João Miguel Barros, advogado: “O que pode fazer a diferença é nossa a experiência e competência”

Chegou ao território no final dos anos 80 e ainda encontrou o Estatuto Orgânico em vigor. João Miguel Barros diz que a Lei Básica é o “documento estruturante de princípios fundamentais na sociedade”, que define liberdades e direitos e que portugueses e expatriados devem respeitar o sistema vigente. O causídico defende que o português é apenas “tolerado” nos tribunais e que os advogados portugueses “são uma espécie em vias de extinção”

 

Olhando hoje, depois de 30 anos da promulgação da Lei Básica, considera que a miniconstituição respeita os trâmites da Declaração Conjunta e os interesses de Portugal e da China?

É muito importante que exista um documento estruturante de princípios fundamentais na sociedade de Macau e que defina direitos e liberdades dos residentes. A garantia de autonomia do território por 50 anos é outro dos compromissos fundamentais que a Lei Básica assume com relevo para Macau. No contexto político da República Popular da China, provavelmente teria sido difícil ir mais longe do que se foi. Em todo o caso, é importante que se diga uma coisa: a visão de um português é totalmente diferente da visão de um chinês sobre este assunto. Até mesmo na lógica dos “interesses”. Por “interesses” entenda-se a disponibilidade e vontade de intervenção cívica nos assuntos da cidade ou da governação. Há uns anos que cheguei à conclusão que não me cabe ter especial “interesse” neste processo. Macau é chinês. A dinâmica política de Macau evoluiu muito depressa no sentido do primeiro sistema. O discurso de “Um País, Dois Sistemas”, brilhantemente criado por Deng Xiaoping, é agora meramente político e operacional. Não é substancial. O Chefe do Executivo que melhor encarnou esse princípio foi o Dr. Edmundo Ho, por quem tenho admiração. O actual Chefe do Executivo [Ho Iat Seng] teve a má fortuna de começar as suas funções com a pandemia, mas o seu mandato coincide com a fase de uma maior afirmação nacionalista do Presidente Xi Jinping, que tem pautado a sua governação por uma carga ideológica acentuada. Daí que não seja de estranhar que o discurso do actual Chefe seja o discurso típico de um homem do primeiro sistema. A prová-lo está este simples facto: ele não diz que Macau deve ser governado pelas suas gentes, mas que deve ser governado por patriotas. Não tenho nada contra. Mas esta diferença faz toda a diferença. É por isso que eu digo que no meio de tudo isto nós, portugueses, ou seja, nós expatriados, ainda que residentes permanentes, não fazemos parte dos mesmos “interesses”. A nossa participação cívica ou política é irrelevante ou residual. A nossa palavra conta muito pouco ou não conta nada. Se quisermos estar em Macau devemos respeitar as leis e cumprir os princípios vigentes na sociedade. O que pode contribuir e fazer a nossa diferença na sociedade é a experiência e a nossa competência profissional. Só isso.

Entende que a Lei Básica tem contribuído para a manutenção de um sistema social, político e judicial próprios de Macau?

A Lei Básica, atendendo ao contexto a que me referi, é um bom documento de síntese. Ou seja, quando falo no contexto estou a assumir o óbvio: que Macau não está organizado como uma sociedade democrática, onde vigora um claro princípio da separação de poderes. Nem tal seria possível por pertencer à República Popular da China. O problema é o modo como se interpreta, na prática, esse conjunto de direitos fundamentais. Isto é válido para Macau como para as sociedades democráticas: muitas vezes a questão não está nas leis, mas no modo como elas são interpretadas e aplicadas. Mas não posso deixar de reconhecer que em Macau a situação é mais complicada porque os mecanismos de ‘checks and balances’ [monitorizações e equilíbrios] estão mais afunilados, e desde logo por ausência de uma opinião pública mobilizável.

Alguns artigos da Lei Básica foram legislados muito depois da sua implementação, nomeadamente no que diz respeito à Lei Sindical. Esta tem sido uma lacuna das autoridades locais, o atraso em relação a algumas leis?

Macau tem tido um ritmo de desenvolvimento económico muito acelerado com imensas frentes e diversas prioridades. E estando toda a dinâmica política e legislativa centrada no Chefe do Executivo e no Governo, que apesar de tudo é pequeno, é normal que não seja possível fazer tudo ao mesmo tempo. São opções políticas.

A Lei Básica determina a igualdade entre residentes, mas temos hoje uma interpretação à letra desse termo, afastando-se os não-residentes de muitas políticas do Governo, apesar de constituírem uma grande parte da população. É uma lacuna da miniconstituição ou de quem a interpreta, contribuindo para desigualdades sociais?

Macau não é propriamente um bom exemplo em termos de igualitarismo social. Provavelmente o maior problema é a consciência da escassez da terra e o conservadorismo orçamental que impede que muitos não-residentes possam aspirar a ter outro estatuto, o que equivaleria a terem outros direitos e uma outra vinculação para o futuro. Vivemos numa sociedade muito liberal em termos económicos, no sentido de exploração económica da mão-de-obra exterior (não-residente), mas muito conservadora, no sentido de protecção dos residentes de Macau.

A Lei Básica determina que o português é língua oficial e pode ser utilizado na justiça. Como comenta a evolução do uso do idioma nos tribunais, nos últimos anos?

O português é apenas uma língua tolerada e utilizada em sentido único nos tribunais. E a situação tem vindo a piorar com o passar dos anos. Só não é uma língua em vias de extinção, em especial na primeira instância, porque há advogados portugueses que escrevem e falam em português. Mas de volta são sempre respondidos em chinês. Dá-se até a situação incompreensível de os juízes, que para serem juízes têm de saber falar português, se dirigirem em chinês aos advogados portugueses quando não há outros interlocutores de língua chinesa na sala de audiência. Já aconteceu comigo. O que eu sinto é que os juízes, de um modo geral, não respeitam o português com o argumento de que o chinês também é língua oficial.

Como olha para a evolução do Direito de Macau e da própria comunidade de advogados portugueses?

O Direito é um organismo vivo e precisa de se ajustar à evolução da sociedade. É normal que assim seja. Macau tem vindo a sofrer grandes transformações que precisam de ajustamentos legislativos e normativos. É importante que a matriz portuguesa se mantenha no sistema jurídico pela riqueza da sua doutrina e jurisprudência e pelo legado que os juristas e professores das universidades portuguesas deixaram no ensino do Direito em Macau. Mas é fundamental que esse sistema seja assimilado e transformado no sistema jurídico da RAEM, sem complexos. Ao fim destes anos todos penso que foi isso que aconteceu ao Direito de Macau, e a prova é que nos tribunais superiores continua-se a citar jurisprudência portuguesa. Quanto aos advogados portugueses: nós somos uma espécie em via de extinção. Os mais velhos, como eu, estão na idade da reforma. Os mais novos farão parcerias com advogados chineses e das duas uma: ou aprendem chinês fluente e continuam, ou passam para um lugar secundário. Ou, então, assumem um outro papel: são advogados encartados, mas na prática, funcionam como intermediários de negócios.

A Lei Básica sofreu algumas alterações, nomeadamente nos anexos, aquando da revisão das leis eleitorais para a Assembleia Legislativa e Chefe do Executivo. Entende que a miniconstituição deverá manter-se sem mais mudanças até 2049?

Não lhe sei responder. Por princípio as leis estruturantes não devem andar a sofrer alterações.

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