h | Artes, Letras e IdeiasGeometria descrita João Paulo Cotrim - 17 Jul 2019 Monumental, Lisboa, 6 Julho [dropcap]É[/dropcap]ramos poucos a celebrar o Levi [Condinho] no lançamento alfacinha do seu, por interpostos Miguel Martins e António Cabrita, «Pequeno Roteiro Cego». Ainda assim, chegámos para reconhecer as figurações fulgurantes do seu espírito. Torna-se fácil, ao falar dos seus versos, resvalar para a personalidade, tal o carisma. Sem evitar cair na saborosa armadilha, esqueci detalhe que se me fez caro, a presença nos poemas de um deus doméstico, mas indomesticável, parceiro de conversas, objecto de desafio, afinal, suprema melodia identitária. De assinalar, a celebração da amizade do Miguel com o autor, as interpretações do [José] Anjos e os Favola da Medusa a repercutir improvisos. Seguiu-se jantar na Coutada, recheado como poucos a recordações. Há momentos – ou serão lugares? – que se fundem em antenas. Mártires da Pátria, Lisboa, 6 Julho Não vem cantada, a notícia. Morreu João Gilberto quando o oiço no peito, na cabeça, nas mãos? Ai, esta maneira de estender os versos que nem roupa lavada, cheirosa. Ai, a dança das linhas nos dedos, que vi de perto, em tolo êxtase – por onde andam essas fotos? Ai, a simplicidade em crescendo até ao nó do que nos explica, a dor cantada e o riso acanhado, o amanhecer e a carne, a boémia e a fé, a alegria palpável por entre lágrimas, o sussurro e a inflexão, o desdobramento que nem linha de comboio, a doba da lã, a dobra do linho, a roupagem perfumada e dobrada nas gavetas do fundo de nós. Este sussurro fez-se chão, é céu, é rumo, «é madeira de vento, tombo da ribanceira/ é o mistério profundo, o queira ou não queira/ é o vento ventando, é o fim da ladeira/ é a viga, é o vão, festa da cumeeira// é a chuva chovendo, é conversa ribeira/ Das águas de março, é o fim da canseira». «Águas de Março», que melhor rol da vida inteira? «É o fundo do poço, é o fim do caminho/ no rosto o desgosto, é um pouco sozinho». O Verão finou-se, sobro cada vez mais sozinho. Santa Bárbara, Lisboa, 7 Julho Ignoro a agenda sufocante, nem preciso do pessoano conselho. Dormito e acedo à tentação da lingerie contada por voz anónima nas «Confissões de Um Travesti» (ed. Orfeu Negro), e ilustradas pelo João [Maio Pinto] (exemplo algures na página). Pode uma cabeça perdida encontrar-se pela palavra? Quem escreva para pensar não pode ignorar a potência do texto erótico, que parte do estímulo mais livre em busca do pensamento, revelando que as formas não se soltam das ideias. Ou vice-versa. Este texto voa baixinho e a maior parte das transparências são apenas isso, descrição do que perpassa. Duvido que o autor fosse, de facto, travesti. Quando muito, voyeur, provavelmente apenas curioso em modo de exercício divertido. Salvam-se as luxuriantes ilustrações do João. Possuem momentos explícitos, suscitados pelo texto, mas são apenas mais uma peça de um lego governado pelo olhar. O corpo desfaz-se em elementos, que se juntam a outros naturais, pau, pedra, planta, espinhos, mecânicos, bomba de bicicleta, urdiduras, textos, farrapos, «dis-formas», cores, mesclados em composição surreal e orgânica, vitrais de improvável catedral. Na celebração fulminante do desejo, somos partes, momentos, gestos. Um olho pode ser lábio. E vice-versa. Horta Seca, Lisboa, 11 Julho Devia tê-lo feito. Os anos-anões que me sobram permitiriam esse quebrar as regras, mais ainda as íntimas, que as outras lá foram sendo desobedecidas, com muito respeitinho. Não consegui rasgar a página e pô-la em altar defronte. Para que os olhos, e o corpo por inteiro na sequência, ali encontrassem, refrigério. «Luz