Jun Jiang, urbanista: “Em Pequim vive-se entre a Terra e o Céu”

Jun Jiang esteve em Macau como orador na palestra “On Home”, promovida pela Docomomo Macau, para debater o papel da curadoria aplicada à arquitectura. Ao HM, o urbanista falou dos desafios da arquitectura moderna na China e do seu desenvolvimento nos últimos anos. Jun Jiang foi ainda o fundador da primeira revista de análise do desenvolvimento urbanístico no continente, a Urban China

 

Como vê a evolução da arquitectura na China?

[dropcap]H[/dropcap]á uma espécie de confusão ou mesmo contradição na arquitectura moderna chinesa que oscila entre conceitos mais actuais e outros mais antigos. No entanto penso que se começa a chegar a um modelo capaz de unir as divergências, tendo em conta não apenas a concepção de arquitectura enquanto forma de arte, mas numa perspectiva que vai além da própria forma, em direcção ao chamado imaginário. Digamos que existe uma divergência entre as tendências que vêem o espaço e o tempo como conceitos absolutos e as que colocam estes conceitos em termos de relatividade. Originalmente, as características chinesas arquitectónicas como as que existem nas fachadas ou nos telhados eram facilmente identificáveis pela forma. Mas, descobriu-se que quando estas formas eram combinadas com o betão moderno, resultavam numa mistura desastrosa. No entanto, foi possível olhar para as características chinesas de outra forma, abrindo possibilidades. Tudo começou com a ida de um historiador japonês à China em 1905 dando origem a um livro publicado nos anos 30 sobre a história da arquitectura chinesa. Este historiador foi à cidade proibida em Pequim e descobriu que o maior buda que ali existia era mais pequeno do que aquele que ele conhecia no Japão. Contudo, a sensação que teve e que escreveu foi outra: O buda da cidade proibida, apesar de menor, era mais forte e com maior grandeza. A questão estava em saber porquê. Aquele buda fazia parte de uma construção maior em que estavam presentes outros que variavam de dimensão, de maiores a mais pequenos. Estando englobado num cluster, este buda parecia maior do que o que era. Quando falamos de  cluster queremos dizer que todas as coisas se juntam dentro de um campo. E este campo é relativo, não é absoluto, o que significa que temos comparações e relatividade entre os seus elementos. Na arquitectura moderna, um arranha céus pode ser pensado enquanto um cluster, como se fosse, por exemplo, uma montanha. O cluster permite ter a qualidade da mudança contínua dentro de uma constante, de um mesmo lugar. Tendo em conta esta possibilidade, eu posso estar sempre numa posição de curiosidade sobre o que vou ver a seguir. Esta é também a ideia dos jardins chineses, em que um determinado espaço esconde sempre um segredo que faz com que as pessoas se sintam curiosas e que pode ser materializado em fontes, altos e baixos ou pequenas montanhas. Ao passar esse “segredo” aparece outro e quando se olha para trás, olha-se para um outro tempo, anterior, e isso apresenta-se como um novo espaço relativo. Toda esta ideia está por detrás da construção. É o chamado padrão da sequencia diferencial, ou seja um padrão que varia sempre dentro de uma sequência que se mantém constante. Isto vai além da forma e é tipicamente chinês.

Esta noção é transportada para a arquitectura moderna?

Não toda, mas depois de 100 anos de exploração os arquitectos chineses descobriram que esta concepção seria a saída do impasse na conjugação de elementos. Não podemos chamar esta concepção de tradicional mas sim de pré-moderna e os seus fundamentos têm ainda agora o seu valor universal. Podemos ter isto aplicado a novos materiais e a novas construções.

Podemos dizer então que a arquitectura chinesa actual ainda tem bases fortes na tradicional?

Acho que esta é uma característica que pode pertencer ao mundo. Quando olhamos para a arquitectura tradicional chinesa temos a madeira e a estrutura, a moldura, que a suporta. Se tirarmos a madeira podemos substitui-la por outros materiais, como o aço ou o betão e ainda assim funciona. Mas o uso da madeira também significa que uma casa pode ser construída apenas por uma pessoa usando as suas mãos. Já com cimento isso não é possível. Mas talvez seja possível faze-lo com aço. E isto é o que está a começar a acontecer nos EUA ou na Europa em que cada vez mais pessoas constroem a sua própria casa. E de alguma forma esta metodologia vem da forma chinesa de construção. Mas o sistema arquitectónico chinês tem diferentes dimensões.

