acção hermenêutica que é semiótica pragmática. Eu explico-me. O que é que uma rodela de metal vermelha com um hífen branco? O que é uma rodela de metal azul com uma seta branca a apontar para a direita e para a esquerda, dada a sua posição, mas também podia ser para cima e para baixo? O que é que um triangulo branco de base invertida com rebordos vermelhos? O que é uma rodela branca de rebordo vermelho com o que parece ser uma minhoca no seu interior e um traço vermelho a cortar o seu diâmetro?

Os sinais de trânsito assinalam realidades heterogêneas e é decisivo compreender o que exprimem e que interiorizemos as suas indicações. Mas os seus conteúdos perceptivos visuais “nada dizem” por si sozinhos sem a interpretação semiótica do seu sentido simbólico e as nossas acções na condução têm de expressar na perfeição a codificação: obrigatório, proibido, interdição, perda de prioridade.

Estamos sempre mais à frente do que o tempo presente em que nos encontramos. Não só porque estamos dentro do carro e percebemos tudo o que está mais próximo de nós mas simultaneamente temos uma percepção, através do vidro, do sinal na cancela, o sinal no poste no passeio junto à parede lá ao fundo da rua, ou porque vemos já a bifurcação ou cruzamento lá ao fundo, a curva acentuada, a descida ou subida íngremes. Temos uma percepção dinâmica que nos desmobiliza ou mobiliza para “fazer” ou “não fazer” toda a estrada. Quando encontro a estrada fechada, eu não “vejo” toda a estrada que podia ser feita “na minha imaginação”, mas há uma “frustração” de expectativas, a intenção de passar por lá, aí estacionar e deixar o carro, a intenção como possibilidade mental, desfaz-se. Refaz-se outra intenção de significação que se projecta sobre a estrada, por onde agora conduzo, sem saber onde vai dar, se corto à esquerda ou à direita, se sigo em frente. As possibilidades apresentam-se mas não são estáticas, não se esgotam nos “troços” de estrada que me estão dados a ver – muito diminuídos na visão deles por causa dos prédios – mas são antecipados em projecção espontânea como caminhos que vão dar a sítios, ainda que indeterminados.

14 Fev 2020

A vivência e a melodia

“Quando inventamos uma melodia, é a melodia que canta em nós muito mais do que somos nós a cantá-la; ela desce pela garganta do cantor como diz Proust. Do mesmo modo que o pintor é fulminado pelo quadro que não existe, o corpo fica em suspenso pelo que canta, a melodia encarna-se e encontra nele uma espécie de servo.”
Merleau Ponty, La Nature, Ed. Dominique Séglard (Paris 1995) 228

 

[dropcap]A[/dropcap] relação intrínseca com a vida transforma a relação com todas as ruas, estradas, caminhos o que lá fazemos, como vamos por lá, vimos por lá. É sempre diferente uma rua quando lá vamos tratar de um assunto ou quando vamos passear. O assunto altera a rua. O sentido da rua e o modo como se percorre a rua é diferente e acentua-se quando não pode ser dissipado no algoritmo da normalidade do modo como usualmente estamos quando por lá passamos, vindos de… indo para… Quando regressamos a um local onde íamos. A rua perfila-se com a estranheza que a revela num tom diferente do tom habitual, que não é necessariamente monótono mas que tem um acento tónico predominante e paradoxalmente é atónico.

Conseguimos escutá-lo por contraste, retro-acusticamente, se assim se pode dizer, ainda que estejamos completamente envolvidos por ele. Estamos é tão habituados ao tema monótono que ele se converte numa atonia tal como quando nos habituamos aos ruídos do dia-a-dia ou mesmo ao barulho ensurdecedor de um concerto de um bar ou de uma discoteca. Só quando entramos num meio acústico diferente percebemos o zumbido nos ouvidos e como a música estava alta. O mesmo se passa na cadência, ritmo e melodia, volume sonoro com que as ruas emergem, são ouvidas e escutadas por nós na atmosfera particularmente acústica com que as vivemos na nossa redoma atmosférica. Quando a rua emerge à memória não é nunca uma imagem, muito menos apenas uma imagem óptica como um fresco ou um postal panorâmico. Nem mesmo um postal pode ser reduzido a um conteúdo estritamente visual. Quando passamos em revista as ruas das nossas vidas de que dei um exemplo – cada um terá os seus caminhos, passeios, avenidas, estradas, etc. – podemos activamente tentar lembrar-nos de uma única tal como o fiz aqui. Mas eu percebo que esta rua se destaca na minha vida. Posso perguntar se tem uma carga simbólica, posso perguntar porque razão a rua me surge em tantas memórias. Sei que um grande amigo do meu pai lá foi atropelado. Mas não há um nexo causal entre o facto do atropelamento e a importância simbólica dada à rua. A 24 de Julho não surgiu nunca sempre envolta numa atmosfera lúgubre nem a sua tonalidade vibrou melancolia ou tristeza. A primeira apresentação da 24 de Julho quando estou no carro, deitado ou tão pequeno que só olho para cima, são os carros no exterior, os autocarros gigantescos. Lembro-me de me ter assustado e de me terem acalmado. De repente estava ali no meio do trânsito como se estivesse no meio de dinossauros. Nem percebo como identifico e reconheço claramente a rua como a 24 de Julho. A rua surge pela primeira vez como as primeiras vezes e quando surge traz ainda consigo o que foi aberto nesse encontro, no encontrar-me nessa rua, no abrir-se-me a situação de estar na estrada, no meio do trânsito, a vida vibra o seu ritmo à hora de ponto, com trânsito já nos anos sessenta em Lisboa, estonteante, barulhento, angustiante, estressante, oprimente, imponente e ao mesmo tempo sou sossegado ou tranquilizado ou serenado. O encontro com a rua é revelado ex post facto na vibração tonal particular da atmosfera da rua, portanto, depois do momento ter ocorrido.

