Nanjing e o estaleiro dos barcos do Tesouro

Actual capital da província de Jiangsu, Nanjing de 1386 a 1421 foi capital da dinastia Ming e era a maior cidade comercial do Celeste Império, contando com uma população de 1 milhão de pessoas. De barco chegámos após navegar pelo Changjiang (Rio Longo, mais conhecido por Yangtzé) e trazíamos como objectivo visitar os lugares ligados a Zheng He e procurar os estaleiros onde foram construídos os juncos do Tesouro das expedições marítimas ao Oceano Índico ocorridas entre 1405 e 1433.

Em meados dos anos 90 do século XX, percorrendo a pé a zona Noroeste de Nanjing, junto ao Changjiang, entrando numa área muito degradada de casas de tijolo em ruínas fomos encontrar um local onde num ramal de água uns quantos barcos ancorados serviam de casas de habitação. Hoje sabemos ali ter havido uma doca ligada aos estaleiros que produziram juncos para as viagens marítimas de Zheng He. Em fundo, olhando para nascente estava a ponte de Nanjing com 1,5 km de extensão sobre o Rio Yangtzé, construção em ferro do ano de 1968 com dois tabuleiros, o superior para carros e o de baixo para os comboios.

O príncipe de Yan, Zhu Di escolheu Ma He em 1390 para trabalhar com ele e em 1402, quando ocupou o trono da dinastia Ming como Imperador Yongle (1402-24), trouxe-o para a capital, promovendo-o a chefe dos eunucos, entregando-lhe a gestão dos assuntos gerais do palácio imperial. Ma He (1371-1433) em Nanjing tinha a sua residência, local de trabalho e centro de logística para armazenar os utensílios destinados à armada na Rua Mafujie (Maliujia), espaço com 74 salas a ocupar 2,4 hectares, existente ainda no reinado do sétimo Imperador Qing Xianfeng (1851-1861).

Ardeu durante a Revolta Taiping, quando em Março de 1853 o exército Taiping entrou em Nanjing e matando todos os manchus fez da cidade, com o nome de Tianjing, a capital do Grande Reino da Paz Celestial. Para comemorar o 580º Aniversário da primeira viagem marítima de Zheng He, o Governo Municipal de Nanjing em 1985 ordenou a construção do Parque Zheng He, ampliado vinte anos depois. Hoje, situado no distrito Qin Huai, na Rua Taiping nan encontra-se a Praça Zheng He onde está uma das estátuas do Admirável Almirante e por trás, o Jardim com o nome desse grande navegador.

Como o geomante Yuan Gong muito tempo antes tinha prognosticado que aos quarenta anos Zhu Di subiria ao trono da China, agora como Imperador Yongle questionava o filho deste, o oficial civil Yuan Zhong Che se Ma He seria a pessoa indicada para levar avante a empresa de liderar uma expedição ao Mar do Oeste. Com resposta afirmativa, o Imperador em 1404 mudou o nome de Ma He para Zheng He e designou-o Almirante da Armada, então já em preparação.

Estaleiros da dinastia Ming

Muitos dos juncos para essa armada foram construídos no estaleiro situado a Noroeste de Nanjing, na zona de San Che He, compreendida entre as aldeias de Zhong Bao e Shang Bao, ao longo do Changjiang onde existiam sete longas docas secas (zuo tang) dispostas paralelamente na direcção Nordeste a fazerem um ângulo de 62°. Segundo alguns investigadores, nessa área estariam dois diferentes estaleiros de épocas distintas, o Longjiang feito no reinado do Imperador Hongwu e o do Tesouro construído no terceiro ano do reinado de Yongle, mas há quem contraponha ser de data anterior e 1405 corresponder apenas ao nome dado, baochuan chang.