E quais são elas?

São quatro. A primeira tem que ver com a  relação entre o ser humano e a natureza, também conhecido por Fengshui e diz respeito à escolha do local de construção e como coordenar a arquitectura do edifício com a natureza circundante, incluindo a luz, o vento, a água e a orientação. O segunda dimensão diz respeito à construção, que acabámos de falar e que engloba os materiais, a estrutura e a própria forma de edificar. A terceira é o plano que tem em conta o padrão da sequência diferencial em que a construção é planeada em cluster. Aqui a ideia é ter diferentes espaços, uns cheios e outros vazios. O espaço cheio, na física quântica significa o objecto e o vazio, o campo, ou então, num lugar está a partícula e no outro está a onda, um é massa e outro é energia. Quando estas duas entidades ficam frente a frente, o espaço entre elas é distorcido pelo magnetismo e é quando alguma coisa acontece. Finalmente há a dimensão de jardim, em que se combina o plano com a relação entre a natureza e o ser humano numa utopia, numa natureza artificial em que as pessoas vivem. No jardim as pessoas podem criar um tempo ilimitado num espaço limitado. A arquitectura moderna utiliza este sistema de quatro dimensões. Arquitectos como o conhecido Wang Zhu estão a usar este sistema em que a arquitectura e a construção têm por base o trabalho manual enquanto o jardim se apoia no trabalho intelectual.

Falou do Fengshui. Qual a sua aplicação em termos urbanos?

Pequim é planeado de acordo com o Fengshui . É uma cidade situada muito perto da chamada “coluna do dragão” da China que separa o país em duas partes, a rica e a pobre. Por exemplo se alguém viver em Hangzhou está demasiado longe da parte mais pobre. O que é que isto significa? As pessoas ali, mais ricas, são muito egoístas, mais acomodadas e sem vontade de explorar, vivem já na “utopia”. Por outro lado, as pessoas das zonas mais pobres tendem a ser mais exploradoras a ir para outros lados. Podemos dizer que em Pequim se vive entre a Terra e o Céu.

Actualmente, como é o desenvolvimento da arquitectura no país?

O padrão da cidade é grandemente influenciado pelo padrão económico. Depois de 2005, o ano da reforma monetária na China, entrou muito dinheiro no país. Abrir as portas à moeda estrangeira era um dos requisitos da entrada da China na Word Trade Organization. Esta moeda fazia parte da reserva financeira de moeda estrangeira, era trocada em renminbi e ia para o mercado. Para absorver este dinheiro novo, a China começou usar o investimento imobiliário, com a construção e uso de terra. Havia várias hipóteses de direccionar este dinheiro: podia ser para  mercado da bolsa, para os bens de consumo diário e para a área da habitação e terra. O Governo decidiu que a maior parte iria para esta última. Os preços do imobiliário aumentaram muito. Por causa desta opção, o continente vive uma situação semelhante ao mercado liberal de Macau e de Hong Kong, em que o planeamento é muito influenciado pela demanda económica, pelo desejo, em que qualquer pedaço de terra tem que render dinheiro. Mas depois de 2017, a China lançou uma nova zona económica, Xiongan muito próxima de Pequim. É um projecto muito pequeno, tem uma população estimada em dois milhões de pessoas e é baseado num novo modelo financeiro: o industrial.

E como é que este modelo influencia a arquitectura?

Depois de Xiongan, o investimento imobiliário terminou. Não se pode comprar uma segunda casa, não se consegue empréstimos, se se for estrangeiro não se consegue fazer o registo para compra de casa, etc. Como tal, todo o sistema financeiro associado às terras e imobiliário está quase congelado. Mas o dinheiro que foi para este mercado, não sai. Não colapsou, não houve descidas de preço, mas não mexe, nem para cima nem para baixo. Isto significa que o dinheiro, depois de tantos anos a entrar, neste mercado da terra, está parado. Não se pode ir buscar. Por outro lado, parte deste dinheiro acabou por reverter para os Governos locais porque 20 a 40 por cento do valor da terra vai para o Estado. Fizeram dinheiro com a terra e transferiram esse dinheiro para a construção de infra-estruturas: Auto-estradas, comboios de alta velocidade, aeroportos, electricidade e agora o desenvolvimento da tecnologia 5G. A arquitectura não está ligadas às infra-estruturas mas é grandemente beneficiada. Por exemplo, na China em 2006 a 2013 houve um movimento chamado as novas aldeias socialistas em que estas infra estruturas foram alargadas a áreas rurais. Por outro lado, foram criados projectos rurais em que o investimento financiava as domésticas o que fez com que os locais tivessem mais poder de compra. Com isso os arquitectos começaram a ter mais trabalho também. A renovação destas áreas inclui ainda a construção e hotéis por exemplo, e de edifícios tradicionais, ou seja, mais oportunidades para a arquitectura.