Mas a vivência desse momento biográfico tem em si implicado a sua verdade, uma verdade que pode ser descoberta ou que se deixa descobrir “musicalmente”.

7 Fev 2020

Umwelt VI

[dropcap]É[/dropcap] do fundo dos tempos que vêm memórias da “rua” como o centro do “milieu” da infância e da primeira juventude. Mas a mesma “rua” sofre metamorfoses. Ruas diferentes desempenham a mesma função nas vidas de diferentes pessoas, tenham essas pessoas sido crianças que tivessem brincado na rua ou não. Martha Muchow no seu estudo sobre o Espaço Vital da Criança na Grande Cidade (Der Lebensraum des Großstadtkindes) analisa “a rua” como objecto multidimensional, estruturado pelo mundo pessoal partilhado pelas diferentes faixas etárias que lá passam o seu tempo de vida. O conceito “Umwelt”, o mundo ambiente, o mundo em redor, o mundo envolvente, o meio em que cada um de nós vive, estrutura o sentido, dá e retira importância, faz ver, acentua e apaga ou não permite ver o que encontramos na rua, tal como é encontrada por um grupo de pessoas de uma dada faixa etária. No limite, cada pessoa é portadora dessa mesma estrutura que dimensiona a importância afectiva de um local para si, que lhe permite ter a percepção, por exemplo, do bem estar e acolhimento ou do mal estar de um lugar que sente como inóspito.

“Ir para a rua” não é “ir para fora de casa”. É ir para onde uma criança se sente em casa. A hora de ir para a rua pode ser da parte da manhã, a qualquer dia da semana, mas é mais durante os dias de escola e da parte da tarde ou sábado à tarde que as crianças se encontram com os seus pares na rua. É raro um miúdo estar só na rua. A rua parece que está fechada para ele, embora, como dizem os pais, ele saiba “entreter-se sozinho”, coisa que acontece, maioritariamente, quando está a brincar no seu quarto e não na rua. A rua “abre” ao funcionamento quando chegam “os outros”. Os outros são aqueles com quem se brinca, pelo menos tem de haver um com quem se estabelece uma comunidade para brincar.

A rua, tal como um adulto a vê, não existe. A rua que serve para atravessar de um passeio a outro, que serve para ir de um lado para outro, que serve para percorrer ou conduzir, onde estão sitos os lugares dos prédios, para onde se vai e de onde se chega ou de onde se vai sair e parte, onde há lojas de comércio ou nenhum comércio, é agradável e tem árvores ou é despida de árvores e “sem graça nenhuma”, — a rua das crianças existe num outro mundo, numa outra dimensão. Para entrarmos nela é necessário uma modificação do olhar.

A rua transforma-se em cada jogo. Um carro, um prédio, uma esquina dobrada, uma loja passam a ser “esconderijos” no jogo das escondidas. Para quem se esconde, são sítios onde fica invisível, indetectável ao radar perscrutante de quem anda à procura, é o único sítio que não irá ser objecto de busca, por outro lado, tem de permitir a observação das operações de quem anda à procura, a fazer as buscas. A rua, pelo contrário, para quem está à procura dos esconderijos de quem se escondeu é a superfície possível de interiores inescrutáveis que tem de ser examinados, onde os outros se foram esconder. Não podem ser todos os prédios da rua, mas aqueles onde o próprio se esconderia, nem todas as lojas, mas aquelas cujos donos permitiriam um miúdo esconder-se, nem todos os carros, mas aqueles que ofereceriam um melhor esconderijo. A rua passa a ficar toda ela envolvida num cenário de guerra, em que quem se esconde sai de si para pensar como o seu perseguidor pensa e quem persegue procura pensar como o seu fugitivo pensa. A rua passa a ser um lugar de atalaia, onde se controlam situações, onde se pode mudar de esconderijos sem se ser apanhado, é o lugar transformado em forma e fundo, superfície e interior, lugar de esconderijo, deixa de haver carros, prédios, lojas, esquinas, outras ruas.

O mesmo se passa no jogo da apanhada. Ninguém atravessa a rua de um passeio ao outro em linha recta no mesmo passo a andar, mas antes as crianças parecem moscas a voar dos mais diversos sítios possíveis para não serem apanhados, muitas expondo-se aos perigos dos carros, da queda provocada pela velocidade do passo de corrida, da aceleração, travagem brusca, rodopio, esquiva rápida, contorção do corpo, tudo isto para evitarem ser apanhados enquanto quem está a apanhar estica os braços, passa por cima dos carros como se fossem obstáculos, fixa-se em vários alvos ou só num, mobiliza-se num para passar a focar-se noutro que lhe ofereça oportunidade. A rua passa a ser o local onde se corre de um lado para o outro sem respeito pelo perigo causado pelos carros que podem passar ou pelos outros transeuntes. Como no jogo das escondidas há um perseguidor e perseguidos, mas estes não se escondem. Estão à vista, à luz do dia, mas em vez de estarem de cócoras sem falar escondidos num esconderijo, são barulhentos, gritam e riem-se à gargalhada, correm a alta velocidade em movimentos não uniformes, esquivam-se à luz do dia. A rua é um palco completamente diferente daquele onde os adultos desempenham o seu papel: a rua onde vivem, de ondem saem para trabalhar e onde regressam a casa ao fim do dia, a rua que atravessam para ir buscar o carro, onde arrumaram o carro, onde vão visitar alguém, que passam a correr com pressa ou devagar sem nada para fazer. Mas é uma rua completamente diferente de quem está a brincar às escondidas ou à apanhada.

E alguém chama pelo nome de uma das crianças. O mundo mágico e fantástico interrompe-se. Voltam para casa. Mas a rua não se desfez do mundo do jogo e da brincadeira para ser a rua dos adultos. A rua foi interrompida e está tal como o campo da bola no intervalo.

5 Fev 2020

Umwelt V

[dropcap]N[/dropcap]a sua investigação, O Espaço Vital da Criança na Grande Cidade (Der Lebensraum des Großstadtkindes 1935), Martha Muchow identifica o mundo infantil e o mundo juvenil em contraste com o mundo adulto (dos crescidos). A palavra para mundo que usa é Umwelt. A palavra em alemão traduz milieu das humanidades (filosofia política, sociologia). É, porém, com as investigações biológicas de J.J. v. Uexküll e as suas reflexões teóricas sobre a sua actividade científica que Umwelt se instala. A problemática a que lhe está associada alastra para as ciências humanas e para a filosofia. Os pensamentos filosóficos podem estar durante séculos, que digo eu, podem estar milénios até, adormecidos. Estão adormecidos na “cabeça” ou na “mente” de quem espera apenas a oportunidade para acordar. A vida do “espírito” — palavra que quer dizer tanta coisa (fui ao Google, escrevi “Espírito”, deu-me: ‘Cerca de 246 000 000 resultados (0,53 segundos)) — é radicalmente diferente de qualquer outra forma de vida, tem outro “ser”, como dizem os filósofos, existe de forma intermitente numa geração e pode influenciar gerações que viveram séculos separadas umas das outras. O prefixo “Um-” quer dizer em “em redor”, “à volta”. Mas em Um-Welt não se trata apenas de expressar uma ideia espacial bi-dimensional, como se um ser vivo, uma planta ou um animal ou um humano, tivessem campos naturais circulares para a sobrevivência, delimitados por circunferências que esboçavam as zonas limite, além das quais sairiam das suas zonas de conforto. O prefixo quer dizer tal como a expressão composta em português “meio-ambiente” precisamente uma estrutura tridimensional. Tri-dimensional, pelo menos, à partida. Falamos de ambiente nesta expressão quando falamos de estudos do “meio”. Aqui, encontramo-nos no domínio da moderna ecologia em sentido estrito de técnicas que procuram salvaguardar o planeta, não destruindo o que se pode salvar e tentando recuperar o muito que foi destruído. Em sentido lato, ecologia é uma disciplina filosófica que tem como objecto o modo de lidar com o mundo tal que se possa compreender como se torna acolhedor o que é inóspito e se pode habitar o planeta Terra, mas também quais são as estruturas ínsitas e subjectivas de que somos portadores que são exportadas do nosso interior para mobilar uma casa que é predominantemente constituída apenas por elementos. Por exemplo, como é que de um monte extenso de areia se faz uma praia, como é que de um volume imenso de água se faz um mar para nadar, como é que de uma rocha côncava fria e inóspita se faz casa. A Umwelt é assim um mundo envolvente, um mundo ambiente, que não se circunscreve a círculos no interior de circunferências, nem ao traçar de fronteiras entre o aquém da habitabilidade e o além da habitabilidade, entre o aquém do habitual normal e o além do inusitado insólito, entre o aquém da zona de conforto, acolhedor e hospitaleiro, e o além que sai para fora da zona de conforto, inóspito, estranho, perigoso, angustiante. A Umwelt é como v.

Uexküll descreve, mantendo a metáfora geométrica um globo. Os problemas que se põem com esta concepção do mundo são tão fascinantes como angustiantes. Em primeiro lugar, todo o estudante de filosofia que se apegue à modernidade, e mesmo referindo todo o estudante de ciência que, com o seu escrúpulo de racionalidade, tenha formado uma representação do mundo como uma substância material e corpórea e no limite: extensa, o vasto cosmos, o universo visto através do reticulado cartesiano X, Y, Z, passa agora a ter de ser ver “enfiado”, “metido”, num mundo globular, abobadado não apenas para cima mas também para baixo e para cada um dos lados, o que é mais complicado. A outra das perguntas interessantes a fazer é se este “globo” que é o mundo à distância é aparente ou é real e objectivo. A abóbada celeste é real ou é aparente? A linha do horizonte que divida o mar do céu é real ou é aparente? Ou somos nós portadores do próprio “globo”, nós e cada animal, cada planta, cada ser vivo, terá uma textura que encontra porque está já preparado este globo no mundo em si ou, antes, cada ser vivo traz consigo o seu próprio mundo “globular”? Assim, ao transplantarmos uma planta de um solo onde se encontra enraizada para um outro solo, por exemplo, uma vinha de Bordéus para a Califórnia, o fazemos porque vamos encontrar solos idênticos, clima idêntico, etc., etc., ou fazêmo-lo porque a vinha, a uva, o grão da uva é portador geneticamente da estrutura mundana globular que se pode expandir nesse outro sítio e nunca num outro solo que lhe fosse inóspito, hostil, destruidor? O mesmo se passa para cada mundo global, globular, no meio do qual cada ser vivo, planta, animal ou humano existem. Cada ser vivo existe no interior de uma esfera, numa redoma transparente, mas não se apercebe de que todos os conteúdos estão já a ser vistos, transformados em todos os campos sensoriais por películas que recobrem não apenas as fronteiras anatómicas do corpo dos seres mas também as superfícies e os interiores das coisas que aparecem nos mundos de cada animal, planta ou ser humano. Assim, como dizia v. Uexküll, a um cão só aparecem objectos caninos, não aperecem objectos humanos. Um osso com o qual um cão brinca parece ser o mesmo objecto para um ser humano, mas não vemos um ser humano latir, saltar, correr atrás de um osso como um cão, nem depois de correr para o apanhar, com a cauda a dar a dar de contentamento, não o vamos entregar a quem o tiver atirado, ao nosso dono. O osso do cão é diferente do osso para o ser humano. Os objectos para o ser humano são objectos humanos. Mas a pergunta pode ainda ser feita de forma mais radical. Pode acontecer que um modo global, o globo em que eu existo seja diferente do mundo global, do globo em que “tu existes” e de tal modo diferente que nem eu nem tu partilhamos do mesmo globo ou antes o que chamamos o mesmo globo é um mundo global, globular também, mas partilhado e comum e, por isso, diferente de cada um dos mundos individuais que, por serem individuais, são impermeáveis de pessoa para pessoa. E de forma ainda mais radical, poderá acontecer que o mundo que outrora habitamos quando éramos crianças se perdeu no fundo dos tempos?

