Via do MeioFalando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚 Hoje Macau - 22 Ago 2023 Tradução de André Bueno (continuação) 330. Quem não consegue ainda se controlar, deve afastar-se um pouco da confusão cotidiana, de modo que sua mente não veja o que a inquieta, e não se perca; assim, ele acalmará seu corpo e seu coração. Quem consegue se dominar, deve voltar para a agitação da vida, pois sua mente vê, mas não se sente tentada ou atraída, e isso o ajudará ainda mais a superar as coisas do mundo. 331. Quem ama silêncio, e detesta barulho, vai acabar buscando tranqüilidade fora do mundo cotidiano. Mas, sem o contato humano, a mente retorna ao seu estado original, e ela pode se inquietar e ficar ansiosa. A quietude está na raiz do movimento; Como compreender que eu e os outros somos um só? Como esquecer a diferença entre quietude e movimento? 332. Na montanha, a mente respira, e fica cheia de bons pensamentos; Uma nuvem que passa, o canto das garças, isso incita a mente a voar; Um riacho que murmura nas pedras, isso banha a mente em água cristalina; Fazer carinho num zimbro ou numa ameixeira, isso dá um sentimento de segurança e retidão; Com aves e cervos como companhias, a mente esquece imediatamente seus problemas; Mas ao voltar ao mundo da agitação, uma pessoa não apenas volta a relacionar-se com as coisas, mas torna-se servo delas. 333. Feliz, ande tranquilamente pelos pastos, descalço; as aves te acompanharão, e te farão esquecer seus problemas. Deixe sua mente se fundir com a paisagem; sente sobre as pétalas caídas, observe as nuvens no Céu, e deixe o sentido de ‘eu’ desaparecer. 334. Na vida, felicidade e tristeza surgem na mente. Diz o Budismo: ‘a ganância é um fogo devorador, e um abismo de sofrimento’. Ter desejos insaciáveis é como afundar num mar de amargura; Mas apenas um pensamento bom é capaz de mudar o fogo para água; Apenas um pensamento correto é capaz de levá-lo, como um bote, até uma margem segura. Assim, os pensamentos são levados, de um lado ao outro, chegando aos extremos. Devemos, portanto, ser cuidadosos com a mente. 335. Uma serra de corda corta a madeira, uma gota d’água fura a rocha; quem estuda o Caminho, deve ser constante. A água que flui se transforma em canal, a fruta madura cai do pé; quem busca o Caminho, deve procurar a perfeição. 336. Ao vencer os combates da vida, chega-se a um lugar em que a lua é clara, a brisa é suave, e a vida não é mais um mar de amarguras. Ao limpar a mente das agitações, não se escuta mais o ruído dos cavalos e carruagens, e não é necessário fugir para a montanha para conseguir sossego. 337. Quando as árvores e plantas murcham, os brotos nascem de suas raízes; O inverno é gelado, mas quando o vento sopra e as cinzas voam, é porque o sol está voltando; Mesmos nas solenidades funerais, pode-se perceber os sinais da vida; Assim, apreciamos os espíritos do Céu e da Terra. 338. Olhe a cor da montanha, quando chove; ela ganha uma beleza diferente. Ouve o som de um sininho no meio da noite; ele fica muito mais claro. 339. Vá para um lugar alto, e amplie sua mente; Contempla a água, e deixe que ela leve seus pensamentos; Leia um livro numa noite fria de inverno, e purifique seu coração; Suba uma montanha, declame poemas para o Céu, e vá para além desse mundo. 340. Para um coração aberto, dez mil tigelas são como uma vasilha de barro; Para um coração mesquinho, um cabelo é tão grande como a roda de uma carruagem. 341. Sem chuva, vento, flores e salgueiros, não existe a natureza; Sem sentimentos, anseios, preferências e hábitos, não existe mente. Somente quem controla as coisas, e não é escravo delas, tem sua vontade inspirada pelo Céu, e seus pensamentos encontram a justa medida. 342. Somente quando uma pessoa compreende a si mesma, é que pode deixar as dez mil coisas se desenrolarem, conforme suas dez mil naturezas. Somente quando se governa corretamente pela não-ação, sem reclamar méritos, mas deixando a natureza agir, essa pessoa pode ser dita sábia. 343. Numa vida ociosa, pensamentos estranhos chegam como ladrões. Numa vida ocupada, a natureza humana não pode ser percebida. Não afaste totalmente as preocupações com o corpo e a mente, mas não evite, por completo, as preocupações com a natureza. 344. A mente se perde em meio ao caos e a confusão; Mas em silêncio, ela se esvazia por completo; Ascende ao Céu, voa longe com as nuvens; Refresca-se com as gotas de chuva; Alegra-se, e entende o canto dos pássaros; Acalma-se, e pondera sobre a queda das pétalas das flores; Esse não é o paraíso? Como compreender a verdade do mundo? 345. Quando nasce uma criança, a mãe corre risco; riquezas guardadas atraem ladrões; assim, onde há razão pra comemorar, há que se preocupar também. A pobreza ensina a simplicidade e a diligência; a doença ensina a cuidar da saúde; assim, onde há razão para se preocupar, há aprendizado também. O sábio olha sorte e azar como coisas iguais, e esquece a diferença entre alegria e tristeza. 346. O Ouvido aprende escutando; ouve os ventos sibilarem nos abismos e ravinas, mas depois que passam, tudo fica em silêncio. Os estados da mente são como a lua refletida no lago; quando o céu está vazio, não se vê nada. Assim, se esquece a diferença entre “isso” e o “eu”. 