Ocupando uma área de mil mu (666.700 m²) no recinto do estaleiro viviam cerca de 20 mil pessoas e para nele entrar os empregados tinham de mostrar um dístico específico, bilhete de identidade onde constava o posto que ocupavam. Aí existiam os departamentos administrativos, locais para os trabalhadores, com centenas de casas para morarem, mercado e também armazéns. Laborava-se dia e noite e havia capacidade para construir simultaneamente mais de uma centena de barcos. Aqui o Imperador Yongle ordenou fazer ou reparar 2787 juncos.

O livro da dinastia Ming, Longjiang Chuan Chang Zhi 《龙江船廠志》 refere a organização do trabalho nos estaleiros, onde entre as docas havia sete grandes locais para específicos trabalhos, como o de criar e escolher os modelos dos juncos, realizar os cálculos para as diferentes partes dos barcos, o ligado à metalurgia, fazerem-se cabos e cordas e as velas. No departamento dedicado às madeiras existiam várias secções: numa eram armazenadas, marcando-se as proveniências com algarismos a servir também para indicar a qual parte da embarcação eram destinadas. Existiam mais treze pequenos locais para outros propósitos. Tudo ficava registado e quando havia necessidade de se fazer alguma reparação era fácil localizar o material para substituir e a quem se deveria responsabilizar, tal como se prevenia comportamentos de corrupção.

Usando o modelo do junco de Fujian, o Fuchuan, com o casco em V, realizando algumas transformações criou-se entre outros o barco do Tesouro, baochuan com mais de 120 metros de comprimento, 50 metros de largura e nove mastros, que deslocava 8 mil toneladas.

A meio do estaleiro, entre a primeira e a quarta doca estava o templo a Tian Fei, chamado pelos locais Niang Niang Miao e quando um junco ficava pronto realizava-se uma cerimónia onde a deusa era convidada a percorrer o interior da embarcação, havendo nos barcos um local especial para o altar. Inundada a doca com a água do Rio Jia saia o junco a navegar para entrar no Yangtzé.

Parque Baochuan

Em 2014 voltámos a Nanjing à procura dos Estaleiros do Tesouro (Baochuan chang), situados fora da muralha da cidade e trazíamos agora a localização, pois os trabalhos arqueológicos iniciados em 2003 estavam já realizados em Setembro de 2004, tendo sido aberto no ano seguinte o Parque Baochuan como atracção turística e museu. Apenas uma doca dos estaleiros fora estudada pois o local das restantes seis tinha sido ocupado por edifícios de habitação devido à expansão da cidade.

A doca número 6 tinha 421 metros de comprimento e 41 de largura, havendo nela 3,5 metros de altura de lodo de onde foram retirados 1500 artefactos, sobretudo madeiras, algumas pintadas, pregos e cerâmica. Muito se questionou sobre as dimensões dos barcos do Tesouro, que segundo o livro Ming Shi 《明史》《明史列传第一百九十二宦官二》 o baochuan contava com 44 zhang de comprimento e 18 de largura. Mas Ma Huan (马欢), que como tradutor viajou na armada de Zheng He, refere ter o maior baochuan 44,4 zhang e de largura 18 zhang, enquanto o de tamanho médio contava com 37 zhang de comprimento e 15 de largura. Se 1 zhang corresponde a 3,333 metros então esta doca não tinha largura suficiente para a construção do baochuan maior e daí as dúvidas de muitos investigadores do real tamanho do barco, algo inacreditável.

Deste estaleiro saiu parte dos navios da armada e os baochuan feitos com madeiras preciosas, onde seguiria o Almirante Zheng He e transportava os exóticos produtos chineses para trocar por os de grande valor, como âmbar-cinzento, especiarias, pedras preciosas e outros tesouros, sendo daí o nome do maior junco da armada.

Subscrever
Notifique-me de
guest
2 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
Gonçalo César de Sá
Gonçalo César de Sá
3 Jan 2023 16:20

Parabéns meu caro Simões. Muito interessante história.

Joaquim Caldas
Joaquim Caldas
25 Fev 2023 18:40

muito bom artigo