Não terá acontecido o mesmo para o mundo da juventude? É o que queremos saber com Martha Muchow para a semana.

17 Jan 2020

Associação

[dropcap]U[/dropcap]m dos factos experimentados por nós na vida é a lembrança imediata de tempos idos provocada por uma percepção actual da realidade. A formulação teórica deste “facto” pode até inibir a facilidade com que fazemos essa experiência. A psicologia fala de “associação”. Mas já Platão tinha construído o argumento para demonstrar a especificidade da lucidez humana nesse facto. O modo como vivemos o que acontece é o de uma contínua tentativa de reconstituição e interpretação do passado, mas também do presente e do futuro, como se os conteúdos da realidade por si sós fossem insuficientes e não trouxessem consigo nenhuma explicação do que são, mas também porque a sua realidade é fluída. Tal como um som só existe distribuído numa sucessão temporal, mesmo quando admite coexistência e simultaneidade de sons (não apenas uma voz mas uma sinfonia de vozes), assim também qualquer manifestação noutro campo sensorial: uma fragrância (o aroma a sardinha grelhada à tardinha num bairro popular em Lisboa), uma configuração (a variação e esbatimento do céu como plano de fundo cromático à forma do sol a pôr-se: azul claro, escuro, laranja, fogo, púrpura, negro), táctil (palma da mão que acaricia o rosto de alguém), paladar (trincar uma maçã, mastigar, engolir). Todos os fenómenos da realidade são distribuídos no tempo para acontecerem. Sem tempo são como os fenómenos exclusivamente acústicos que dependem quase unicamente da dimensão do tempo para ocorrerem e decorrerem. Assim, tudo o que acontece num só dia passa ao fim desse dia, embora haja situações em aberto que demoram meses, semestres, anos, até a vida inteira a concluir. Outras situações há que não são conclusivas. Mas importa frisar isto. No fim do dia, o que estava na nossa agenda, tendo ou não sido tratado, teve o seu momento, passou, está, mal ou bem, teve cumprido ou não, o seu tempo. Daí que, no fim do dia, quando conversamos com alguém sobre o dia que passou, haja uma reconstituição do que se passou. Não é apenas uma invocação por memória que activa uma percepção passada, com um determinado conteúdo, exactamente como se passou tim tim por tim tim.

Ao conversar-se no fim do dia sobre o dia que passou comemora-se, isto é, lembramos a dois ou a três, colectivamente ou a sós na calada da consciência, o que se passou. Temos a oportunidade de reviver outra vez o que foi vivido, como se “realizássemos”, “editássemos”, “contássemos pelas nosssa palavras”, “déssemos a nossa versão”, do que se passou. Mas não adoptamos nenhuma atitude correspondente perante o acto de “realizar”, “editar”, “contar uma versão”, “dizer a verdade”, “expressar um sentido”, “invocar o passado”. É assim que habitual e normalmente estamos “by default” ao conversar sobre o dia vivido, ao contar como foi e ao ouvir dizer ao outro o que lhe aconteceu. De memória e percepção como actos psicológicos não temos nenhuma noção. “Estaríamos feitos” se estivéssemos à espera de aprender com a psicologia o modo de aceder ao passado e de contar o que se passou. Despertamos logo com essa possibilidade, com ela “jogamos” desde sempre, está “aberta”, “disponível” para nós e contamos com essa abertura e disponibilidade nos outros. O que não é nada evidente. Quando olho para o outro no seu ambiente perceptivo ao pé de mim e me conta que esteve em agências bancárias, nas Finanças, eu não “vejo” o WhatsApp meio pelo qual “converso” ou o interior do meu carro, onde tenho a conversa, ou a cara do outro com quem estou. Eu sou atirado para o tempo passado com o compacto implícito, complicado, integrado, mas susceptível de ser desdobrado do que se passou. Correu bem no Banco. Mas nas Finanças!… Eu sou transportado para lá. Não sou eu lá, como se fosse a mim. Eu não preciso de me transportar para lá e tentar pôr-me no lugar do outro de modo altamente reflexivo e teórico. Simplesmente, eu capto a realidade total, concreta e maciça, num ápice, do que o outro me está a contar, num “resumo” disposicional, numa abertura que me permite “espreitar” para dentro das horas infindáveis até ser recebido, para depois ter resolvido o assunto em tão pouco tempo e, depois, ter podido seguir com a sua vida. Como também se pode ter a abertura que permite o transporte num abrir e fechar de olhos que tem a percepção de como foram boas as férias de três semanas passadas por alguém que as aproveitou para descansar. Sente-se desanuviamento, tranquilidade, serenidade, sem o ramerame dos dias a passaram nas três semanas, mas sente-se o transporte telepático e telecinético para lá, seja “lá” onde for, seja “três semana” o que for.