Como vê o desenvolvimento urbanístico de Macau?

Macau tem um problema semelhante a Hong Kong. São territórios monopolizados pelo mercado à volta dos terrenos e do imobiliário. Mas Macau tem ainda os casinos. Toda a gente trabalha nalguma coisa associada ao jogo. O Governo já gastou muito dinheiro para diversificar a industrias aqui mas não parece a estar a resultar. Para mim o jogo não traz valor ao território. Trata-se de uma política especial que Macau tem e da qual não pode depender para sempre. O jogo está também ligado a várias indústrias ilegais como o tráfico de drogas e a prostituição. Um país como a China não vai tolerar isto para sempre. Penso que o jogo não terá um futuro eterno aqui. Mas esta é a minha opinião pessoal. Por outro lado, Macau deveria ter um turismo multidimensional, uma cultura virada para o desenvolvimento do turismo a longo termo, mais do que aquele que é virado para o visitante do jogo.

Tendo em conta o forte papel do jogo actualmente e ao qual é inevitável fugir, o que poderia ser feito para usar a indústria de modo a desenvolver o planeamento da cidade e sua arquitectura?

Isso seria possível. Poderia ser mesmo uma revelação, saber como estas empresas ligadas ao jogo fiquem menos orientadas apenas para as apostas. Por exemplo, 40 por cento das receitas da indústria vai para o Governo, mas talvez esta proporção deva mudar e ser maior até porque acredito que destas receitas só uma pequena parte é usada para beneficio público, e talvez 30 por cento delas vão para lado nenhum. No futuro deveria existir uma supervisão desta aplicação do dinheiro. Com esta aplicação de montantes maiores vindos das indústrias ligadas a actividades menos lícitas pode acabar por conseguir financiar, talvez, outras actividades, com mais benefícios para o território, e fazer com que se desenvolvam.

Como encara o projecto da Grande Baía?

Já existem várias zonas como esta no continente, pelo menos três. A de Xangai tem uma orientação para o Pacífico, para as Coreias e mesmo para o Japão. Está virada para o mundo de frente e por trás tem toda a China. Mas  a Grande Baía está virada para a sudeste asiático, o que pode ser uma porta no mar do sul da China. Isto pode ser uma oportunidade tendo em conta a produção de muitos bens de consumo naquela área. Depende de como for usada. Mas também tem vantagens. É uma área que implica regiões politicas diferentes contando com as regiões autónomas especiais. A par destas regiões políticas temos as regiões económicas. No entanto, são regiões que não se ouvem entre si. A cidade mais bem sucedida da Grande baía é claro, Shengzhen que vai ser a cidade dominante da região. Hong Kong é uma cidade preguiçosa. É rica porque aproveitou o meio século em que foi o único porto da China proibida sendo a porta entre o mundo e o continente. Shengzhen beneficiou de varias regiões da China. Tem o factor intelectual com a chegada de muitos intelectuais na altura de Mao, e tem o desenvolvimento tecnológico. Também é uma cidade dominada pela cultura do norte da China. Todas as outras regiões da Grande baía, são dominadas pela cultura do sul que é menos aberta. Talvez porque no norte se está mais próximo de Pequim, uma capital que viu as mudanças de imperadores e dinastias. As pessoas de Pequim têm uma mente mais política e também mais aberta mais dirigida à mudança, e as pessoas de Zhengzhen tem mais este tipo de mindset.

Macau tem alguma oportunidade?

Macau é muito pequeno. É verdadeiramente pequeno, o que traz muitos problemas. Penso que Macau pode ter um papel na forma de ligar os países de língua portuguesa.

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