teimosa», eis o título deste fascinante desenho-de-luz de Fernando Lemos, incluído na colecção Ph. (ed. Imprensa Nacional), em quarto volume que se afirma definitivamente no papel de extraordinário serviço público, que disso falamos quando se acendem memórias. Em canto de corredor, estas linhas de luz parecem conversar, as portas abrindo para segredo, bocas do mistério permitindo o contacto fulcral de subtis fonteiras, alicerces de um real por acontecer, ou então cenário do sucedido. O artista revela de que falamos quando falamos de surrealismo: dá-se aqui o reverso. Casa que seja nossa, íntima de sangue e sopro, deve ser erguida sobre alicerces de luz. Os cruzamentos espectrais de cintilações conspiram para erguer habitação. As portas sussurram entre si, talvez incomodadas pelo olhar da fotografia, afinal sinónimo de fotógrafo. Não arranquei a foto, não fui capaz. Encontro nestas notáveis fotografias, que fazem dos rostos enormes palcos do humano, as sonoridades marítimas de João Gilberto. E o seu gesto de quase nada, uma nota apenas que muda. «Quanta gente existe por aí/ Que fala fala e não diz nada,/ Ou quase nada./ Já me utilizei de toda escala/ E no final não sobrou nada,/ Não deu em nada.// E voltei pra minha nota/ Como eu volto pra você.» Você, o outro que vejo, digo, desejo. O suculento texto de enquadramento de Filomena Serra assinala o peso da cumplicidade e da amizade nestes retratos, na simplicidade afinal desconcertante da pose, digo, atitude, digo, nudez. Eles são, não estão. Ele Agostinho da Silva, Alexandre O’Neill, Hilda Hist, Jorge de Sena, Sophia, o «irmão» José-Augusto França e por aí adiante. Transfiguram-se em paisagem, desdobram-se, entregam-se. O corpo todo no rosto. A realidade toda na criação. A invenção do desejo. Diz o artista, a modos que «quanto mais desejo/ mais invento o que vejo// quanto mais vejo/ mais invento o que desejo// quanto mais invento/ mais desejo o que vejo». Adega da Bairrada, Lisboa, 12 Julho Andava o gordo a arrastar-se procurando sua sazão, tentando escapar aos assomos de verão sinistro, que se desdobram, acima de tudo, nas fragâncias de quando um quarto do ano era liberdade primitiva, cheia de outros medos, de quartos partilhadas, às vezes, mas distintos sempre, com aberturas acima e abaixo, baralhando os quadrantes do mistério, daqueles universos longínquos, de encontro bruto com a natureza completa, da aranha à vaca, do milho à uva, do leite coalhado ao mosto, do pão acabado de fazer ao peixe frito ao pequeno-almoço, da gadanha ao rádio das noites com noticiário e naperon incluído, natureza que incluía o estiramento da família também, primas e primos e mais primos e mais primas, sem contar com tios e tias, o conjunto regado a implicações e beijos, piores estes que aquelas. O gordo tenta e o passado manda. Vai de almoçar com velhos colegas apenas para confirmar que o passado custa a acontecer para quem tenha a memória desfocada. Temos ainda algures alguma coisa dos vetustos índios do forte Afonso Domingues em ruínas? RTP1, Barcelona, 14 Julho Tive um stick de hóquei. Não me lembro de ter tido patins. Joguei apenas nos corredores pequenos e estreitos da Rua Castelo. Parti jarras e admoestações, «a gente faz o que o coração dita». Devo ter visto mais touradas ao vivo que jogos de hóqueis em patins. Só me acode o Livramento. Nostalgia deve ser esta vibração com modalidade na qual a televisão não substituiu a rádio: quem vislumbra o golo? Celebro, por tido isso, a vitória de um guarda-redes, o mais improvável dos heróis na época dos esteróides. Como encher um alvo e impedir os disparos fulminantes? Perguntem ao Ângelo Girão, campeão do mundo.