O romance diante do espelho

[dropcap]O[/dropcap] grande problema do romance é instruir-se dentro dos limites que a linguagem (gerada para o efeito) lhe dita. Não me estou a referir ao desaguisado do tempo das vanguardas, nem à despolarização do mundo pós, muito menos a teorias literárias, a códigos rígidos ou a cânones.

Instruir significa pontificar, descobrir e compreender-se a si mesmo dentro de certas fronteiras. Por exemplo: existe uma pedagogia para se saber olhar de alto a baixo diante de um espelho. É uma disciplina de que o romance é excelente aluno há já alguns séculos: conseguir criar uma pose e um dado ângulo para poder ser lido, contemplado e convenientemente interpretado.

Os romancistas seguem o ângulo e o rasto sem perceberem a sua invisibilidade (invisível é o fio do marionetista). Tal como os pintores do paleolítico que orientavam a tinta – ou o sangue – seguindo as fissuras e as falhas das rochas mais escarpadas, assim os romancistas perseguem o seu rasto.

Seguir o ângulo e o rasto não é copiar ou navegar apenas paralelamente à costa. Seguir o rasto pode ser transgredir, reinventar, descolar ou jorrar a tinta à Pollock para cima do nada. Seja de que modo for, os romancistas progridem sob a sombra do rasto. Sentam-se continuadamente ao espelho. Investem na pose para cada circunstância concreta da navegação. Agarram-se copiosamente ao leme para melhor captarem o que a linguagem (para aquele efeito) lhes dita.

Uma página de um romance tem que se sentir fielmente dentro do seu aquário, com a temperatura ambiente e a luz apropriadas aos seres vivos que apresenta, preserva e põe em acção. Não há um lado de fora, só existe um lado de dentro. Há muito que se sabe que representar é um logro, sobretudo num mundo em que as identidades se esbatem e em que tudo é cada vez mais um simulacro (e não um reflexo ‘real’ seja do que for).

O rasto é afinal o plano inclinado que empurra silenciosamente a escrita para o lado de dentro desse aquário com paredes de vidro que tão bem simula o infinito ou, se se preferir, um indefinido – mas tão aparente – espectro de possibilidades.

Essa página (que são todas as páginas de todos os romances do mundo) sabe que foi treinada para criar alguns impactos, de acordo com o seu próprio DNA que lhe concede uma matéria e um modo específico para a poder moldar. Enfim, essa especificidade possibilita rotações de diversos tipos, mas não deixa de ser uma especificidade.

Por exemplo, estamos a ler ‘Devoção’ de Patti Smith, é ainda de noite, Eugénia tem uma espingarda nas mãos e Alexandre está nu, meio a dormir, deitado no colchão. Acorda mais divertido do que alarmado e, ao ver Eugénia aos pés da cama com o cano virado para si, repete três vezes a palavra “Philadelphia” antes de levar o tiro e de, ao amanhecer, o seu corpo ser colocado “debaixo de terra”.

A acção é atravessada por uma inevitabilidade. Já vinha de trás, como sempre sucede. Um ou outro imponderável (ou deslocações aparentemente inesperadas) complementam esse caminho inevitável, caso da reiterada palavra “Philadelphia” que se ‘ouve’ ou da sensação de ‘divertimento’ imputada a Alexandre. Há que dar voz ao acaso, sabendo-se que o que lhe equivale na escrita não passa de um belo felino com a cauda de fora (mais um simulacro com as devidas unhas à mostra). Constata-se, por fim, uma certa rudeza que acompanha os actos, no sentido em que o guião sugerido se cumpre sem digressões. A economia lexical cria conotações bem mais produtivas, já se sabe (questão de oficina, pois há coisas que realmente se aprendem no ginásio literário, basta exercitar qb. e ter alguma humildade).

Tal como a ave de rapina se agarra à sua presa, também a gramática ata sempre os nós à rede de factos que (potencialmente) pareceria querer libertar-se e disseminar-se. É superior às suas próprias forças. Uma mancha de óleo que se disperse em alto mar acabará igualmente por se limitar aos seus contornos. Em oceanografia, existem modelos que simulam a circulação das manchas de óleo tendo em conta a composição química dos elementos, as correntes, o vento e as ondas. Mas uma coisa é certa: estas manchas geradas pelas (criminosas) injecções dos petroleiros não sobem pela estratosfera acima criando aí uma cinematografia aérea. Há gramáticas e forças (como a da gravidade) que não o autorizam.

A narrativa literária também está comprimida à sua fatalidade chã: não se descomprime de modo a permitir interpretar Alexandre independentemente da espingarda, ou de modo a permitir interpretar Eugénia independentemente de estar aos pés da cama a olhar para Alexandre. O que se lê já está vincado pela sua própria ciência oceanográfica. O leme do escritor exercita a pulsão e o poder até de comover os leitores, mas fá-lo apenas no interior do seu aquário (para dentro do qual saltamos na nossa operação de leitura).

Ler é, pois, uma descida às águas de um aquário, porventura de um oceanário. Mas é uma descida com instrutores que somos nós próprios a criar a temperatura e o cromatismo do romance (e até o tipo de algas que desejamos reconhecer ao longo desse mergulho algo alucinogénico). O que ele nos empresta é um modelo de simulação que permite respirar dentro de água. Assim se efectiva a instrução dos efeitos: o romancista pontifica, a obra ejecta o seu produto e o leitor explica-se (e compreende-se) a si mesmo dentro da invisibilidade das fronteiras que lhe são dadas.

Não é uma má experiência, convém sublinhar. Por vezes pode incendiar os sentidos ou até dar sentido a uma vida inteira. Há quem acredite nisso piamente. Mas é uma experiência problemática e sobretudo frágil como o são todos os submarinos que cruzam as águas em profundidade. Uma falha, um corte de energia, algum tempo fora de prazo ou uma brevíssima explosão e o livro logo é atirado para o canto da prateleira.

Diferente seria um projecto literário que fosse capaz de transformar o aquário discursivo numa cinematografia aérea e assim atrair os leitores para um voo tão desconforme quanto absolutamente irrrealizável. Como sou um escritor ainda jovem, não perdi a esperança de vir a realizá-lo.

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