10 Jan 2020

Síntese passiva III

[dropcap]O[/dropcap]s manuscritos de investigação (“Forschungsmanuskripte”) de Husserl constituem a esmagadora maioria do seu legado filosófico à humanidade. O que publicou durante a sua vida, é a ponta do Iceberg da sua actividade produtiva. Husserl pensava a escrever. Escrevia em estenografia, uma forma de escrita rápida, taquigrafia, que procurava acompanhar a rapidez do pensamento com a “pena”. Escrevia tanto que uma das incumbências dos seus assistentes era o de encontrar no meio dos papéis o que tinha escrito sobre os temas recorrerentes: “tempo”, “redução”, “filosofia”, “mundo da vida”, “experiência”, “vivência”, etc.

Quando os escritos são levados para Louvaina, é preciso um camião para os levar. Se pensarmos que em cada página escrita em estenografia estão muitas páginas em escrita normal e por maioria de razão muitas mais páginas impressas, não é difícil de compreender porque razão ainda hoje, volvidos mais de 80 anos após a sua morte, os escritos de Husserl estão ainda a ser publicados. Neles encontramos muitas páginas, em que Husserl procura fazer o acompanhamento dos momentos de transição entre estados de consciência descontínuos. A tentativa deste acompanhamento é artificial à primeira vista. Pelo menos, requer que se monte um aparato teórico. Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y. X vem depois de W. Y antecipa Z. W, X, Y, Z são momentos da consciência que podem ser apreendidos num ápice, num instante, num só momento de tempo, num flash! E, contudo, nessa cristalização que fixa, congela e paralisa, o conteúdo fixado, congelado e paralisado é uma sequência: X, Y em que X e Z estão esbatidos mas estão anexados ou mantidos em associação de algum modo, como Husserl diz tecnicamente: Y retém ainda e mantém anexado X. X associa, faz lembrar, cria o prospecto de Y. X e Y, na verdade qualquer momento de tempo isolado tem esta possibilidade relacional constitutiva, não é uma substância. É uma relação “pros ti”, como Simplício bem viu com olhar clínico em Aristóteles. Isto é, todo e qualquer instante no tempo não é nem em si nem absoluto (absolvido do anterior e do ulterior, por exemplo, não será nunca, porque seria sem antes e sem depois). Qualquer instante é sempre constituído por relação com o anterior que foi mesmo há pouco mas não é já e com o seguinte que não é ainda. Todo e qualquer instante é um istmo entre duas negatividades, duas negações da realidade: o passado que, por mais breve que tenha sido a sua cessação não é já e um futuro que por mais iminente que seja, não é ainda. O que é agora mesmo e está a acontecer, a dar-se, a efectuar-se, a efectivar-se, actualmente continuamente a acionar-se na realidade, existe entre um não já e um não ainda.

Ora bem, onde é que nós nos encontramos para “compreendermos” esta sequência de “não’s” e de “sim’s”? Pairamos em suspenso sobre a realidade? A representação geográfico do olhar de cima para baixo permite ver à esquerda os não’s do passado que já não são e à direita os não’s do futuro que ainda não são. Como na escola se desenhava o eixo das abcissas no quadro e o menos infinito era à esquerda e o mais infinito era à direita. Então, o instante presente tende para o grau zero. Mas do ponto de vista temporal, a coisa é diferente e altera-se na sua forma. Quantos minutos passaram depois de eu ter escrito “Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y”? Há momentos que a antecedem e se esfumam. Não se sabe bem o que estava a passar-se na realidade, embora eu consiga ainda invocar o cheiro a pão torrado e a café, o ruído dos aviões a esta hora do dia com muito tráfego aério, mas também que tinha pensado ir treinar e desisti porque tinha coisas para fazer e podia ir ao meio dia, que tinha coisas para ler, mas a crónica era uma prioridade, que tinha antecipado o fim de semana antes de ter antecipado o fim de ano. Momentos houve depois de a ter escrito em que a realidade está fixa em protocolo: todas as frases que escrevi, mas também todos os pensamentos que tive, o mal estar do corpo porque está muito frio nesta manhã de Dezembro, debati-me com formulações e pensamentos sobre como o dia se ia processar e como tenho de ver exames e dar notas, que tenho de puxar persiana (Deus meu: perdi uns bons 30 segundos à procura da palavra “persiana”. Ia escrever só: janela. Mas ninguém puxa janelas). Estamos continuamente a entrar para dentro da “bola de sabão” universal do momento de tempo presente que de cada vez tem a forma do X, do Y, ou do Z, mas que nos envolve também a nós. Sou eu e X, sou eu e Y, sou eu e Z, sou eu e X e Y e Z e nunca a apenas eu e X+eu e Y+eu e Z como se avançasse aos solavancos, e quando X, Y e Z é uma sequência fixa num ápice, tratasse de um lapso de tempo que também me faz escorregar, também me transfigura, me distende, me metamorfoseia de algum modo. Eu tenho de estar distribuído temporalmente por X, Y e Z para perceber que vejo X e Y e Z e que de cada vez que vejo um momento há momentos que não estão lá na realidade mas que eu “faço ser”, que eu “dou como feitos”, que eu “ponho lá”.