347. Quando o coração está enredado em honras e benefícios, tudo o que se faz ou se diz no mundo termina em tristeza; Não se conhece as nuvens brancas, o vento puro, o rio que corre, as pedras amontoadas, o rosto das flores, a alegria dos pássaros, ou o canto do lenhador que ecoa no vale. Mas quem as conhece, se acalma; e a tristeza vai embora, pois foi ele mesmo que sossegou sua mente. 348. Observe as flores quando estão pra desabrochar; beba vinho somente até ficar um pouco tonto; dessa forma, aproveita-se muito mais as coisas. Observe as flores em todo o seu esplendor; beba até ficar bêbado; dessa forma, tudo que é bom fica ruim. Quem tem uma alta posição, deveria refletir um pouco mais sobre essas coisas. 349. As plantas crescem nas montanhas, sem que alguém lhes dê água ou estrume, e seu sabor é delicioso; As aves voam pelos campos, sem que alguém as crie ou lhes dê comida, e seu sabor é incomparável; Dá-se o mesmo com quem convive com o vulgar, mas não é contaminado por ele, mantendo sua pureza original. Tal pessoa não é um exemplo? 350. Cultivar flores, plantar bambus, brincar com as garças, observar os peixes, tudo isso deve ser feito com atenção. Quem o faz de forma vazia e displicente, sem perceber a beleza da natureza, é aquele que os confucionistas chamam de ‘superficial’, e os budistas de ‘ pretensioso’.* O que pode haver de bom nisso? *no original, ‘pessoa de boca e ouvido’ (=superficial); e ‘pessoa ignorante e arrogante’ (=pretensioso). [O primeiro despreza conhecer; o segundo ‘pretende’ que conhece.] 351. O Educado que vive nos bosques e montanhas leva uma vida austera, honesta, simples, e está sempre satisfeito; O camponês dos prados leva uma vida simples e ignorante, mas conserva sua ingenuidade e pureza; Quem foge do mundo das coisas pra depois voltar a ele, se transforma num mísero negociante; seria melhor ter morrido nos campos, sem contaminar seu corpo e alma. 352. Tome cuidado quando ganhar fortunas sem razão, ou desfrutar de alegrias não-merecidas; pode ser um teste, uma tentação imposta pelo Céu. Há gente de visão limitada, que sempre cai nessas armadilhas. 353. A vida humana é como uma marionete: Se as cordas estão em suas mãos, livres, desembaralhadas, e você pode movê-las como quiser; Então, você controla sua vida, e nada pode manipulá-lo; Só assim livra-se das cordas do mundo. 354. Vantagens e desvantagens surgem juntas; quem sabe disso, abaixo do Céu, entende que a felicidade é a não-ação. Um antigo provérbio diz: ‘Aconselha o soberano a deixar de lado suas conquistas, pois apenas uma vitória deixa dez mil crânios apodrecendo no campo’ E também: ‘Deixa em paz todas as dez mil coisas abaixo do Céu, e não se importe se sua espada enferrujar na bainha por mil anos’. Quem compreende essas palavras, pode amansar um coração impulsivo e violento, como se o refrescasse debaixo do sol. 355. Uma mulher indócil pode corrigir-se, e virar monja; um homem mesquinho pode controlar-se, e seguir o Caminho num templo. Por isso, os templos servem para o refúgio e a correção dos perdidos. 356. Quando as ondas chegam até o Céu, quem está no barco não se assusta, mas quem está de fora, fica amedrontado; Quando acontece um tumulto numa festa, quem está no salão não se impressiona, mas quem vê de fora, fica apavorado; Por isso, o sábio, quando está dentro de alguma situação, projeta sua mente para fora dela. 357. Aja menos, erre menos; Menos amigos, menos confusão; Fale menos, menos equívocos; Preocupe-se menos, menos aporrinhação; Menos astúcia, mais integridade; Quem mais trabalha* todo dia, sem cessar, forja grilhões para si mesmo, por toda a vida. *[Planeja, ambiciona, executa ações em proveito próprio, busca proveito, etc. Outro sentido possível é o de não esgotar-se, mesmo sendo o trabalho digno.] 358. Calor e frio podem ser evitados em qualquer estação, mas a inconstância das pessoas não; A inconstância pode ser controlada, mas não cura a irascibilidade; Quem controla a inconstância, e cura o coração irascível, alcança a paz no coração e a calma do espírito, como se lhe soprasse uma brisa primaveril. 359. Meu chá não é o melhor, mas eu sempre tenho um bule cheio; Meu vinho não é o mais fino, mas sempre tenho uma botija cheia; Meu alaúde é simples, mas toca bem; Minha flauta é pequena, mas não é desafinada, e me alegra; Em viver a vida de modo simples, eu não sou tão bom quanto Fuxi, mas me contento em dizer que chego perto de Jikang e Ruanji.* *Fuxi, primeiro sábio das eras primitivas chinesas; Jikang e Ruanji são integrantes do mítico grupo dos sete sábios do bosque de bambu, ascetas desapegados da vida social, e dedicados a uma vida despojada. 360. O budismo ensina: ‘siga a natureza’; O confucionismo ensina: ‘siga o apropriado’; Esses ensinamentos são a bóia com que atravessamos o Mar da vida. Os caminhos do mundo são vastos e ilimitados; Busque o Topo, e você terá mil dificuldades; Acostume-se com sua vida, sem pretender altas posições, e você viverá em paz de espírito. * O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas.