Geometria descrita

Monumental, Lisboa, 6 Julho

 

[dropcap]É[/dropcap]ramos poucos a celebrar o Levi [Condinho] no lançamento alfacinha do seu, por interpostos Miguel Martins e António Cabrita, «Pequeno Roteiro Cego». Ainda assim, chegámos para reconhecer as figurações fulgurantes do seu espírito. Torna-se fácil, ao falar dos seus versos, resvalar para a personalidade, tal o carisma. Sem evitar cair na saborosa armadilha, esqueci detalhe que se me fez caro, a presença nos poemas de um deus doméstico, mas indomesticável, parceiro de conversas, objecto de desafio, afinal, suprema melodia identitária. De assinalar, a celebração da amizade do Miguel com o autor, as interpretações do [José] Anjos e os Favola da Medusa a repercutir improvisos. Seguiu-se jantar na Coutada, recheado como poucos a recordações. Há momentos – ou serão lugares? – que se fundem em antenas.

Mártires da Pátria, Lisboa, 6 Julho

Não vem cantada, a notícia. Morreu João Gilberto quando o oiço no peito, na cabeça, nas mãos? Ai, esta maneira de estender os versos que nem roupa lavada, cheirosa. Ai, a dança das linhas nos dedos, que vi de perto, em tolo êxtase – por onde andam essas fotos? Ai, a simplicidade em crescendo até ao nó do que nos explica, a dor cantada e o riso acanhado, o amanhecer e a carne, a boémia e a fé, a alegria palpável por entre lágrimas, o sussurro e a inflexão, o desdobramento que nem linha de comboio, a doba da lã, a dobra do linho, a roupagem perfumada e dobrada nas gavetas do fundo de nós. Este sussurro fez-se chão, é céu, é rumo, «é madeira de vento, tombo da ribanceira/ é o mistério profundo, o queira ou não queira/ é o vento ventando, é o fim da ladeira/ é a viga, é o vão, festa da cumeeira// é a chuva chovendo, é conversa ribeira/ Das águas de março, é o fim da canseira». «Águas de Março», que melhor rol da vida inteira? «É o fundo do poço, é o fim do caminho/ no rosto o desgosto, é um pouco sozinho». O Verão finou-se, sobro cada vez mais sozinho.

Santa Bárbara, Lisboa, 7 Julho

Ignoro a agenda sufocante, nem preciso do pessoano conselho. Dormito e acedo à tentação da lingerie contada por voz anónima nas «Confissões de Um Travesti» (ed. Orfeu Negro), e ilustradas pelo João [Maio Pinto] (exemplo algures na página). Pode uma cabeça perdida encontrar-se pela palavra? Quem escreva para pensar não pode ignorar a potência do texto erótico, que parte do estímulo mais livre em busca do pensamento, revelando que as formas não se soltam das ideias. Ou vice-versa. Este texto voa baixinho e a maior parte das transparências são apenas isso, descrição do que perpassa. Duvido que o autor fosse, de facto, travesti. Quando muito, voyeur, provavelmente apenas curioso em modo de exercício divertido. Salvam-se as luxuriantes ilustrações do João. Possuem momentos explícitos, suscitados pelo texto, mas são apenas mais uma peça de um lego governado pelo olhar. O corpo desfaz-se em elementos, que se juntam a outros naturais, pau, pedra, planta, espinhos, mecânicos, bomba de bicicleta, urdiduras, textos, farrapos, «dis-formas», cores, mesclados em composição surreal e orgânica, vitrais de improvável catedral. Na celebração fulminante do desejo, somos partes, momentos, gestos. Um olho pode ser lábio. E vice-versa.

Horta Seca, Lisboa, 11 Julho

Devia tê-lo feito. Os anos-anões que me sobram permitiriam esse quebrar as regras, mais ainda as íntimas, que as outras lá foram sendo desobedecidas, com muito respeitinho. Não consegui rasgar a página e pô-la em altar defronte. Para que os olhos, e o corpo por inteiro na sequência, ali encontrassem, refrigério. «Luz teimosa», eis o título deste fascinante desenho-de-luz de Fernando Lemos, incluído na colecção Ph. (ed. Imprensa Nacional), em quarto volume que se afirma definitivamente no papel de extraordinário serviço público, que disso falamos quando se acendem memórias. Em canto de corredor, estas linhas de luz parecem conversar, as portas abrindo para segredo, bocas do mistério permitindo o contacto fulcral de subtis fonteiras, alicerces de um real por acontecer, ou então cenário do sucedido. O artista revela de que falamos quando falamos de surrealismo: dá-se aqui o reverso. Casa que seja nossa, íntima de sangue e sopro, deve ser erguida sobre alicerces de luz. Os cruzamentos espectrais de cintilações conspiram para erguer habitação. As portas sussurram entre si, talvez incomodadas pelo olhar da fotografia, afinal sinónimo de fotógrafo. Não arranquei a foto, não fui capaz.
Encontro nestas notáveis fotografias, que fazem dos rostos enormes palcos do humano, as sonoridades marítimas de João Gilberto. E o seu gesto de quase nada, uma nota apenas que muda. «Quanta gente existe por aí/ Que fala fala e não diz nada,/ Ou quase nada./ Já me utilizei de toda escala/ E no final não sobrou nada,/ Não deu em nada.// E voltei pra minha nota/ Como eu volto pra você.» Você, o outro que vejo, digo, desejo. O suculento texto de enquadramento de Filomena Serra assinala o peso da cumplicidade e da amizade nestes retratos, na simplicidade afinal desconcertante da pose, digo, atitude, digo, nudez. Eles são, não estão. Ele Agostinho da Silva, Alexandre O’Neill, Hilda Hist, Jorge de Sena, Sophia, o «irmão» José-Augusto França e por aí adiante. Transfiguram-se em paisagem, desdobram-se, entregam-se. O corpo todo no rosto. A realidade toda na criação. A invenção do desejo. Diz o artista, a modos que «quanto mais desejo/ mais invento o que vejo// quanto mais vejo/ mais invento o que desejo// quanto mais invento/ mais desejo o que vejo».