Quando eu vejo X, não está lá W, mas W tem de lá estar mesmo que seja “absolutamente indeterminado”. O “absolutamente indeterminado” só quer dizer que eu não sei como vim ali parar, quem me trouxe, quem eu sou, o que fiz, onde estou, que horas são, que dia da semana, do mês, que ano, que lugar, local, sítio, país, etc., etc.. Mas é determinável em absoluto. Quando eu me fixo em Y, X está lá copresente em anexo e retido mas não existe já, eu já não consigo fotografar X. Nem ainda Z, que está a aí a rebenter mas não entrou ainda em acção e pode nem sequer entrar, como aqueles jogadores que o treinador chama para substituírem um colega, aquecem e depois voltam a vestir o fato de treino e a sentarem-se no banco. Não entram. Esta dinâmica entre efectivamente real e efectivamente não real, já não e ainda não, é abrangido por nós. Quer dizer nós não estamos esgotados só no momento que nos absorve, de algum modo pairamos em extase estendidos pelo tempo passado há pouco mas não já e pelo tempo futuro daqui a nada mas não ainda. O eu não é um ponto, a consciência não é estigmática, não é uma perspectiva, mas é este existir, sair para fora de si distendio no tempo entre o passado há pouco que de facto vê mas não realidade já não é e o futuro daqui a nada que está já a prometer ou a ameaçar ou a deixar-nos indiferentes por ser neutro de promessas e ameaças mas que “na realidade” não “é”.

3 Jan 2020

2º Estudo sobre síntese passiva

[dropcap]A[/dropcap] excepção à regra, o episódico, algo que não bate certo, a anomalia, o excepcional, o extraordinário são manifestações que indicam o habitual normal. Demos alguns exemplos mais simples de perceber antes de apontarmos aos mais complexos. Salpicos de vinho em camisa branca. Dedadas de humanos infantis impressas nas janelas. Bolas de árvore de Natal amolgadas. Pintura do carro estalada. Vidro do ™ riscado. O normal é o branco da camisa que serve de plano de fundo aos salpicos de vinho tinto, a transparência do vidro que é plano de fundo para a forma das impressões digitais das crianças, a esfera perfeita vermelho brilhante não deixava antecipar, ao rodá-la na mão, que estava amolgada no lado a princípio invisível dela para mim. O ™ estava intacto quando o meti no bolso e agora não. Alguém “riscou” o carro. Há um plano de fundo e uma forma que destoa do plano de fundo. A anomalia dá-se no interior de uma homogeneidade, neste caso determinada opticamente.

Mudemos de campo de percepção. Os acordes iniciais e os primeiros versos de uma canção popular são interrompidos. Falhou a electricidade ou no ensaio o som do micro estava desligado, alguém não entrou a tempo. Estou absorvido pelo trabalho, completamente concentrado no que estou a fazer, toca o telefone ou a campainha da porta e apanho um susto. O elemento pode ser o do barulho. Há obras na vizinhança. Há barulho o dia inteiro, de manhã à noite, ao longo dos dias da semana, até ao sábado. Um bem estar súbito aparece não sei bem como. Identifico-o com o silêncio do barulho que não se faz ouvir. A voz de alguém já não se faz ouvir. A voz de alguém nunca mais se cala.

Mudemos ainda para campos de percepção sensorialmente diferentes, térmico e áptico. Tomo duche distraidamente. Deixo cair a água sobre a cabeça e depois sobre as costas para as massajar. De repente, sem que nada o fizesse prever fica gelada. Ou então, a água fria aquece sem que me pudesse aperceber de como e queima. Ao passear à beira mar, controlo a distância relativamente à água. Uma onda vem mais rapidamente do que previra e molha-me os pés. Percebo que a roupa estendida sobre o aquecedor central do ginásio a secou e aqueceu num ápice. O vinho vertido no copo é logo bebido. Depois de “abrir” sabe de modo completamente diferente.

O Aftershave aplicado ao rosto depois de escanhoado tem uma fragrância diferente da que tem ao fim do dia. Habituamo-nos aos aromas, às fragrâncias, há constelações complexas que de homogeneidade e normalidade. Posso descer do Bairro Alto em direcção ao Cais do Sodré numa noite fria de Inverno e sentir o cheiro a lareira que me transporta para a Floresta Negra.

Em todos estes exemplos dos diversos campos sensoriais há homogeneidade que funda uma regra de antecipação que é decepcionada ou frustrada ou desiludida. Percebemos que a interpretação do que não temos visto de um objecto mas pode vir a ser visto depende do que já temos dado dele. Mas ter dado e vir a ser dado estão em momentos de tempo diferentes e não garantem que o que se espera seja efectivamente o que virá a acontecer. O que se erige na mente como forma mental não corresponde ao que vemos à frente dos olhos também como conteúdo mental.

