Pushkine e o diário secreto

Nunca perdemos este hábito de deambular pela intimidade alheia, sobretudo agora, que a moral atinge as raias da indecência contra a liberdade de cada um. Que isto de se ser indecente, acontece tanto por excesso como por escassez: não há muito tempo, ainda, o excesso devia servir de norma, hoje, porém, a variedade deve ser uma imposição numa atenta vigília para uma eventual mudança de género. Com tantas transformações do «orgão» o mundo finalmente pode dormir sossegado pois que não parirá com dor durante muito mais, sendo substituída a função por mecanismos externos de multiplicação e fecundidade. – [Aí sim, eu estarei aqui já diante a um outro plasma, que de forma poderosamente subtil, lerá então as minhas ideias num clima telepático e fará o resto daquilo que nunca vi]. E todo aquele que tiver ideias obscenas será lido em pensamento para a máquina do tempo que se encarregará de deitar no fosso cósmico a porcaria que por «pensamentos, palavras e actos» os viciosos andaram manifestando. – Falta menos para este tempo, que tempo houve para que conseguissem pôr-se de pé! Mas, escrevera ou não, Pushkine, um Diário Secreto?

Numa trama bem urdida que os limbos tecem, pensa-se finalmente que sim. Diário escatológico, amoral, vadio, radical, instintivo, que supera em tudo os desgarrados provocadores da matéria exposta, e que se pensa ter sido escrito nos dois últimos anos da sua vida: dois últimos anos de uma vida muito viva que baralhará os vivos e os mortos-vivos do hedonismo crente, aparente, do nosso prosaico tempo genital que tem o dom de enfadar muito mais do que provocar. Da negação à proscrição, da tradução à entoação, o que é certo é que ficará sendo ele o autor reverberado por formas várias e actualizado em todos os efeitos; seu pois, na matéria de facto.

Pushkine morreu num duelo bem por causa da sua vida amorosa, e é mais pela eloquente demonstração do seu carácter que nos parece ser dele, deste “alguém” e não apenas de um fazedor: este homem demonstra a falta de paciência que o ódio lhe traz, as inimizades lhes dão, bem como a compreensão face à inutilidade da vingança, e isso, claro, não passará despercebido nesta linguagem de grande fôlego pois que uma personalidade qualquer não descreveria tão bem este seu desprezo. Por demais, ele é munido de uma sensibilidade de premonição, uma componente rara, típica dos melhores, e não deixa de associar factos e números a um desfecho fatal que a sua descontracção insiste no entanto em tentar superar. Um certo desleixo com a autopreservação, tão cara aos inúteis.

Redige então em prosa com a embriaguez de um quebrador de estátuas um ditirambo lascivo que certamente estará perto do êxtase da morte, e não se crê nem maior nem menor que um outro qualquer desgraçado. No entanto, nada disto belisca o seu nome nem porá em causa a sua alma gigante de grande perdulário perante a adversidade. Conseguiu não matar! Mas nestas coisas, com homens comuns do outro lado da trincheira, é sempre, como bem sabemos, um atributo fatal. A ninguém faria certamente falta o seu oponente, mas, a falta que nos fazem os que foram mortos é até da concordância dos próprios assassinos. Um duelo por amor, ou honra masculina, seja lá o que for, parece-nos incrivelmente displicente, sobretudo num mundo onde as vivas mulheres pouco são defendidas. Os homens inventaram no entanto estas coisas para não terem de suportar a falta de talento que se esperava deles na resolução de factos simples.

Um dado severo encontrado para tão estranho assunto é a marca mortuária na raiz da própria sexualidade, e esse tema, angustiante, frenético, intempestivo, ficará como uma lembrança bela e terrível destes fins que sustentam os meios. Não vibramos todos ao mesmo nível na condição deste trilho sonoro e quando uma coisa destas nos é dada a ler, averiguamos por fim o grau de desfaçatez do lúdico estado actual em sua própria insolvência. – Maníacos somos todos nós por alguma frecha que não sara, mas contemporizamos com o desnecessário, contemplamos evacuações orgânicas como espectadores em morgues, satisfeitos, e creio mesmo, que muitos até já perderam os sentidos.

Terá Pushkine sorrido perante aquele homem louro que lhe estava anunciado? É bem provável que sim. Um ser como ele fará de tudo para não desmerecer o desdém que sente por esta coisa bizarra que se intitula humana. Vida, é coisa afinal, que jamais faltará aos imortais.

                    « Em toda a minha vida não encontrei forças para matar um homem. Em todos os meus duelos deixei que os meus

                    adversários disparassem primeiro e então ou recusava os meus tiros ou apontava para o céu.

                     A minha magnanimidade e sentido de perdão são mais doces do que matar segundo as regras.»

                              In- Diário Secreto

E com eles estaremos, com estes seres, a lutar contra o novo nazismo mundial. Que o nazismo é muito velho, formado pelo ADN ensanguentado da triste Humanidade. De facto, poucos escaparam a tão mau registo ( não falando dos ardores de alma de cada um sempre em rota de colisão com a ternura).

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