Adega da Bairrada, Lisboa, 12 Julho

Andava o gordo a arrastar-se procurando sua sazão, tentando escapar aos assomos de verão sinistro, que se desdobram, acima de tudo, nas fragâncias de quando um quarto do ano era liberdade primitiva, cheia de outros medos, de quartos partilhadas, às vezes, mas distintos sempre, com aberturas acima e abaixo, baralhando os quadrantes do mistério, daqueles universos longínquos, de encontro bruto com a natureza completa, da aranha à vaca, do milho à uva, do leite coalhado ao mosto, do pão acabado de fazer ao peixe frito ao pequeno-almoço, da gadanha ao rádio das noites com noticiário e naperon incluído, natureza que incluía o estiramento da família também, primas e primos e mais primos e mais primas, sem contar com tios e tias, o conjunto regado a implicações e beijos, piores estes que aquelas. O gordo tenta e o passado manda. Vai de almoçar com velhos colegas apenas para confirmar que o passado custa a acontecer para quem tenha a memória desfocada. Temos ainda algures alguma coisa dos vetustos índios do forte Afonso Domingues em ruínas?

RTP1, Barcelona, 14 Julho

Tive um stick de hóquei. Não me lembro de ter tido patins. Joguei apenas nos corredores pequenos e estreitos da Rua Castelo. Parti jarras e admoestações, «a gente faz o que o coração dita». Devo ter visto mais touradas ao vivo que jogos de hóqueis em patins. Só me acode o Livramento. Nostalgia deve ser esta vibração com modalidade na qual a televisão não substituiu a rádio: quem vislumbra o golo? Celebro, por tido isso, a vitória de um guarda-redes, o mais improvável dos heróis na época dos esteróides. Como encher um alvo e impedir os disparos fulminantes? Perguntem ao Ângelo Girão, campeão do mundo.

17 Jul 2019

E agora, João?

[dropcap]J[/dropcap]á há algum tempo que tinha isto para dizer. Digo-o agora, por razões que mais adiante explicarei. Pode ter relevância para uns, nenhuma para outros; está certo. Mas é a verdade e neste momento a verdade incomoda-me.

Explico: quando escrevo uma crónica, mais do que querer dar o meu pequeno olhar sobre as coisas, escrevo na esperança arrogante de honrar um legado. Nunca o esqueço, pelo menos.

Falo de uma escola de cronistas de que me sinto próximo – mas que nem por sombras chegarei a uma mísera palavra com a mesma qualidade. Falo de gente como Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Otto Lara Resende, Rubem Braga. Homens que escreviam diariamente – diariamente, por Deus! – e tinham sempre algo para dizer, e sabiam-no dizer com o coração, pegando-nos pela mão e usando a elasticidade da língua portuguesa com uma ternura precisa. Como uma bebida desejada que actua directamente e em simultâneo na cabeça e no coração. Quando escrevo, então, é natural que haja sempre uma pegada, uma sombra de epígono. E quando isso acontece (e acontece sempre) e é detectado, eu fico contente porque é um elogio.

Escrevo um dia depois da morte de João Gilberto. Estes homens que acima citei conheceram-no, assistiram ao que aconteceu, alguns foram até cantados por ele (como foi o caso de Antônio Maria), escreveram sobre ele. Por isso, hoje a sombra é maior, porque estes nomes que invoco não chegam nem servem quando quero dizer adeus a um bocadinho de mim.