20 Dez 2019

Estudo sobre síntese passiva I

[dropcap]Q[/dropcap]uando olhamos para uma coisa, achamos que a temos aí, inteira, toda ela, tal como ela é. Edmund Husserl voltou a ensinar-nos que o destino dos grandes problemas da filosofia se encontra nas maiores trivialidades. Haja olhos para topar-se com elas. O que vemos de uma coisa é o lado que está virado para nós, melhor: o lado que está entre os nossos olhos que funda a nossa perspectiva, no caso da percepção óptica, e o objecto para lá da superfície dos seus contornos. O lado do objecto que está visto é uma estrutura não é real. É como a piada que procura saber dos lados de uma bola. Tem dois: o lado de fora e o lado de dentro. Todas as coisas têm dois lados: o lado que está virado para nós e o lado que está de costas para nós. Estes lados mudam.

São formas variáveis. Posso ver as costas da cadeira, depois o assento, depois as pernas, depois, a cadeira de pé, de frente, de lado, de cima, de baixo, sentado nela e quando dela me levanto. A cadeira tem sempre os seus lados objectivamente os mesmos, reais, mas os lados visíveis para mim, tocados por mim, sentidos por mim, são determinados pelo espaço estruturante do contacto. Husserl põe este problema de diversas maneiras ao longo do seu encaminhamento filosófico. Há uma diferença entre o que está à vista, alguém que eu vejo de frente, e o que não está à vista mas que é pre-suposto: o seu interior: órgãos internos, aparelhos, sistemas, epiderme revestida pela roupa, a nuca, as costas, a parte de trás do corpo que eu não vejo. Se vir alguém de costas eu pressuponho que a pessoa tem rosto, barriga, parte da frente no seu todo. O mesmo se passa de lado. Quando alguém gira em torno de si, vai dando a ver de si lados para fazer desaparecer outros, que logo vai fazer aparecer para deixar desaparecer. Só vemos sempre a presença que vem à nossa presença. O estranho é que o que não vemos, o que desaparece não é como se não fosse e desaparecesse do universo, está lá de alguma maneira. Mas qual é compreensão que temos desta maneira como alguma coisa que não se manifesta, que está desaparecida, que não está lá, que está ausente, não está presente, de alguma maneira ainda é, existe, pode aparecer?

Podia acontecer que, ao contornar alguém que vejo de costas, para ver se é alguém que me pareceu ter conhecido, não tivesse rosto, nem barriga, nem parte da frente, fosse côncavo no seu todo. Do mesmo modo, podia acontecer que se eu abraçasse alguém que vejo de frente, não sentisse as suas costas. O que existe entre a nossa perspectiva e os objectos que tocamos com o olhar são as superfícies dos objectos. Não vemos para lá da pele dos objectos, não vemos para lá da casca dos frutos, das árvores, do revestimento de qualquer coisa. Não conseguimos antecipar o que será para lá da camada superficial, epidérmica do que quer que se apresente, mesmo que seja logo a seguir a esse contorno.

13 Dez 2019

Water from a running tap, de Francis Bacon

[dropcap]É[/dropcap] uma imagem uma coisa menor? Uma imagem é uma coisa. A relação da imagem com o original é sempre mais complexa do que se pensa como tudo o que se passa na vida. Não temos de pressupor que há uma contemporaneidade da imagem e do original. Temos, por exemplo, pinturas, desenhos, imagens, fotografias e filmes de coisas, edifícios, bairros e até cidades, para não falar de pessoas que já não existem, mas também que não existem agora ou não existem ainda. Uma coisa é certa. Toda a imagem que é imagem não se esgota nas fronteiras espaciais que a delimitam. A imagem não está apenas nos seus contornos espaciais, nem existe apenas, como vimos nos exemplos acima no tempo centrado no presente. Qualquer imagem desvia para fora de si própria, procura dar a ver outra coisa para lá do que pode ser visto única e exclusivamente nela enquanto objecto. Quando vemos uma fotografia de alguém vemos alguém. Vemos que é A ou B ou C. Claro que sabemos perfeitamente que é a fotografia de A ou B ou C, que é a imagem de A ou B ou C. Mas A, B e C estão tão presentes como se estivesse em carne e osso ao pé de nós, lembramo-nos deles, quando as fotos foram tiradas ou a época em que tinham aquele corte de cabelo, em que se vestiam daquela maneira, em que tempo era aquele, etc., etc.. Não vemos as características das imagens se as fotos são analógicas ou digitais, se são de boa ou má qualidade, a preto e branco ou a cores, bi ou tridimensionais, qual a escala, etc., etc.. A imagem escamoteia o objecto “fotografia” e “quer” é restituir o original como se o pusesse aí à nossa frente em carne e osso. A imagem faz-se passar pelo original, a cópia quer ser genuína.

Tudo isto quererá dizer então que o original de que a imagem é imagem é autêntico? Terá o original pedigree? Será o original o próprio. Será que se passa com as coisas o que se passa com pessoas? Nós gostamos de pessoas originais, que sejam elas próprias, não gostamos de mentirosos, ladrões, gostamos de pessoas honestas, genuínas, autênticas. Também, não gostamos de contrafação. Gostamos de roupa de marca, das melhores edições, do melhor material, do verdadeiro, do genuíno. Poderíamos perguntar se uma pessoa pode imitar outra pessoa e assim existir à imagem e semelhança de outra pessoa, não ter personalidade própria, ser uma mera cópia e não ser original. Há pessoas que são o que parecem, outras que parecem ser quem são mas não são quem parecem ser. Há jogos complexos entre imagens produzidas para esconder ou fazer aparecer os seus modos de ser.