Nesta altura maiores, melhores e sempre merecidas elegias já terão sido escritas e ditas a este génio misantropo e maníaco da perfeição. A minha não irá acrescentar nada. Mas, sendo uma necessidade egoísta, não deixa de ser uma necessidade. Depois de Sinatra, Gilberto é para mim – e suspeito que para muitos – o maior interprete da música popular. Amarro-me a esta analogia forçada e injusta para ambos, sabendo que o estilo e o repertório eram diferentes, apenas porque não consigo melhor para dizer o quanto cabem na minha vida. Mas refugio-me na seminal biografia da Bossa Nova de Ruy Castro, Chega de Saudade, e sei que Sinatra tem uma ligação remota com o movimento – e logo, com João Gilberto.

Mas há mais, há tanto que aquele baiano rezingão deixa. A forma doce como canta, as inflexões subtis em determinados versos: oiçam Saudades da Bahia e reparem como é cantado o verso “ai se ter saudade é ter algum defeito/eu pelo menos mereço o direito”, sílaba prolongada e subida na hora certa, o “eu” dito na mesma nota do que “defeito”, uma construção que pulveriza qualquer coração de granito. A falsa simplicidade da guitarra, acordes dificílimos e em suave atraso com a melodia de voz, o que por vezes causa aparente dissonância – daí os puristas (porque são sempre eles, seja qual for o assunto) dizerem que desafinava. Felizmente a resposta veio cantada e é o que sabemos.

E depois, tanto, tanto. João Gilberto, como Tom Jobim, é um dos símbolos daquela revolução conservadora, que mudou sem deixar para trás o que tinha de ficar. Uma vertigem musical feita por miúdos de classe média, bonitos e que dividiam o seu tempo entre o amor pela música, a praia e o fascínio pelo sexo feminino. Uma das minhas canções preferidas, Se É Tarde Me Perdoa, é um perfeito exemplo. Com letra de Ronaldo Bôscoli – ele próprio um moço bem-apessoado e com grande popularidade entre as garotas – fala do regresso e do perdão, de alguém que vadiou durante a noite, viu mil amores e mesmo assim regressa, como um Ulisses boémio. O último verso é um achado de economia e comoção: “Vinha só cansado”. João canta isto como ninguém e sempre me emocionou. Só que esta canção e o seu tema vem já de uma tradição da música brasileira: se ouvirem o lindíssimo Camisa Amarela, samba de Ary Barroso feito muito antes da Bossa Nova, verão muitas semelhanças. E os últimos versos, ditos pela mulher que perdoa: “Passada a brincadeira/ele é só para mim”.

É, João é isso: passado, presente e futuro da nossa alma, espelho e consolo. O único cantor que fui ver duas vezes seguidas – mesmo que na primeira ele tenha saído a meio do concerto, irritado com a mudança do posicionamento da orquestra. João é a possibilidade da esperança, da redenção através da arte. É dos que deixam vida nas vidas, dos que inspiram. Vai ficar, João, vai ficar sim. Mas agora, João, e nós – como é que nós vamos fazer?

10 Jul 2019

Morreu João Gilberto, o “pai” da Bossa Nova

[dropcap]O[/dropcap] cantor e compositor brasileiro João Gilberto, considerado um dos pais da Bossa Nova, morreu este sábado no Rio de Janeiro, aos 88 anos, informou um dos filhos do artista. O compositor morreu em sua casa, no Rio de Janeiro, revelou o seu filho João Marcelo Gilberto, citado pelos media brasileiros.

Na sua página na rede social Facebook, o filho recordou o percurso do músico e compositor. “O meu pai morreu. A luta dele foi nobre, tentou manter a dignidade à luz da perda de sua soberania. Agradeço à minha família (meu lado da família) por estar lá para ele, e Gustavo por ser um amigo de verdade para nós, e cuidar dele como um de nós. Por fim, gostaria de agradecer a Maria do Céu por estar ao seu lado até o final. Ela era sua verdadeira amiga e companheira”.

O sucesso de João Gilberto chegou com o álbum “Chega de Saudade”, gravado em 1959. Uma canção que, apesar de composta por Vinicius de Moraes e musicada por António Carlos Jobim, outros mestres da Bossa Nova, acabaria por ficar na memória de muitos devido à interpretação peculiar de João Gilberto, que influenciaria novas gerações de músicos, como foi o caso de Chico Buarque ou Caetano Veloso. Álbuns como “O amor, o sorriso e a flor”, de 1960 e “João Gilberto”, de 1961, iriam cimentar esse papel, nunca perdido, de pai da Bossa Nova. Em 2015, a revista Rolling Stone Brasil considerou-o o segundo melhor músico de todos os tempos, um lugar que apenas foi ultrapassado apenas por Tom Jobim.

Caetano Veloso, que se encontra em Portugal, disse à RTP sobre a morte do mestre: “Acabei de saber que o João morreu, para mim isso é importante de mais, toma conta da minha cabeça inteira. João é para mim o maior artista brasileiro, sob todos os pontos de vista, não só na música popular, para mim, na história da minha vida, é o maior artista do mundo. Ele foi muito mais que uma inspiração, foi uma revelação”.

7 Jul 2019