A questão é que o próprio original não se encontra a ser no sítio em que está nem existe apenas no tempo em que pensamos que existe ou só na dimensão em que achamos que é a sua. Imaginemos uma situação banal do quotidiano: torneira do lavatório aberta, deixando água a correr. Esse facto da realidade quotidiana é susceptível de acontecer em diversas situações reais concretas: a criança abre a torneira, a mãe depara-se com a situação. A mãe abre a torneira para lavar as mãos. O pai abre a torneira da água quente para a fazer aquecer e escanhoar-se. O lavatório fica do lado direto de quem entra. Acima do lavatório está um espelho.

Depois, há um bidé. À esquerda fica a banheira. Mas o que importa é este enfoque no lavatório. Antes na torneira. Melhor na água corrente. A própria percepção vê a água a correr, como um cilindro opaco branco como se fosse feito de diversos feixes juntos que se fossem juntando e ajustando uns aos outros, moldando a partir do interior e visível no exterior. Faz barulho e salpica a água a bater na superfície branca do lavatório. A água corre.

A fotografia da água a correr no lavatório da casa de banho revela esse feixe branco cilíndrico, não se ouve a água a cair, não se pode esticar a mão para sentir a temperatura da água, não se pode lavar as mãos nem fazer a barba. Mas a própria realidade não se esgota na utilidade. Ela aponta para a possibilidade de ser restituída numa imagem, numa figura, sem que queira dizer mais do que o facto de a realidade não se bastar a si própria mas pretender ser fixa, estabelecer-se, sedimentar-se, repousar, ser acolhida na imagem que reconstitui objectivamente por um projecto a possibilidade de dar a ver a outro o olhar particular e privado de como alguém vê o que deixa de ser banal porque é o modo mais extremo e radical de ver o mundo do canto do olho.

29 Nov 2019

A vida sempre a perder

[dropcap]E[/dropcap] uma vontade de rir nasce do fundo do ser.
E uma vontade de ir, correr o mundo e partir,
a vida é sempre a perder…

Hoje, fiz como o meu pai fazia. Levei a “gaitinha” para a casa de banho. Levava sempre o transístor como companhia da sua higiene matinal. Esta foi sua companheira de décadas. Dei por mim a escanhoar-me. Não que vos importeis com isso, mas não sou assíduo. Hoje, fui. No posto sintonizado passou aquela canção dos Xutos melódica e melancólica como o dia de hoje que é depois do dia de ontem e é triste, trágico. O Tim diz alguns versos que sempre foram para mim imperceptíveis mas hoje as dúvidas dissiparam-se. Eu achava que fazia sentido o complemento “ir” e que o trágico não combinava com “rir”. Não, nesta música. Não, como o que nasce do fundo do “ser”. Fui ver a letra e afinal é “ir” e “rir”. Prefiro a vontade de “ir”. Hoje não tenho nenhuma vontade de rir e do ser não cuido que nasça nenhuma vontade nesse sentido, sobretudo quando domicilia a vida, quando a vida é sempre a perder.

Mas de onde vem esta evidência de que “a vida é sempre a perder” que a canção ecoa? Não temos noção do tempo como sucessão, apesar de falarmos da sucessão do tempo. Olhamos para as paisagens conhecidas e elas são exactamente as mesmas quando olhamos janela fora, os percursos de casa para o trabalho, o jardim da escola da infância, o recreio do liceu que fica nas traseiras da minha casa, a ponte sobre o Tejo. Se sabemos que o tempo passa de onde vem esse conhecimento?

Como temos a consciência disso? É uma consciência íntima do tempo? Se é íntima é só interior e nada tem que ver com o que acontece fora? Se não houvesse movimento, haveria a percepção da distribuição dos obejctos por espaços diferentes e assim por tempos diferentes? E se nada se movesse, teríamos a percepção do movimento? Se estivéssemos sempre mudos e nunca falássemos de nós para nós, teríamos a percepção de que seríamos diferentes à hora do pequeno almoço e à hora do almoço? E se fôssemos diferentes no nosso interior, será que o exterior seria diferente? E se o exterior fosse diferente, será que o nosso interior se alterava? Não podia tudo ser diferente, interior e exterior? Não podia tudo ficar na mesma?

“A vida é sempre a perder”. Mas a perda é perda do quê? É perda do que temos como adquirido? É perda de faculdades, de posses, de pessoas, de amizades, de amores? É perda do que temos ou tínhamos ou do que achamos que temos ou achávamos que tínhamos? A perda de que a canção fala é a da vida. A vida é sempre a perder é a própria condição. “Sempre” não quer dizer apenas muito tempo. Quer dizer: continuamente. Durante o tempo em que estivermos vivos estamos continuamente a perder. Estamos continuamente a morrer. Durante o tempo em que estivermos vivos temos de ter a percepção de que estamos vivos. A própria percepção da vida é mortal. A percepção da morte é mortal. A vida é mortal.

A morte do outro não nos deixa apenas o mundo inteiro só com menos uma pessoa. Não é apenas o teu mundo que se foi. É um mundo que se foi. Uma pessoa é um mundo. Há tantas pessoas quantos mundos. Não se percebe como a subtracção, alguém riscado, ausente, que não responde à chamada, na verdade, é um acontecimento como um “buraco negro” que dizem que tem densidade ontológica e existe portanto como irrealidade.

Existir a vida sempre a perder não é nada. É o que é. E de lá, do fundo do ser, do horizonte do ser, não pode nascer nenhuma vontade de rir. Nasce uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder.

15 Nov 2019